13 de maio de 2015

Raciocinação ideológica

Leda Maria Paulani

Folha de S.Paulo

Frank Hahn, nome dentre os maiores no desenvolvimento da teoria que busca demonstrar o virtuosismo dos mercados em sua vocação para o equilíbrio, asseverou nos anos 1990 que a ciência econômica que se compraz com teoremas e axiomas está com os dias contados.

Ademais, afirmou que quem insiste em ladainhas age como adepto de religião, tanto mais ortodoxo ficando quanto mais visíveis são os sinais do declínio de sua igreja.

A surpreendente afirmação me veio à mente ao ler, em suas colunas nesta Folha, as críticas de Samuel Pessôa e Alexandre Schwartsman à entrevista que dei ao "Valor Econômico" em 23 de abril. Dentre afirmar que desconheço os dados, sugerir irracionalidade em minha argumentação e perguntar em que mundo vivo, todos os estratagemas foram utilizados para desqualificá-la.

A reação não é despropositada: atingindo o coração dos dogmas que sustentam a macroeconomia nossa de cada dia, essa que a mídia repercute à exaustão e se tornou a bíblia dos mercados, questionei o furor ortodoxo com o resultado primário negativo ocorrido em 2014.

Dado que o superavit primário integra a santíssima trindade da crença, a par do regime de metas de inflação e do câmbio flutuante, natural a indignação.

Como não rezo pela cartilha ortodoxa, penso que o Estado deve ter poder e liberdade para agir de maneira contracíclica, que macroeconomicamente a poupança não é precondição do investimento, que a inflação não é sempre resultado de excesso de demanda, que a doença holandesa é praga que afeta os países periféricos.

Por viver em país que ainda não se construiu como nação, penso que não há razão que justifique o nível atual da taxa de juros; que falar em excesso de demanda com a economia patinhando há quatro anos beira o nonsense; que não há razão que justifique sermos sempre culpados de "não fazer a lição de casa" em razão de uma relação dívida/PIB de 34% (fora reservas), quando a do Reino Unido é 100% e a do Japão é 230%!

Por viver em país que padece de fratura social vexatória, penso que não se pode abrir mão de um Estado interventor e com mão forte para taxar capitais e tributar fortunas, não apenas para fazer políticas públicas; para introduzir progressividade em nosso sistema tributário, não apenas para fazer políticas compensatórias; para investir em infraestrutura, não para fazer política de campeões globais; para alavancar o mercado interno, não para desonerar folha de pagamento.

Tem lá sua graça ver ideólogos falando em realidade, gregoriando cantochões ortodoxos à moda de verdades científicas, verdades tão sagradas que questioná-las passa por coisa de doidivanas. Mas eles nunca se lembram de mencionar os pressupostos de que partem.

Assim, dizer que o país não pode ter deficit de 6,7% do PIB em razão de nossa reduzida taxa de poupança pressupõe que a poupança precede o investimento –isso é verdade, mas no orçamento doméstico! E crer que se governa um país como se governa uma casa, francamente.

Se magicamente os brasileiros dobrassem sua poupança, a situação poderia ser antes pior do que melhor, porque se deprimiriam as expectativas. Foi para ficar com os pés fincados na realidade que me imunizei contra esse tipo de raciocinação, como diria Hegel.

A diferença entre quem repete os manuais de economia americanos e um francês que pensa, está aí à vista de todos, nas livrarias: "O Capital no Século 21". Ou seriam também ambos, Thomas Piketty e Hahn, radicais insensatos?

Sobre a autora


Leda Maria Paulani, 60, professora titular de economia da FEA-USP, foi secretária municipal do Planejamento de São Paulo (gestão Haddad). É autora de "Modernidade e Discurso Econômico" e de "Brasil Delivery" (editora Boitempo).

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