1 de dezembro de 2015

Aborto sob cerco

Retórica anti-aborto virulenta da Direita criou o ambiente que levou ao ataque Planned Parenthood.

Rachel Cohen

Civis sendo escoltados para fora do local do tiroteio da Planned Parenthood em Colorado Springs em 27 de novembro. Andy Cross

Tradução / Os ataques da extrema-direita dos Estados Unidos contra o acesso das mulheres ao aborto tornou-se mortal na última sexta-feira.

A polícia da cidade de Colorado Spring prendeu Robert L. Dear seis horas depois que ele entrou no recinto da organização provedora de serviços reprodutivos Planned Parenthood com um rifle AK-47. Até então, ele já tinha assassinado três pessoas e ferido outras nove.

Por dias, muitos na grande mídia recusaram-se a especular sobre os motivos de Dear, uma restrição que certamente não caracterizou a sua cobertura dos ataques terroristas em Paris duas semanas antes. Mesmo depois que testemunhas relataram que Dear proferiu a frase "Sem mais pedaços de bebês" durante a sua prisão, a polícia afirmou que as intenções do atirador necessitavam de mais investigação.

O presidente Barack Obama publicou uma declaração enquanto o ataque ainda se desenrolava, exigindo uma resposta prática para cercear o acesso às armas e apoiar os agentes de segurança pública que estavam no cenário. Obama não usou nenhuma vez as palavras "mulheres", "aborto", nem mesmo "assistência médica".

A sua mensagem deve ter ressoado entre muitas pessoas que conhecem Colorado Springs como um lugar onde as ideias de direita têm crescido, e Colorado como o Estado onde os legisladores tiveram seus mandatos revogados em 2013, depois de apoiarem a legislação de controle de armas.

Mas a decisão de Obama de esquivar-se de qualquer comentário sobre os direitos das mulheres ao aborto como um serviço de assistência médica foi covarde, um sinal da sua má vontade, comum entre seus colegas democratas, de tomar uma posição clara em defesa dos direitos das mulheres e das vidas das pacientes e dos prestadores de assistência médica.

O governador do Colorado, John Hickenlooper, um democrata, igualmente instou seus eleitores de ambos os lados a "pegar leve com a retórica" nos debates sobre o aborto. "Acredito que precisamos ter uma discussão para, pelo menos, pedir cautela para quando vamos discutir alguns desses assuntos, assim não levamos as pessoas a um ponto em que elas saem e cometem violência", afirmou.

Em outras palavras, os que apoiam o direito da mulher à escolha e a missão da Planned Parenthood de fornecer assistência médica às mulheres devem se silenciar, ou então assumir a responsabilidade pela violência dos fanáticos contrários ao aborto.

Aos que não querem fingir que está tudo bem, a afirmação de Dear sobre "pedaços de bebês" era uma óbvia referência às alegações caluniosas contra a Planned Parenthood feitas por políticos republicanos no Congresso em meio a campanha eleitoral presidencial.

A direita pegou um vídeo manipulado, inventado pelo ironicamente intitulado Centro pelo Progresso Médico (CMP, na sigla em inglês), no qual faz-se aparentar que os funcionários da Planned Parenthood falavam sobre uma empreitada ilegal com fins lucrativos, quando na verdade estavam discutindo a prática legal e medicamente vital de tornar o tecido fetal de abortos tardios disponível para pesquisas que podem salvar vidas.

Os vídeos falsos e, agora, completamente descreditados vão muito além da "retórica inflamada". Eles transmitem mentiras deliberadas que poderiam levar o CMP ao tribunal para encarar um processo criminal ou civil.

A mentira da direita deveria ter sido facilmente reconhecida depois que outros vídeos difamatórios similares e também da direita levaram um congresso liderado por democratas a retirar os fundos da organização contra a pobreza ACORN em 2009, além de levar o Departamento de Agricultura dos Estados Unidos a despedir a veterana na luta pelos direitos civis Shirley Sherrod, em 2010.

Em vez disso, as alegações desprezíveis de que a Planned Parenthood "vende pedaços de bebês" foram tópico de audiências no Congresso, onde a presidente da organização, Cecile Richards, encarou horas de um interrogatório agressivo e condescendente feito pelos legisladores. A alegação falsa foi abraçada nos grupos de base de organizações antiabortivas que fazem piquetes fora de clínicas durante dias nacionais de ação coordenada.

Apesar do CMP distanciar-se da violência de Robert Dear, grupos da direita contrários ao direito à escolha já apoiaram abertamente atos terroristas no passado.

O esforço da direita em difamar o aborto, uma parte normal da assistência à saúde da mulher e necessária para que as mulheres tenham qualquer aparência de igualdade, ao retratarem-no como o “assassinato de nascituros” provocou um fluxo consistente de violência durante diversas décadas, com atitudes que variam desde centenas de atos de vandalismo às clínicas até sequestro, perseguição, ataques, tentativa de assassinato e o assassinato de oito fornecedores de aborto tardio (feito depois do estágio da gravidez em que o feto é considerado viável ou capaz de sobreviver fora do útero) e funcionários das clínicas.

A maioria dos republicanos também se distanciam das ações de Dear, embora seus ataques virulentos à Planned Parenthood em particular e ao aborto em geral montaram o palco para esse tipo de terrorismo.

No programa Fox News Sunday, Carly Fiorina, pré-candidata republicana à presidência, e defensora dos vídeos do CMP, mesmo depois de desmentidos, disse que as tentativas de ligar o atentado da clínica de Colorado à retórica antiaborto era “uma tática típica da esquerda”.

O senador texano Ted Cruz, outro provável presidenciável republicano, teve a ousadia de declarar na campanha eleitoral em Iowa que Dear é um “transgênerado [sic] ativista da esquerda”, mesmo sem nenhuma evidência.

O ex-governador do Arkansas Mike Huckabee, outro pré-candidato presidencial do Partido Republicano, disse à CNN que os assassinatos de Dear eram “terrorismo doméstico”, mas logo em seguida igualou-os aos serviços de aborto da Planned Parenthood. “Não há desculpa para matar outras pessoas, seja dentro dos espaços da Planned Parenthood, dentro de suas clínicas onde milhões de bebês morrem, ou seja quando atacam a Planned Parenthood”, disse Huckabee.

Aumento da violência

As mortes de Colorado Springs são outro exemplo de um crescimento assustador dos ataques terroristas da direita.

Eles vêm atrás dos assassinatos atribuídos a vigilantes adeptos à supremacia branca contra os ativistas do movimento “Black Lives Matter” (Vidas Negras Importam, em tradução livre) em Minneapolis. Neste caso, a polícia prendeu três suspeitos que encheram a internet com mensagens de ódio e discussões públicas sobre seu ataque planejado, mas as autoridades disseram que ainda estão investigando se indiciarão os homens pelas acusações de crime de ódio ou se seus ataques contra os manifestantes podem ser considerados “defesa pessoal”.

Outras formas de crimes de ódio mataram e infligiram danos por todo o país. Por exemplo, ativistas e apoiadores têm apontado para o c em 2015, a maioria das quais eram negras.

Os disparos contra a Planned Parenthood nem sequer são o único ataque do tipo na cidade de Colorado Springs neste ano. Em janeiro, o escritório da Associação Nacional para o Progresso de Pessoas de Cor (NAACP, na sigla em inglês) da cidade foi danificado quando Thaddeus Murphy detonou um dispositivo explosivo. As motivações de Murphy também foram retratadas como “obscuras”, apesar de suas ações perpetuarem um histórico de incêndios criminosos contra organizações que promovem os direitos civis dos negros.

O último assassinato atribuído à violência contra o aborto tirou a vida do fornecedor de abortos tardios Dr. George Tiller, em Wichita (Kansas), em 2009.

A atuação de Tiller em Kansas City convergia violências, incluindo a explosão de uma bomba em 1986 e um ataque a mão armada em 1993, além de anos de manifestações da direta. O movimento antiaborto tem alvejado fornecedores de aborto tardio para especialmente demonizarem-nos, e Tiller era um dentre apenas cinco fornecedores deste tipo de aborto.

A decisão do caso “Roe versus Wade” de 1973 da Suprema Corte dos Estados Unidos garantiu a legalidade para os abortos que acontecem antes da viabilidade do feto e, é fato, a grande maioria dos abortos acontecem durante as primeiras oito semanas de gravidez, antes do embrião tornar-se um feto.

Mas, em casos raros que somam menos de 1% de todos os abortos, a gravidez é terminada depois da vigésima quarta semana. Este procedimento quase sempre decorre de desenvolvimento tardio ou de severas complicações de saúde, mas a direita falsamente retrata os processos que envolvem parto parcial de fetos mais desenvolvidos como representantes de todos os abortos.

O assassinato de Tiller forçou o fechamento da última clínica de aborto que ainda existia em Kansas City e deixou apenas quatro fornecedores de abortos tardios para tentarem atender centenas de pacientes que anualmente encaram o fim trágico de gravidezes desejadas.

Essa morte, junto ao ataque a Colorado Springs, demonstra que as alegações antiaborto de preocupação pela vida do feto coexistem com o violento descaso pelas vidas das mulheres e dos fornecedores de assistência médica. Mas, na verdade, a vida das mulheres está em jogo toda vez que o nosso direito e o nosso acesso à justiça reprodutiva é colocada em risco.

Os ataques do Legislativo visando limitar o acesso ao aborto trazem grande prejuízo principalmente aos mais vulneráveis. Vários estados proibiram abortos tardios, forçando mulheres que carregam fetos severamente doentes a optarem entre colocar em risco a sua saúde, viajando grandes distâncias e pagando milhares de dólares para encerrar a gravidez, ou a darem à luz crianças que enfrentarão um tremendo sofrimento ao longo de suas vidas curtas.

Leis de notificação aos pais exigem que jovens mulheres que podem ter relacionamentos violentos ou inexistentes com seus responsáveis precisem buscar sua permissão para simplesmente exercer o controle sobre seus próprios corpos e vidas. E períodos obrigatórios de espera e aconselhamento psicológico aumentam as despesas de um procedimento que tem se tornado caro demais para muitas mulheres pobres e trabalhadoras.

O fechamento de clínicas tem sido uma das táticas mais eficazes da direita para limitar os direitos reprodutivos na prática, com resultados potencialmente fatais. Seis estados têm agora apenas um fornecedor de aborto, e 87% dos municípios em todo o país não têm nenhum.

No seu próximo mandato, a Suprema Corte dos Estados Unidos deve se pronunciar sobre a constitucionalidade de uma lei aprovada em 2013 no Texas em meio a protestos em massa. Na época em que o projeto de lei antiaborto conhecido como "HB 2" foi aprovado, o estado do Texas contava com quarenta e um fornecedores de aborto em toda a sua grande extensão. Hoje, apenas dezessete clínicas permanecem, e outras podem ser fechadas se a lei for mantida.

Um novo estudo mostra os efeitos dos fechamentos. Pesquisadores perguntaram às mulheres do Texas se elas ou suas melhores amigas tentaram induzir um aborto por conta própria, e o resultado foi de 100 mil a 240 mil tentativas estimadas. Mesmo se estes cálculos dobrarem ou triplicarem a quantidade real, elas representam um grande número de pessoas que enfrentam circunstâncias desesperadoras e potencialmente perigosas.

Rejeitando o medo

Obama e outros líderes políticos vão usar o fato de que policiais estavam entre os mortos e feridos por Dear na tentativa de reabilitar o papel da corporação na segurança pública. Mas podemos olhar para nossas próprias lutas passadas para ver o que realmente fez a diferença na proteção de nossos direitos e vidas.

Nas décadas de 1980 e 90, ativistas reverteram a onda de violência antiaborto ao enfrentar a direita nas ruas e nas calçadas em frente às nossas clínicas. Pequenos grupos de ativistas de defesa às clínicas se uniram em ações durante o auge da violência da extrema-direita e bloquearam as ações de organizações como a Pro-Life Action League (Liga de Ação Pró-Vida, em tradução livre) e Operation Rescue (Operação Resgate). Esses confrontos finalmente ganharam um apoio mais amplo e reuniram participantes suficientes para levar os fanáticos de volta a seus esconderijos.

Mais de uma década depois que a defesa de clínicas, os protestos de rua e as organizações de base diminuíram, não podemos nos dar ao luxo de sermos apologéticas ou temerosas sobre a defesa dos direitos das mulheres. Estamos muito atrasadas em relação a um novo movimento de luta para proteger o aborto como uma parte da justiça reprodutiva que todas as mulheres e todos os que podem engravidar merecem.

Colaborador

Rachel Cohen é organizadora da International Socialist Organization e FURIE (Feminist Uprising to Resist Inequality and Exploitation) em Chicago e colaboradora do Socialist Worker, do qual este artigo foi adaptado.

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