24 de março de 2014

Forças da divergência

Se as tendências actuais se mantiverem , as consequências serão potencialmente terríveis, diz-nos Thomas Piketty.

John Cassidy


Se as tendências atuais continuarem, Thomas Piketty vê consequências “potencialmente aterrorizantes”. Ilustração de Michel Gillette.

Tradução / No imponente mundo da imprensa académica, não é vulgar que as encomendas e a publicidade façam o editor antecipar a edição de um livro. Mas foi o que Belknap, uma chancela da Harvard University Press, fez ao editar “O Capital no século XXI”, do economista francês Thomas Piketty, uma análise arrebatadora sobre a desigualdade crescente. Revendo a edição francesa do livro do Piketty, que saiu no ano passado, Branko Milanovic, um ex-economista importante do Banco Mundial, chamou-lhe “um livro que marca definitivamente o pensamento económico”. O economista disse que isso pode mudar a maneira como pensamos sobre os últimos dois séculos de história económica. Certamente, nenhum livro de economia nos últimos anos recebeu esse tipo de atenção. Meses antes de sua data de publicação em edição americana, em que o editor antecipou a data da sua publicação de Abril para Março, era já objecto de discussão on-line animada entre economistas e outros comentadores.

Piketty, que ensina na Escola de Economia de Paris, passou quase duas décadas a estudar a desigualdade. Em 1993, com a idade de vinte e dois anos, foi para os Estados Unidos para ensinar no M.I.T. Formado por uma das escolas de elite francesas, École Normale Supérieure, tinha então acabado de obter o grau de doutorado, com uma tese que era uma densa exploração matemática sobre a teoria que serve de suporte às políticas fiscais. Muitos dos mais brilhantes talentos universitários europeus deslocam-se para os Estados Unidos, naturalmente, e muitos deles acabam por ficar na América. Piketty não foi um deles. “Foi a primeira vez que eu assentei o pé no Estados Unidos,” recorda na sua introdução ao livro, “e senti-me bem em ter o meu trabalho reconhecido tão rapidamente. Aqui está um país que sabe como atrair imigrantes quando o deseja! Contudo, senti igualmente e de modo muito rápido que queria regressar a França e à Europa, logo que fizesse os meus 25 anos. Desde então, não tenho saído de Paris, com excepção de algumas breves viagens.”

Parte da motivação de Piketty no seu regresso a casa era de natureza cultural. Os seus pais são parisienses politicamente activos que participaram nos acontecimentos de Maio de 1968. Quando ainda muito jovem e em plena formação os seus modelos intelectuais eram historiadores e filósofos franceses de esquerda, mais do que propriamente economistas. Nestes homens de cultura estavam incluídos membros da escola dos Annales, tais como Lucien Febvre e Fernand Braudel, que produziram análises exaustivas sobre a vida quotidiana. Quando comparados com estes intelectuais, muitos dos economistas que Piketty encontrava no M.I.T pareciam-lhe áridos e fúteis. “Eu nunca considerei o trabalho dos economistas americanos como sendo totalmente convincente,” escreveu Piketty. “Para ter certeza, todos eles eram muito inteligentes, e eu ainda tenho muitos amigos desse período de minha vida. Mas algo de estranho tinha acontecido: Eu estava somente demasiado consciente do facto de que eu não conhecia nada sobre os problemas económicos mundiais.

Em Paris, juntou-se ao Centre National de la Recherche Scientifique e, mais tarde, à École des Hautes Études en Sciences Sociales onde alguns dos seus autores de referência tinham ensinado. A tarefa principal que estabeleceu para si-mesmo foi a de estudar os altos e baixos da repartição do rendimento e da riqueza, um tema que a economia negligenciava na sua maior parte. No início, Piketty concentrou-se sobretudo em obter o registo dos factos mais do que estar preocupado em interpretá-los. Utilizando registos de imposto e outros dados, estudou a forma como a desigualdade do rendimento em França tinha evoluído durante o século XX, e publicou os seus resultados num livro em 2001. Em 2003 escreveu com Emmanuel Saez, um economista francês de origem a trabalhar em Berkeley, um texto em que se analisa a.desigualdade do rendimento nos Estados Unidos entre 1913 e 1998. Neste documento mostrava como a parte do rendimento nacional dos E.U., tomado pelos agregados familiares na parte superior da escala de distribuição, os mais ricos, tinha aumentado fortemente durante as primeiras décadas do século XX, a seguir, tinha descido durante e depois da segunda guerra mundial, simplesmente para voltar a disparar outra vez nos anos da década de 80 e de 90.

Com a ajuda de outros investigadores, incluindo Sáez e o economista britânico Anthony Atkinson, Piketty expandiu este seu trabalho sobre a desigualdade a outros países, incluindo a Grã Bretanha, China, Índia, e Japão. Os pesquisadores criaram World Top Incomes Database uma base de dados sobre os rendimentos dos mais ricos do mundo, que cobre agora uns trinta países, entre eles a Malásia, África do Sul, e Uruguai. Piketty e Sáez igualmente actualizaram os seus dados para os Estados Unidos mostrando como a parte do rendimento dos agregados familiares mais ricos continua a subir fortemente durante e depois da Grande Recessão ( 2008...) e como, em 2012, os um por cento dos agregados familiares mais ricos obtiveram 22,5 por cento do rendimento total, a posição relativa mais elevada desde 1928. O trabalho empírico feito por Piketty e pelos seus colegas influenciou debates em toda parte desde Zuccotti Park, o ponto central de permanência dos Occupy Wall Street, até ao Fundo Monetário Internacional e à Casa Branca; O presidente Obama disse mesmo que enfrentar o problema da desigualdade e da estagnação dos salários é o nosso principal desafio.

A pergunta é o que está a gerar esta tendência ascendente. Piketty não considera que as explicações habituais dos economistas sejam convincentes, principalmente porque não deram bastante atenção à acumulação de capital- ao processo de poupar, de investir e de acumulação de riqueza como o fizeram os economistas clássicos, tais como David Ricardo, Karl Marx, e John Stuart Mill o tinham já sublinhado. Piketty define o capital como todo o activo que gera um retorno monetário. Esta definição abrange o capital físico, tal como os bens imobiliários e as fábricas; capital intangível, tal como marcas e patentes e activos financeiros, tais como acções e obrigações.

Na economia moderna, o termo “capital” foi expurgado do seu fogo ideológico e é tratado como sendo apenas um outro “factor de produção,” de tal modo que, como o trabalho e a terra, dá direito a ter uma competitiva taxa de rentabilidade baseada na sua produtividade. Um modelo popular do crescimento económico desenvolvido por Robert Solow, um dos anteriores colegas de Piketty no M.I.T., pretendeu mostrar como é que a economia progride ao longo “de um trajecto do crescimento equilibrado,” com as proporções do rendimento nacional recebidas pelos proprietários do capital e do trabalho a permanecerem constantes ao longo do tempo. Isso não combina com a realidade dos tempos de hoje. No Estados Unidos, por exemplo, a proporção do rendimento que vai para salários e outras formas de compensação salarial tem estado a cair desde sessenta e oito por cento em 1970 a sessenta e dois por cento em 2010, uma descida de perto de um milhão de milhões de dólares.

Piketty acredita que o aumento na desigualdade não pode ser compreendida independentemente da política. Para este seu novo livro, escolheu um título a evocar claramente Marx, mas não pensa que o capitalismo está condenado, ou que a desigualdade crescente seja uma inevitabilidade. Há circunstâncias, admite Piketty, em que os rendimentos podem convergir e as condições de vida das massas podem aumentar de forma sustentada, como acontece com a chamada Idade de Ouro que vai desde 1945 até 1973. Mas Piketty discute que esta situação, que muitos de nós consideramos como o que é normal, pode bem ter sido uma excepção histórica. As “forças da divergência podem em qualquer momento recuperar as vantagens, como parece estar a acontecer agora, no início do século XXI,” escreve Piketty. E, se as tendências actuais continuam, “as consequências para a dinâmica a longo prazo da distribuição da riqueza são potencialmente terríveis.”

Até por volta dos anos 50, o director-executivo americano médio era pago aproximadamente como vinte vezes o salário do empregado típico da sua empresa. Actualmente, nas empresas do índice Fortune 500, a relação dos salários entre os directores e os empregados de uma qualquer estabelecimento da mesma empresa é de duzentos para um, e muitos C.E.O.s têm mesmo rácios de remunerações mais elevados ainda. Em 2011, Tim Cook, director da Apple recebeu 378 milhões de dólares como salário, acções e outros benefícios, o que significa seis mil duzentas e cinquenta oito vezes ( 6258) o salário de um empregado médio de Apple. Um trabalhador típico a trabalhar na Walmart ganha menos de 25 mil dólares por ano; Michael Duke, director-executivo anterior de Walmart teve como remunerações globais vinte e três milhões de dólares em 2012. Esta tendência é evidente em toda parte. De acordo com um relatório recente publicado por Oxfam, as oitenta e cinco pessoas mais ricas no mundo- como Bill Gates, Warren Buffett e Carlos Slim —possuem mais riqueza do que os aproximadamente 3,5 mil milhões de pessoas que compõem a metade mais pobre da população do mundo.

Eventualmente, diz Piketty, nós poderíamos ver o reaparecimento de um mundo familiar aos europeus do século XIX; ele cita os romances de Austen e de Balzac. Nesta “sociedade patrimonial,” um pequeno grupo de rentiers ricos vive prodigamente dos frutos da sua riqueza herdada, enquanto a restante população luta para sobreviver. Para os Estados Unidos, em particular, este seria um cruel e irónico destino. “O pioneiro ideal igualitário desvaneceu-se no esquecimento,” escreve Piketty, “e o Novo Mundo pode estar à beira de se transformar na velha Europa da economia globalizada do século XXI.”


O que são estas “forças da divergência” que produzem riquezas enormes para alguns e deixam a maioria a esgaravatar para conseguir ter uma vida aceitável? Piketty é claro dizendo-nos que há diferentes factores por detrás da estagnação no meio e com ricos, muito ricos mesmo, no topo da escala de rendimentos. Mas, durante períodos de crescimento económico modesto, tais como aquele que muitas das economias avançadas experimentaram nas últimas décadas, o rendimento tende a deslocar do trabalho para o capital. Devido à complexa combinação das pressões económicas, sociais, e políticas, Piketty receia os “níveis de desigualdade como nunca foram antes vistos.”

Mas voltemos aos seus argumentos, uma vez que nos apresenta um tesouro de dados. Piketty e Saez foram pioneiros na construção de gráficos simples, mostrando a proporção do rendimento total recebido pelos dez por cento mais ricos, pelos um por cento mais ricos e até pelos 0,1 por cento mais ricos. Quando os dados são apresentados desta forma, sublinha Piketty, é fácil para as pessoas “verem a sua posição na hierarquia contemporânea (é sempre um exercício útil, particularmente quando se pertence a centis superiores da distribuição e se tende a esquecê-lo, como é frequentemente o caso com os economistas).” Qualquer um que leia o jornal estará ciente de que, nos Estados Unidos, os “um por cento” estão a obter uma proporção cada vez maior do bolo económico, que é o rendimento do país. Mas será que se sabe, hoje, que a proporção do rendimento obtida pelo percentil mais rico é superior ao que era na África do Sul na década de sessenta- princípio de 70 e acontecendo o mesmo relativamente à Colômbia, outra sociedade profundamente dividida, hoje? Em termos de rendimento gerado pelo trabalho, o nível de desigualdade nos Estados Unidos é “provavelmente maior do que em qualquer outra sociedade no mundo em todo e qualquer momento no passado, escreve Piketty.

Algumas pessoas afirmam que a decolagem no percentil de topo,os um por cento, reflecte o aparecimento de uma nova classe de “super-estrelas” — empresários, artistas, desportistas, autores e afins — que exploraram novas tecnologias, como a Internet, para ampliar os seus lucros à custa de outros, concorrentes nos mesmos campos. Se isto é verdade, as altas taxas de desigualdade podem reflectir uma realidade dura e inalterável: ganhos descomunais estão a ser obtidos por Roger Federer, James Patterson e outros. Piketty rejeita esta leitura. O principal factor, insiste ele, é que as grandes empresas estão a dar aos seus principais executivos, esquemas de remunerações bem bizarras e astronómicas. A sua investigação mostra que “os super-gestores”, mais do que as “super-estrelas”, representam para cima de setenta por cento dos 0.1 por cento dos rendimentos mais altos na escala da distribuição do rendimento. (Em 2010, era necessário ganhar pelo menos US $1,5 milhões para ser considerado estar a pertencer a este grupo de elite.). O aumento da desigualdade de rendimentos é em grande parte um fenómeno empresarial.

Os defensores dos altos valores auferidos como remunerações globais gostam de reivindicar que os altos dirigentes empresariais ganham os seus elevados salários com o aumento dos lucros e com a subida do valor das acções das suas empresas.. Mas Piketty aponta e responde contra esta argumentação afirmando que é muito difícil medir a contribuição (a “produtividade marginal”) de qualquer um destes indivíduos numa grande empresa. A remuneração dos gestores de topo normalmente é definida pelas comissões de remunerações, geralmente compostas por outros altos executivos que ganham remunerações comparáveis. “Só é razoável supor que as pessoas em condições de estabelecerem os seus próprios salários tenham um incentivo natural para se tratarem generosamente, ou pelo menos, para serem sobretudo muito optimistas na determinação da sua produtividade marginal” escreve Piketty.

Muitos executivos recebem um enorme volume de acções e de opções de compra de acções. Ao longo do tempo, eles e outras pessoas ricas ganham muita dinheiro a partir do capital que eles acumularam: estes rendimentos são obtidos sob a forma de dividendos, de ganhos em capital, juros, lucros das empresas privadas e de rendas. Os rendimentos de capital sempre desempenharam um papel fundamental no capitalismo. Piketty afirma que este papel está a crescer e é pois cada vez maior sendo isto que isto que nos ajuda a explicar porque é que a desigualdade está tão rapidamente a aumentar . Na verdade, argumenta Piketty, o capitalismo moderno tem uma lei interna do movimento que leva, não inexoravelmente, mas geralmente, em direcção a resultados menos iguais. A lei é simples. Quando a taxa de rentabilidade do capital — ou seja esta expressa os ganhos anuais que com ele se obtêm dividido pelo valor de mercado do mesmo capital — é maior do que a taxa de crescimento da economia, os rendimentos de capital tenderão a aumentar mais rapidamente do que os salários e os vencimentos, que raramente crescem mais rápido do que o PIB.


Se a propriedade do capital fosse distribuída igualmente, nada disto seria relevante. Todos nós partilharíamos igualmente o aumento dos lucros, dos dividendos e das rendas . Mas no Estados Unidos em 2010, por exemplo, os dez por cento mais ricos dos agregados familiares possuíram cerca de setenta por cento da riqueza de todo o país (um bom substituto para o “capital “), e os um por cento mais ricos da escala dos rendimentos dos agregados familiares possuíam trinta e cinco por cento de toda a riqueza. Em contraste com estes valores, a metade dos agregados familiares com menos rendimentos possuíam apenas cinco por cento da riqueza global. Quando o rendimento gerado pelo capital cresce rapidamente, as famílias mais ricas beneficiam desse aumento de forma desproporcionada . Desde 2009, os lucros das grandes empresas, os pagamentos de dividendos e o mercado de acções aumentaram desmesuradamente mas os salários evoluíram muito mal. Em consequência, e de acordo com os cálculos feitos por Piketty e por Sáez, quase todo o crescimento do rendimento na economia entre 2010 e 2012- cerca de noventa e cinco por cento desse crescimento – foi apropriado pelos um por cento da escala de rendimentos.

É uma imagem bastante chocante. Piketty chama a esta situação e a esta tendência, a tendência para a desigualdade aumentar durante os períodos em que a taxa de rentabilidade sobre o capital é maior do que taxa de crescimento da economia, “a contradição central do capitalismo”. Claro, a lógica também pode actuar em sentido inverso. Se a taxa de crescimento for superior à taxa de rentabilidade do capital, ordenados e salários crescerão mais rapidamente do que os rendimentos de capitais, e desigualdade irá cair. Foi isso que aconteceu em grande parte do século XX, afirma Piketty. O problema, argumenta Piketty, é que este estado de coisas é improvável ser mantido. “Uma combinação de circunstâncias… criou uma situação historicamente sem precedentes, que durou durante grande parte do século que durou quase um século,” afirma ele. “Todos os sinais apontam, no entanto, que isto está a acabar.”


Como é que isto é convincente? A análise de referência do desenvolvimento económico-frequentemente atribuída a Simon Kuznets, um economista de Harvard que a popularizasse durante a década de sessenta – é a de que a desigualdade na repartição aumenta durante as fases iniciais da industrialização mas que, por outro lado, esta desigualdade cai de forma sustentada com os rendimentos a convergirem e as condições gerais de vida a melhorarem para todos . Piketty estará certamente correcto ao sublinhar que não havia nada de natural ou de inevitável sobre a compressão do rendimento que ocorreu em meados do século XX. Isto é o produto do conflito mundial e das lutas políticas internas. Na Europa, as duas guerras mundiais e as políticas fiscais progressivas que eram necessárias para as financiar fizeram um enorme dano nas velhas e às grandes fortunas: muitas pessoas ricas, depois de terem pago as suas taxas sobre os rendimentos assim como os seus impostos sucessórios, não tinham bastante dinheiro para refazer a sua fortuna . Durante o período do pós-guerra, a inflação corroeu as suas poupanças. Entretanto, as leis favoráveis ao trabalho permitiram aos trabalhadores negociarem salários mais altos, o que levou a que tenha aumentado a proporção do rendimento recebido pelo trabalho. E a tarefa da reconstrução depois da destruição dos tempo de guerra levou à expansão rápida do PIB. Isto ajudou a manter a taxa de crescimento acima da taxa de rentabilidade do capital, reduzindo as forças de divergência.

No Estados Unidos, a história foi menos dramática mas largamente similar. A Grande Depressão pela desvalorização dos activos eliminou uma grande parte da riqueza dinástica e conduziu, igualmente, a uma revolução política. Durante os anos 30-40, lembra-nos Piketty, Roosevelt aumentou a taxa máxima de tributação do rendimento para mais de noventa por cento e o imposto sobre as grandes propriedades para mais de setenta por cento. Os salários mínimos foram determinados pelo governo federal para muitas indústrias assim como se incentivou o crescimento dos sindicatos. Nas décadas a seguir à guerra , gastou-se fortemente em infra-estruturas, tal como as auto-estradas nacionais, que impulsionaram o crescimento do PIB. Temendo incentivar a indignação pública, as grandes empresas mantiveram sob controlo o pagamento aos seus altos quadros . A desigualdade começou somente a aumentar outra vez quando Margaret Thatcher e Ronald Reagan conduziram uma contra-revolução conservadora que reduziu as taxas de imposto sobre os mais ricos, que dizimou os sindicatos e que procurou conter o crescimento das despesas públicas. A política e a distribuição do rendimento são os dois lados da mesma moeda.

Piketty atira alguns tiros bem apontados aos economistas que tentam ofuscar esta realidade. “No estudo dos séculos XVIII e XIX, é possível pensar que a evolução dos preços e salários, ou dos rendimentos e da riqueza, obedece a uma lógica económica autónoma tendo pouco ou nada a ver com a lógica da política ou da cultura,” escreve Piketty. “Quando se estuda o século XX, no entanto, tal ilusão cai por terra imediatamente. Um rápido olhar sobre as curvas que descrevem a evolução da desigualdade na distribuição do rendimento e da riqueza ou o rácio capital/rendimento é suficiente para mostrar que a política está omnipresente e que as mudanças económicas e políticas estão inextricavelmente entrelaçadas e devem ser estudadas em conjunto.”

Isso é mais do que simples retórica. Insistindo que as leis económicas tomam sempre forma através de normas sociais, dos valores e das escolhas políticas, Piketty salvaria a sua disciplina da aridez de abstracção e recolocá-la-ia no quadro de um modelo mais rico de economia política que foi o que as seus melhores referências como economistas do século XIX fizeram. Certamente, é difícil não ficar impressionado pela sua história e pelo seu assalto metodológico sobre os teóricos que acreditam que a economia pode ser reduzida a uma ciência pura. Mas não é sua visão do futuro demasiado pessimista? A curva de Kuznets, a sua descrição da desigualdade ao longo do tempo, é uma curva em forma de sino: a desigualdade cresce, atinge um valor de pico e depois decresce. Piketty quer substituí-la por uma curva em U. Estamos realmente condenados a retornar para a estrutura social de “Mansfield Park” e do “Le Père Goriot”?

Uma possibilidade mais optimista é que a taxa de crescimento do PIB se aproximará, ou mesmo ultrapassará a taxa de rentabilidade do capital. Se assim acontece, as próximas décadas poderiam ficarem mais próximas do que aconteceu em meados do século XX do que do que se verificou no século XIX. Para estarmos mais seguros disso mesmo com muitos países avançados envolvidos em situação de grande e difícil recessão , não augura nada de bom quando à possibilidade de um longo período de elevado crescimento. Mas as recessões são cíclicas. A longo prazo, são a inovação e a produtividade crescente que estão na base do crescimento. Com o desenvolvimento da Internet, da biotecnologia, dos robôs e de outros avanços científicos, é pelo menos concebível que o crescimento de produtividade cresça a uma taxa permanentemente mais alta e com ela crescerá igualmente o PIB.


Uma segunda via de fuga possível é a de que a taxa de rentabilidade do capital caia, reduzindo ou eliminando a diferença face à taxa de crescimento. Isto é o que a teoria económica tradicional estaria a prever. Enquanto o stock do capital físico e financeiro é cada vez mais elevado, o princípio de rendimentos decrescentes sugere que a taxa de lucro e de juros diminua. Adam Smith e outros economistas clássicos disseram que isto poderia acontecer; Marx referiu-se-lhe como “a lei mais importante da economia política.” Alguns economistas acreditam que é isso mesmo que já está a ocorrer. Relativamente às décadas passadas e assim sucessivamente as taxas de juro a longo prazo têm sido excepcionalmente baixas, o que levou Ben Bernanke, presidente anterior de FED, a lamentar “uma sobre-abundância global de poupanças. ” Um futuro de baixo crescimento lento e de ultra-baixas taxas de juro não seria um lugar particularmente dinâmico, mas não envolveria necessariamente a qualquer aumento ulterior na desigualdade.

Uma outra coisa que Piketty não considere adequadamente é a possibilidade de que a desigualdade, em algumas das suas dimensões, não esteja realmente a subir. O seu livro focaliza-se na sua maior parte na Europa e nos Estados Unidos. A nível global, um substancial progresso foi feito retirando as pessoas da zona de precariedade total e aumentando a sua esperança de vida. Em 1981, de acordo com os dados do Banco Mundial, aproximadamente dois em cinco membros da humanidade foram forçados a subsistir aproximadamente com um dólar por dia. Hoje, estamos com um em cada sete nestas mesmas circunstâncias. Nos anos 50 e 60 do século XX , a esperança de vida média em países em vias de desenvolvimento era de quarenta e dois anos. Em 2010, este indicador é de sessenta e oito anos. A “vida é melhor agora do que em quase qualquer altura na história,” escreveu Angus Deaton, um economista de Princeton, no seu livro de 2013, “The Great Escape: Health, Wealth, and the Origins of Inequality.” “Há mais pessoas a serem mais ricas e há menos pessoas a viverem na pobreza extrema. As pessoas vivem mais anos e os pais já não vêem habitualmente um quarto dos seus filhos morrer.”

Isto é uma grande notícia, mas não significa necessariamente que nós estamos a obter ganhos sobre a desigualdade na repartição dos rendimentos. Deaton ele mesmo indica que, para todo o progresso que foi feito na redução da pobreza e na saúde, a diferença entre países ricos e pobres permanece imensa. “Apesar das realizações quanto ao rápido crescimento das culturas, não houve quase nenhum redução da desigualdade de rendimento entre países,” escreveu ele. “Para cada país com uma história de convergência há sempre um outro país com uma história de que ficou para trás. .”

Ainda, algumas pessoas poderão argumentar que a desigualdade dos salários e a crescente desigualdade no mundo desenvolvido é um preço aceitável a pagar pelos benefícios experimentados relativamente aos piores resultados. Piketty não trata realmente desta questão. Piketty regista o sucesso de China ao longo das três décadas passadas, e o facto de ter deslocado centenas de milhões de pessoas da situação de pobreza extrema. Piketty gasta mais tempo detalhando o facto de que, durante esse intervalo, a desigualdade da rendimento tem aumentado extraordinariamente na China, e noutros países em vias de desenvolvimento, igualmente. Contudo a imagem global pode complicar a sua própria visão da desigualdade no Ocidente desenvolvido. Não considera seriamente o argumento de que a globalização – e o levantamento de nações como a China e a Índia-imediatamente está a manter os salários baixos e a aumentar a rentabilidade do capital, dinamizando a desigualdade em ambos os extremos da escala da repartição de rendimentos.


Dado que a desigualdade é um fenómeno mundial, Piketty tem uma solução adequada à escala planetária como resposta : um imposto global sobre a riqueza combinada com as taxas de tributação mais altas sobre os rendimentos mais elevados. De quanto mais elevados? Tomando como base os trabalhos que fez com Sáez e Stefanie Stantcheva, do M.I.T., relata-nos Piketty: “de acordo com as nossas estimativas, a taxa de tributação superior óptima nos países desenvolvidos está provavelmente acima dos oitenta por cento.” Tal taxa aplicada aos rendimentos acima de quinhentos mil ou de um milhão de dólares ao ano “não somente não reduziria o crescimento da economia dos E.U. mas distribuiria de facto os frutos do crescimento mais extensa e profundamente enquanto imporia limites razoáveis no comportamento economicamente inútil (ou mesmo nefasto) ”.

Piketty está-se a referir aqui às actividades ocasionalmente destrutivas dos especuladores de Wall Street e de bancos de investimento. O seu novo imposto sobre a riqueza seria como um imposto anual sobre os bens imóveis, mas aplicar-se-ia a todos as formas de riqueza. Os agregados familiares seriam obrigados a declarar o seu valor líquido às autoridades tributárias e seriam taxados a partir deste. Piketty sugere provisoriamente um imposto de uma só vez de um por cento para agregados familiares com um valor líquido entre um milhão e cinco milhões de dólares; e de dois por cento para aqueles com valor acima dos cinco milhões. “Ou pode-se preferir um imposto ainda mais fortemente progressivo a ser aplicado sobre as grandes fortunas (por exemplo uma taxa de 5 a 10 por cento em activos acima de um milhar de milhões de euros),” diz-nos ele. Um imposto sobre a riqueza forçaria os indivíduos que frequentemente gerem a sua carga fiscal para evitar outros impostos a pagarem a sua parte e geraria a informação sobre a distribuição da riqueza, que é actualmente opaca. “Algumas pessoas pensam que os multimilionário à escala mundial têm tanto dinheiro que seria bastante taxa-los a uma baixa taxa de tributação para resolver os problemas de todo o mundo”, diz-nos Piketty. “Outros acreditam que há tão poucos multimilionários que não valeria de nada estar a taxa-los mais pesadamente… em todo caso, o debate verdadeiramente democrático não pode continuar sem que haja estatísticas seguras.”

Os economistas podem debater se um tal imposto sobre a riqueza reduziria ou não os incentivos para investir e inovar, ou se seria necessário ser suficientemente penalizante para melhorar a situação no que se refere à desigualdade. Um problema mais imediato é que isto não está a acontecer: as nações do mundo não são capazes de chegar a um acordo em taxar as emissões de carbono prejudiciais, muito menos serão capazes de tributar o capital dos seus cidadãos mais ricos e mais poderosos. . Piketty concede aqui muito. Ainda, diz-nos ele, a sua proposta fornece aqui uma referência contra a qual podem ser julgadas outras propostas; Piketty aponta a necessidade para outras reformas úteis, tais como o melhoramento da transparência das operações bancárias internacionais; e poderia ser introduzida por fases. Um bom ponto de partida para começar, pensa, seria um imposto europeu sobre a riqueza que substitua os impostos sobre os bens imóveis, que “na maioria de países é equivalente a um imposto sobre a riqueza na classe média.” Mas isso pode ser visionário, também. Se a União Europeia avançasse com a proposta de Piketty, geraria uma precipitação para as zonas abrigadas de impostos, os paraísos fiscais, uma fuga dos capitais para a Suíça e para o Luxemburgo. Os esforços precedentes para introduzir os impostos sobre a riqueza ao nível nacional debateram-se com fortes problemas. A Espanha, por exemplo, adoptou um imposto sobre a riqueza em 2012 e aboliu-o no início deste ano. Em Itália, um imposto sobre a riqueza foi proposto em 2011 e nunca foi aplicado . Tais dificuldades explicam porque é que os governos ainda confiam noutras, evidentemente imperfeitas, ferramentas para taxar o capital, tal como impostos sobre a propriedade, as casas e sobre as mais-valias.

Nos Estados Unidos, a própria ideia de um novo imposto sobre a riqueza é olhada politicamente como uma impossibilidade tal como a ideia de levantar a taxa superior de imposto sobre os rendimentos mais elevados para oitenta por cento. Isto não é uma crítica a Piketty. O papel apropriado dos intelectuais é o de publicamente questionarem os dogmas aceites, conceber novos métodos de análise e de alargar os termos do debate político. O livro “Capital in the Twenty-first Century” faz todas estas coisas. Assim, como com uma tão grande previsão alguma parte deste não poderá suportar o teste da passagem do tempo. Mas Piketty escreveu um livro que ninguém interessado em compreender as grandes questões que se levantam da nossa época se pode dar ao luxo de ignorar.

Publicado na edição impressa da edição de 31 de março de 2014, com o título “Forces of Divergence”.

John Cassidy é redator da equipe do The New Yorker desde 1995. Ele também escreve uma coluna sobre política, economia e mais para o newyorker.com.

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