The Rise of Turkey: The Twenty-First Century’s First Muslim Power, Soner Cagaptay, Potomac, 168 pp., $25.95
Gülen: The Ambiguous Politics of Market Islam in Turkey and the World, Joshua D. Hendrick, New York University Press, 276 pp., $49.00
I’mamin Ordusu [The Imam’s Army], Ahmet Şık, 298 pp., disponível em The Opinions
Dois pilotos que pilotam juntos um avião começam a esmurrar-se na cabine. Um deles ejeta membros da tripulação, que ele suspeita que apoiem seu rival; o outro berra que seu copiloto nem é piloto, é ladrão. Nesse momento o avião começa a girar descontrolado e perde altura rapidamente, enquanto os passageiros olham em pânico.
Essas linhas apareceram publicadas em recente coluna de jornal, assinada por Can Dündar, jornalista turco, e não consigo pensar em melhor fórmula para apresentar a confrontação pervertida, evitável, quase de história em quadrinhos, que tomou conta da Turquia desde dezembro passado, e que ameaça desfazer todos os ganhos políticos e econômicos de uma década.
Gülen: The Ambiguous Politics of Market Islam in Turkey and the World, Joshua D. Hendrick, New York University Press, 276 pp., $49.00
I’mamin Ordusu [The Imam’s Army], Ahmet Şık, 298 pp., disponível em The Opinions
Dois pilotos que pilotam juntos um avião começam a esmurrar-se na cabine. Um deles ejeta membros da tripulação, que ele suspeita que apoiem seu rival; o outro berra que seu copiloto nem é piloto, é ladrão. Nesse momento o avião começa a girar descontrolado e perde altura rapidamente, enquanto os passageiros olham em pânico.
Essas linhas apareceram publicadas em recente coluna de jornal, assinada por Can Dündar, jornalista turco, e não consigo pensar em melhor fórmula para apresentar a confrontação pervertida, evitável, quase de história em quadrinhos, que tomou conta da Turquia desde dezembro passado, e que ameaça desfazer todos os ganhos políticos e econômicos de uma década.
As partes em confronto são o primeiro-ministro Recep Tayyip Erdoğan, 60 anos, e um clérigo turco, Fethullah Gülen, 73 anos. Erdoğan lidera o partido que está no governo, “Partido Justiça e Desenvolvimento” (AKP), e trabalha na agitação de Ankara, capital do país. Gülen é o pregador e didata moral mais conhecido da Turquia. Vive em reclusão na Pennsylvania, ao que se sabe em estado precário de saúde (sofre do coração). Gülen preside de modo pouco formal, mas sem dúvida preside, um império de escolas, negócios e uma rede de simpatizantes.
Esse império é que Erdoğan agora chama de “um estado paralelo” ao que ele foi eleito para governar; e está decidido a eliminá-lo. A disputa começou para valer em dezembro passado e tem tido efeito extraordinariamente destrutivo. Muito dos seguidores de Gülen trabalham dentro do governo e têm muito poder. Agora, vastas partes do funcionalismo público foram evisceradas, grande parte da mídia foi reduzida a porta-vozes de uma espécie de revelação politicamente motivada e insinuações, e a economia está parando, depois de uma década de forte crescimento. O milagre turco é passado.
O governo do AKP de Erdoğan e o movimento de Gülen partilham uma ideologia de islamismo modernizante, e embora as relações entre os dois já viessem se deteriorando há algum tempo, antes da atual crise ainda era possível ser associado aos dois grupos. A coexistência acabou repentinamente em 17 de dezembro, quando mais de 50 figuras pró-AKP, entre as quais o presidente do banco estatal Halkbank; um magnata da construção; e os filhos de três ministros do Gabinete foram detidos para interrogatório por procuradores de justiça considerados homens de Gülen.
As prisões foram executadas, ao que se sabe, por policiais gülenistas, e receberam muita atenção dos jornais e redes de televisão, esses, também, com tendência semelhante pro-Gülen. Denúncias de que os bem relacionados prisioneiros seriam culpados de suborno, contrabando e outros malfeitos foram tuitadas e retuitadas num frenesi condenatório-executório; o ataque pelos gülenistas, de dentro do governo e também de fora dele, foi bem planejado. Descobriram-se provas, entre as quais cerca de $4,5 milhões escondidos em caixas de sapatos na casa do principal executivo do banco Halkbank, além de indicações de pagamentos feitos a ministros. Rapidamente se divulgou que uma segunda fase da mesma investigação atingiria também o filho do primeiro-ministro.
***
A velocidade e o vigor da reação de Erdoğan a esses eventos indicam que ele os considerou como precursores de sua própria destruição. Imediatamente, começou a varrer de sua própria entourage traidores potenciais ou nomes que lhe parecessem comprometidos; em poucos dias substituiu metade do próprio Gabinete, inclusive os ministros cujos filhos haviam sido presos para interrogatório. O expurgo alcançou pontos longínquos do funcionalismo civil. Como parte da campanha de Erdoğan contra a influência de Gülen, milhares de policiais foram tirados dos respectivos postos, além de altos procuradores de justiça, envolvidos no caso de corrupção e burocratas associados aos ministros demitidos.
No início de fevereiro, o governo começou a investigar oficiais de polícia gülenistas, acusados de formarem “uma organização ilegal dentro do estado”. Erdoğan suspendeu as investigações judiciais e partiu para a ação direta. A dois meses de eleições municipais e a seis meses de uma eleição presidencial à qual espera concorrer, Erdoğan ainda sobrevive. Mas a tradição política que ele representa, uma síntese de islamismo e livre-mercado, essa, foi gravemente ferida; o primeiro-ministro está também muito gravemente abalado; e há mais abalos por vir.
Antes de o confronto Erdoğan-Gülen começar a ser visto, no início de 2013, e com certeza antes dos protestos nacionais do verão passado, quando liberais turcos tomaram as ruas contra seu autoritário primeiro-ministro, a corrente turca do islamismo modernizante gozava de muitas simpatias. E estava personificada em Erdoğan – que chegou ao poder em 2003, depois de décadas de lutas, pelos islamistas, contra as táticas opressivas de instituições seculares há muito tempo entrincheiradas, sobretudo no Exército e no Judiciário. Nos seus primeiros anos no cargo de primeiro-ministro, Erdoğan pareceu estar conseguindo encaminhar soluções para muitos dos problemas do país. Explorando a forte maioria que tinha o partido AKP no Parlamento, ele conseguiu estabilizar e liberalizar a economia errática, semiplanejada, tornando os turcos mais ricos do que jamais antes; e introduziu várias reformas liberais (o fim da tortura e maiores direitos para os curdos). Talvez mais importante que tudo, pôs as Forças Armadas sob controle das autoridades civis eleitas, as mesma forças armadas que, desde 1960, haviam conseguido derrubar nada menos que quatro governos eleitos.
Em todo esse processo, o partido AKP esteve em uma coalizão não oficial com islamistas menos visíveis; e seu mais poderoso parceiro de coalizão era o movimento de Fethullah Gülen. Suas escolas formavam turcos bem comportados, patriotas e piedosos, e o governo os acolhia bem nas elites burocráticas e de negócios que, aos poucos iam deslocando a velha guarda secular. Erdoğan e Gülen pareciam encarnar a ânsia de muitos turcos por um Islã em harmonia com uma democracia eleitoral, com empreendedorismo e consumismo. E o elemento islamista na fórmula deveria assegurar altos padrões de ética e bom comportamento. Durante anos, a vida pública fora venal, movida a ganância, ambições e apetites; os islamistas prometiam fazer as coisas de outro modo.
Mas há ganância e apetites também entre os islamistas. Pouco depois das primeiras prisões de aliados de Gülen na polícia, em dezembro, um vídeo distribuído por internet mostrava um alto dirigente do partido AKP em flagrante delito. (Abdurrahman Dilipak, colunista conhecido e pró-governo, alegou que haveria mais de 40 outros vídeos em circulação, todos “forjados”). Conversas gravadas envolvendo Gülen também foram vazadas e ouvidas por milhões de turcos. Numa delas, Gülen é ouvido em uma conversa em que se decidia que empresa turca receberia um contrato oferecido por governo estrangeiro. Em outra fita, Gülen e um de seus assessores discutem a probabilidade de três “amigos” (i.e., seus seguidores) em posições chaves na entidade do estado turco que controla os bancos, garantirem proteção a um banco ligado ao grupo de Gülen, o Bank Asya, contra investigações a serem conduzidas pelo governo. (Pouco depois do vazamento, os três funcionários em questão foram demitidos.) Tudo isso mostrava imagem muito diferente de um santo, que vivia vida frugal, de estudos e caminhadas pelas colinas da Pennsylvania, que Gülen cultivara.
No início de fevereiro, o governo começou a investigar oficiais de polícia gülenistas, acusados de formarem “uma organização ilegal dentro do estado”. Erdoğan suspendeu as investigações judiciais e partiu para a ação direta. A dois meses de eleições municipais e a seis meses de uma eleição presidencial à qual espera concorrer, Erdoğan ainda sobrevive. Mas a tradição política que ele representa, uma síntese de islamismo e livre-mercado, essa, foi gravemente ferida; o primeiro-ministro está também muito gravemente abalado; e há mais abalos por vir.
Antes de o confronto Erdoğan-Gülen começar a ser visto, no início de 2013, e com certeza antes dos protestos nacionais do verão passado, quando liberais turcos tomaram as ruas contra seu autoritário primeiro-ministro, a corrente turca do islamismo modernizante gozava de muitas simpatias. E estava personificada em Erdoğan – que chegou ao poder em 2003, depois de décadas de lutas, pelos islamistas, contra as táticas opressivas de instituições seculares há muito tempo entrincheiradas, sobretudo no Exército e no Judiciário. Nos seus primeiros anos no cargo de primeiro-ministro, Erdoğan pareceu estar conseguindo encaminhar soluções para muitos dos problemas do país. Explorando a forte maioria que tinha o partido AKP no Parlamento, ele conseguiu estabilizar e liberalizar a economia errática, semiplanejada, tornando os turcos mais ricos do que jamais antes; e introduziu várias reformas liberais (o fim da tortura e maiores direitos para os curdos). Talvez mais importante que tudo, pôs as Forças Armadas sob controle das autoridades civis eleitas, as mesma forças armadas que, desde 1960, haviam conseguido derrubar nada menos que quatro governos eleitos.
Em todo esse processo, o partido AKP esteve em uma coalizão não oficial com islamistas menos visíveis; e seu mais poderoso parceiro de coalizão era o movimento de Fethullah Gülen. Suas escolas formavam turcos bem comportados, patriotas e piedosos, e o governo os acolhia bem nas elites burocráticas e de negócios que, aos poucos iam deslocando a velha guarda secular. Erdoğan e Gülen pareciam encarnar a ânsia de muitos turcos por um Islã em harmonia com uma democracia eleitoral, com empreendedorismo e consumismo. E o elemento islamista na fórmula deveria assegurar altos padrões de ética e bom comportamento. Durante anos, a vida pública fora venal, movida a ganância, ambições e apetites; os islamistas prometiam fazer as coisas de outro modo.
Mas há ganância e apetites também entre os islamistas. Pouco depois das primeiras prisões de aliados de Gülen na polícia, em dezembro, um vídeo distribuído por internet mostrava um alto dirigente do partido AKP em flagrante delito. (Abdurrahman Dilipak, colunista conhecido e pró-governo, alegou que haveria mais de 40 outros vídeos em circulação, todos “forjados”). Conversas gravadas envolvendo Gülen também foram vazadas e ouvidas por milhões de turcos. Numa delas, Gülen é ouvido em uma conversa em que se decidia que empresa turca receberia um contrato oferecido por governo estrangeiro. Em outra fita, Gülen e um de seus assessores discutem a probabilidade de três “amigos” (i.e., seus seguidores) em posições chaves na entidade do estado turco que controla os bancos, garantirem proteção a um banco ligado ao grupo de Gülen, o Bank Asya, contra investigações a serem conduzidas pelo governo. (Pouco depois do vazamento, os três funcionários em questão foram demitidos.) Tudo isso mostrava imagem muito diferente de um santo, que vivia vida frugal, de estudos e caminhadas pelas colinas da Pennsylvania, que Gülen cultivara.
***
O conflito assume agora tons absolutamente desbragados, e já é visível nos postos mais altos. Erdoğan recusa-se a pronunciar o nome de Gülen em público, mas quando fala de “falsos profetas, videntes e pseudos sábios vazios”, seu alvo é claro. Em um dos frequentes sermões que Gülen pronuncia de sua própria casa, e alcança vastas audiências na Turquia graças a redes de televisão que o apoiam e à Internet, o pregador exilado lançou uma maldição contra seus inimigos: “que Deus consuma em fogo as casas deles, destrua os ninhos deles, quebre os acordos entre eles.” Denúncias de vasta corrupção dentro do governo, muitas das quais envolvendo contratos viciados para projetos de construção e violação de áreas reservadas de zoneamento, são insistentemente repetidas pelos veículos de imprensa gülenistas, tão insistentemente repetidas que acabam por já serem vistas como verdade comprovada. Em 24 de fevereiro, gravações de conversas telefônicas entre o primeiro-ministro e seu filho Bilal, nas quais pai e filho estariam combinando o modo de esconder dezenas de milhões de euros, foram distribuídas pelo YouTube. O primeiro-ministro declarou que as gravações eram forjadas, mas elas foram ouvidas dois milhões de vezes em 24 horas imediatamente depois de postadas. Ainda que os expurgos que Erdoğan promoveu no judiciário e na polícia impliquem que não haverá processos nem, portanto, condenações (e a imunidade parlamentar na Turquia proteja alguns dos aliados de Erdoğan), é difícil imaginar o governo recuperar a sua antiga reputação de probidade.
O terreno da disputa é tanto comercial quanto político. O governo acusou o Bank Asya de afiliados de Gülen de ter comprado 2 bilhões em moeda estrangeira pouco antes das operações policiais de dezembro passado – o que implica dizer que os funcionários do banco teriam sido avisados com antecedência sobre o que viria e da consequente queda do valor da lira turca. O banco luta agora para deter uma corrida de saques, que fez o preço das ações cair cerca de 46% entre 16 de dezembro e 5 de fevereiro. Até especialistas não gülenistas entendem que o governo orquestrou a corrida ao banco, tentando arruinar o Bank Asya, sem se preocupar com danos colaterais, tanto contra os pequenos correntistas como contra todo o sistema bancário que a corrida fatalmente causaria. O capitalismo turco é só muito tenuemente controlado pelo Estado de direito.
A imagem de Erdoğan também está abalada. No verão passado, as manifestações mostraram ao público turco um primeiro-ministro enfurecido, tomado de ira e de medo, como quando reagiu contra a insatisfação de uma minoria predominantemente secular, não com gestos magnânimos, que teriam satisfeito muitos dos manifestantes, mas com cassetetes, porretes, bombas de gás e denúncias de um complô sinistro orquestrado do exterior, mantido por um sinistro “lobby das taxas de juros”, para negar aos turcos o seu bem merecido lugar ao sol.
Quando diz “lobby das taxas de juros”, Erdoğan fala de especuladores ocidentais inescrupulosos – judeus, por implicação –, e os discursos dele despertam antigas lembranças; dentre outras, de uma Turquia terrivelmente endividada nos bancos europeus, nos tempos otomanos, o que enfraqueceu mortalmente o império antes do colapso, na I Guerra Mundial. Mas Erdogan invoca também os sombrios anos 1990, quando uma economia inflacionada, corroída de dívidas e improdutiva foi usada como playground por investidores sanguinários, realizavam seus lucros quando o mercado inchava e só reapareciam depois do crash inevitável, beneficiando-se de juros reais de, em média, 32%.
Esses traumas marcaram a abordagem que Erdoğan deu aos aspectos monetários da crise. Mesmo antes de 17 de dezembro, uma combinação de compras de bônus do Federal Reserve; a ameaça de subida nas taxas globais de juros; sinais de que a economia turca começava a esfriar, e tumultos políticos causados pelos protestos do verão passado derrubaram a lira, que caiu cerca de 9%. A queda acentuou-se depois das prisões em dezembro, mas o primeiro-ministro só autorizou ligeira alteração na taxa de juros depois que a moeda já caíra mais 13%, e as empresas turcas, fortemente expostas no curto prazo, com dívidas em dólares, lutavam para cumprir suas obrigações financeiras. Finalmente, dia 28 de janeiro, o Banco Central aumentou as taxas, e a queda da lira foi afinal contida.
A imagem de Erdoğan também está abalada. No verão passado, as manifestações mostraram ao público turco um primeiro-ministro enfurecido, tomado de ira e de medo, como quando reagiu contra a insatisfação de uma minoria predominantemente secular, não com gestos magnânimos, que teriam satisfeito muitos dos manifestantes, mas com cassetetes, porretes, bombas de gás e denúncias de um complô sinistro orquestrado do exterior, mantido por um sinistro “lobby das taxas de juros”, para negar aos turcos o seu bem merecido lugar ao sol.
Quando diz “lobby das taxas de juros”, Erdoğan fala de especuladores ocidentais inescrupulosos – judeus, por implicação –, e os discursos dele despertam antigas lembranças; dentre outras, de uma Turquia terrivelmente endividada nos bancos europeus, nos tempos otomanos, o que enfraqueceu mortalmente o império antes do colapso, na I Guerra Mundial. Mas Erdogan invoca também os sombrios anos 1990, quando uma economia inflacionada, corroída de dívidas e improdutiva foi usada como playground por investidores sanguinários, realizavam seus lucros quando o mercado inchava e só reapareciam depois do crash inevitável, beneficiando-se de juros reais de, em média, 32%.
Esses traumas marcaram a abordagem que Erdoğan deu aos aspectos monetários da crise. Mesmo antes de 17 de dezembro, uma combinação de compras de bônus do Federal Reserve; a ameaça de subida nas taxas globais de juros; sinais de que a economia turca começava a esfriar, e tumultos políticos causados pelos protestos do verão passado derrubaram a lira, que caiu cerca de 9%. A queda acentuou-se depois das prisões em dezembro, mas o primeiro-ministro só autorizou ligeira alteração na taxa de juros depois que a moeda já caíra mais 13%, e as empresas turcas, fortemente expostas no curto prazo, com dívidas em dólares, lutavam para cumprir suas obrigações financeiras. Finalmente, dia 28 de janeiro, o Banco Central aumentou as taxas, e a queda da lira foi afinal contida.
A resistência ideológica de Erdoğan, contra o aumento dos juros, custou muito caro a empresas turcas. Nas palavras de Inan Demir, economista do Finansbank, em Istanbul: “Não havia outra saída, além de aumentar os juros, ou haveria pânico em grande escala, mas deveriam ter sido aumentados muito antes. Agora, as empresas turcas estão no pior dos mundos, com dificuldades sempre crescentes para pagar, por causa da lira fraca; e com custos financeiros sempre mais altos, por causa dos juros altos.”
Em apenas quatro meses, o Finansbank revisou a previsão de crescimento para 2014, de 3,7% para 1,7% – depois de uma década de crescimento médio de mais de 5%.
***
For all its troubles, Turkey’s economy is still big, its citizens 43 percent better off than they were when Erdoğan came to power. Este país mais bem sucedido é o tema de The Rise of Turkey: The Twenty-First Century’s First Muslim Power, novo livro de Soner Cagaptay, um especialista em Turquia do Washington Institute for Near East Policy. One sympathizes with Cagaptay, who finished his book long before the present crisis, but even then his tone might have struck one as triumphal—a reminder of the tendency of many observers, captivated by the spectacle of Turkey shedding the complexes of the past, to downplay the perils of the future. Cagaptay dwells at length on the political and economic advances of the Erdoğan years, but he does not go into the tensions within Turkish Islamism, which are likely to define the country’s politics for some time, or the corruption that underlies the country’s capitalist successes.
The Rise of Turkey não diz nada sobre o movimento Gülen, exceto que organizou reluzente conferência internacional, da qual o autor do livro participou, sobre “o papel de liderança da Turquia na Primavera Árabe”. Essa conferência seria impensável agora, porque os Irmãos da Fraternidade Muçulmana aliados de Erdoğan foram já expulsos do poder no Egito, e toda a política deles para a Síria (que previa, erradamente, que seria fácil derrubar o governo de Bashar al-Assad) já fracassou completamente. Cagaptay não é, absolutamente, o único acadêmico que aceitou a hospitalidade do movimento Gülen, que ele classifica como movimento “de prestígio”. O problema é que Fethullah Gülen além de ser feito de “prestígio”, também é feito de muito dinheiro.
Gülen: The Ambiguous Politics of Market Islam in Turkey and the World foi escrito por um sociólogo norte-americano, Joshua Hendrick, que trabalhou durante sete meses como editor voluntário numa editora afiliada ao movimento gülenista em Istanbul. Eu, que passei recentemente alguns dias com gülenistas, que me pareceram entusiasmados, radiantes, extremamente solícitos e surpreendentes, de início, e, logo depois, cansativos e tediosos, só posso admirar o tempo que Hendrick sobreviveu entre eles. Afinal, valeu a pena, porque nos oferece um estudo detalhado de um movimento que se define, se tal coisa é possível, pela ofuscação.
Fethullah Gülen nega que comande qualquer tipo de movimento ou que mantenha qualquer vínculo institucional com organizações que o reverenciam. Seus seguidores – já estimados em cerca de 5 milhões – dizem que não formam rede; que são unidos exclusivamente pelo respeito pelo Hocaefendi, o “estimado professor”, movidos por sua visão de um Islã moderno e tolerante, que valoriza o conhecimento e o progresso material, tanto quando a piedade e a caridade. Empresas que pertençam ou sejam apoiadas por gülenistas não se identificam como tais, embora haja uma associação, a Confederação Turca de Empresários e Industriais, cujos membros não ocultam a admiração pelo líder. Por tudo isso, é difícil saber quantos bilhões de dólares circulam nessa comunidade. O retrato de Gülen nunca desaparece das paredes das mais de mil escolas privadas, em mais de 120 países, organizadas por seus aderentes, ou das manchetes do jornal Zaman, também de seguidores de Gülen – e o maior jornal da Turquia.
Como observa Hendrick, muita gente sequer se dá conta de que vive na órbita de Gülen – um pai que envie a filha para uma escolha de gülenistas na África do Sul, por exemplo; ou um empregado de serviço terceirizado de uma empresa de construção, mandado trabalhar na Rússia. A negabilidade e a ambiguidade sempre foram e continuam a ser “cruciais para o crescimento ininterrupto [do movimento] por três décadas.”
O outro fator é o próprio Gülen. O magnetismo pessoal sempre o ajudou a conquistar seguidores desde os anos 1960, quando, ainda jovem imã de mesquita, já era conhecido pelo estilo emocional de pregar, frequentemente explodindo em lágrimas e, mesmo, atirando-se e rolando pelo chão. Um seguidor que acabava de voltar de uma visita ao Hocaefendi nos EUA, descreveu-o para Hendricks como “dono de poderes que uma pessoa medianamente culta e educada nem consegue imaginar. É um presente de Deus.” Em alguns sentidos, Gülen é reverenciado como se reverenciam os “pole” sufis, seres humanos eleitos por Deus para difundir a verdade divina; mas o movimento Gülen é mundano demais para ser incluído entre movimentos sufis. “Agir” é o princípio orientador declarado dos gülenistas, não qualquer distanciamento ou introspecção.
Baseando-se no ensino de uma divindade turca do século XX, Bediüzzaman Said Nursi, Gülen acredita que a humanidade tenha de ser salva do pecado e aprender o caminho da revelação e o exemplo profético do Corão. A partir do mesmo ponto, outros revivalistas muçulmanos no século XIX, sobretudo Sayyid Qutb, do Egito, justificaram a violência e a aplicação à força da lei sagrada. Gülen tende na direção inversa. Prega “abraçar as pessoas, sem considerar diferenças de opinião, visão de mundo, ideologia, etnia ou crença” e com vistas à “democracia, aos direitos humanos e às liberdades” – o que para Qutb é anátema.
Baseando-se no ensino de uma divindade turca do século XX, Bediüzzaman Said Nursi, Gülen acredita que a humanidade tenha de ser salva do pecado e aprender o caminho da revelação e o exemplo profético do Corão. A partir do mesmo ponto, outros revivalistas muçulmanos no século XIX, sobretudo Sayyid Qutb, do Egito, justificaram a violência e a aplicação à força da lei sagrada. Gülen tende na direção inversa. Prega “abraçar as pessoas, sem considerar diferenças de opinião, visão de mundo, ideologia, etnia ou crença” e com vistas à “democracia, aos direitos humanos e às liberdades” – o que para Qutb é anátema.
***
A visão de mundo de Gülen ajuda a entender, em certa medida, o internacionalismo do movimento, a ênfase no ensino de idiomas nas suas escolas, e a busca do diálogo entre várias fés, em encontros, conferências e projetos universitários. Diferente de outras organizações islâmicas, o movimento Gülen não recolhe dinheiro exclusivamente para muçulmanos, mas também para não muçulmanos (para as vítimas do terremoto no Haiti, por exemplo). Gülen e seus principais assessores dedicam muito trabalho no esforço de se afastarem de qualquer antissemitismo, e, até, de qualquer crítica contra Israel. Assim, os esforços do movimento para fixar-se nos EUA foram muito facilitados; há ali cerca de 140 escolas especiais gülenistas, e Gülen cultivou boas relações com aliados poderosos na política, na educação e nas artes. Ainda assim, os gülenistas estão sendo examinados de perto por pais e mães norte-americanos que enviam seus filhos para aquelas escolas, e que se preocupam com a opacidade de seus objetivos e métodos; e, em termos mais gerais, também por observadores que não veem com clareza o que, exatamente, Gülen prega ou representa.
Desde o início do século XIX, a educação é preocupação central dos reformadores muçulmanos – com ênfase nas ciências –, e o movimento de Gülen não é diferente. Na Turquia, o movimento já controla oito universidades, dúzias de escolas secundárias privadas e cerca de 350 outras instituições que preparam os alunos para os exames vestibulares, de acesso às universidades. O sistema público de educação na Turquia não tem boa reputação; assim, os pais economizam para conseguir mandar os filhos para essas instituições pré-vestibulares.
Em uma dessas instituições, imaculadamente limpa e muito bem equipada, um gülenista, professor graduado, disse-me que os cursos preparatórios gülenistas põem alunos nas melhores universidades da Turquia, e que reservam 15% dos lugares para alunos pobres, que recebem bolsas de estudo. O professor interrompeu nossa conversa para ir à mesquita, do outro lado da rua, fazer suas preces; e voltou depois, acompanhado de dois alunos agradáveis, de boas maneiras (as moças estudam em ala separada dos rapazes). Contaram-me sobre o sistema “grande irmão”, pelo qual se assegura apoio moral e material aos alunos que vivem longe de casa e que se distribuem pelos dormitórios da escola preparatória. Um dos rapazes observou que os professores o tratavam “como seu próprio filho.” O movimento gülenista é dado a analogias familiares. Não aprecia trabalhadores que só se dedicam “das nove às cinco”; e a dedicação é apreciada igualmente nos alunos e nos professores.
Riqueza, sucesso, a excitação de participar de uma verdade sublime – o movimento Gülen difunde-se com muita energia, empurrado por esses estímulos. É fácil imaginar o senso de dever que toma os gülenistas mais pobres depois que são elevados àquele mundo de brilhos, cosmopolita e, sobretudo, muito firmemente entretecido. Tanto quanto mediante os livros e discursos do Hocaefendi, eles são também promovidos por laços de amizade; no caso de as famílias originais não quererem trilhar os novos caminhos, então os gülenistas têm de escolher entre a família velha e a nova família.
Desde o início do século XIX, a educação é preocupação central dos reformadores muçulmanos – com ênfase nas ciências –, e o movimento de Gülen não é diferente. Na Turquia, o movimento já controla oito universidades, dúzias de escolas secundárias privadas e cerca de 350 outras instituições que preparam os alunos para os exames vestibulares, de acesso às universidades. O sistema público de educação na Turquia não tem boa reputação; assim, os pais economizam para conseguir mandar os filhos para essas instituições pré-vestibulares.
Em uma dessas instituições, imaculadamente limpa e muito bem equipada, um gülenista, professor graduado, disse-me que os cursos preparatórios gülenistas põem alunos nas melhores universidades da Turquia, e que reservam 15% dos lugares para alunos pobres, que recebem bolsas de estudo. O professor interrompeu nossa conversa para ir à mesquita, do outro lado da rua, fazer suas preces; e voltou depois, acompanhado de dois alunos agradáveis, de boas maneiras (as moças estudam em ala separada dos rapazes). Contaram-me sobre o sistema “grande irmão”, pelo qual se assegura apoio moral e material aos alunos que vivem longe de casa e que se distribuem pelos dormitórios da escola preparatória. Um dos rapazes observou que os professores o tratavam “como seu próprio filho.” O movimento gülenista é dado a analogias familiares. Não aprecia trabalhadores que só se dedicam “das nove às cinco”; e a dedicação é apreciada igualmente nos alunos e nos professores.
Riqueza, sucesso, a excitação de participar de uma verdade sublime – o movimento Gülen difunde-se com muita energia, empurrado por esses estímulos. É fácil imaginar o senso de dever que toma os gülenistas mais pobres depois que são elevados àquele mundo de brilhos, cosmopolita e, sobretudo, muito firmemente entretecido. Tanto quanto mediante os livros e discursos do Hocaefendi, eles são também promovidos por laços de amizade; no caso de as famílias originais não quererem trilhar os novos caminhos, então os gülenistas têm de escolher entre a família velha e a nova família.
Cultos e organizações fechadas em todo o mundo se têm servido de métodos semelhantes, e os resultados nem sempre são felizes. Uma psicóloga em Istanbul contou-me sobre um menino muito pobre, filho de um porteiro no distrito mais caro da cidade, que a procurou depois de ter tido contato com um grupo de gülenistas. Eles o acolheram, convidaram-no a visitar a casa onde viviam juntos, o apresentaram às ideias do Hocaefendi, e o fizeram sentir-se vivo, realizado e acolhido. Até que um dia, sozinho em casa, mexendo numa pilha de DVDs, pôs no aparelho um dos discos. Era um guia para atrair novos recrutas, com táticas que o rapaz reconheceu que haviam sido usadas para atraí-lo. Pouco adiante, o rapaz procurou minha amiga psicóloga.
No início de seu livro, Hendrick reproduz parte da transcrição de um vídeo vazado e que foi item da acusação em processo movido contra Gülen em 2000, no qual foi julgado in absentia (Gülen já havia fugido da Turquia para os EUA) por conspiração contra o estado secular. Nesse já famoso excerto, Gülen diz aos seus apoiadores: “Vocês devem mover-se nas artérias do sistema, sem que ninguém perceba a presença de vocês, até alcançarem os centros de poder (...) Vocês têm de esperar até terem tomado todo o poder do estado.”
Mas Hendrick não avança muito profundamente na discussão das várias denúncias que se fizeram contra Gülen ao longo dos anos; como sociólogo, talvez entenda que não é trabalho que lhe caiba.
Alegações de que Gülen estaria tentando tomar o controle de órgãos do estado, particularmente o Judiciário e a Política, datam, pelo menos, de 1971, quando Gülen cumpriu pena de sete meses de prisão por trabalhar para minar o secularismo. Essas acusações têm a ver com uma importante diferença entre o movimento de Gülen e outras tradições islamistas turcas. Enquanto outras tradições reagiram de modo ortodoxo contra os obstáculos legais e políticos que lhes foram impostos, concorrendo em eleições e disputando postos de poder, os gülenistas tentaram permanecer corretamente alinhados às instituições seculares (nem sempre com sucesso, como o comprovam a condenação e a prisão de Gülen), ao mesmo tempo em que, gradualmente, se infiltravam dentro delas.
Em 2011, um jornalista, Ahmet Şık, lançou um livro The Imam’s Army [O Exército do Imã], no qual expôs o modo como os gülenistas assumiram o controle da força policial turca, ao longo de vinte anos.
No início de seu livro, Hendrick reproduz parte da transcrição de um vídeo vazado e que foi item da acusação em processo movido contra Gülen em 2000, no qual foi julgado in absentia (Gülen já havia fugido da Turquia para os EUA) por conspiração contra o estado secular. Nesse já famoso excerto, Gülen diz aos seus apoiadores: “Vocês devem mover-se nas artérias do sistema, sem que ninguém perceba a presença de vocês, até alcançarem os centros de poder (...) Vocês têm de esperar até terem tomado todo o poder do estado.”
Mas Hendrick não avança muito profundamente na discussão das várias denúncias que se fizeram contra Gülen ao longo dos anos; como sociólogo, talvez entenda que não é trabalho que lhe caiba.
Alegações de que Gülen estaria tentando tomar o controle de órgãos do estado, particularmente o Judiciário e a Política, datam, pelo menos, de 1971, quando Gülen cumpriu pena de sete meses de prisão por trabalhar para minar o secularismo. Essas acusações têm a ver com uma importante diferença entre o movimento de Gülen e outras tradições islamistas turcas. Enquanto outras tradições reagiram de modo ortodoxo contra os obstáculos legais e políticos que lhes foram impostos, concorrendo em eleições e disputando postos de poder, os gülenistas tentaram permanecer corretamente alinhados às instituições seculares (nem sempre com sucesso, como o comprovam a condenação e a prisão de Gülen), ao mesmo tempo em que, gradualmente, se infiltravam dentro delas.
Em 2011, um jornalista, Ahmet Şık, lançou um livro The Imam’s Army [O Exército do Imã], no qual expôs o modo como os gülenistas assumiram o controle da força policial turca, ao longo de vinte anos.
***
The Imam’s Army é livro rico de detalhes fascinantes. Fala de uma diretiva que teria sido lançada para os policiais gülenistas no final dos anos 1990, no auge de uma campanha, pelas autoridades seculares, contra os islamistas turcos. Por essa diretiva, os seguidores de Gülen na Polícia receberam ordens para retirar de suas casas todos os livros, espalhar latas vazias de cerveja pela casa, não usar turbantes para, assim, exibir imagem “secular”. Şık também escreve sobre transferências e demissões que são rotina para todos os policiais veteranos ou procuradores que tentam atacar gülenistas, e as campanhas de vilificação movidas contra eles pelas imprensa ligadas aos gülenistas, em especial pelo jornal Zaman.
Şık recuperou parte de seu material de livro publicado antes, escrito por um ex-chefe de polícia, Hanefi Avcı. Em setembro de 2010, dois dias antes da data em que teria de comprovar suas denúncias em uma conferência de imprensa, e apesar de sua manifesta tendência de direita, Avcı foi preso e acusado de pertencer a uma organização de esquerda. Şık foi preso no ano seguinte, pouco antes da data prevista para o lançamento de The Imam’s Army. (Apesar dos esforços da polícia para destruir todas as cópias digitais do livro, o texto foi postado na Internet, e foi baixado 100 mil vezes em dois dias.) Mais jornalistas foram presos em seguida, sob pretextos variados, e todos os casos foram reunidos em uma só grande investigação sobre um alegado complô contra o governo, pelo antigo establishment secular. A conspiração recebeu o nome de Ergenekon, da pátria mítica da nação turca na Ásia Central.
Quando foi iniciada em 2007, a investigação Ergenekon foi bem recebida por muitos turcos, como oportunidade para o país pôr ponto final aos abusos cometidos pelas forças armadas e seus aliados. Mas muito antes de a investigação chegar ao clímax, em agosto do ano passado, com a prisão de 242 pessoas, incluído um ex-chefe do Estado-maior, acusado de pertencer à “organização terrorista Ergenekon”, já muitos haviam mudado de opinião sobre todo o processo, dadas as flagrantes irregularidades no inquérito e no julgamento. Houve condenações sem outras provas além de gravações ilegalmente obtidas; vários casos visíveis de provas plantadas contra um ou outro acusado. A maior irregularidade de todas, provavelmente, se verificou em um processo relacionado a esse, em que 330 membros, entre aposentados e do serviço ativo das Forças Armadas foram encarcerados, condenados por planejarem um golpe, em 2003, embora não houvesse qualquer prova contra eles além de um único CD cujo exame mostrou que, um dia, ali estivera gravada a versão 2007 do Microsoft Office.
O julgamento “Ergenekon” deveria ter sido a vingança final colhida pelos longamente reprimidos islamistas turcos e Erdoğan como seu líder. Mas há boas razões para afirmar que jamais existiu algo semelhante à tal organização Ergenekon e que todo o processo foi motivado por desejo de vingança. Segundo Gareth Jenkins, acadêmico britânico que analisou a fundo todo o caso, a operação foi montada e executada não por Erdoğan mas por “uma gangue de seguidores de Gülen na polícia e nos baixos escalões do Judiciário.” Na opinião de Jenkins, os gülenistas usaram a operação para castigar seus inimigos. Jenkins acredita que Ahmet Şık, Hanefi Avcı e os demais jornalistas presos – alguns dos quais ainda esperam pela sentença –, foram punidos por serem “críticos, opositores ou rivais do movimento Gülen.”
Ainda em 2006, Fethullah Gülen foi absolvido da acusação de tentar tomar o estado turco, mas Erdoğan, seu ex-aliado, deu nova vida à mesma ideia. Tendo apoiado aquela investigação Ergenekon, Erdoğan dedica-se agora a reabrir o mesmo caso, sem dúvidas para usar como publicidade e propaganda os abusos judiciários cometidos pelos gülenistas. Mês passado, Erdoğan reagiu com abuso de sua própria autoria: fez aprovar uma lei, pelo Parlamento, que dá maior poder ao governo para controlar juízes e procuradores. A disputa entre Gülen e Erdoğan marca o fim de uma parceria que levou o islamismo ao poder na Turquia, e põe por terra a crença, cara até a alguns liberais, de que, se a Turquia deixasse falar sua maioria religiosa e pia, seria também país mais justo.
The Imam’s Army é livro rico de detalhes fascinantes. Fala de uma diretiva que teria sido lançada para os policiais gülenistas no final dos anos 1990, no auge de uma campanha, pelas autoridades seculares, contra os islamistas turcos. Por essa diretiva, os seguidores de Gülen na Polícia receberam ordens para retirar de suas casas todos os livros, espalhar latas vazias de cerveja pela casa, não usar turbantes para, assim, exibir imagem “secular”. Şık também escreve sobre transferências e demissões que são rotina para todos os policiais veteranos ou procuradores que tentam atacar gülenistas, e as campanhas de vilificação movidas contra eles pelas imprensa ligadas aos gülenistas, em especial pelo jornal Zaman.
Şık recuperou parte de seu material de livro publicado antes, escrito por um ex-chefe de polícia, Hanefi Avcı. Em setembro de 2010, dois dias antes da data em que teria de comprovar suas denúncias em uma conferência de imprensa, e apesar de sua manifesta tendência de direita, Avcı foi preso e acusado de pertencer a uma organização de esquerda. Şık foi preso no ano seguinte, pouco antes da data prevista para o lançamento de The Imam’s Army. (Apesar dos esforços da polícia para destruir todas as cópias digitais do livro, o texto foi postado na Internet, e foi baixado 100 mil vezes em dois dias.) Mais jornalistas foram presos em seguida, sob pretextos variados, e todos os casos foram reunidos em uma só grande investigação sobre um alegado complô contra o governo, pelo antigo establishment secular. A conspiração recebeu o nome de Ergenekon, da pátria mítica da nação turca na Ásia Central.
Quando foi iniciada em 2007, a investigação Ergenekon foi bem recebida por muitos turcos, como oportunidade para o país pôr ponto final aos abusos cometidos pelas forças armadas e seus aliados. Mas muito antes de a investigação chegar ao clímax, em agosto do ano passado, com a prisão de 242 pessoas, incluído um ex-chefe do Estado-maior, acusado de pertencer à “organização terrorista Ergenekon”, já muitos haviam mudado de opinião sobre todo o processo, dadas as flagrantes irregularidades no inquérito e no julgamento. Houve condenações sem outras provas além de gravações ilegalmente obtidas; vários casos visíveis de provas plantadas contra um ou outro acusado. A maior irregularidade de todas, provavelmente, se verificou em um processo relacionado a esse, em que 330 membros, entre aposentados e do serviço ativo das Forças Armadas foram encarcerados, condenados por planejarem um golpe, em 2003, embora não houvesse qualquer prova contra eles além de um único CD cujo exame mostrou que, um dia, ali estivera gravada a versão 2007 do Microsoft Office.
O julgamento “Ergenekon” deveria ter sido a vingança final colhida pelos longamente reprimidos islamistas turcos e Erdoğan como seu líder. Mas há boas razões para afirmar que jamais existiu algo semelhante à tal organização Ergenekon e que todo o processo foi motivado por desejo de vingança. Segundo Gareth Jenkins, acadêmico britânico que analisou a fundo todo o caso, a operação foi montada e executada não por Erdoğan mas por “uma gangue de seguidores de Gülen na polícia e nos baixos escalões do Judiciário.” Na opinião de Jenkins, os gülenistas usaram a operação para castigar seus inimigos. Jenkins acredita que Ahmet Şık, Hanefi Avcı e os demais jornalistas presos – alguns dos quais ainda esperam pela sentença –, foram punidos por serem “críticos, opositores ou rivais do movimento Gülen.”
Ainda em 2006, Fethullah Gülen foi absolvido da acusação de tentar tomar o estado turco, mas Erdoğan, seu ex-aliado, deu nova vida à mesma ideia. Tendo apoiado aquela investigação Ergenekon, Erdoğan dedica-se agora a reabrir o mesmo caso, sem dúvidas para usar como publicidade e propaganda os abusos judiciários cometidos pelos gülenistas. Mês passado, Erdoğan reagiu com abuso de sua própria autoria: fez aprovar uma lei, pelo Parlamento, que dá maior poder ao governo para controlar juízes e procuradores. A disputa entre Gülen e Erdoğan marca o fim de uma parceria que levou o islamismo ao poder na Turquia, e põe por terra a crença, cara até a alguns liberais, de que, se a Turquia deixasse falar sua maioria religiosa e pia, seria também país mais justo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário