27 de julho de 2017

Os dias de julho

Os bolcheviques queriam evitar o destino da Comuna de Paris. É por isso que eles não assumiram o poder em julho de 1917.

Daniel Gaido

Jacobin

Manifestação política em 18 de junho de 1917, em Petrogrado. A bandeira da esquerda diz "Paz para o mundo inteiro - Todo poder para o povo - Toda terra para o povo" e a bandeira da esquerda diz: "Abaixo os ministros-capitalistas"; estes eram slogans bolcheviques.

Tradução / Em 1917, a Rússia tinha mais de 165 milhões de cidadãos, dos quais apenas 2,7 milhões moravam em Petrogrado. A capital tinha 390 mil trabalhadores de fábrica – um terço eram mulheres – 215.000 a 300.000 soldados como tropas aquarteladas, e cerca de 30 mil marinheiros e soldados estacionados na base naval de Kronstadt.

Após a Revolução de fevereiro e a abdicação do Czar Nicolau II, os sovietes, liderados pelos mencheviques e os socialistas revolucionários, cederam o poder a um governo provisório não eleito que se inclinava a continuar com o envolvimento da Rússia na Primeira Guerra Mundial e a atrasar a reforma agrária até as eleições da Assembleia Constituinte, cuja data foi logo em seguida adiada indefinidamente.

Esses mesmos sovietes também haviam exigido a criação de Comitês de Soldados e os instruíram a desobedecer quaisquer ordens oficiais contrárias às ordens e decretos dos Representantes do Soviete dos Trabalhadores e dos Soldados.

Essas decisões contraditórias produziram uma estrutura de poder dual e instável marcada por crises regulares do governo.

A primeira dessas crises estourou em abril de 1917 durante a guerra e terminou depois que os principais líderes políticos burgueses – Pavel Milyukov do Partido cadete (Partido Democrático Constitucional) e Alexander Guchkov do Partido Outubrista – foram expulsos. Além disso, revelou a impotência do governo na guarnição de Petrogrado: as tropas respondiam ao Comitê Executivo do Soviete de Petrogrado e não ao então comandante, o General Lavr Kornilov.

O governo de coalizão que emergiu desta crise incluiu nove ministros dos partidos burgueses e seis dos chamados partidos socialistas. O príncipe Georgy Lvov permaneceu Primeiro Ministro e Ministro do Interior, mas o Ministro da Guerra e da Marinha Alexander Kerensky, membro do Partido Socialista Revolucionário, logo se tornou uma estrela em ascensão no governo. O gabinete também incluiu o menchevique Irakli Tsereteli como ministro dos Correios e Telégrafos e Matvey Skobelev como ministro do Trabalho. Os revolucionários socialistas Viktor Chernov e Pavel Pereverzev também se juntaram à coalizão como Ministro da Agricultura e ministro da Justiça, respectivamente.

O Partido Bolchevique no verão de 1917

Os Bolcheviques lutaram durante a primeira metade de 1917. Eles inicialmente se opuseram à manifestação do Dia Internacional da Mulher, que levou à Revolução de Fevereiro. O Partido Bolchevique experimentou, em seguida, uma forte guinada à direta em meados de março, quando Lev Kamenev, Josef Stalin e M. K. Muranov retornaram da Sibéria e assumiram o órgão de comunicação do partido, o Pravda. Sob o controle deles, o jornal defendia o apoio crítico ao Governo Provisório, rejeitava o slogan “Abaixo a guerra” e pedia o fim das atividades desorganizadoras no front.

Essas posições contrastavam fortemente com as visões que Lenin expressava em suas “Cartas de Longe”, por isso não é surpresa que o Pravda publicasse apenas a primeira dessas Cartas, com inúmeras exclusões. De acordo com o testemunho de Alexander Shlyapnikov:

O dia da publicação do primeiro número do “Novo Pravda”, 15 de março, foi um dia de triunfo para os “defensistas”. Todo o Palácio Tauride, desde os membros do Comitê da Duma até o Comitê Executivo, o coração da democracia revolucionária, estava repleto com uma notícia – a vitória dos bolcheviques moderados e razoáveis sobre os extremistas. No próprio Comitê Executivo, fomos recebidos com sorrisos venenosos.

Esses pontos de vista prevaleceram entre os líderes bolcheviques em Petrogrado quando, em 3 de abril, Lenin chegou à Estação Finlândia. No dia seguinte, ele apresentou as suas famosas “Teses de Abril” aos delegados bolcheviques na Conferência dos Sovietes de Toda a Rússia. Em contraste com Kamenev e Stalin, Lenin reafirmou seu repúdio total ao “defensismo revolucionário” e defendeu a fraternidade no front. Ele também adotou a perspectiva de Leon Trotsky, caracterizando o “momento atual” como uma transição entre o primeiro estágio “burguês-liberal” da revolução e o segundo estágio “socialista”, durante o qual o poder seria transferido para as mãos do proletariado.

Lenin se opôs ao “apoio crítico” de Stalin e Kamenev ao Governo Provisório, e solicitou a rejeição total a tal Governo bem como a dissipação da noção de que os bolcheviques e os mencheviques menos radicais poderiam se reunificar. Daí em diante, os bolcheviques chamaram à transferência de todo o poder aos Sovietes, que passariam então a armar o povo, abolir a polícia, o exército e a burocracia estatal, bem como confiscar todos os latifundiários e transferir o controle de produção e distribuição aos trabalhadores.

Na Sétima (abril) Conferência do Partido Bolchevique de toda a Rússia, realizada em Petrogrado de 24 a 29 de abril, as posições de Lênin sobre a guerra e o Governo Provisório ganharam o apoio da maioria.

O partido bolchevique permaneceu pequeno no início de 1917, com apenas cerca de dois mil membros em Petrogrado, constituindo apenas 0,5% da classe trabalhadora industrial da cidade. Na abertura da Conferência de Abril, no entanto, o número de membros do partido havia aumentado para dezesseis mil na capital. No final de junho, ele tinha dobrado. Dois mil soldados aquartelados se juntaram à Organização Militar Bolchevique e mais quatro mil se associaram ao Clube Pravda, uma organização não partidária para o pessoal militar, operada pela Organização Militar Bolchevique.

Esse crescimento maciço no número de membros transformou a organização. Suas fileiras cresceram com recrutas impetuosos que pouco sabiam sobre o marxismo, mas que estavam ansiosos por uma ação revolucionária.

Enquanto isso, os bolcheviques começaram a incorporar as organizações existentes. Em 4 de maio, no dia anterior à formação do governo da coalizão, Trotsky voltou do exílio. Agora que ele e Lênin tinham encontrado um terreno em comum, Trotsky começou a conectar sua organização, a Organização Mezhraiontsy ou Organização Interdistrital de Petrogrado, ao partido de Lênin.

Apesar desse crescimento exponencial, os bolcheviques ainda estavam em minoria. Eles representaram menos de 10% dos delegados presentes no Primeiro Congresso dos Representantes dos Sovietes dos Trabalhadores e dos Soldados de Toda a Rússia, que começou em 3 de junho. Este encontro nacional incluiu 1.090 delegados – dos quais 822 podiam votar – que representavam mais de trezentos sovietes de trabalhadores, de soldados e de camponeses, e cinquenta e três sovietes regionais, provinciais e distritais. Os bolcheviques tiveram a terceira maior representação com 105 delegados, atrás dos Revolucionários Socialistas (285 delegados) e dos mencheviques (248 delegados).

Neste momento, Petrogrado tinha três organizações distintas do partido bolchevique: o Comitê Central de nove homens, a Organização Militar de Todos os Russos e o Comitê de Petersburgo. Cada um tinha suas próprias responsabilidades, submetendo-as a pressões diferentes e às vezes conflitantes. O Comitê Central, que teve que considerar a situação de todo o país, frequentemente se via restringindo os grupos mais radicais.

Preparando o cenário

A Organização Militar Bolchevique planejou uma manifestação armada para 10 de junho a fim de expressar uma oposição de massas aos preparativos do Governo Provisório para uma ofensiva militar, uma oposição às tentativas de Kerensky de reinstituir a disciplina no quartel e uma oposição à crescente ameaça de transferência para o front de guerra. A Organização Militar Bolchevique cancelou a ação no último minuto, curvando-se à oposição do Congresso Soviético.

Alguns elementos no Partido Bolchevique, particularmente no Comitê de Petersburgo e na Organização Militar, viram a manifestação abortada como uma potencial revolta. De fato, o próprio Lenin teve que comparecer em uma reunião de emergência para defender a decisão do Comitê Central de cancelar a mobilização planejada. Ele explicou que o Comitê Central tinha que seguir a ordem formal do Congresso Soviético e que a contrarrevolução pretendia usar a manifestação para seus próprios propósitos. Lenin acrescentou:

Mesmo em uma guerra simples, pode acontecer que as ofensivas programadas devam ser canceladas por razões estratégicas e isso é mais provável que ocorra na guerra de classes. É necessário determinar a situação e ser ousado nas decisões.

O Congresso dos Sovietes votou a organização de sua própria marcha uma semana depois, em 18 de junho, e ordenou a participação de todas as unidades militares aquarteladas, desarmadas. Os bolcheviques transformaram esta em uma manifestação maciça contra o governo, com mais de quatrocentos mil manifestantes.

Em seu relato de testemunha ocular da Revolução Russa, Nikolai Sukhanov lembra:

Todos os trabalhadores e soldados de Petersburgo tomaram parte nela. Mas qual foi o caráter político da manifestação? “Os bolcheviques de novo”, observei, olhando os slogans, “e lá atrás deles está outra coluna bolchevique”... “Todo o poder aos Sovietes!” “Abaixo os Dez Ministros Capitalistas!” “Paz para os casebres, guerra aos palácios!” Com esta maneira robusta e pesada, o trabalhador-camponês de Petersburgo, a vanguarda da revolução russa e mundial, manifestou a sua vontade.

Os bolcheviques haviam planejado a manifestação original com a Federação de Petrogrado dos Anarquistas-Comunistas, um dos dois principais grupos anarquistas que operavam naquele momento. O Comitê Revolucionário Provisório Anarquista decidiu superar seu aliado e rompeu com F. P. Khaustov, editor do jornal linha de frente da Organização Militar Bolchevique, fora da prisão de Vyborg.

Em resposta, o governo invadiu a sede dos Anarquistas, matando um de seus líderes. Combinado com a Ofensiva de Julho de Kerensky e novas ordens para armas e homens, o assassinato de Asnin intensificou a agitação militar, particularmente no Primeiro Regimento de Metralhadora. Esses soldados começaram a planejar um levante imediato – com o encorajamento dos Anarquistas-Comunistas – já em 1 de julho.

Na Conferência das Organizações Militares Bolcheviques de Toda a Rússia, os delegados foram alertados a não darem nenhuma vantagem ao governo, ao organizarem um levante desorganizado e prematuro. O discurso de Lenin em 20 de junho soou um aviso premonitório:

Devemos ser especialmente atentos e cuidadosos, de modo a não sermos arrastados por uma provocação. (...) Um movimento errado da nossa parte pode destruir tudo. (...) Se fôssemos agora capazes de tomar o poder, é ingênuo pensar que, tendo-o tomado nós seríamos capazes de mantê-lo em nossas mãos. 
Já dissemos mais de uma vez que a única forma possível de governo revolucionário seria através dos Representantes dos Sovietes dos Trabalhadores, dos Soldados e dos Camponeses. 
Qual é o peso exato da nossa fração no Soviete? Mesmo nos Sovietes das duas capitais, para não falar agora dos outros, somos uma minoria insignificante. E o que esse fato mostra? Não pode ser descartado. Isso mostra que a maioria das massas estão oscilando, mas ainda acreditam nos Socialistas Revolucionários e nos mencheviques.

Lenin voltou a essa ideia em um editorial do Pravda:

O exército marchou até a morte porque acreditava que estava fazendo sacrifícios pela liberdade, pela revolução e pelo alcance da paz o mais rápido possível. 
Mas o exército o fez porque é apenas uma parte do povo, que nesta fase da revolução estão seguindo os partidos Socialistas-Revolucionárias e Mencheviques. Este fato geral e básico, a confiança da maioria na política pequeno-burguesa dos Mencheviques e dos Socialistas-Revolucionários, que depende dos capitalistas, determina a posição e a conduta de nosso Partido.

Mas, nas palavras de Trotsky, os trabalhadores e os soldados:

[L]embraram que, em fevereiro, seus líderes estavam prontos para bater em retirada, exatamente na véspera da vitória; que em março a jornada de oito horas por dia foi conquistada pelas ações dos escalões mais baixos; que em abril Miliukov havia sido expulso por regimentos que foram para a rua por sua própria iniciativa. A lembrança desses fatos aumentou o clima tenso e impaciente das massas. 

Líderes de nível da Unidade da Organização Militar de Petrogrado apoiaram a ação imediata e direta contra o Governo Provisório e muitos membros da base do partido bolchevique já consideravam inevitável e até desejável um levante sem mais demoras.

Mesmo quando a ofensiva estava prestes a entrar em colapso, no entanto, o governo entrou em espiral em outra crise: quatro ministros do partido cadete deixaram a coalizão, protestando contra o compromisso de Kerensky com a Rada Central da Ucrânia. Essa deserção abrupta deixou o governo, agora composto por seis ministros socialistas e apenas cinco capitalistas, desorganizado e vulnerável. À medida que as jornadas de julho começaram, os bolcheviques conquistaram a maioria na seção do Soviete de Petrogrado dos trabalhadores, atestando a sua crescente influência entre as massas.

A manifestação armada

A série de eventos conhecidos como as jornadas de julho começou no dia 3 de julho, quando o Primeiro Regimento de Metralhadora lançou uma rebelião com o apoio de várias outras unidades militares. A eclosão da revolta coincidiu com a segunda Conferência dos Bolcheviques na cidade de Petrogrado, que se iniciou em 1 de julho.

Foi somente quando ficou claro que vários regimentos, apoiados pelas massas de trabalhadores, já haviam tomado as ruas e que os militantes bolcheviques da base estavam participando, que o Comitê Central se juntou ao movimento e recomendou que as manifestações continuassem no dia seguinte sob os auspícios dos Bolcheviques. Embora o Comitê Central entendesse que os manifestantes levariam armas, a recomendação não dizia nada sobre uma revolta armada ou a tomada de instituições governamentais. Em vez disso, a resolução oficial reiterou o apelo bolchevique para “a transferência de poder para os Representantes do Soviete dos Trabalhadores, dos Soldados e dos Camponeses”.

Assim, a Organização Militar Bolchevique assumiu a liderança de um movimento de rua que havia, originalmente, se desenvolvido fora de seu controle. A erupção inesperada jogou o partido em desordem. Aqueles que obedeciam ao Comitê Central e argumentavam a favor do adiamento da revolução encontraram-se em conflito com outros, particularmente os membros da Organização Militar e o Comitê de Petersburgo, que eram a favor de uma ação imediata.

Claro, um partido revolucionário experimenta um crescimento exponencial durante uma revolução: já vimos que o partido bolchevique em Petrogrado cresceu 1.600 por cento em menos de cinco meses. Isso sujeita o partido a uma pressão sem precedentes, que se manifesta em vários graus de intensidade em diferentes órgãos do partido e ameaça separar a organização.

Nenhum arranjo organizacional pode impedir isso; todo um conjunto de circunstâncias – entre elas a confiança que a liderança do partido tenha conquistado – impacta em como os eventos revolucionários se desdobrarão. É por isso que a construção de um partido não pode ser feita no calor do momento, como a Revolução Alemã iria demonstrar.

Em 3 de julho, os manifestantes armados tentaram, sem sucesso, prender Kerensky antes de irem para o Palácio Tauride, sede do Comitê Executivo Central Soviético. Eles pretendiam forçar este grupo a tomar o poder do Governo Provisório.

A multidão – estimada em sessenta a setenta mil pessoas – superou as defesas do palácio e apresentou sua demanda. O comitê executivo recusou. Trotsky capturou a ironia do momento quando ele observou que, enquanto centenas de milhares de manifestantes exigiam que os líderes soviéticos assumissem o poder, a liderança em si estava procurando as forças armadas para usar contra os manifestantes.

No rescaldo da revolução de fevereiro, os trabalhadores e os soldados haviam dado o poder aos Mencheviques e aos Socialistas Revolucionários, mas esses partidos tentaram entregá-lo à burguesia imperialista, preferindo uma guerra contra o povo ao invés de uma transferência de poder sem sangue para suas próprias mãos. Quando os manifestantes de Julho perceberam que a liderança soviética não iria dispensar seus aliados capitalistas – a maioria dos quais deixara o governo por conta própria – a situação atingiu um impasse.

“Tome o poder, seu bastardo maldito, quando ele é dado a você!”

No dia seguinte, Lenin, que estava ausente, na Finlândia, foi direto para a sede do Partido Bolchevique, a mansão de Kshesinskaia. Em breve, marinheiros da base naval de Kronstadt chegaram lá também. O último discurso público de Lenin até depois da Revolução de Outubro não era o que os marinheiros esperavam: ele enfatizou a necessidade de uma manifestação pacífica e expressou sua certeza de que o slogan “Todo Poder aos Sovietes” venceria. Ele concluiu apelando aos marinheiros para que tivessem auto restrição, determinação e vigilância.

As Jornadas de Julho lançaram o Comitê Central Bolchevique, e particularmente Lenin, em uma luz mais que incomum: eles haviam impedido um levante prematuro na capital que, se tivesse acontecido, poderia ter isolado os bolcheviques e esmagado a revolução, como aconteceu com a Comuna de Paris em 1871 e à Revolta Espartaquista em Berlim, em 1919.

Uma forte procissão estimada em sessenta mil participantes dirigiu-se ao Palácio Tauride, apenas para encontrar os franco-atiradores na esquina das Ruas Nevsky e Liteiny e novamente na esquina das Ruas Liteiny e Panteleymonov. A maioria das vítimas, no entanto, veio de confrontos com dois esquadrões Cossacos, que empregaram até artilharia contra os manifestantes. Após essas batalhas campais, os marinheiros de Kronstadt, liderados por Fyodor Raskolnikov, chegaram ao Palácio Tauride, onde se juntaram ao Primeiro Regimento de Metralhadora.

Então, aconteceu um dos eventos mais dramáticos e tragicômicos do dia: Victor Chenov, o chamado teórico dos Socialistas Rveolucionários, foi enviado para acalmar os manifestantes. A multidão o agarrou, e um trabalhador com o punho em riste disse: “Tome o poder, seu bastardo maldito, quando ele é dado a você!”

Eles declararam Chernov sob prisão e o levaram para um carro nas proximidades. A intervenção oportuna de Trotsky salvou o ministro. Sukhanov descreveu a cena bizarra:

A multidão estava em tumulto, tanto quanto os olhos podiam alcançar. (...) Todo o Kronstadt conhecia Trotsky e, alguém teria pensado, a multidão confiava nele. Mas ele começou a falar e a multidão não atenuava os ânimos. Se um tiro tivesse sido disparado nas proximidades naquele momento para fins de provocação, uma enorme matança poderia ter ocorrido e todos nós, incluindo talvez Trotsky, poderíamos ter sido destruídos. Trotsky, excitado e não encontrando palavras nesta atmosfera selvagem, mal conseguia que as fileiras mais próximas o escutassem. (...) Quando ele tentou conduzir o próprio Chernov, as fileiras ao redor do carro se enfureceram. “Vocês vieram declarar a sua vontade e mostrar ao Soviete que a classe trabalhadora não quer mais ver a burguesia no poder [declarou Trotsky]. Mas por que prejudicar a sua própria causa por pequenos atos de violência contra indivíduos casuais? Cada um de vocês tem demonstrado sua devoção à revolução. Cada um de vocês está pronto a dar sua vida por ela. Eu sei disso. Me dê sua mão, camarada! Sua mão, irmão!” Trotsky estendeu a mão para um marinheiro que protestava com especial violência. Mas este recusou-se firmemente a responder. (...) Pareceu-me que o marinheiro, que deve ter ouvido Trotsky em Kronstadt mais de uma vez, teve agora uma sensação real de que ele era um traidor: ele se lembrou de seus discursos anteriores e ficou confuso. (...) Não sabendo o que fazer, os homens do Kronstadt liberaram Chernov.

Chernov retornou ao Palácio Tauride e escreveu oito editoriais condenando os bolcheviques. A revista Socialista Revolucionária Delo nadora finalmente publicou quatro deles.

No entanto, o Governo Provisório, como um todo, se vingou de uma maneira muito mais pérfida: no dia seguinte, começou uma campanha caluniosa que descrevia Lenin – que havia chegado à Rússia viajando pela Alemanha em um trem selado – como um agente a serviço do imperialismo alemão.

Triunfo temporário da reação

Em 5 de julho, o Comitê Executivo Central Soviético e o Distrito Militar de Petrogrado lançaram uma operação militar para reassegurar o controle da capital. As tropas leais ao governo ocuparam a mansão de Kshesinskaia e destruíram a planta de publicação do Pravda. Lenin escapou por pouco.

É inútil especular que, se ele tivesse sido apanhado, teria encontrado o mesmo destino que Rosa Luxemburg e Karl Liebknecht no rescaldo da Revolta Espartaquista, mas podemos encontrar uma pista em uma caricatura publicada no jornal de direita Petrogradskaia gazeta dois dias depois:


As tropas leais também ocuparam as Fortalezas de Pedro e Paulo, que o Primeiro Regimento de Metralhadora havia rendido a mando da Organização Militar Bolchevique. O Comitê Central do Partido instruiu seus seguidores a encerrar as manifestações de rua, convidando os trabalhadores a voltarem ao trabalho e os soldados a retornarem aos seus quartéis.

Enquanto isso, o governo ordenou a prisão dos principais Bolcheviques, incluindo Lenin, Kamenev e Grigory Zinoviev, bem como Trotsky e Anatoly Lunacharsky, os chefes da Organização Interdistrital. Embora alguns desses prisioneiros políticos, incluindo Trotsky, tenham deixado a prisão durante o golpe de Kornilov para organizar a resistência dos trabalhadores, outros permaneceriam na prisão até a Revolução de Outubro.

Assim terminaram as Jornadas de Julho, que foram, nas palavras de Lênin, “algo consideravelmente mais do que uma manifestação e menos do que uma revolução”.

Alguns dos principais líderes do Partido Bolchevique tiveram que passar à clandestinidade, e seus jornais foram fechados, mas o revés foi de curta duração. A ofensiva fracassada do 11º exército na frente sudoeste contra um enorme contra-ataque austro-alemão, acompanhada da deterioração da situação econômica, renovou a validade dos slogans bolcheviques.

Na verdade, os jornais Bolcheviques logo reapareceram com nomes ligeiramente alterados, e os comitês do partido encontraram novas bases muito rapidamente. Desarmar as unidades militares rebeldes, como o governo havia ordenado, era mais fácil dizer do que fazer. Em breve, a derrota do golpe de Kornilov em agosto de 1917 inverteu a situação, criando finalmente as condições para a tentativa bem-sucedida da tomada do poder pelos Bolcheviques.

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