Devemos saudar a corrida presidencial de Bernie Sanders, apesar de termos conhecimento de seus limites.
Bhaskar Sunkara
Bernie Sanders comemora sua primeira vitória eleitoral como prefeito de Burlington em 1981. |
Tradução / "Eu não sou um soldado do capitalismo. Eu sou um revolucionário proletário... Eu sou contra todas as guerras, exceto uma". Foi o que disse o senador Bernie Sanders, em 1979, ao citar, para uma coletânea da Folkways Records, o discurso do famoso candidato presidencial pelo Partido Socialista norte-americano Eugene V. Debs.
A linguagem estava deslocada, em um país prestes a viver a era Reagan, onde até mesmo as mais modestas conquistas do Estado de bem estar social norte-americano estariam sob ameaça. Ainda assim, dois anos depois, Sanders tornou-se o prefeito da maior cidade do estado de Vermont. O Vermont Vanguard Press celebrou a “República Popular de Burlington” com uma edição especial. Sanders pendurou um quadro de Debs em seu novo escritório. O quadro hoje está na parede do seu escritório no Colina Hill.
Tecnicamente, Sanders é um independente que disputa as convenções partidárias junto ao Partido Democrata. E sua própria variedade de socialismo é mais semelhante à do ex-primeiro-ministro sueco Olof Palme, também um social democrata, do que à de Debs, um simpatizante dos bolcheviques. Sanders gosta de comparar o sucesso dos países escandinavos, com seus Estados de bem estar social, com a desigualdade no interior da sociedade americana, destacando a miséria infantil e falta a assistência médica acessível. Suas soluções – cobrança progressiva de impostos e serviços públicos robustos – não estão muito distantes daquelas que seus colegas mais liberais no Senado, como a senadora Elizabeth Warren – propõem.
Para Sanders, o manto de socialista é acima de tudo um aceno à rica história americana de radicais e reformadores, aqueles que foram amplamente apagadas da história do progresso nacional por forças conservadoras no país, assim como pela Guerra Fria no exterior. O próprio padrão de Sanders em suas votações, alinha-se muito com os progressistas no Partido Democrata. Como Howard Dean afirmou em Meet the Press, em 2005, “ele é basicamente um democrata liberal... A verdade é que Bernie Sanders vota 98% das vezes com os democratas”.
A base democrata concorda. Por anos, eles evitaram que o partido colocasse candidatos para concorrer contra ele em Vermont – mais um sinal de que o rótulo de socialista já não evoca imagens de filas para o pão e gulags.
Sanders não oferece aquela visão emancipatória, ou com princípios políticos anti-imperialistas, que devemos reivindicar da esquerda, mas sua defesa incondicional do Estado de bem estar social contrasta fortemente com as políticas, favoráveis às corporações, de sua concorrente Hillary Clinton. E como Elizabeth Warren provavelmente não concorrerá em 2016, apenas Sanders pode empurrar as primárias para a esquerda, obrigando Hillary a assumir uma série de compromissos audaciosos para apaziguar (e depois afastar, quando eles não forem cumpridos) uma descontente base progressista.
Ao contrário da maior parte da Europa, os Estados Unidos nunca tiveram um forte partido trabalhista que disputasse o poder e construísse um generoso Estado de bem estar social. Porém, durante boa parte do século passado, muitos no Partido Democrata foram capazes de construir alguns fragmentos disso, dentro de certos limites.
Os movimentos que exerceram esse papel – sindicatos, organizações de direitos civis e grupos comunitários – ainda estão por aí. Mas por não terem controle estrutural algum sobre um partido que, fundamentalmente, representa os interesses do capital, são facilmente colocados de lado. À medida em que a distância entre eles e as políticas perseguidas por líderes do partido, como Barack Obama, torna-se mais evidente, não surpreende que comecem a erguer suas vozes.
Hillary Clinton está profundamente enraizada na tradição Novos Democratas, e teve um papel na criação das políticas que se tornaram o senso comum dentro do partido. Os Novos Democratas juntaram-se sob o auspícios do já falecido Democratic Leadership Council (DLC), no final dos anos 1980. Quando o “tribute-e-gaste” tornou-se eleitoralmente inviável, os democratas supostamente deveriam promover um governo cada vez mais reduzido e menos atuante (ainda que brincassem com uma política social progressista, nas margens)
É inegável o papel dos Clintons na transformação do Partido Democrata em plano nacional, ao longo dos anos 1990 (no processo, obtiveram recompensas eleitorais de curto prazo). Afinal de contas, foi o presidente Bill Clinton – e não Ronald Reagan – que equilibrou o orçamento e colocou um fim ao “bem estar social como o conhecemos”. E foi Hillary Clinton, então primeira-dama, que apoiou de maneira forte as mudanças promovidas pelo DLC, como a emenda de reforma no Estado de bem-estar social de 1996.
O presidente Obama, apesar de suas promessas de mudanças na batalha das primárias em 2008 contra Hillary, não se desviou da agenda de interesses do DLC. Os liberais mais tradicionais opuseram-se às políticas dos Novos Democratas, à falta de ação de Hillary quanto às mudanças climáticas e à agressiva política externa que incluiu o apoio à invasão do Iraque.
Nos últimos anos, a maré política continuou a se mover contra os Clintons, especialmente quando começou a crise financeira de 2008. À direita, o movimento Tea Party, politicamente engajado e ativo, ganhou a maior parte das manchetes. Porém, o movimento Occupy, as insurgências trabalhistas como a greve do Sindicato dos Professores de Chicago, as ações dos trabalhadores de fast-food, os protestos contra a violência policial e a maior atenção dada a desigualdade de renda – tudo isso aponta para a incipiente reemergência da esquerda americana.
Eleitoralmente, um mix eclético de personalidades lutou para preencher os espaços que as ações populares abriram – desde o prefeito de Nova York, Bill de Blasio, até populistas no Senado como Elisabeth Warren. Mas exceto Sanders, nenhuma dessas figuras está preparada para disputar em 2016.
Sanders descreveu sua possível candidatura como uma tentativa de construir organização e pressão a partir da esquerda: “Se eu concorrer, meu trabalho será ajudar reunir gente para um tipo de coalizão capaz de vencer e transformar a política”. Isso seria a mais profunda tentativa de fazer algo do tipo entre o Partido Democrata desde a eletrizantes campanhas de Jesse Jackson na década de 1980.
Sanders pode apenas sonhar em reunir as forças políticas que Jackson conseguiu, e as razões para que os liberais mais convencionais queiram que Hillary vença as primárias são fáceis de entender. Na esfera nacional, ela é figura mais conhecida e popular na corrida do Partido Democrata; e pode sustentar a popularidade do partido entre as mulheres. Ela é dura de ser batida, e uma grande vitória em 2016 pode pavimentar o caminho para um Congresso de maioria democrata.
Mas as pesquisas indicam que, assim como o Partido Republicano despenca para a direita, o eleitorado que se declara democrata está tendendo de maneira coerente e uniforme para posições progressistas. No núcleo de uma potencial base para a campanha de Sanders, está a divisão cada vez maior entre a liderança centrista do partido e os eleitores que ainda mantêm a visão dos democratas como o partido do New Deal e da Grande Sociedade.
Talvez como resposta ao renovado fervor na direita, mais democratas afirmam ser a favor de um governo ativo, capaz de regular as corporações e garantir serviços sociais. Esse grupo de liberais enxerga os poucos êxitos de Obama – a reforma na assistência médica, por exemplo – como insuficientes, considerando as concessões oferecidas por seu governo às corporações. A ausência de uma organização como um Tea Party, para articular politicamente esses sentimentos, abre espaço para que Sanders consolide os progressistas em um bloco eleitoral coerente.
Enquanto isso, como o site Politico reportou, Hillary é vista, por alguns grandes doadores liberais, como alguém muito centrista para merecer apoio. Até mesmo aqueles que não compartilham das políticas social-democratas de Sanders querem que ela seja desafiada pela esquerda e veem o candidato como uma potencial alavanca para tirar o Partido Democrata da posição de centro-direita.
É mais provável que seja Sanders quem altere o tom e o conteúdo do debate, do que alguém como Dennis Kucinich, o congressita de Ohio que atuou com a voz progressista solitária nas recentes primárias presidenciais, mas jamais conseguiu conquistar um apoio maciço. Sanders é levado a sério pelos eleitores. Ele tem a credibilidade, e a bagagem, de alguém que é um senador, e é uma voz poderosa na defesa da redistribuição de riqueza.
Em uma era de estagnação econômica, as frustrações que outrora foram caladas podem ferver, em descontentamento aberto. Há um número suficiente de pessoas à esquerda, da coalizão democrata, para dar dor de cabeça à campanha de Hillary. Seus planos de se descolar para o centro, para turbinar o mais rápido as perspectivas para as eleições gerais, saíram sem dúvidas dos trilhos, por conta do crescimento de Sanders.
Não será, é claro, suficiente para vencer desta vez; mas, se vista como uma oportunidade para a construção de um movimento, a candidatura de Sanders pode fortalecer a esquerda no longo prazo. As tensões entre os democratas são sérias e podem aumentar a possibilidade para o realinhamento das forças progressistas em bases totalmente diferentes.
Para Sanders, o manto de socialista é acima de tudo um aceno à rica história americana de radicais e reformadores, aqueles que foram amplamente apagadas da história do progresso nacional por forças conservadoras no país, assim como pela Guerra Fria no exterior. O próprio padrão de Sanders em suas votações, alinha-se muito com os progressistas no Partido Democrata. Como Howard Dean afirmou em Meet the Press, em 2005, “ele é basicamente um democrata liberal... A verdade é que Bernie Sanders vota 98% das vezes com os democratas”.
A base democrata concorda. Por anos, eles evitaram que o partido colocasse candidatos para concorrer contra ele em Vermont – mais um sinal de que o rótulo de socialista já não evoca imagens de filas para o pão e gulags.
Sanders não oferece aquela visão emancipatória, ou com princípios políticos anti-imperialistas, que devemos reivindicar da esquerda, mas sua defesa incondicional do Estado de bem estar social contrasta fortemente com as políticas, favoráveis às corporações, de sua concorrente Hillary Clinton. E como Elizabeth Warren provavelmente não concorrerá em 2016, apenas Sanders pode empurrar as primárias para a esquerda, obrigando Hillary a assumir uma série de compromissos audaciosos para apaziguar (e depois afastar, quando eles não forem cumpridos) uma descontente base progressista.
Ao contrário da maior parte da Europa, os Estados Unidos nunca tiveram um forte partido trabalhista que disputasse o poder e construísse um generoso Estado de bem estar social. Porém, durante boa parte do século passado, muitos no Partido Democrata foram capazes de construir alguns fragmentos disso, dentro de certos limites.
Os movimentos que exerceram esse papel – sindicatos, organizações de direitos civis e grupos comunitários – ainda estão por aí. Mas por não terem controle estrutural algum sobre um partido que, fundamentalmente, representa os interesses do capital, são facilmente colocados de lado. À medida em que a distância entre eles e as políticas perseguidas por líderes do partido, como Barack Obama, torna-se mais evidente, não surpreende que comecem a erguer suas vozes.
Hillary Clinton está profundamente enraizada na tradição Novos Democratas, e teve um papel na criação das políticas que se tornaram o senso comum dentro do partido. Os Novos Democratas juntaram-se sob o auspícios do já falecido Democratic Leadership Council (DLC), no final dos anos 1980. Quando o “tribute-e-gaste” tornou-se eleitoralmente inviável, os democratas supostamente deveriam promover um governo cada vez mais reduzido e menos atuante (ainda que brincassem com uma política social progressista, nas margens)
É inegável o papel dos Clintons na transformação do Partido Democrata em plano nacional, ao longo dos anos 1990 (no processo, obtiveram recompensas eleitorais de curto prazo). Afinal de contas, foi o presidente Bill Clinton – e não Ronald Reagan – que equilibrou o orçamento e colocou um fim ao “bem estar social como o conhecemos”. E foi Hillary Clinton, então primeira-dama, que apoiou de maneira forte as mudanças promovidas pelo DLC, como a emenda de reforma no Estado de bem-estar social de 1996.
O presidente Obama, apesar de suas promessas de mudanças na batalha das primárias em 2008 contra Hillary, não se desviou da agenda de interesses do DLC. Os liberais mais tradicionais opuseram-se às políticas dos Novos Democratas, à falta de ação de Hillary quanto às mudanças climáticas e à agressiva política externa que incluiu o apoio à invasão do Iraque.
Nos últimos anos, a maré política continuou a se mover contra os Clintons, especialmente quando começou a crise financeira de 2008. À direita, o movimento Tea Party, politicamente engajado e ativo, ganhou a maior parte das manchetes. Porém, o movimento Occupy, as insurgências trabalhistas como a greve do Sindicato dos Professores de Chicago, as ações dos trabalhadores de fast-food, os protestos contra a violência policial e a maior atenção dada a desigualdade de renda – tudo isso aponta para a incipiente reemergência da esquerda americana.
Eleitoralmente, um mix eclético de personalidades lutou para preencher os espaços que as ações populares abriram – desde o prefeito de Nova York, Bill de Blasio, até populistas no Senado como Elisabeth Warren. Mas exceto Sanders, nenhuma dessas figuras está preparada para disputar em 2016.
Sanders descreveu sua possível candidatura como uma tentativa de construir organização e pressão a partir da esquerda: “Se eu concorrer, meu trabalho será ajudar reunir gente para um tipo de coalizão capaz de vencer e transformar a política”. Isso seria a mais profunda tentativa de fazer algo do tipo entre o Partido Democrata desde a eletrizantes campanhas de Jesse Jackson na década de 1980.
Sanders pode apenas sonhar em reunir as forças políticas que Jackson conseguiu, e as razões para que os liberais mais convencionais queiram que Hillary vença as primárias são fáceis de entender. Na esfera nacional, ela é figura mais conhecida e popular na corrida do Partido Democrata; e pode sustentar a popularidade do partido entre as mulheres. Ela é dura de ser batida, e uma grande vitória em 2016 pode pavimentar o caminho para um Congresso de maioria democrata.
Mas as pesquisas indicam que, assim como o Partido Republicano despenca para a direita, o eleitorado que se declara democrata está tendendo de maneira coerente e uniforme para posições progressistas. No núcleo de uma potencial base para a campanha de Sanders, está a divisão cada vez maior entre a liderança centrista do partido e os eleitores que ainda mantêm a visão dos democratas como o partido do New Deal e da Grande Sociedade.
Talvez como resposta ao renovado fervor na direita, mais democratas afirmam ser a favor de um governo ativo, capaz de regular as corporações e garantir serviços sociais. Esse grupo de liberais enxerga os poucos êxitos de Obama – a reforma na assistência médica, por exemplo – como insuficientes, considerando as concessões oferecidas por seu governo às corporações. A ausência de uma organização como um Tea Party, para articular politicamente esses sentimentos, abre espaço para que Sanders consolide os progressistas em um bloco eleitoral coerente.
Enquanto isso, como o site Politico reportou, Hillary é vista, por alguns grandes doadores liberais, como alguém muito centrista para merecer apoio. Até mesmo aqueles que não compartilham das políticas social-democratas de Sanders querem que ela seja desafiada pela esquerda e veem o candidato como uma potencial alavanca para tirar o Partido Democrata da posição de centro-direita.
É mais provável que seja Sanders quem altere o tom e o conteúdo do debate, do que alguém como Dennis Kucinich, o congressita de Ohio que atuou com a voz progressista solitária nas recentes primárias presidenciais, mas jamais conseguiu conquistar um apoio maciço. Sanders é levado a sério pelos eleitores. Ele tem a credibilidade, e a bagagem, de alguém que é um senador, e é uma voz poderosa na defesa da redistribuição de riqueza.
Em uma era de estagnação econômica, as frustrações que outrora foram caladas podem ferver, em descontentamento aberto. Há um número suficiente de pessoas à esquerda, da coalizão democrata, para dar dor de cabeça à campanha de Hillary. Seus planos de se descolar para o centro, para turbinar o mais rápido as perspectivas para as eleições gerais, saíram sem dúvidas dos trilhos, por conta do crescimento de Sanders.
Não será, é claro, suficiente para vencer desta vez; mas, se vista como uma oportunidade para a construção de um movimento, a candidatura de Sanders pode fortalecer a esquerda no longo prazo. As tensões entre os democratas são sérias e podem aumentar a possibilidade para o realinhamento das forças progressistas em bases totalmente diferentes.
Este é um projeto diferente das tentativas de Michael Harrington (e outros) para converter os democratas em um partido social-democrata mais tradicional, ao forçá-lo para a esquerda. Nosso objetivo deve transcender o Partido Democrata por completo.
Está longe de ser um plano à prova de falhas, mas nesse momento a melhor aposta para a esquerda na arena eleitoral é apoiar tanto as campanhas políticas eleitorais independentes, e as candidaturas primárias de socialistas insurgentes, como as de outros radicais. Ter Sanders defendendo abertamente o socialismo, e contestando o histórico dos Novos Democratas perante uma audiência nacional é um pequeno passo na direção certa.
Certamente há perigos em uma candidatura presidencial de Sanders. Em ocasiões anteriores, tentativas de fortalecer movimentos sociais através de “alguém de fora” nas primárias – como as campanhas de Jesse Jackson – acabam em becos sem saída, e os esforços políticos independentes possivelmente até mesmo enfraquecidos.
Mas a candidatura de Sanders não precisa ser apenas uma convergência das forças de esquerda contra uma nomeação quase certa de Hillary. Ao invés disso, pode ser um caminho para que os socialistas reagrupem-se, organizem-se e articularem o tipo de política que se comunique com as necessidades e aspirações da ampla maioria das pessoas. E poderia começar a legitimar a palavra “socialista”, servindo como estopim para deflagrar conversas a respeito – mesmo que o socialismo de bem estar social de Sanders não vá tão longe.
Uma vibrante campanha de Sanders seria um sinal de que as perspectivas sombrias quanto ao emprego, e a pressão cada vez maior sobre os trabalhadores americanos, estão criando um espaço político para a mudança. Há grande razão para acreditar que, se ele falhar, que vozes radicais poderão tomar seu lugar, levando de volta, ao palco principal da política, a memória de Eugene Debs.
Colaborador
Bhaskar Sunkara é o editor fundador e editor da Jacobin e autor de The Socialist Manifest: The Case for Radical Politics in an Era of Extreme Inequality.
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