Os freelancers têm mais em comum com outros trabalhadores do que com pequenos empreendedores.
Sarah Grey
Jacobin
Tradução / Eu recebi uma estranha ligação no ano passado vinda de Duane Morris, uma firma internacional de direito baseada na Filadélfia. A mulher no telefone disse que a Duane Morris estava trabalhando com o ex-senador Blanche Lincoln e algumas das maiores corporações do mundo, como a Microsoft e o Google, para construírem juntos um “movimento popular” para auxiliar freelancers.
Eu então perguntei como esse movimento faria isso e ela respondeu que as leis trabalhistas tornam os empregadores vulneráveis a processos legais e multas por intencionalmente priorizarem diferentes tipos de trabalhadores – ou seja, contratarem trabalhadores autônomos ao invés de optarem por empregados permanentes (que, por sua vez, teriam acesso à benefícios legais). Essa “vulnerabilidade” cria um desincentivo para que se contratem freelancers e, de acordo com os organizadores desse “movimento”, esse é o maior problema – maior até mesmo que conseguir um seguro saúde, pagar as contas, conseguir sanar o esmagador problema dos empréstimos estudantis ou até mesmo ter acesso a capital – que os freelancers enfrentam nos dias de hoje.
E já que eu sou uma escritora e editora freelancer, ela então me perguntou se eu não queria me unir a essa luta pela minha liberdade de operar meu próprio negócio.
A mulher no telefone me conduziu ao website do movimento – que estava cheio de infotretenimento sobre como defender o direito dos freelancers conduzirem seus próprios negócios – isso sem mencionar palavras cruzadas, fotos felizes de pequenos empresários e um incrível jogo em Flash onde o jogador pode lançar bolas de neve em zumbis com dentes afiados e de terno, supostamente representando os políticos.
O website avisava que leis como a Payroll Fraud Prevention Act (ou Lei da Prevenção de Fraude na Folha de Pagamento) e a Employee Misclassification Prevention Act (ou Lei de Prevenção para Classificação Incorreta dos Empregados) “poderiam forçar milhares de pessoas a fechar seus negócios e demitir seus funcionários. Se isso acontecer, haverá desastrosas consequências para a economia”.
Estava bastante claro que essa tentativa de assustar desse “movimento popular” para tornar mais fácil para as corporações classificarem os trabalhadores como temporários era, de fato, uma tentativa de negar benefícios a uma enorme parcela dos trabalhadores. A presença da Microsoft aqui era uma pista bastante óbvia – a gigante dos softwares é notória por tais práticas e foi processada várias vezes por operários.
Em um contexto econômico onde há uma enorme variedade, nunca antes vista, de trabalhadores como motoristas de táxi, médicos plantonistas e cabelereiros, todos eles estão sendo forçados a trabalhar como “autônomos” ao invés de serem empregados com algum grau de estabilidade. O problema, então, não é que os pequenos negócios precisem de liberdade para operar, mas sim que o que antes era considerado um emprego hoje é considerado um pequeno negócio.
Apagar os limites entre a classe trabalhadora e a pequena-burguesia é algo que beneficia o grande capital – e não pessoas como eu. E eu decidi não me juntar ao “movimento”.
Freelancers que não compram o argumento de que eles são uma parte pequena dos grandes negócios geralmente argumentam que eles são parte daquilo que se chama hoje de “precariado”. O termo emergiu por volta de 2001, diante dos protestos anti-globalização contra o G8 em Genova – ele seria uma mistura entre proletariado e precário, visando com isso descrever a tendência global que se afastava dos empregos formais e ia em direção a um trabalho fragmentado, não-sindicalizado (especialmente em países desenvolvidos) e um enorme crescimento do setor informal (particularmente em economias em desenvolvimento).
Desde então tem havido um considerável debate acerca do termo. O economista Guy Standing escreveu um livro sobre essa nova classe (The precariat: the new dangerous class), composta por “trabalhadores temporários e parciais, sub-contratados, empregados de call centers, e muitos presidiários”, argumentando então que esses trabalhadores não eram parte do proletariado – que ele define de forma bastante precisa como “trabalhadores de longo prazo, com estabilidade, jornada de trabalho fixa, com rotas promocionais definidas, sujeitos à sindicalização e acordos coletivos, com empregos que seus pais e mães podem compreender, lidando com empregadores locais cujos nomes e características eles estariam familiarizados.”
Outros estudiosos questionam as implicações desse termo. Charlie Post argumenta que, antes da Primeira Guerra Mundial, “a vasta maioria dos trabalhadores viviam em condições incrivelmente precárias”, com pouco acesso aos empregos que Standing qualifica como típicos da “classe trabalhadora”; Jan Breman, em sua resenha sobre o livro de Standing, destaca que no Manifesto Comunista Marx e Engels argumentavam que uma das condições que definiam a “proletarização” era a precariedade: “Extirpados dos meios de subsistência da terra, os trabalhadores só podiam sobreviver vendendo sua própria força de trabalho.”
Compondo essa confusão sobre como entender e identificar classes no capitalismo moderno está o fato de que os freelancers, cujos números dispararam nas últimas décadas, são construídos ideologicamente como parte da pequena-burguesia, ainda que da sua parte mais baixa, apesar de terem que vender seu trabalho por salários e, geralmente, viverem receosos, sem acesso a seguro saúde ou outros benefícios – uma espécie de “precari-burguesia”.
Argumentos vindos de cima e de baixo sobre a existência dessa pseudo-classe acabaram popularizando uma série de mitos sobre ela e seus membros. Vamos analisar alguns dos mais comuns para ver se esse conceito de “precari-burguesia” consegue se sustentar.
Mito 1: A extremamente pequena burguesia
A designação de freelancers como uma nova classe empreendedora – um grupo de extremamente pequeno-burgueses e mini-CEOs controlando pequenos negócios que estariam destinados a se tornar verdadeiras corporações – é um dos mitos centrais conectados ao trabalho precário na atualidade.
Eu me tornei uma escritora e editora freelancer em tempo integral em 2011 e, como a maioria dos novos freelancers, me deparei com a penetrante ideologia do empreendedorismo. Há toda uma indústria de livros que propagam esse mito, incluindo The wealthy freelancer, The well-fed writer e – o meu favorito – The Hell Yeah Diaries: Uncensored outbursts on the path to 7 figures. Seja um freelancer com uma renda de seis dígitos! Tome conta de seu destino! Você não é um freelancer, você é o CEO da Você S.A.!
A ideologia é clara: adote uma mentalidade de CEO e em pouco tempo você estará contratando empregados, mudando-se para um lindo escritório e comprando Ferraris. Dúzias de redes de café promovem essa narrativa. Caso você escolha por uma, precisará praticar seus discursos de elevador e trocar cartões de visita com outros trabalhadores de terno. O networking não faz com que você fique mais rico, é claro – é mais provável que você fique agonizando ao perceber que está perdendo uma hora de trabalho produtivo, ao invés de passar semanas lidando com vendedores autônomos de seguro de vida.
A sede de Nova York do Sindicato dos Freelancers (cuidado: não é um sindicato de verdade) define os freelancers como “indivíduos que encararam um contrato de trabalho suplementar, temporário ou projetado nos últimos 12 meses”. Isso, por si só, define 53 milhões de americanos – 34% do total da força de trabalho nacional. De acordo com a fundadora do Sindicato, Sara Horowitz, durante a “Grande Recessão após 2008, o número de americanos que começaram seus próprios negócios atingiu a marca mais alta nos últimos quinze anos – e a maioria deles tinham apenas um proprietário.”
O Sindicato dos Freelancers recentemente fez um levantamento com 5 mil auto-identificados contratantes e descobriu que 40% da força de trabalho independente – 21.1 milhões de pessoas – tem como ocupação seu trabalho autônomo. Outros 14.3 milhões fazem “bicos” enquanto possuem um trabalho permanente. Outros 9.3 milhões têm um trabalho temporário para dar conta de seu trabalho como freelancer e 5.5 milhões são considerados apenas temporários. Apenas 5%, 2.8 milhões, podem ser classificados como freelancers donos de negócios, empregando de uma a cinco pessoas.
Quanto aqueles freelancers que teriam renda de seis dígitos, eles não estão conseguindo esse dinheiro vendendo seu trabalho por hora. A maioria deles vende produtos – como e-books ou videoaulas sobre o que um freelancer deve fazer para ganhar uma renda de seis dígitos (por módicos $49,95). Eles também conseguem isso ao contratarem empregados, ou (mais provável) contratarem vendedores e explorar o trabalho deles – em outras palavras, por adentrarem nas fileiras da verdadeira pequena-burguesia. E, em muitos desses casos, fazer essa transição exige ter acesso a algum capital.
Na verdade, as divisões de classe entre os freelancers é um reflexo das divisões de classe do restante da sociedade – os freelancers são, em sua grande maioria, membros restantes da classe que eles pertenciam antes de se tornarem autônomos. Os 99%, por assim dizer, do mundo freelancer permanecem dentro da classe trabalhadora, vendendo seu trabalho, presos na constante luta contra a classe capitalista pela taxa de exploração do trabalho – mas agora esses capitalistas aparecem como clientes e não mais como chefes.
Rotular os freelancers como empreendedores ao invés de trabalhadores acaba poupando fortunas aos capitalistas em termos de salários, benefícios e tributos trabalhistas. E não é surpreendente, então, que classificar trabalhadores como “contratados independentes” seja uma forma extremamente comum de fraude corporativa – precisamente o tipo de fraude que as companhias que contrataram a Duane Morris querem legalizar.
Além disso, enquanto já é difícil para os trabalhadores que trabalham no mesmo espaço, são pagos salários padronizados e têm contato diário uns com os outros – algo que poucos freelancers experienciam – os trabalhadores autônomos também têm de lidar com a Sherman Antitrust Act (ou Lei Antitrustes Sherman), que serve como mecanismo para definir a padronização salarial como intervenção no mercado e, portanto, ilegal.
Jacobin
Ashley Barron / Open Book Toronto |
Tradução / Eu recebi uma estranha ligação no ano passado vinda de Duane Morris, uma firma internacional de direito baseada na Filadélfia. A mulher no telefone disse que a Duane Morris estava trabalhando com o ex-senador Blanche Lincoln e algumas das maiores corporações do mundo, como a Microsoft e o Google, para construírem juntos um “movimento popular” para auxiliar freelancers.
Eu então perguntei como esse movimento faria isso e ela respondeu que as leis trabalhistas tornam os empregadores vulneráveis a processos legais e multas por intencionalmente priorizarem diferentes tipos de trabalhadores – ou seja, contratarem trabalhadores autônomos ao invés de optarem por empregados permanentes (que, por sua vez, teriam acesso à benefícios legais). Essa “vulnerabilidade” cria um desincentivo para que se contratem freelancers e, de acordo com os organizadores desse “movimento”, esse é o maior problema – maior até mesmo que conseguir um seguro saúde, pagar as contas, conseguir sanar o esmagador problema dos empréstimos estudantis ou até mesmo ter acesso a capital – que os freelancers enfrentam nos dias de hoje.
E já que eu sou uma escritora e editora freelancer, ela então me perguntou se eu não queria me unir a essa luta pela minha liberdade de operar meu próprio negócio.
A mulher no telefone me conduziu ao website do movimento – que estava cheio de infotretenimento sobre como defender o direito dos freelancers conduzirem seus próprios negócios – isso sem mencionar palavras cruzadas, fotos felizes de pequenos empresários e um incrível jogo em Flash onde o jogador pode lançar bolas de neve em zumbis com dentes afiados e de terno, supostamente representando os políticos.
O website avisava que leis como a Payroll Fraud Prevention Act (ou Lei da Prevenção de Fraude na Folha de Pagamento) e a Employee Misclassification Prevention Act (ou Lei de Prevenção para Classificação Incorreta dos Empregados) “poderiam forçar milhares de pessoas a fechar seus negócios e demitir seus funcionários. Se isso acontecer, haverá desastrosas consequências para a economia”.
Estava bastante claro que essa tentativa de assustar desse “movimento popular” para tornar mais fácil para as corporações classificarem os trabalhadores como temporários era, de fato, uma tentativa de negar benefícios a uma enorme parcela dos trabalhadores. A presença da Microsoft aqui era uma pista bastante óbvia – a gigante dos softwares é notória por tais práticas e foi processada várias vezes por operários.
Em um contexto econômico onde há uma enorme variedade, nunca antes vista, de trabalhadores como motoristas de táxi, médicos plantonistas e cabelereiros, todos eles estão sendo forçados a trabalhar como “autônomos” ao invés de serem empregados com algum grau de estabilidade. O problema, então, não é que os pequenos negócios precisem de liberdade para operar, mas sim que o que antes era considerado um emprego hoje é considerado um pequeno negócio.
Apagar os limites entre a classe trabalhadora e a pequena-burguesia é algo que beneficia o grande capital – e não pessoas como eu. E eu decidi não me juntar ao “movimento”.
Freelancers que não compram o argumento de que eles são uma parte pequena dos grandes negócios geralmente argumentam que eles são parte daquilo que se chama hoje de “precariado”. O termo emergiu por volta de 2001, diante dos protestos anti-globalização contra o G8 em Genova – ele seria uma mistura entre proletariado e precário, visando com isso descrever a tendência global que se afastava dos empregos formais e ia em direção a um trabalho fragmentado, não-sindicalizado (especialmente em países desenvolvidos) e um enorme crescimento do setor informal (particularmente em economias em desenvolvimento).
Desde então tem havido um considerável debate acerca do termo. O economista Guy Standing escreveu um livro sobre essa nova classe (The precariat: the new dangerous class), composta por “trabalhadores temporários e parciais, sub-contratados, empregados de call centers, e muitos presidiários”, argumentando então que esses trabalhadores não eram parte do proletariado – que ele define de forma bastante precisa como “trabalhadores de longo prazo, com estabilidade, jornada de trabalho fixa, com rotas promocionais definidas, sujeitos à sindicalização e acordos coletivos, com empregos que seus pais e mães podem compreender, lidando com empregadores locais cujos nomes e características eles estariam familiarizados.”
Outros estudiosos questionam as implicações desse termo. Charlie Post argumenta que, antes da Primeira Guerra Mundial, “a vasta maioria dos trabalhadores viviam em condições incrivelmente precárias”, com pouco acesso aos empregos que Standing qualifica como típicos da “classe trabalhadora”; Jan Breman, em sua resenha sobre o livro de Standing, destaca que no Manifesto Comunista Marx e Engels argumentavam que uma das condições que definiam a “proletarização” era a precariedade: “Extirpados dos meios de subsistência da terra, os trabalhadores só podiam sobreviver vendendo sua própria força de trabalho.”
Compondo essa confusão sobre como entender e identificar classes no capitalismo moderno está o fato de que os freelancers, cujos números dispararam nas últimas décadas, são construídos ideologicamente como parte da pequena-burguesia, ainda que da sua parte mais baixa, apesar de terem que vender seu trabalho por salários e, geralmente, viverem receosos, sem acesso a seguro saúde ou outros benefícios – uma espécie de “precari-burguesia”.
Argumentos vindos de cima e de baixo sobre a existência dessa pseudo-classe acabaram popularizando uma série de mitos sobre ela e seus membros. Vamos analisar alguns dos mais comuns para ver se esse conceito de “precari-burguesia” consegue se sustentar.
Mito 1: A extremamente pequena burguesia
A designação de freelancers como uma nova classe empreendedora – um grupo de extremamente pequeno-burgueses e mini-CEOs controlando pequenos negócios que estariam destinados a se tornar verdadeiras corporações – é um dos mitos centrais conectados ao trabalho precário na atualidade.
Eu me tornei uma escritora e editora freelancer em tempo integral em 2011 e, como a maioria dos novos freelancers, me deparei com a penetrante ideologia do empreendedorismo. Há toda uma indústria de livros que propagam esse mito, incluindo The wealthy freelancer, The well-fed writer e – o meu favorito – The Hell Yeah Diaries: Uncensored outbursts on the path to 7 figures. Seja um freelancer com uma renda de seis dígitos! Tome conta de seu destino! Você não é um freelancer, você é o CEO da Você S.A.!
A ideologia é clara: adote uma mentalidade de CEO e em pouco tempo você estará contratando empregados, mudando-se para um lindo escritório e comprando Ferraris. Dúzias de redes de café promovem essa narrativa. Caso você escolha por uma, precisará praticar seus discursos de elevador e trocar cartões de visita com outros trabalhadores de terno. O networking não faz com que você fique mais rico, é claro – é mais provável que você fique agonizando ao perceber que está perdendo uma hora de trabalho produtivo, ao invés de passar semanas lidando com vendedores autônomos de seguro de vida.
A sede de Nova York do Sindicato dos Freelancers (cuidado: não é um sindicato de verdade) define os freelancers como “indivíduos que encararam um contrato de trabalho suplementar, temporário ou projetado nos últimos 12 meses”. Isso, por si só, define 53 milhões de americanos – 34% do total da força de trabalho nacional. De acordo com a fundadora do Sindicato, Sara Horowitz, durante a “Grande Recessão após 2008, o número de americanos que começaram seus próprios negócios atingiu a marca mais alta nos últimos quinze anos – e a maioria deles tinham apenas um proprietário.”
O Sindicato dos Freelancers recentemente fez um levantamento com 5 mil auto-identificados contratantes e descobriu que 40% da força de trabalho independente – 21.1 milhões de pessoas – tem como ocupação seu trabalho autônomo. Outros 14.3 milhões fazem “bicos” enquanto possuem um trabalho permanente. Outros 9.3 milhões têm um trabalho temporário para dar conta de seu trabalho como freelancer e 5.5 milhões são considerados apenas temporários. Apenas 5%, 2.8 milhões, podem ser classificados como freelancers donos de negócios, empregando de uma a cinco pessoas.
Quanto aqueles freelancers que teriam renda de seis dígitos, eles não estão conseguindo esse dinheiro vendendo seu trabalho por hora. A maioria deles vende produtos – como e-books ou videoaulas sobre o que um freelancer deve fazer para ganhar uma renda de seis dígitos (por módicos $49,95). Eles também conseguem isso ao contratarem empregados, ou (mais provável) contratarem vendedores e explorar o trabalho deles – em outras palavras, por adentrarem nas fileiras da verdadeira pequena-burguesia. E, em muitos desses casos, fazer essa transição exige ter acesso a algum capital.
Na verdade, as divisões de classe entre os freelancers é um reflexo das divisões de classe do restante da sociedade – os freelancers são, em sua grande maioria, membros restantes da classe que eles pertenciam antes de se tornarem autônomos. Os 99%, por assim dizer, do mundo freelancer permanecem dentro da classe trabalhadora, vendendo seu trabalho, presos na constante luta contra a classe capitalista pela taxa de exploração do trabalho – mas agora esses capitalistas aparecem como clientes e não mais como chefes.
Rotular os freelancers como empreendedores ao invés de trabalhadores acaba poupando fortunas aos capitalistas em termos de salários, benefícios e tributos trabalhistas. E não é surpreendente, então, que classificar trabalhadores como “contratados independentes” seja uma forma extremamente comum de fraude corporativa – precisamente o tipo de fraude que as companhias que contrataram a Duane Morris querem legalizar.
Além disso, enquanto já é difícil para os trabalhadores que trabalham no mesmo espaço, são pagos salários padronizados e têm contato diário uns com os outros – algo que poucos freelancers experienciam – os trabalhadores autônomos também têm de lidar com a Sherman Antitrust Act (ou Lei Antitrustes Sherman), que serve como mecanismo para definir a padronização salarial como intervenção no mercado e, portanto, ilegal.
Enquanto é certo que as estruturas de classe podem e mudam de fato com o tempo (como Bertell Ollman apontou em Marx’s uses of class, Marx foi rápido em perceber isso, especialmente em relação aos Estados Unidos), é importante definir elas não com uma lista de atributos em comum, mas em termos de relações de produção – o conflito que está presente no cerne da luta de classes.
Alinhar ideologicamente freelancers com os objetivos de uma pequena-burguesia (algo que até mesmo alguns marxistas fazem, como Eric Olin Wright afirma em sua obra Classes), ainda que eles tenham muito mais em comum com a classe trabalhadora, acaba construindo uma barreira para preveni-los de se organizar e lutar por direitos enquanto trabalhadores. Como Richard Seymour afirma: “a tentativa de obscurecer, ou desaparecer com o conceito de classe é uma missão política deliberada”.
Mito 2: A classe criativa
E que tal a “classe criativa” de freelancers que veem o trabalho como uma tarefa prazerosa, que colocam muitas horas nele por puro amor pelo jogo? Como diz o ditado, “faça o que você ame e você nunca trabalhará um dia sequer em sua vida”.
Por esse ponto de vista, o trabalho criativo seria a “antítese da alienação” – tal como Nicole Cohen situa –, já que trabalhadores culturais que lidam com ideias ou expressão de si recebem “relativa autonomia no processo do trabalho”, com um grau de controle e direcionamento em sua própria obra. Trabalhar em casa, em particular, é algo que liberta o trabalhador do rígido controle do empregador – códigos de vestimentas, filtros de internet, restrições nas pausas; capitalistas perceberam que, como Cohen descreve, “o controle sobre a produção pode ser abandonado desde que isso não seja um empecilho para a exploração”. Se o trabalhador não for assalariado, tudo o que importa é se o trabalho ficará pronto.
Freelancers são comumente tomados como trabalhadores criativos, de colarinho branco e em áreas como mídia, publicidade e tecnologia. Mas a categoria é bastante expansiva e inclui pessoas tão variadas quanto marceneiros, babás, trabalhadoras do sexo, agentes de seguros, assistentes administrativos, artistas, tradutores e intérpretes (e até mesmo a minha própria ocupação que é a de editora).
Algumas dessas ocupações, tais como artistas e escritores, são criativas; algumas ultrapassam a linha entre criatividade e a (mais frequentemente) produção mecânica corporativa (tais como tradutores, editores e redatores); outros trabalham em tarefas “não-criativas” como cuidar de crianças, trabalhos sexuais, trabalhar de babá ou fazer faxina.
A razão pela qual os setores de criatividade, mídia e tecnologia estão tão frequentemente identificados com atividades de freelancer é que essas indústrias adotaram um modelo casuístico para essa posição muito antes de outros ramos industriais adotarem. Como Cohen destaca, a indústria cultural foi pioneira na mudança para formas precárias de emprego, que por sua vez, “serviram como um modelo de trabalho flexível e baseado em projetos, adotado então por outras indústrias”.
Esse modelo agora é reproduzido em toda parte, de universidades à hospitais, até mesmo em salões de beleza. Mas trabalhar como freelancer não significa uma “fuga da exploração existente no antagonismo capital-trabalho”, como percebe a autora – “corporações que dependem do trabalho do freelancer desenvolveram métodos alternativos de extração de mais-valia dos trabalhadores... incluindo aí um aumento no trabalho não-remunerado e na busca agressiva por direitos autorais”. Esse tempo não-remunerado inclui tudo desde pesquisar e pinçar artigos para citação, gerenciamento de projetos, marketing e vendas, trabalho administrativo, tudo que antes era responsabilidade do empregador.
Mas há um pouco de verdade aqui: o trabalho criativo pode, de fato, ser realizador. Pessoalmente, eu gosto de trabalhar em casa, editando para clientes como Haymarket Books e Historical Materialism, certamente bem mais do que quando eu editava materiais para treinamento corporativo em um escritório sem janelas. Eu realmente acabo trabalhando por muitas horas somente para levar adiante projetos que eu realmente amo.
Mas a “carreira de portfólio”, onde os trabalhadores criativos têm que fazer malabarismo com múltiplos clientes e projetos simultâneos para conseguir fazer valer a pena, ao mesmo tempo que usam esses projetos para divulgar suas habilidades no mercado e conseguirem um próximo projeto, é um ato de equilíbrio.
Para cada incrível biografia de Franz Fanon, há muitas horas de ilegíveis relatórios corporativos, produção de websites para corretores imobiliários para conseguir pagar o aluguel, as dívidas estudantis e os planos de saúde.
Os jornalistas freelancers entrevistados por Cohen tratam o jornalismo tradicional como uma certa luxúria, algo que eles fazem durante vários entediantes “bicos” que tomam a grande parte de seu tempo. Enquanto freelancers conseguem aproveitar mais “individualidade... liberdade, independência e auto-controle” (como Marx uma vez disse) do que trabalhadores tradicionais, isso é restringido pela necessidade de vender a sua força de trabalho em uma atmosfera de intensa competição e resiliente pressão para achatar seus pagamentos.
Mito 3: Mas é voluntário!
Os freelancers são empurrados abismo abaixo, ou eles se jogam? Faz alguma diferença?
As pessoas resolvem trabalhar como autônomas por inúmeras razões. Alguns realmente estão em busca de fortuna e glória, tal como se mostram nos estereótipos dos despreocupados millenials; a pesquisa do Sindicato dos Freelancers descobriu que muitos dos freelancers estão felizes com sua escolha de carreira.
E não há dúvidas que não ter um chefe é algo realmente incrível: sem políticas de escritório, sem meias-calças, sem assédio sexual de supervisores sanguessugas, sem ter que pegar café para ninguém, sem ter que viajar à trabalho. E os freelancers também têm o direito de recusar tarefas, ainda que essa liberdade esteja contingenciada à quantidade de trabalho.
Mas por mais interessante que sejam essas coisas, elas não são necessariamente os principais impulsos que orientam a decisão de trabalhar como freelancer.
Uma grande quantidade de trabalhadores autônomos trabalha através de contratos independentes porque suas indústrias foram reestruturadas, eliminando com isso empregos fixos e seguridade empregatícia. Na mídia editorial e de publicidade, por exemplo, escritores, editores, designers e outros profissionais do ramo midiático agora trabalham como freelancers porque a indústria é estruturada em volta de uma equipe-esqueleto que é intensamente explorada nos escritórios, tendo então um exército de reserva de freelancers prestes a serem subcontratados.
Outros recorrem ao trabalho como freelancer porque suas indústrias foram reestruturadas antes mesmo deles chegarem lá, ou até mesmo porque elas foram criadas já dentro desse modelo de exército de reserva. Esse é o caso particular dos trabalhadores mais jovens nas mídias tecnológicas e digitais, onde os tipos de trabalho estável que Guy Standing consideraria como “verdadeiramente proletários” praticamente nunca existiram.
E finalmente, há uma categoria, geralmente subestimada, de trabalhadores que são forçados à condição de freelancer porque as condições tradicionais de emprego acabaram pressionando eles cada vez mais a medida que elas limitaram direitos básicos, como abonar faltas por motivo de saúde, ou licenças para cuidar dos filhos.
A Lei do Abono Saúde Familiar (Family Medical Leave Act), que permite que as trabalhadoras possam tirar licenças-maternidade, se aplica a 10% da força de trabalho; os Estados Unidos e a Papua Nova Guiné são os únicos países no mundo que não garantem legalmente a licença-maternidade.
De acordo com o Escritório de Estatísticas do Trabalho, aproximadamente 75% dos trabalhadores estáveis e 27% dos trabalhadores temporários americanos receberam por ausências ligadas à motivo de saúde. Um trabalhador estável médio, que consiga estabilidade de cinco anos, recebe de oito a nove dias de ausência por saúde anualmente. E esse período pode, ou não, incluir feriados, já que muitos empregadores preferem adotar uma política de “pagar pelo tempo livre” tanto em casos de saúde como em casos de férias.
Já os pais (principalmente os solteiros) e pessoas lidando com doenças crônicas ou lesões, geralmente lidam com uma escolha: trabalhar doente e não tomar cuidados médicos, ou ser demitido por conta da política de seu empregador. Se você não consegue dispensa médica ou não pode ficar em casa cuidando de seu filho, a única saída resta é trabalhar como freelancer. Mais de 40% dos entrevistados pelo Sindicato marcaram que a flexibilidade seria sua primeira motivação para trabalhar como autônomo.
Dado que os fardos de cuidar das crianças e dos idosos geralmente recaem sobre as mulheres, a balança de gênero da força de trabalho dos freelancers é bastante desequilibrada. Eu recentemente participei de uma conferência de editores freelancers onde mais de 75% dos presentes eram mulheres.
Surpreendentemente, as pesquisas recentes do Escritório de Estatísticas do Trabalho apontam que a diferença salarial para as mulheres (que é de 77 cents por dólar nas mulheres brancas e chega a 51 cents nas mulheres negras e latinas) aparece reduzida e quase inexistente no mundo dos freelancers, dependendo claro, de outros fatores como raça. Isso sugere que algumas dessas trabalhadoras podem calcular que a discriminação no mercado de trabalho torna essa situação praticamente impossível, fazendo com que elas abandonem a ideia de estabilidade dos empregos formais tradicionais.
Então, fica a dúvida: podemos dizer que essas trabalhadoras se jogaram no abismo, ou foram empurradas para ele?
Mito 4: A classe impossível
Já nos disseram muitas e muitas vezes, em tons entristecidos, mas firmes, que o setor freelancer é praticamente impossível de se organizar. A verdade dessa afirmação ainda está para ser confirmada, ainda que seja verdade que as tentativas de organizar esse setor não se mostraram bem-sucedidas.
Há alguns poucos sindicatos independentes de faz-de-conta que os trabalhadores podem participar: por exemplo, o Sindicato dos Freelancers, que garante aos trabalhadores conselhos, networking, descontos em negócios e serviços e, em algumas partes do país, a oportunidade de comprar planos de saúde coletivos. Ainda que a instituição advogue pelos interesses dos freelancers, ela não organiza ou se envolve em conflitos salariais ou qualquer tipo de luta de classes. De fato, Atossa Abrahamiam argumentou que ao pacificar os freelancers, o Sindicato dos Freelancers presta um serviço valioso ao capital.
Outros freelancers (inclusive eu) fazem parte do Sindicato Nacional de Escritores (Registro Local 1981 do Sindicato Nacional de Autônomos), que foi criado como uma organização independente de escritores freelancers em 1983 e se tornou parte do Sindicato Nacional de Autônomos em 1991.
O nosso sindicato intervém em disputas salariais e em casos onde há exploração flagrante e coletiva o suficiente para a organização dos trabalhadores – como por exemplo, ao ir atrás de revistas que cotidianamente enganam escritores e os deixam sem receber. Ele também oferece oficinas educacionais e conselhos legais para seus membros.
Mas nenhuma dessas organizações podem ser chamadas de sindicatos no sentido mais tradicional do termo e nem sequer possuem força suficiente para definir salários. Esses métodos de organização ainda exigem algum tipo de concentração dos próprios trabalhadores para serem eficientes.
Freelancers talvez precisem de novas formas de organização. Uma possibilidade pode ser juntar-se a empregados domiciliares em suas atividades – algo que os recentes esforços organizacionais ocorridos na empresa Gawker Media podem nos ensinar muito.
Mas se uma parte daquilo que definimos como classe é a própria consciência de classe, fica cada vez mais claro que enquanto trabalhadores mal remunerados lutam por um salário de 15 dólares a hora e que estudantes se recusam a pagar suas dívidas universitárias, os freelancers não podem mais se alinhar ideologicamente à pequena-burguesia. Essa categoria cada vez mais vem das fileiras da classe trabalhadora, labutando por salários baixos e compartilhando os interesses mais primários – além de toda sua precariedade – com a grande maioria dos trabalhadores.
Nós não somos uma "precari-burguesia" – nós somos o futuro da luta de classes.
Colaborador
Sarah Grey é uma escritora freelancer e editor. Ela vive em Fishtown, Filadélfia.
Há alguns poucos sindicatos independentes de faz-de-conta que os trabalhadores podem participar: por exemplo, o Sindicato dos Freelancers, que garante aos trabalhadores conselhos, networking, descontos em negócios e serviços e, em algumas partes do país, a oportunidade de comprar planos de saúde coletivos. Ainda que a instituição advogue pelos interesses dos freelancers, ela não organiza ou se envolve em conflitos salariais ou qualquer tipo de luta de classes. De fato, Atossa Abrahamiam argumentou que ao pacificar os freelancers, o Sindicato dos Freelancers presta um serviço valioso ao capital.
Outros freelancers (inclusive eu) fazem parte do Sindicato Nacional de Escritores (Registro Local 1981 do Sindicato Nacional de Autônomos), que foi criado como uma organização independente de escritores freelancers em 1983 e se tornou parte do Sindicato Nacional de Autônomos em 1991.
O nosso sindicato intervém em disputas salariais e em casos onde há exploração flagrante e coletiva o suficiente para a organização dos trabalhadores – como por exemplo, ao ir atrás de revistas que cotidianamente enganam escritores e os deixam sem receber. Ele também oferece oficinas educacionais e conselhos legais para seus membros.
Mas nenhuma dessas organizações podem ser chamadas de sindicatos no sentido mais tradicional do termo e nem sequer possuem força suficiente para definir salários. Esses métodos de organização ainda exigem algum tipo de concentração dos próprios trabalhadores para serem eficientes.
Freelancers talvez precisem de novas formas de organização. Uma possibilidade pode ser juntar-se a empregados domiciliares em suas atividades – algo que os recentes esforços organizacionais ocorridos na empresa Gawker Media podem nos ensinar muito.
Mas se uma parte daquilo que definimos como classe é a própria consciência de classe, fica cada vez mais claro que enquanto trabalhadores mal remunerados lutam por um salário de 15 dólares a hora e que estudantes se recusam a pagar suas dívidas universitárias, os freelancers não podem mais se alinhar ideologicamente à pequena-burguesia. Essa categoria cada vez mais vem das fileiras da classe trabalhadora, labutando por salários baixos e compartilhando os interesses mais primários – além de toda sua precariedade – com a grande maioria dos trabalhadores.
Nós não somos uma "precari-burguesia" – nós somos o futuro da luta de classes.
Colaborador
Sarah Grey é uma escritora freelancer e editor. Ela vive em Fishtown, Filadélfia.
Nenhum comentário:
Postar um comentário