Folha de S.Paulo
Não parece existir dúvida a respeito do repique inflacionário a ser provocado pelo atual curso da maxidesvalorização sem controle do real. É trivial dizer que todo choque de grandes proporções implica mudança dos preços relativos e, por consequência, a reação encadeada dos agentes econômicos na tentativa de resguardar suas participações relativas na renda nacional.
Por conta disso, a indexação manifesta-se rapidamente, ainda que a sua extensão possa ser disforme e parcial. De imediato, surge um grande dilema. O possível salto na taxa de inflação no Brasil representará "apenas" a conformação de um novo patamar mais alto da carestia ou a subida progressiva dos preços conduzida pela inércia inflacionária.
Das estimativas preliminares existentes, pode-se depreender que a nova taxa anual de inflação corre o sério risco de se situar numa faixa acima de um dígito. Isso, por si só, não seria pouca coisa, em se tratando, sobretudo, de uma economia relativamente aberta ao exterior, sem os tradicionais mecanismos de indexação e diante do cenário recessivo.
Para que o repique inflacionário represente tão-somente um novo patamar mais alto do custo de vida, sem a contaminação em cascata de todo o processo de formação de preços da economia, torna-se absolutamente fundamental que o processo distributivo não apresente apenas vencedores, mas, principalmente, perdedores em definitivo, que aceitem a realidade proveniente de uma menor participação na renda nacional.
Em geral, percebe-se que o setor exportador aparece como privilegiado pela nova situação cambial, ao mesmo tempo que as commodities, com preços cotados em dólar no mercado internacional, e as empresas oligopolistas, com condições mais favoráveis para proteger suas margens de lucro, tendem a repassar para preços finais os possíveis impactos de custo. O que significa, em parte, a retroalimentação da cadeia inflacionária.
Mas onde a corrente da alta de preços poderia ser interrompida? Certamente nos seus elos mais débeis, como os setores produtivos vinculados ao mercado interno, especialmente as pequenas e microempresas, que poderão ter suas margens de lucro esmagadas pela escassez de consumidores ou ainda pela inadimplência dos mesmos. Como se sabe, o segmento voltado para o mercado interno possui dificuldades adicionais para repassar imediata e generalizadamente para preços qualquer aumento de custos num cenário recessivo, combinado a altas taxas de juros e à abertura comercial.
Da mesma forma o mundo do trabalho, que, por ser detentor de renda fixa, deverá amargar a maior parte do ônus inflacionário, diante da queda do salário real, que decorre do novo patamar da carestia no Brasil, e da elevação do desemprego, que resulta da recessão. Em outras palavras, o elo fraco da corrente distributiva, representado por empregados assalariados, funcionários públicos, trabalhadores autônomos, aposentados e pensionistas, encontra-se praticamente excluído das possibilidades de utilização dos mecanismos tradicionais de indexação, como forma de procurar garantir sua anterior participação no bolo da renda nacional.
Sem a plena e imediata correção dos salários, a inflação terminará atuando como um novo imposto, responsável pela redução da massa nacional de rendimentos do trabalho estimada em 5% (cerca de R$ 15 bilhões a menos no poder aquisitivo dos trabalhadores). Em síntese, o rendimento do trabalho, que significava 38% da renda nacional em 1996, poderá representar, em 1999, apenas 35%, o que torna ainda mais perverso o atual processo de distribuição funcional da renda no Brasil.
Nesse quadro, a estratégia governamental de combate à elevação do custo de vida parece bastante clara. Mais uma vez, a tentativa de controle da inflação tende a recair sobre os ombros dos trabalhadores, na forma de arrocho salarial e de maior desemprego.
Somente uma negociação nacional com os macropreços nacionais (preços privados, tributos, juros, câmbio e salários) apresenta-se como alternativa à política do silêncio de cemitério que a desindexação e a recessão impõem aos elos mais fracos da corrente distributiva. Mas será que há vontade política suficiente para a implementação de uma política de rendas concertada? Ou se deve acreditar que a capacidade do governo em controlar a inflação reside apenas e tão-somente no desmantelamento do bem-estar social da maior parte da população brasileira?
Sobre o autor
Marcio Pochmann, 36, economista, é professor do Instituto de Economia e pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho (Cesit) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
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