27 de fevereiro de 2015

Para além do modelo sueco

A Suécia demonstra a promessa e os limites do estado de bem-estar social.

Uma entrevista com
Petter Nilsson

Entrevistado por
Michal Rozworski

Jacobin

Manifestação em 2014 na Suécia, com grande presença de militantes do Partido da Esquerda (Vänsterpartiet). Foto: Editorial do Avanti (Suécia)

Tradução / Muitos dos debates na esquerda contemporânea remetem ao legado da social-democracia. Alguns anseiam por um retorno a essa época aparentemente idílica, enquanto outros apontam o que ela tinha de inadequado e nos incentivam a olhar para além do Estado de bem-estar social. Visto que a experiência sueca no pós-guerra foi a que chegou mais perto de cumprir os ideais social-democratas, ela é extremamente instrutiva para essas discussões.

Visto que a experiência sueca no pós-guerra foi a que chegou mais perto de cumprir os ideais social-democratas, ela é extremamente instrutiva nessas discussões.

Michal Rozworski conversou com Petter Nilsson, do Partido da Esquerda da Suécia ( Vänsterpartiet ), sobre a social-democracia em seu país e seu significado mais amplo. A entrevista foi condensada e editada para melhorar a compreensão.

Michal Rozworski

A Suécia ainda é vista por muita gente em todo o mundo como um modelo de Estado de bem-estar social, mas ela passou por mudanças drásticas durante as últimas duas décadas. Você pode dar um breve resumo do que significa olhar para a Suécia, como você já disse, “sem ilusões”?

Petter Nilsson

Nós temos uma piada na esquerda sueca de que todo mundo gostaria de ter o modelo sueco, e talvez os suecos gostariam de tê-lo mais do que ninguém. O que é considerado como sendo o modelo sueco atingiu o seu pico talvez no final dos anos 70, início dos anos 80 e, desde então, passou pelos mesmos desenvolvimentos que o resto da Europa com a onda neoliberal.

Como a Suécia começou esse processo partindo de um alto nível de compressão salarial e de igualdade em termos de gênero, ela ainda é muito igualitária em comparação com outros países europeus. Ainda assim, ao mesmo tempo, nós temos o crescimento mais acelerado das diferenças de classe dentro da OCDE.

Quando os sociais-democratas deram uma guinada à direita por volta de 1986, muitos dos desenvolvimentos ocorridos em outros países europeus chegaram à Suécia em uns poucos golpes rápidos. Em apenas alguns anos, tivemos grandes aumentos nas diferenças de classe e isso afetou nosso sistema universal de bem-estar social.

Esse sistema sempre foi baseado na alta compressão dos salários, que incluía a classe média no mesmo sistema de bem estar social que as demais pessoas. Seus membros sentiam que, como a qualidade dos programas de bem-estar era tão alta, eles estavam dispostos a pagar impostos para financiá-los. Mas assim que o financiamento para os serviços públicos é cortado, a qualidade cai e a classe média opta por migrar para soluções privadas.

Michal Rozworski

O que acontece quando se sai desse círculo virtuoso que cria igualdade e que conquista apoio para serviços públicos de alta qualidade? Como a sabotagem dos serviços públicos leva a um tipo diferente de círculo vicioso?

Petter Nilsson

Há um equívoco sobre o estado de bem-estar social nórdico, de que ele só teria sido possível devido ao alto nível de confiança da população. Nos últimos anos, pesquisas têm mostrado que na realidade um dos efeitos do sistema de bem-estar universal é que as pessoas passam a confiar mais umas nas outras e então o sistema de bem-estar social se torna um reflexo ainda mais profundo dessa confiança.

Mas se você olhar, por exemplo, para os trabalhos mais polêmicos de Milton Friedman, ele diz que se você quiser cortar o sistema de bem-estar social, você deve cortar os recursos e manter o sistema em déficit por alguns anos para que a qualidade caia – e então as pessoas não terão interesse em defender o serviço público.

Na verdade, é isso o que a direita normalmente faz quando chega ao poder: corta o financiamento para que, por exemplo, a qualidade das escolas públicas caia e depois propõem escolas privadas. As pessoas começam a dizer: “Bem, se as escolas públicas são tão ruins, então temos de ter uma alternativa privada para aqueles que podem pagar.” Isso é um ataque ideológico e uma estratégia explícita para minar a confiança no sistema público de bem-estar social.

Ao mesmo tempo, na Suécia, entre 80% e 90% do público diz que estaria disposto a pagar um nível mais alto de impostos para financiar níveis mais altos de bem-estar social. Portanto, a expectativa de programas de bem-estar social ainda é bem alta – eles apenas não estão sendo impulsionados por nenhum outro partido político além do Partido de Esquerda.

Michal Rozworski

O que você acha que explica essa desconexão entre o alto nível de apoio ao sistema de bem-estar social e a disposição de pagar por ele, por um lado, e o que está realmente acontecendo politicamente, pelo outro?

Petter Nilsson

Na Suécia, os sociais-democratas estiveram no poder por mais de oitenta dos últimos cem anos. Eles tinham um projeto político. A ideia era formar uma população homogênea e igualitária. Havia também uma estratégia de verdade para eliminar capitais menos competitivos e, portanto, para transferir fundos para setores mais produtivos. A Suécia teve talvez a estratégia fordista mais bem-sucedida entre todos os países.

Isso produziu algo único. Nós tínhamos um partido social-democrata no poder com um Estado social-democrata que produzia pessoas com uma mentalidade social-democrata. No final da década de 1970, esse arranjo se chocou com contradições. Algumas coisas pararam de funcionar: os salários eram mantidos mais baixos nas empresas privadas que tinham a maior produtividade, para transferi-los para o setor público, mas as corporações acabaram tendo superlucros.

Os fundos dos assalariados foram uma proposta para resolver esse conflito. A Suécia havia alcançado a democracia política com o direito ao voto; tínhamos uma democracia pública, com o estado de bem-estar social; e então passaríamos a ter democracia econômica, por meio do que na prática seria a compra das corporações para a classe trabalhadora.

Para encurtar a história, os limites da estratégia fordista tornaram-se aparentes no final dos anos 1970. O estado de bem-estar sempre foi “comprado” com os ganhos de produtividade. A divisão entre os trabalhadores e o capital permaneceu basicamente a mesma, mas o nível de crescimento da produtividade era tão grande que era possível comprar ganhos para o estado de bem-estar social, embora o capital mantivesse o mesmo nível de lucros.

No início dos anos 70, houve uma onda de greves “selvagens” [por fora dos sindicatos estabelecidos]. Era um protesto contra esse modelo que funcionou tão bem entre, digamos, 1932 e 1979. Depois disso, os Sociais-Democratas se tornaram um partido tradicional, da social-democracia da Terceira Via. Eles estabeleceram uma meta de inflação, permitiram que o desemprego crescesse e a Suécia se tornou um país europeu tradicional.

O que acontece a seguir é que os partidos de direita, que nunca haviam sido capazes de se unir até então, o fazem. Eles obtiveram muito sucesso e venceram duas eleições consecutivas, o que era inédito. Isso polariza o sistema político sueco, e os sociais-democratas então sentem que precisam reconquistar os eleitores indecisos de classe média que foram para a coalizão de direita.

Michal Rozworski

Como é a luta pelo futuro do estado de bem-estar social sueco, então? Vocês estão voltando sem nostalgia por algo que já passou, ou será que terá de ser algo diferente?

Petter Nilsson

Acho que existe um perigo em ficarmos nostálgicos com o estado de bem-estar social sueco. Eu cresci no auge do estado de bem-estar social sueco e, em muitos aspectos, era uma sociedade melhor do que a que temos hoje. Ao mesmo tempo, ela estava repleta de contradições internas.

A Nova Esquerda de 1968 tinha muitas críticas ao estado de bem-estar social que não devemos esquecer: que era centralizado e burocratizado, que era difícil promover mudanças. Não devemos retornar a isso.

Ao mesmo tempo, os próprios sociais-democratas não entendem a genialidade do estado de bem-estar social: ele produziu uma sociedade que tinha uma subjetividade coletiva. Havia instituições dentro da sociedade que “interpolavam” (por falta de um termo melhor) as pessoas como uma entidade coletiva. Porém, se você tem privatizações e um modelo baseado no consumo, as pessoas passam a atuar como sujeitos econômicos neoliberais.Para avançar, precisamos defender o que resta do estado de bem-estar social como uma espécie de fronteira do que pode ou não ser privatizado e do que a direita política pode alcançar. Ao mesmo tempo, temos que começar a pensar em outros tipos de empreendimentos coletivos que possam produzir uma sociedade que, na próxima etapa, impulsione um Estado de bem-estar social mais coletivo e universal – e terão de ser novas formas. As grandes questões são: como produzir uma nova forma coletiva e universal de subjetividade? Que tipo de instituições serão capazes de produzi-la? E como elas poderiam sobreviver a derrotas eleitorais?

Sobre o entrevistado

Petter Nilsson é membro do Centro para Estudos Sociais Marxistas e trabalha em Estocolmo para o Partido de Esquerda da Suécia.

Sobre o entrevistador

Michal Rozworski pesquisa e escreve sobre sindicalismo. É co-autor, junto de Leigh Phillips, de A República Popular do Walmart (em breve no Brasil, pela Autonomia Literária).

24 de fevereiro de 2015

A alternativa na Grécia

A estratégia negocial da liderança do Syriza falhou, mas não é tarde de mais para evitar a derrota completa.

Stathis Kouvelakis

Jacobin

Kostas Tsironis / Reuters

Tradução / Vamos começar com o que deveria ser indiscutível: o acordo do Eurogrupo para que o governo grego foi arrastado, na sexta-feira, equivale a uma retirada precipitada.

O regime do memorando deverá ser prorrogado, o contrato de empréstimo e a totalidade da dívida reconhecida, a "supervisão", outra palavra para o domínio da troika, deverá manter-se sob outro nome, havendo agora poucas hipóteses de o programa do Syriza poder ser implementado.

Um falhanço tão completo não é, não pode ser, uma questão de sorte, ou o produto de uma manobra tática mal concebida. Ela representa a derrota de uma linha política específica, em que se tem apoiado a abordagem atual do governo.

Acordo de sexta-feira

No espírito do mandato popular para uma ruptura com o regime do memorando e a libertação da dívida, o lado grego entrou nas negociações rejeitando a prorrogação do atual "programa", acordado com o governo Samaras, juntamente com a tranche de € 7 mil milhões, com a exceção dos € 1,9 mil milhões de retorno sobre títulos gregos a que tinha direito.

Não consentindo em quaisquer procedimentos de supervisão e de avaliação, pediu um "programa ponte", de quatro meses de transição, sem medidas de austeridade, para assegurar a liquidez e implementar pelo menos parte de seu programa, no âmbito de orçamentos equilibrados. Pediu também que os credores reconhecessem a inviabilidade da dívida e a necessidade imediato de uma nova ronda de negociações compreensivas sobre ela.

Mas o acordo final equivale a uma rejeição, ponto por ponto, de todas estas exigências. Além disso, ele implica um outro conjunto de medidas destinadas a atar as mãos do governo e frustrar qualquer medida que possa significar uma ruptura com as políticas do memorando.

No comunicado de sexta-feira do Eurogrupo, o programa existente é referido como um "compromisso", mas isso não muda absolutamente nada de essencial. A "extensão" que o lado grego está agora a solicitar (ao abrigo do "Acordo Guia Facilitador de Assistência Financeira" - AGFAF), deve ser executada “no âmbito do compromisso existente" e visa "a conclusão com sucesso da revisão com base nas condições do compromisso atual”.

E também se diz claramente que

“apenas a aprovação pelas instituições da conclusão da revisão do compromisso alargado (...) permitirá qualquer desembolso da parcela remanescente do Programa FEEF atual e a transferência dos lucros SMP de 2014 [estes são os tais 1,9 mil milhões de lucros com os títulos gregos a que a Grécia tem direito]. Ambos são novamente sujeitos à aprovação pelo Eurogrupo.”

Assim, o governo grego vai receber a tranche que tinha inicialmente recusado, mas com a condição de respeitar os compromissos dos seus antecessores.

O que temos, portanto, é uma reafirmação da postura típica alemã de impor - como pré-condição para qualquer acordo e qualquer desembolso futuro do financiamento - a conclusão do processo de "avaliação" pelo mecanismo tripartido (seja isso chamado de "troika" ou de "instituições ") para a supervisão de todos os acordos, do passado e do futuro.

Além disso, para deixar bem claro que o uso do termo "instituições" em vez do termo "troika" é de fachada, o texto reafirma especificamente a composição tripartida do mecanismo de supervisão, enfatizando que as "instituições" incluem o BCE ("neste contexto, recordamos a independência do Banco Central Europeu") e o Fundo Monetário Internacional ("nós também concordamos que o FMI vai continuar a desempenhar o seu papel").

No que respeita à dívida, o texto menciona que "as autoridades gregas reiteram o seu compromisso inequívoco de honrar as suas obrigações financeiras para com todos os seus credores, de forma plena e tempestiva". Por outras palavras, esqueça-se qualquer discussão sobre "cortes de cabelo", "redução da dívida", para não falar já da "anulação da maior parte da dívida", que é o compromisso programático do Syriza.

Qualquer futuro "alívio da dívida" só é possível com base no que foi proposto na decisão do Eurogrupo de novembro 2012, ou seja, uma redução nas taxas de juros e um reescalonamento, que, como é bem conhecido, faz pouca diferença para o peso do serviço da dívida, afetando apenas o pagamento de juros, que já são muito baixos.

Mas isso não é tudo, porque, para o pagamento da dívida, o lado grego está aceitando plenamente o mesmo enquadramento decidido pelo Eurogrupo em novembro de 2012, na época do governo de três partidos de Antonis Samaras. Ele incluiu os seguintes compromissos: 4,5% de superávites primários a partir de 2016, privatizações aceleradas e a criação de uma conta especial para o serviço da dívida – para a qual o sector público grego deverá transferir todos os rendimentos dos privatizações, os superávites primários, e 30% dos excedentes suplementares.

Foi também por esta razão que o texto de sexta-feira menciona não apenas os excedentes, mas também "procedimentos de financiamento". Em qualquer caso, o núcleo central da pilhagem do memorando, nomeadamente a realização de superávites primários escandalosos e o desbaratamento de bens públicos com a exclusiva finalidadede encher os bolsos dos credores, permanece intacto. O único indício de relaxamento da pressão é uma garantia vaga de que "as instituições, para a meta de superávite primário de 2015, tomarão em conta as circunstâncias económicas especiais do ano 2015".

Mas não foi o suficiente que os europeus rejeitassem todas as exigências gregas. Eles tinham, em todos os sentidos, que atar de pés e mãos o governo Syriza, a fim de demonstrar na prática que qualquer que seja o resultado eleitoral e o perfil político do governo que possa surgir, nenhuma reversão da austeridade é viável no âmbito europeu existente. O presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, afirmou mesmo: "não pode haver escolha democrática contra os tratados europeus."

E as providências para isso devem ocorrer de duas maneiras. Em primeiro lugar, tal como indicado no texto: "As autoridades gregas se comprometem a abster-se de qualquer reversão de medidas e alterações unilaterais das políticas e reformas estruturais que impactem negativamente nas metas fiscais, na recuperação econômica ou na estabilidade financeira, conforme a avaliação das instituições."

Portanto, nenhum desmantelamento do regime do memorando ("reversão de medidas"), e nenhumas "alterações unilaterais". E isto não só no que diz respeito às medidas com um custo orçamental (tal como a abolição de impostos, a elevação do limiar de isenção de impostos, aumentos em pensões e assistência "humanitária"), como tinha sido indicado inicialmente, mas também num sentido muito mais amplo, incluindo tudo o que poderia ter um "impacto negativo" sobre "a recuperação económica ou a estabilidade financeira", sempre de acordo com o decisivo julgamento das "instituições"

Escusado será dizer que isso é relevante não só para a reintrodução de um salário mínimo e o restabelecimento da legislação trabalhista que foi desmantelada nos últimos anos, mas também para as mudanças no sistema bancário que pudessem reforçar o controlo público (não há uma palavra, sequer, é claro, sobre a "propriedade pública", conforme previsto na declaração fundadora do Syriza).

Além disso, o acordo especifica que

“os fundos disponíveis até ao momento na almofada do Fundo Helénico de Estabilidade Financeira (FHEF) devem ser detidos pelo Fundo Europeu de Estabilidade Financeira (FEEF), livres de direitos de terceiros durante todo o período de prorrogação AGFAF. Os fundos continuam a estar disponível para o período de prorrogação AGFAF e só podem ser utilizados para a recapitalização dos bancos e custos de resoluções. Eles só serão libertados a pedido do BCE / SSM.”

Esta cláusula mostra como não escapou à atenção dos europeus que o Programa de Thessalonica de Syriza afirmava que "o dinheiro para alimentar o setor público e um dinheiro intermediário para o estabelecimento de bancos de propósitos especiais, de um montante total da ordem dos € 3 mil milhões, será fornecido através de chamada "almofada" do FHEF de cerca de €11 mil milhões para os bancos”.

Em outras palavras, adeus a qualquer idéia de usar fundos FHEF para objectivos orientados para o crescimento. Quaisquer ilusões ainda subsistentes a respeito da possibilidade de utilizar fundos europeus para fins exteriores à camisa de força para a qual foram especificamente reservados - e mais ainda que eles pudessem ser colocados sob a jurisdição do governo grego – ficaram assim dissipadas.

Derrota da estratégia do "bom euro"

Pode o lado grego, possivelmente, acreditar ter conseguido algo mais do que a criatividade verbal impressionante do texto? Teoricamente, sim, na medida em que já não há quaisquer referências explícitas às medidas de austeridade, e as "mudanças estruturais" citadas (reformas administrativas e a repressão à evasão fiscal) não pertencem a esta categoria, uma modificação que, naturalmente, precisa de uma verificação cruzada contra a lista de medidas que devem surgir nos próximos dias (2).

Mas dado que o objetivo dos escandalosos excedentes orçamentais foi mantido, juntamente com a totalidade da maquinaria de supervisão e avaliação da troika, qualquer noção de um relaxamento da austeridade parece fora de contato com a realidade. Novas medidas e, é claro, a estabilização do adquirido pelo "memorando" são uma via de sentido único, enquanto o regime atual prevaleça e se perpetue, renomeado.

Resulta claro do exposto que, no decurso das "negociações", com o revólver do BCE apontado à cabeça e o resultante pânico nos bancos, as posições gregas sofreram um colapso quase total. Isso ajuda a explicar as inovações verbais ("instituições" em vez de "troika", "disposições actuais" em vez de "programa atual", "Acordo Guia Facilitador de Assistência Financeira" em vez de "Memorando", etc.). Consolo simbólico ou mais trapaça, dependendo da maneira como você queira olhar.

A questão que surge, naturalmente, é como é que chegamos a este embaraço. Como é possível que, apenas algumas semanas após o resultado histórico de 25 de janeiro, tenhamos esta contra-ordem do mandato popular para a derrubada do memorando?

A resposta é simples: o que se desmoronou nas últimas duas semanas é uma opção estratégica específica que tem suportado toda a abordagem do Syriza, particularmente depois de 2012: a estratégia que excluía "ações unilaterais", como a suspensão de pagamentos e, mais ainda, a saída do euro, argumentando que:


  • Sobre a questão da dívida, uma solução favorável ao devedor pode ser encontrado com a anuência do credor, seguindo o modelo dos acordos de Londres, de 1953, para as dívidas da Alemanha - ignorando, é claro, o facto de que as razões porque os Aliados se comportaram generosamente para com a Alemanha não se aplicam, de modo algum, aos europeus hoje com respeito à dívida grega e, mais geralmente, à dívida pública dos mais endividados Estados da UE de hoje.
  • O derrube dos memorandos, a expulsão da troika, e um modelo diferente de política econômica (por outras palavras, a execução do Programa de Thessalonica) poderiam ser implementados independentemente do resultado das negociações da dívida e, acima de tudo, sem provocar nenhuma reação real dos europeus, acima e para além das ameaças iniciais, que foram minimizadas como bluff. Na verdade, foi prevista a possibilidade de metade do financiamento para o Programa de Thessalonica ser proveniente de recursos europeus. Em outras palavras, não só os europeus não reagiriam, como acabariam por financiar generosamente políticas opostas às que tinham vindo a impor durante os últimos cinco anos.
  • Finalmente, o cenário do "bom euro" pressupunha a existência de aliados de algum significado ao nível dos governos e/ou instituições (a referência aqui não é o apoio dos movimentos sociais ou outras forças de esquerda). Os governos da França e da Itália, os social-democratas alemães, e, finalmente, em um verdadeiro frenesim de fantasia, o próprio Mario Draghi eram, de vez em quando, invocados como tais potenciais aliados.


Tudo isso veio por água abaixo em poucos dias. A 4 de fevereiro, o BCE anunciou a suspensão da principal fonte de liquidez para os bancos gregos. A saída de capitais, que já tinha começado, tomou dimensões incontroláveis, enquanto as autoridades gregas, temendo que uma tal reação sinalizasse o início do Grexit (3), não tomaram a menor medida "unilateral" (como a imposição de controlos de capitais).

As expressões "redução" da dívida e até mesmo o famigerado "corte de cabelo" foram rejeitadas da forma mais categórica possível, por credores que ficam enfurecidos só de ouvi-las (em resultado do que elas foram quase imediatamente retiradas de circulação). Em vez de sua derrubada, descobriu-se que o único elemento "inegociável" foi manter os memorandos e a supervisão da troika. Nem um único país apoiou as posições gregas, para além de algumas cortesias diplomáticas daqueles que queriam que o governo grego pudesse, apesar de tudo, marginalmente, salvar a sua face.

Temendo o Grexit (3) mais do que este assustava os seus interlocutores, totalmente impreparado perante a contingência absolutamente previsível da desestabilização bancária (arma clássica do sistema, internacionalmente, há quase um século, quando confrontado com governos de esquerda), o lado grego foi essencialmente deixado sem quaisquer ferramentas de negociação. Encontrou-se de costas contra a parede e com apenas más opções à sua disposição. A derrota de sexta-feira foi inevitável e marca o fim da estratégia de "uma solução positiva dentro do euro", ou para ser mais preciso "uma solução positiva a todo o custo dentro do euro".

Como evitar a derrota total

Raramente foi uma estratégia refutada tão inequívoca e tão rapidamente. Manolis Glezos, do Syriza, teve portanto razão em falar de "ilusão" e, elevando-se à altura da ocasião, pedir desculpas ao povo por ter contribuído para cultivá-la. Precisamente pela mesma razão, mas, inversamente, e com a ajuda de alguns meios de comunicação locais, o governo tentou representar este resultado devastador como um "sucesso negocial", confirmando que "a Europa é uma arena para a negociação", que está "deixando para trás a troika e os memorandos" e outras afirmações semelhantes.

Com medo de fazer o que Glezos se atreveu a fazer - ou seja, reconhecer o fracasso de toda a sua estratégia - a liderança está tentando uma manobra de diversão, "tentando fazer passar carne como peixe", para citar o provérbio popular grego.

Mas apresentar uma derrota como um sucesso é, talvez, pior do que a própria derrota. Por um lado, transforma o discurso governamental em mero palavreado, uma sequência de clichês e chavões que é simplesmente convocada para legitimar retrospetivamente qualquer decisão, vendo preto onde está branco; por outro lado, porque prepara o terreno, inevitavelmente, para as próximas, e mais definitivas, derrotas, uma vez que se dissolvem completamente os critérios pelos quais o sucesso pode ser distinguido de uma retirada.

Para realçar este argumento com recurso a um precedente histórico bem conhecido da gente de esquerda, se o Tratado de Brest-Litovsk, segundo o qual a União Soviética garantiu a paz com a Alemanha, aceitando perdas territoriais enormes, houvesse sido proclamado como uma "vitória", não há dúvida alguma de que a Revolução de Outubro teria sido derrotada.

Se, portanto, queremos evitar uma segunda, e desta vez definitiva, derrota - o que poria fim à experiência esquerdista grega, com consequências incalculáveis para a sociedade e para a esquerda, dentro e fora deste país - temos de olhar a realidade em face e falar a língua da honestidade. O debate sobre a estratégia deve finalmente recomeçar, sem tabus e com base nas resoluções do congresso do Syriza, que já há algum tempo se transformaram em ícones inócuos.

Se o Syriza ainda tem uma razão para existir como sujeito político, uma força para a elaboração de política emancipatória, e um contributo a dar para as lutas das classes subordinadas, deve ser uma parte neste esforço para iniciar uma análise em profundidade da situação atual e dos meios para a superar.

"A verdade é revolucionária", para citar as palavras de um líder famoso que sabia do que estava falando. E só a verdade é revolucionária, podemos agora acrescentar, com a experiência histórica que temos adquirido desde então.

21 de fevereiro de 2015

O problema com Dijsselbloem

A carreira política do ministro das finanças holandês Jeroen Dijsselbloem mostra a virada à direita da social-democracia europeia.

Pepijn Brandon

Jacobin

Partij van de Arbeid / Flickr

Tradução / Desde o seu infame meio aperto de mão com o ministro das Finanças da Grécia Yanis Varoufakis, que Jeroen Dijsselbloem ministro das Finanças holandês e temporariamente presidente do Eurogrupo tem sido alvo de justificado desprezo. Mas com a chantagem ao governo grego, ele está a desfrutar agora do seu melhor momento.

Internacionalmente, Dijsselbloem tornou-se o sujeito de intermináveis piadas e caricaturas em que é retratado ou como o burocrata cinzento de roupa e gravata a ser ensinado pelo seu elegante e inteligente homólogo grego ou como chicote da Alemanha. Mas uma questão fica por responder no meio do jogo de poder entre o governo de esquerda grego e os duros neoliberais da União Europeia: por que é que Dijsselbloem trata esta questão de forma tão pessoal?

Embora insignificante de um ponto de vista psicológico, isto interessa em termos do conflito de interesses no coração da UE assim como na luta em desenvolvimento pela alma da esquerda europeia.

Toda a carreira política de Jeroen Dijsselbloem assinala-o como o típico representante da direita da social democracia. Aderiu ao Partido Trabalhista Holandês em 1985, no mesmo ano em que concluiu o ensino secundário. Foi o último ano em que o partido foi chefiado por Joop den Uyl, o icônico líder trabalhista que por duas vezes tentou e falhou em suster um governo de coligação com os democrata-cristãos mantendo o curso de esquerda do partido.

Um ano mais tarde, o dirigente sindicalista de direita Wim Kok assumiu o cargo. Kok foi o arquitecto da capitulação histórica do movimento sindical que lançou as bases para um quarto de século de “paz social” que acompanhou o desmantelamento daquilo que foi em tempos um exemplo de Estado-Providência.

Kok tornou-se uma figura emblemática para a Terceira Via e o “modelo pólder” dos Países Baixos, de cooperação entre funcionários partidários, sindicatos e empregadores foi aclamado por Bill Clinton e Tony Blair como o modelo do futuro. Durante os anos 90, ele chefiou dois governos neoliberais que supervisionaram privatizações em larga escala e profundos cortes sociais. Depois de ter deixado de ser primeiro ministro em 2002, Kok tornou-se uma figura poderosa no mundo dos negócios da Holanda, detendo comissariados da Royal Dutch Shell, do banco ING, do TNT Post privatizado e de numerosas outras empresas.

Este é o Partido Trabalhista onde Dijsselbloem esteve incondicionalmente, sem reservas. Nunca na sua carreira ele deteve posições significativas fora desse mundo estreito – Haia e a burocracia de Bruxelas. O seu longo, leal e rotineiro percurso através da política de compromisso e a microgestão neoliberal foram a preparação perfeita para a sua posição como ministro das finanças no atual governo de coligação em que o Partido Trabalhista é o parceiro subalterno do fervoroso adepto do mercado livre Partido do Povo pela Liberdade e Democracia.

A total devoção de Dijsselbloem pelo aparelho burocrático acabou por o meter em problemas legais. Desrespeitando uma ordem do tribunal, Dijsselbloem recusou reveler o nome da pessoa com quem o seu antecessor fez um duvidoso acordo fiscal. Numa altamente atípica Parceria Público-Privada, um informador anónimo ajudou a detetar evasores fiscais em troca de uma parte nos lucros. Por dar protecção a este informador e aos que fizeram o acordo com ele, Dijsselbloem viu no passado mês de novembro serem-lhe feitas acusações penais – o que é praticamente algo sem precedentes para um ministro holandês.

Como presidente do Eurogrupo, Dijsselbloem foi acusado de proteger interesses alemães. Dado o papel de liderança da Alemanha em fazer cumprir as imposições da troika e as fortes ligações económicas e políticas entre Haia e Berlim, há poucas dúvidas onde residem as lealdades de Dijsselbloem. No entanto, é interessante notar que os representantes alemães da UE expressaram algumas preocupações por Dijsselbloem estar ainda demasiado agarrado aos interesses holandeses. Dijsselbloem respondeu a estas críticas nos media holandeses dizendo que, na sua opinião, os interesses holandeses são os interesses da União Europeia.

Estes são conflitos diplomáticos relativamente menores numa relação Alemanha-Holanda que no global é claramente harmoniosa. No entanto, compreendendo a postura intransigente de Dijsselbloem, é importante notar que existe de facto um interesse especificamente holandês que ele represnta junto e em apoio às exigências alemãs.

Sendo um dos seis membros originais da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, a antecessora da União Europeia, a Holanda foi sempre uma força pequena mas motriz por detrás da integração económica europeia. O seu interesse económico na expansão continuada da UE cresceu e não diminuiu. A Holanda é o segundo maior exportador na UE e mais de 50% das suas exportações e reexeportações ficam na UE.

Significativamente, os doze países da UE que entraram para a união desde 2004 formam os mercados de exportação que crescem mais rapidamente para os produtos manufacturados holandeses. Além do mais, os holandeses continuam a desempenhar um importante papel internacional na intermediação bancária e financeira, inclusive em relação à Grécia. Em 2011, o Departamento de Planeamento Central holandês calculou que a Holanda é responsável por 5 a 9% de empréstimos bilaterais à Grécia. Os maiores bancos holandeses e, sobretudo, o ING detêm para cima de três mil milhões de euros em obrigações gregas. Assim, Dijsselbloem não representa apenas as políticas de extorsão alemãs, mas também os interesses comerciais e financeiros da terra natal.

Tudo isto ajuda a explicar a avidez com que Dijsselbloem agarrou no chicote. Mas não responde à pergunta por que razão ele é tão azedo. Em comparação, Wolfgang Schäuble da Alemanha personifica a extrema arrogância e auto-confiança do poder, enquanto a chefe do FMI Christine Lagarde, aparentemente sem esforço, faz o papel do tubarão com um sorriso.

Abundam as explicações psicológicas baratas. Aqui um jovem e empertigado mestre em economia enfrentando alguém que podia facilmente ter sido o descontraído, intelectualmente superior e irritantemente popular professor catedrático devolvendo-lhe um parco artigo com um sorriso condescendente.

Mas há uma outra dimensão, mais política e importante para o futuro da esquerda na Europa e na Holanda. A promessa do governo do Syrisa representa tudo que a social-democracia do pós-guerra já não é nem pode voltar a ser. Subjacente à carreira de Dijsselbloem está a perspectiva que, na melhor das hipóteses, a política progressista contemporânea só pode ser uma variante da política conservadora com mais alguns ligeiros escrúpulos.

Enquanto permanecer desafiante e apesar das limitações da sua agenda de governo, Varoufakis representa uma alternativa a esta posição. A direita europeia detestará isto com brutalidade nua e crua. Mas é a social-democracia dominante que vai sentir mais directamente as repercussões eleitorais e por isso é mais amarga na sua resposta.

Para Dijsselbloem, é imperioso extinguir a promessa do Syrisa. É uma pré-condição para restaurar a estabilidade da UE que ele, o seu partido e as elites econômicas assim desejam. Mas é igualmente necessário para a continuação do progressivismo sem sonhos, empresarial, de terno e gravata de que nunca se afastou.

19 de fevereiro de 2015

O Syriza está recuando?

The latest from Europe is not good. Syriza appears to have backtracked in negotiations, and Germany is seeking total surrender.

Stathis Kouvelakis

Jacobin

Kostas Tsironis / Reuters

Tradução / Para usar um clichê muito gasto, “os tempos são críticos”. De fato, são mais do que isso: estamos à beira de uma sequência temporal crucial. Todo o comportamento do governo Syriza será julgado pela sua reação à chantagem e aos ultimatos sem precedentes que está a receber por parte dos seus tragicamente denominados “parceiros” europeus.

E as notícias da linha de frente não são agradáveis. É claro que é muito difícil ter uma visão clara da situação atual das negociações -- “negociações” que são um paradoxo, dada a completa assimetria na balança de forças, e o fato de um lado ter uma arma (o Banco Central Europeu) apontada à cabeça do outro. O que é claro, porém, é que o governo grego retrocedeu em aspectos cruciais, especialmente no que diz respeito aos seus compromissos para com o povo que o elegeu.

Antes de examinar a substância do pedido para uma extensão do “Programa de Assistência Econômica e Financeira” enviado na quarta-feira pelo governo grego a Bruxelas, vejamos com mais detalhe o “documento Moscovici” divulgado pelo governo grego durante a reunião do Eurogrupo na última segunda-feira, na mesma altura em que declarou estar disposto a assiná-lo.

Este documento descarta “ações unilaterais”, estabelece como objetivo fiscal superavits primários num volume indefinido, e reconhece a dívida na sua totalidade. Todos os ajustamentos futuros para a reestruturação da dívida terão de estar em linha com as decisões do Eurogrupo de novembro de 2012.

Essencialmente, a implementação das medidas fundamentais do programa eleitoral do Syriza de Salônica ficam sujeitas à aprovação prévia dos credores, o que corresponde de fato à anulação do programa. Além disso, reconhece os termos odiosos dos acordos com os credores, dessa forma enfraquecendo a posição negocial da Grécia sobre essa questão. É óbvio que ao aceitar este enquadramento como um supostamente “acordo honroso”, o governo do Syriza fica com as mãos atadas.

O pedido de extensão do Programa de Assistência Econômica e Financeira inclui todos os pontos acima mencionados e acrescenta -- pela primeira vez -- o reconhecimento da “supervisão no âmbito da [União Europeia] e do BCE e, no mesmo espírito, com o Fundo Monetário Internacional para a duração de um acordo de extensão (alínea f)”. Por outras palavras, a Troika está de volta mas com um nome diferente. Os meios de comunicação gregos já começaram a falar das “Instituições”.

Mas nem isso é suficiente para a UE e o ministro das Finanças alemão Wolfgang Schäuble. Tendo compreendido que o lado grego -- ansioso por evitar qualquer ruptura e até uma ação unilateral -- está num caminho constante de retirada, o “parceiro” optou pela rendição total como o seu alvo primordial.

Ao dar uma lição ao governo do Syriza, também estão a advertir o Podemos e qualquer outra força na Europa que possa desafiar a austeridade, os memorandos e a escravatura da dívida. O lado alemão rejeitou tanto o pedido grego para o Programa de Assistência Econômica e Financeira, aparentemente visando mais concessões da Grécia, e a completa humilhação do governo de esquerda grego.

É aqui, talvez, que reside a esperança. Não pode ser descartado que a escalada de exigências da UE e dos credores seja rejeitada por um governo que empreendeu alguns compromissos básicos para com o seu povo. E, mais importante, serão rejeitados por um povo que acredita de novo na esperança e que a leva para as ruas e praças do país. Uma retirada não deveria ser tratada como inevitável, e o governo grego merece apoio até o ponto em que aguente firme na guerra travada contra ele.

Qualquer que seja a conclusão, uma coisa é certa. Todos os argumentos tranquilizadores que circularam nos últimos anos -- acerca de um bluff europeu, acerca da possibilidade de derrotar a austeridade dentro da eurozona, de separar os acordos com os credores dos memorandos, de soluções na linha da conferência de Londres de 1953 sobre a dívida alemã (quer dizer, de uma reestruturação favorável ao devedor com o acordo do credor) -- por outras palavras, os elementos constituintes da narrativa do “bom euro” -- entraram todos em colapso.

Nalgum momento, também nos devem explicações sobre isto.

Sobre o autor:

Stathis Kouvelakis é professor de Filosofia Política no King’s College de Londres e membro do Comité Central do Syriza.

18 de fevereiro de 2015

Yanis Varoufakis: Como me tornei um marxista errático

Antes de entrar na política, Yanis Varoufakis, o iconoclasta ministro das finanças grego no centro do mais recente impasse na zona euro, escreveu este relato contundente sobre o capitalismo europeu e como a esquerda pode aprender com os erros de Marx.

Yanis Varoufakis

The Guardian

Yanis Varoufakis. Ilustração de Ellie Foreman-Peck

Em 2008, o capitalismo teve seu segundo espasmo global. A crise financeira desencadeou uma reação em cadeia que empurrou a Europa para uma espiral descendente que continua até hoje. A situação atual da Europa não é apenas uma ameaça para os trabalhadores, para os despossuídos, para os banqueiros, para as classes sociais ou, na verdade, para as nações. Não, a postura atual da Europa representa uma ameaça à civilização como a conhecemos.

Se meu prognóstico estiver correto, e não estivermos diante de apenas mais uma crise cíclica a ser superada em breve, a questão que se coloca para os radicais é esta: devemos acolher esta crise do capitalismo europeu como uma oportunidade para substituí-lo por um sistema melhor? Ou deveríamos estar tão preocupados com ela a ponto de embarcar em uma campanha para estabilizar o capitalismo europeu?

Para mim, a resposta é clara. A crise europeia tem muito menos probabilidade de dar origem a uma alternativa melhor ao capitalismo do que de desencadear forças perigosamente regressivas com a capacidade de causar um banho de sangue humanitário, ao mesmo tempo em que extingue a esperança de qualquer movimento progressista para as gerações futuras.

Por essa visão, fui acusado, por vozes radicais bem-intencionadas, de ser "derrotista" e de tentar salvar um sistema socioeconômico europeu indefensável. Essa crítica, confesso, dói. E dói porque contém mais do que um fundo de verdade.

Compartilho a opinião de que esta União Europeia é caracterizada por um grande déficit democrático que, combinado com a negação da arquitetura defeituosa de sua união monetária, colocou os povos europeus no caminho da recessão permanente. E também me curvo às críticas de que fiz campanha com uma agenda baseada na suposição de que a esquerda foi, e continua sendo, completamente derrotada. Confesso que preferiria muito mais estar promovendo uma agenda radical, cuja razão de ser é substituir o capitalismo europeu por um sistema diferente.

No entanto, meu objetivo aqui é oferecer uma janela para minha visão de um capitalismo europeu repugnante, cuja implosão, apesar de seus muitos males, deve ser evitada a todo custo. É uma confissão que visa convencer os radicais de que temos uma missão contraditória: deter a queda livre do capitalismo europeu para ganhar o tempo necessário para formular sua alternativa.
Por que um marxista?

Quando escolhi o tema da minha tese de doutorado, em 1982, concentrei-me deliberadamente em um tópico altamente matemático dentro do qual o pensamento de Marx era irrelevante. Quando, mais tarde, embarquei na carreira acadêmica, como professor em departamentos de economia tradicionais, o contrato implícito entre mim e os departamentos que me ofereciam vagas era que eu ensinaria o tipo de teoria econômica que não deixasse espaço para Marx. No final da década de 1980, fui contratado pela Faculdade de Economia da Universidade de Sydney para manter afastado um candidato de esquerda (embora eu não soubesse disso na época).

Yanis Varoufakis: "Karl Marx foi o responsável por moldar minha perspectiva do mundo em que vivemos, desde a minha infância até hoje." Fotografia: PA

Após meu retorno à Grécia em 2000, juntei-me ao futuro primeiro-ministro George Papandreou, na esperança de ajudar a conter o retorno ao poder de uma direita ressurgente que queria empurrar a Grécia para a xenofobia, tanto internamente quanto em sua política externa. Como o mundo inteiro agora sabe, o partido de Papandreou não só falhou em conter a xenofobia como, no final, presidiu as políticas macroeconômicas neoliberais mais virulentas que lideraram os chamados resgates da zona do euro, causando, involuntariamente, o retorno dos nazistas às ruas de Atenas. Embora eu tenha renunciado ao cargo de conselheiro de Papandreou no início de 2006 e me tornado o crítico mais ferrenho de seu governo durante sua gestão equivocada da implosão grega pós-2009, minhas intervenções públicas no debate sobre a Grécia e a Europa não têm qualquer resquício de marxismo.

Diante de tudo isso, você pode ficar perplexo ao me ouvir me chamar de marxista. Mas, na verdade, Karl Marx foi o responsável por moldar minha perspectiva do mundo em que vivemos, desde a minha infância até hoje. Isso não é algo sobre o qual eu frequentemente me ofereço para falar na "sociedade educada", porque a simples menção da palavra com M desanima o público. Mas eu também nunca nego isso. Depois de alguns anos me dirigindo a públicos com os quais não compartilho uma ideologia, surgiu em mim a necessidade de falar sobre a marca de Marx em meu pensamento. Para explicar por que, embora seja um marxista convicto, acho importante resistir a ele apaixonadamente de diversas maneiras. Ser, em outras palavras, errático no próprio marxismo.
Se toda a minha carreira acadêmica ignorou Marx em grande parte, e minhas recomendações políticas atuais são impossíveis de descrever como marxistas, por que abordar meu marxismo agora? A resposta é simples: mesmo minha economia não marxista foi guiada por uma mentalidade influenciada por Marx.

Um teórico social radical pode desafiar a corrente principal da economia de duas maneiras diferentes, sempre pensei. Uma delas é por meio da crítica imanente. Aceitar os axiomas da corrente principal e então expor suas contradições internas. Dizer: "Não contestarei suas suposições, mas eis por que suas próprias conclusões não decorrem logicamente delas". Esse era, de fato, o método de Marx para minar a economia política britânica. Ele aceitava todos os axiomas de Adam Smith e David Ricardo para demonstrar que, no contexto de suas suposições, o capitalismo era um sistema contraditório. O segundo caminho que um teórico radical pode seguir é, obviamente, a construção de teorias alternativas às do establishment, na esperança de que sejam levadas a sério.

Minha visão sobre esse dilema sempre foi a de que os poderes constituídos nunca se perturbam com teorias que partem de pressupostos diferentes dos seus. A única coisa que pode desestabilizar e desafiar genuinamente os economistas neoclássicos tradicionais é a demonstração da inconsistência interna de seus próprios modelos. Foi por essa razão que, desde o início, optei por mergulhar nas entranhas da teoria neoclássica e despender praticamente nenhuma energia tentando desenvolver modelos alternativos e marxistas de capitalismo. Minhas razões, afirmo, eram bastante marxistas.

Quando solicitado a comentar sobre o mundo em que vivemos, não tive alternativa a não ser recorrer à tradição marxista que moldou meu pensamento desde que meu pai, metalúrgico, me incutiu, quando eu ainda era criança, o efeito da inovação tecnológica no processo histórico. Como, por exemplo, a passagem da Idade do Bronze para a Idade do Ferro acelerou a história; como a descoberta do aço acelerou enormemente o tempo histórico; e como as tecnologias de TI baseadas em silício estão acelerando descontinuidades socioeconômicas e históricas.

Meu primeiro contato com os escritos de Marx aconteceu muito cedo, como resultado dos tempos estranhos em que cresci, com a Grécia saindo do pesadelo da ditadura neofascista de 1967-74. O que me chamou a atenção foi o talento hipnotizante de Marx para escrever um roteiro dramático para a história humana, de fato, para a condenação humana, que também era permeado pela possibilidade de salvação e espiritualidade autêntica.

Marx criou uma narrativa povoada por trabalhadores, capitalistas, funcionários públicos e cientistas que eram as dramatis personae da história. Eles lutaram para utilizar a razão e a ciência no contexto do empoderamento da humanidade enquanto, contrariamente às suas intenções, liberavam forças demoníacas que usurpavam e subvertiam sua própria liberdade e humanidade.

Essa perspectiva dialética, onde tudo está prenhe de seu oposto, e o olhar atento com que Marx discerniu o potencial de mudança no que parecia ser a mais imutável das estruturas sociais, ajudaram-me a compreender as grandes contradições da era capitalista. Dissolveram o paradoxo de uma época que gerou a riqueza mais notável e, ao mesmo tempo, a pobreza mais flagrante. Hoje, voltando-se para a crise europeia, a crise nos Estados Unidos e a estagnação prolongada do capitalismo japonês, a maioria dos comentaristas não consegue apreciar o processo dialético que se desenrola sob seus narizes. Reconhecem a montanha de dívidas e prejuízos bancários, mas negligenciam o outro lado da mesma moeda: a montanha de poupanças ociosas que são "congeladas" pelo medo e, portanto, não se convertem em investimentos produtivos. Uma atenção marxista às oposições binárias poderia ter aberto seus olhos.

Uma das principais razões pelas quais a opinião pública estabelecida não consegue lidar com a realidade contemporânea é que ela nunca compreendeu a "produção conjunta" dialeticamente tensa de dívidas e superávits, de crescimento e desemprego, de riqueza e pobreza, de fato, de bem e mal. O roteiro de Marx nos alertou sobre essas oposições binárias como fontes da astúcia da história.

Desde meus primeiros passos pensando como economista, até hoje, ocorreu-me que Marx havia feito uma descoberta que deve permanecer no cerne de qualquer análise útil do capitalismo. Era a descoberta de outra oposição binária profundamente arraigada no trabalho humano. Entre as duas naturezas bastante diferentes do trabalho: i) o trabalho como uma atividade criadora de valor que nunca pode ser quantificada antecipadamente (e, portanto, impossível de mercantilizar), e ii) o trabalho como uma quantidade (por exemplo, número de horas trabalhadas) que está à venda e tem um preço. É isso que distingue o trabalho de outros insumos produtivos, como a eletricidade: sua natureza gêmea e contraditória. Uma diferenciação-contradição que a economia política negligenciou antes do surgimento de Marx e que a economia tradicional se recusa firmemente a reconhecer hoje.

Tanto a eletricidade quanto o trabalho podem ser considerados mercadorias. De fato, tanto empregadores quanto trabalhadores lutam para mercantilizar o trabalho. Os empregadores usam toda a sua engenhosidade, e a de seus subordinados da gestão de RH, para quantificar, mensurar e homogeneizar o trabalho. Enquanto isso, os futuros funcionários passam por momentos difíceis em uma tentativa ansiosa de mercantilizar sua força de trabalho, de escrever e reescrever seus currículos para se apresentarem como fornecedores de unidades de trabalho quantificáveis. E aí está o problema. Se trabalhadores e empregadores conseguirem mercantilizar o trabalho completamente, o capitalismo perecerá. Essa é uma percepção sem a qual a tendência do capitalismo de gerar crises jamais poderá ser plenamente compreendida e, também, uma percepção à qual ninguém tem acesso sem alguma exposição ao pensamento de Marx.

A ficção científica se torna documentário

No clássico de 1953, Invasão dos Ladrões de Corpos, a força alienígena não nos ataca de frente, ao contrário de, digamos, A Guerra dos Mundos, de H.G. Wells. Em vez disso, as pessoas são tomadas de dentro para fora, até que nada reste de seu espírito e emoções humanas. Seus corpos são conchas que costumavam conter o livre-arbítrio e que agora trabalham, realizam os movimentos da "vida" cotidiana e funcionam como simulacros humanos "libertados" da essência inquantificável da natureza humana. Isso é algo parecido com o que teria acontecido se o trabalho humano tivesse se tornado perfeitamente redutível ao capital humano e, portanto, adequado para inserção nos modelos dos economistas vulgares.

Invasão dos Ladrões de Corpos. Fotografia: SNAP/REX

Toda teoria econômica não marxista que trata os insumos produtivos humanos e não humanos como intercambiáveis ​​pressupõe que a desumanização do trabalho humano é completa. Mas, se isso pudesse ser concluído, o resultado seria o fim do capitalismo como sistema capaz de criar e distribuir valor. Para começar, uma sociedade de autômatos desumanizados se assemelharia a um relógio mecânico cheio de engrenagens e molas, cada uma com sua função única, produzindo, em conjunto, um "bem": a cronometragem. No entanto, se essa sociedade contivesse apenas outros autômatos, a cronometragem não seria um "bem". Certamente seria uma "saída", mas por que um "bem"? Sem humanos reais para vivenciar a função do relógio, não pode haver "bom" ou "mau".

Se o capital conseguir quantificar e, subsequentemente, mercantilizar completamente o trabalho, como constantemente tenta fazer, também espremerá de dentro do trabalho aquela liberdade humana indeterminada e recalcitrante que permite a geração de valor. A brilhante percepção de Marx sobre a essência das crises capitalistas foi precisamente esta: quanto maior o sucesso do capitalismo em transformar o trabalho em mercadoria, menor o valor de cada unidade de produção gerada, menor a taxa de lucro e, em última análise, mais próxima a próxima recessão da economia como um sistema. A representação da liberdade humana como categoria econômica é única em Marx, possibilitando uma interpretação distintamente dramática e analiticamente perspicaz da propensão do capitalismo a arrancar a recessão, até mesmo a depressão, das garras do crescimento.

Quando Marx escrevia que o trabalho é o fogo vivo que dá forma; a transitoriedade das coisas; sua temporalidade; ele estava dando a maior contribuição que qualquer economista já fez para a nossa compreensão da aguda contradição enterrada no DNA do capitalismo. Ao retratar o capital como uma "... força à qual devemos nos submeter... ele desenvolve uma energia cosmopolita e universal que rompe todos os limites e todos os vínculos e se apresenta como a única política, a única universalidade, o único limite e o único vínculo", ele destacava a realidade de que o trabalho pode ser comprado pelo capital líquido (ou seja, dinheiro), em sua forma de mercadoria, mas que sempre carregará consigo uma vontade hostil ao comprador capitalista. Mas Marx não estava apenas fazendo uma declaração psicológica, filosófica ou política. Ele estava, em vez disso, fornecendo uma análise notável de por que, no momento em que o trabalho (como uma atividade não quantificável) se livra dessa hostilidade, ele se torna estéril, incapaz de produzir valor.

Numa época em que os neoliberais capturaram a maioria em seus tentáculos teóricos, regurgitando incessantemente a ideologia de aumentar a produtividade do trabalho em um esforço para aumentar a competitividade com vistas a gerar crescimento etc., a análise de Marx oferece um antídoto poderoso. O capital jamais poderá vencer em sua luta para transformar o trabalho em um insumo infinitamente elástico e mecanizado, sem se autodestruir. É isso que nem os neoliberais nem os keynesianos jamais compreenderão. "Se toda a classe dos trabalhadores assalariados fosse aniquilada pela maquinaria", escreveu Marx, "quão terrível seria para o capital, que, sem trabalho assalariado, deixa de ser capital!"

O que Marx fez por nós?

Quase todas as escolas de pensamento, incluindo as de alguns economistas progressistas, gostam de fingir que, embora Marx tenha sido uma figura poderosa, muito pouco de sua contribuição permanece relevante hoje. Discordo. Além de ter captado o drama básico da dinâmica capitalista, Marx me deu as ferramentas para me tornar imune à propaganda tóxica do neoliberalismo. Por exemplo, a ideia de que a riqueza é produzida privadamente e depois apropriada por um Estado quase ilegítimo, por meio de impostos, é fácil de sucumbir se não se tiver sido exposto primeiro ao pungente argumento de Marx de que se aplica precisamente o oposto: a riqueza é produzida coletivamente e depois apropriada privadamente por meio de relações sociais de produção e direitos de propriedade que dependem, para sua reprodução, quase exclusivamente de falsa consciência.

Em seu livro recente, "Nunca Desperdice uma Crise Grave", o historiador do pensamento econômico Philip Mirowski destacou o sucesso dos neoliberais em convencer um grande número de pessoas de que os mercados não são apenas um meio útil para um fim, mas também um fim em si mesmos. De acordo com essa visão, embora a ação coletiva e as instituições públicas nunca sejam capazes de "acertar", as operações irrestritas do interesse privado descentralizado certamente produzirão não apenas os resultados certos, mas também os desejos, o caráter e até mesmo o ethos corretos. O melhor exemplo dessa forma de grosseria neoliberal é, obviamente, o debate sobre como lidar com as mudanças climáticas. Os neoliberais apressaram-se a argumentar que, se algo deve ser feito, deve assumir a forma de criar um quase-mercado para os "maus" (por exemplo, um sistema de comércio de emissões), uma vez que apenas os mercados "sabem" como precificar bens e males adequadamente. Para entender por que tal solução de quase-mercado está fadada ao fracasso e, mais importante, de onde vem a motivação para tais "soluções", é preciso se familiarizar com a lógica da acumulação de capital que Marx delineou e que o economista polonês Michal Kalecki adaptou a um mundo governado por oligopólios em rede.

Os neoliberais se precipitaram com respostas quase de mercado às mudanças climáticas, como os esquemas de comércio de emissões. Fotografia: Jon Woo/Reuters

No século XX, os dois movimentos políticos que buscaram suas raízes no pensamento de Marx foram os partidos comunista e social-democrata. Ambos, além de seus outros erros (e, de fato, crimes), falharam, em seu detrimento, em seguir a liderança de Marx em um aspecto crucial: em vez de abraçar a liberdade e a racionalidade como seus gritos de guerra e conceitos organizadores, optaram pela igualdade e pela justiça, legando o conceito de liberdade aos neoliberais. Marx foi inflexível: O problema com o capitalismo não é que ele seja injusto, mas que seja irracional, pois habitualmente condena gerações inteiras à privação e ao desemprego e até transforma capitalistas em autômatos angustiados, vivendo em medo permanente de que, a menos que mercantilizem seus semelhantes plenamente para servir à acumulação de capital de forma mais eficiente, deixarão de ser capitalistas. Portanto, se o capitalismo parece injusto, é porque escraviza a todos; desperdiça recursos humanos e naturais; A mesma linha de produção que produz engenhocas extraordinárias e riquezas incalculáveis ​​também produz profunda infelicidade e crises.

Ao não conseguir formular uma crítica ao capitalismo em termos de liberdade e racionalidade, como Marx considerava essenciais, a social-democracia e a esquerda em geral permitiram que os neoliberais usurpassem o manto da liberdade e conquistassem um triunfo espetacular na disputa de ideologias.

Talvez a dimensão mais significativa do triunfo neoliberal seja o que veio a ser conhecido como "déficit democrático". Rios de lágrimas de crocodilo correram sobre o declínio de nossas grandes democracias durante as últimas três décadas de financeirização e globalização. Marx teria rido muito daqueles que parecem surpresos ou incomodados com o "déficit democrático". Qual era o grande objetivo por trás do liberalismo do século XIX? Era, como Marx não se cansava de apontar, separar a esfera econômica da esfera política e confinar a política a esta última, deixando a esfera econômica para o capital. É o esplêndido sucesso do liberalismo em alcançar esse objetivo de longa data que estamos observando agora. Observe a África do Sul hoje, mais de duas décadas após a libertação de Nelson Mandela e a esfera política, finalmente, ter abrangido toda a população. O dilema do CNA era que, para poder dominar a esfera política, precisava abrir mão do poder sobre a econômica. E se você pensa o contrário, sugiro que converse com as dezenas de mineiros mortos a tiros por guardas armados pagos por seus empregadores depois que ousaram exigir um aumento salarial.

Por que errático?

Tendo explicado por que devo, em grande parte, qualquer compreensão que eu possa ter do nosso mundo social a Karl Marx, quero agora explicar por que continuo terrivelmente irritado com ele. Em outras palavras, descreverei por que sou, por escolha própria, um marxista errático e inconsistente. Marx cometeu dois erros espetaculares, um deles um erro de omissão, o outro de comissão. Mesmo hoje, esses erros ainda prejudicam a eficácia da esquerda, especialmente na Europa.

O primeiro erro de Marx – o erro de omissão – foi que ele não refletiu o suficiente sobre o impacto de suas próprias teorizações no mundo sobre o qual estava teorizando. Sua teoria é discursivamente excepcionalmente poderosa, e Marx tinha noção de seu poder. Então, como ele não demonstrou preocupação de que seus discípulos, pessoas com uma compreensão melhor dessas ideias poderosas do que o trabalhador médio, pudessem usar o poder que lhes foi concedido, por meio das próprias ideias de Marx, para abusar de outros camaradas, construir sua própria base de poder e ganhar posições de influência?

O segundo erro de Marx, aquele que atribuo à comissão, foi pior. Foi sua suposição de que a verdade sobre o capitalismo poderia ser descoberta na matemática de seus modelos. Esse foi o pior desserviço que ele poderia ter prestado ao seu próprio sistema teórico. O homem que nos equipou com a liberdade humana como um conceito econômico de primeira ordem; o acadêmico que elevou a indeterminação radical ao seu devido lugar na economia política; ele foi a mesma pessoa que acabou brincando com modelos algébricos simplistas, nos quais as unidades de trabalho eram, naturalmente, totalmente quantificadas, na esperança, contra todas as esperanças, de extrair dessas equações alguns insights adicionais sobre o capitalismo. Após sua morte, economistas marxistas desperdiçaram longas carreiras entregando-se a um tipo semelhante de mecanismo escolástico. Totalmente imersos em debates irrelevantes sobre "o problema da transformação" e o que fazer a respeito, eles acabaram se tornando uma espécie quase extinta, à medida que o rolo compressor neoliberal esmagava toda dissidência em seu caminho.

Como Marx pôde estar tão iludido? Por que ele não reconheceu que nenhuma verdade sobre o capitalismo pode jamais surgir de qualquer modelo matemático, por mais brilhante que seja o modelador? Ele não tinha as ferramentas intelectuais para perceber que a dinâmica capitalista surge da parte não quantificável do trabalho humano; isto é, de uma variável que nunca pode ser bem definida matematicamente? Claro que sim, já que ele forjou essas ferramentas! Não, a razão para seu erro é um pouco mais sinistra: assim como os economistas vulgares que ele tão brilhantemente advertiu (e que continuam a dominar os departamentos de economia hoje), ele cobiçava o poder que a "prova" matemática lhe conferia.

Se eu estiver certo, Marx sabia o que estava fazendo. Ele entendia, ou tinha a capacidade de saber, que uma teoria abrangente do valor não pode ser acomodada em um modelo matemático de uma economia capitalista dinâmica. Ele estava, não tenho dúvidas, ciente de que uma teoria econômica adequada deve respeitar a ideia de que as regras do indeterminado são, elas próprias, indeterminadas. Em termos econômicos, isso significava o reconhecimento de que o poder de mercado, e portanto a lucratividade, dos capitalistas não era necessariamente redutível à sua capacidade de extrair trabalho dos empregados; que alguns capitalistas podem extrair mais de um determinado conjunto de mão de obra ou de uma determinada comunidade de consumidores por razões externas à própria teoria de Marx.

Infelizmente, esse reconhecimento equivaleria a aceitar que suas "leis" não eram imutáveis. Ele teria que admitir, diante de vozes concorrentes no movimento sindical, que sua teoria era indeterminada e, portanto, que seus pronunciamentos não poderiam ser única e inequivocamente corretos. Que eram permanentemente provisórios. Essa determinação de ter a história completa e fechada, ou o modelo, a palavra final, é algo que não posso perdoar a Marx. Afinal, ela se mostrou responsável por muitos erros e, mais significativamente, por autoritarismo. Erros e autoritarismo que são em grande parte responsáveis ​​pela atual impotência da esquerda como força do bem e como freio aos abusos da razão e da liberdade que a turma neoliberal supervisiona hoje.

A lição da Sra. Thatcher

Mudei-me para a Inglaterra para cursar a universidade em setembro de 1978, cerca de seis meses antes da vitória de Margaret Thatcher mudar a Grã-Bretanha para sempre. Assistir à desintegração do governo trabalhista, sob o peso de seu programa social-democrata degenerado, levou-me a um erro grave: a ideia de que a vitória de Thatcher poderia ser algo bom, proporcionando às classes trabalhadora e média britânica o choque curto e agudo necessário para revigorar a política progressista; para dar à esquerda a chance de criar uma agenda nova e radical para um novo tipo de política progressista eficaz.

Mesmo com o desemprego dobrando e depois triplicando, sob as intervenções neoliberais radicais de Thatcher, continuei a alimentar a esperança de que Lênin estivesse certo: "As coisas precisam piorar antes de melhorar". À medida que a vida se tornava mais desagradável, mais brutal e, para muitos, mais curta, ocorreu-me que eu estava tragicamente enganado: as coisas poderiam piorar para sempre, sem nunca melhorar. A esperança de que a deterioração dos bens públicos, a diminuição da vida da maioria e a disseminação da privação por todos os cantos do país levariam, automaticamente, a um renascimento da esquerda era apenas isso: esperança.

A realidade, no entanto, era dolorosamente diferente. A cada volta do parafuso da recessão, a esquerda se tornava mais introvertida, menos capaz de produzir uma agenda progressista convincente e, enquanto isso, a classe trabalhadora se dividia entre aqueles que abandonavam a sociedade e aqueles cooptados pela mentalidade neoliberal. Minha esperança de que Thatcher inadvertidamente provocasse uma nova revolução política era completamente falsa. Tudo o que surgiu do thatcherismo foi a extrema financeirização, o triunfo do shopping sobre a loja da esquina, a fetichização da moradia e Tony Blair.

Margaret Thatcher na conferência do Partido Conservador em 1982. Fotografia: Nils Jorgensen/Rex Features

Em vez de radicalizar a sociedade britânica, a recessão que o governo Thatcher tão cuidadosamente engendrou, como parte de sua luta de classes contra o trabalho organizado e contra as instituições públicas de seguridade social e redistribuição estabelecidas após a guerra, destruiu permanentemente a própria possibilidade de políticas radicais e progressistas na Grã-Bretanha. De fato, tornou impossível a própria noção de valores que transcendessem o que o mercado determinava como o preço "certo".

A lição que Thatcher me ensinou sobre a capacidade de uma recessão prolongada de minar a política progressista é uma lição que levo comigo para a crise europeia atual. É, de fato, o determinante mais importante da minha postura em relação à crise. É a razão pela qual confesso com prazer o pecado do qual sou acusado por alguns dos meus críticos de esquerda: o pecado de optar por não propor programas políticos radicais que buscam explorar a crise como uma oportunidade para derrubar o capitalismo europeu, desmantelar a terrível zona do euro e minar a União Europeia dos cartéis e dos banqueiros falidos.

Sim, eu adoraria apresentar uma agenda tão radical. Mas não, não estou disposto a cometer o mesmo erro duas vezes. Que bem alcançamos na Grã-Bretanha no início da década de 1980 ao promover uma agenda de mudança socialista que a sociedade britânica desprezava enquanto caía de cabeça na armadilha neoliberal de Thatcher? Precisamente nenhum. De que adiantaria hoje clamar pelo desmantelamento da zona do euro, da própria União Europeia, quando o capitalismo europeu está fazendo o máximo para minar a zona do euro, a União Europeia, e até mesmo a si mesmo?

Uma saída da Grécia, de Portugal ou da Itália da zona do euro levaria em breve a uma fragmentação do capitalismo europeu, gerando uma região superavitária em grave recessão a leste do Reno e ao norte dos Alpes, enquanto o resto da Europa estaria sob o domínio de uma estagflação perversa. Quem você acha que se beneficiaria com esse desenvolvimento? Uma esquerda progressista, que ressurgirá como uma fênix das cinzas das instituições públicas europeias? Ou os nazistas da Aurora Dourada, os diversos neofascistas, os xenófobos e os especuladores? Não tenho a menor dúvida de qual dos dois se sairá melhor com a desintegração da zona do euro.

Eu, por exemplo, não estou preparado para dar um novo alento a essa versão pós-moderna da década de 1930. Se isso significa que somos nós, os marxistas devidamente erráticos, que devemos tentar salvar o capitalismo europeu de si mesmo, que assim seja. Não por amor ao capitalismo europeu, à zona do euro, a Bruxelas ou ao Banco Central Europeu, mas simplesmente porque queremos minimizar o custo humano desnecessário desta crise.
O que os marxistas devem fazer?

As elites europeias estão se comportando hoje como se não compreendessem a natureza da crise que presidem, nem suas implicações para o futuro da civilização europeia. Atavisticamente, elas estão optando por saquear os estoques decrescentes dos fracos e despossuídos para tapar os buracos do setor financeiro, recusando-se a aceitar a insustentabilidade da tarefa.

No entanto, com as elites europeias mergulhadas na negação e na desordem, a esquerda deve admitir que simplesmente não estamos prontos para tapar o abismo que um colapso do capitalismo europeu abriria com um sistema socialista funcional. Nossa tarefa deve, então, ser dupla. Primeiro, apresentar uma análise da situação atual que os europeus não marxistas e bem-intencionados, atraídos pelas sereias do neoliberalismo, considerem perspicaz. Segundo, dar continuidade a essa análise sólida com propostas para estabilizar a Europa – para pôr fim à espiral descendente que, no fim das contas, só reforça os intolerantes.

Permitam-me agora concluir com duas confissões. Primeiro, embora eu esteja feliz em defender como genuinamente radical a busca por uma agenda modesta para estabilizar um sistema que critico, não fingirei estar entusiasmado com ela. Isso pode ser o que devemos fazer, nas circunstâncias atuais, mas lamento que provavelmente não estarei aqui para ver uma agenda mais radical ser adotada.

Minha confissão final é de natureza altamente pessoal: sei que corro o risco de, sub-repticiamente, amenizar a tristeza de abandonar qualquer esperança de substituir o capitalismo em minha vida, alimentando a sensação de ter me tornado agradável aos círculos da sociedade educada. A sensação de autossatisfação por ser homenageado pelos poderosos começou, de vez em quando, a me invadir. E que sensação não radical, feia, corrupta e corrosiva era essa.

Meu ponto mais baixo pessoal aconteceu num aeroporto. Alguma organização endinheirada me convidou para fazer um discurso sobre a crise europeia e desembolsou a quantia absurda necessária para comprar uma passagem de primeira classe. No caminho de volta para casa, cansado e com vários voos na bagagem, eu estava abrindo caminho pela longa fila de passageiros da classe econômica para chegar ao meu portão de embarque. De repente, percebi, com horror, como era fácil para minha mente ser infectada pela sensação de que eu tinha o direito de ignorar a plebe. Percebi como eu podia facilmente esquecer aquilo que minha mente de esquerda sempre soube: que nada consegue se reproduzir melhor do que uma falsa sensação de direito. Forjar alianças com forças reacionárias, como acredito que devemos fazer para estabilizar a Europa hoje, nos coloca sob o risco de sermos cooptados, de nos livrarmos do nosso radicalismo sob o brilho acolhedor de termos "chegado" aos corredores do poder.

Confissões radicais, como a que tentei aqui, são talvez o único antídoto programático para o deslizamento ideológico que ameaça nos transformar em engrenagens da máquina. Se quisermos forjar alianças com nossos adversários políticos, devemos evitar nos tornar como os socialistas que falharam em mudar o mundo, mas conseguiram melhorar suas circunstâncias pessoais. O segredo é evitar o maximalismo revolucionário que, no fim das contas, ajuda os neoliberais a contornar toda a oposição às suas políticas autodestrutivas e a manter em mente as falhas inerentes do capitalismo enquanto tentamos salvá-lo, para fins estratégicos, de si mesmo.

Este artigo é uma adaptação de uma palestra originalmente proferida no 6º Festival Subversivo em Zagreb, em 2013.

12 de fevereiro de 2015

Mudar o mundo tomando o poder

Seus críticos estão demostrando estar equivocados. O Syriza não desmobiliza os movimentos, mas os ajuda a crescer.

David Renton

Jacobin


Tradução / Para aqueles que, até recentemente, simpatizavam com Antarsya, a outra coalizão da esquerda radical na Grécia, é saudável refletir sobre o quão bem Syiriza tem ido no último mês e como foi mal Antarsya, em comparação.

A justificativa da existência separada de Antarsya é algo como: Antarsya, diferente de Syriza é uma coalizão de partidos que acreditam que a Grécia só pode ser salva por uma transformação revolucionária do Estado. Syriza diferente de Antarsya, se equivoca neste tema, tanto no que se refere à Grécia permanecer na Europa quanto se deve concordar em pagar a dívida a seus credores internacionais.

Aqueles que votam por Antarsya, votam por uma alternativa revolucionária ao capitalismo e, ao fazê-lo, mantém viva a possibilidade de uma verdadeira política revolucionária. Syriza, ao contrário, é meramente reformista e, provavelmente sofra um desgaste como o Pasok e os outros partidos sociais-democratas.

O voto em Antarsya se reduziu a somente 0,6% na última eleição, dado que esta se converteu em um referendo sobre a possibilidade, ou não, de um governo de esquerda (coisa a qual os trabalhadores mais politizados aspiram), mas mediante sua posição, Antarsya permaneceu exercendo uma pressão de esquerda sobre Syriza.

Manter-se fora da Syryza tem todos os benefícios de ser associado a um movimento em alta (as vendas do jornal “Solidariedade dos Trabalhadores” de alguns membros de Antarsya, aparentemente, são maiores que nunca), mas nenhuma das desvantagens de ser associado com a derrota de Syriza, quando venha a decepção inevitavelmente.

Onde esta justificativa de Antarsya começa a falhar é com a afirmação de que a melhor alternativa a um programa de reformas é oferecer um programa rival de reformas mais profundas ainda. Neste marco, os revolucionários são diferentes dos reformistas, principalmente, porque pedem mais. Se Syriza ofereceu nacionalidade grega aos filhos de todos os imigrantes, Antarsya, como jogador de pôquer, sobe a aposta e oferece legalizar todos os imigrantes na Grécia. Quando Syriza declarou que vai parar todas as privatizações planejadas, Antarsya respondeu dizendo que reverterá cada uma das privatizações da história grega.

Mas usar as eleições para gerar consciência revolucionária não se trata de subir a aposta do rival. Implica em uma explicação de como um governo, nos marcos do capitalismo, tem um poder limitado e como essas limitações podem ser superadas: somente através do conflito direto direto com a classe capitalista internacional.

Neste ponto, Syriza aparece com uma política mais sofisticada que Antarsya, porque possui uma análise de seus próprios limites como governo reformista (os poderes europeus não permitiram mais que um pequeno abatimento de nossa dívida) e uma ideia de como ir mais além desse limite (sobre a base da agitação fora do parlamento, mantendo a pressão sobre o governo e com o apoio da esquerda de fora da Grécia).

Coerentemente com sua política estratégica para lidar com a questão Syriza, os mais articulados partidários de Antarsya estão tomando cada exemplo da “traição da Syriza”, e contrapondo a eles, as potenciais virtudes dos protestos. As condições que possibilitam um governo de esquerda são atribuídas unicamente à atuação dos movimentos sociais. A razão pela qual os gregos tem uma Syriza seria, então, o único fato de terem feito trinta e duas greves gerais, enquanto os britânicos carecem de uma alternativa de massas ao Partido Trabalhista, por que só contam com a batalha pelas pensões no setor público.

Mas, de onde se supõe que virá um movimento de massas capaz de levantar-se de um modo direto e contínuo, convertendo-se em poderosos o suficiente para derrotar o Estado? A deficiência de Syriza seria que, como outros governos reformistas, continuamente conspira para desmobilizar os movimentos de massas, dizendo aos trabalhadores que votem, quando deveriam estar protestando.

Entretanto, quando observamos a Grécia, podemos ver claramente (admitindo que se encontra em suas primeiras duas semanas e, até agora, durante o período de “lua-de-mel”) que Syriza não tem desmobilizado os movimento, pelo contrário, tem aberto novas possibilidades para que emerjam, removendo as barreiras de fora do parlamento, com as manifestações de apoio à demanda da renegociaão da dívida e a propaganda feita ao enviar ministros a toda a Europa.

E a versão parlamentar do representante sindical que sempre quisemos ter, o que verdadeiramente aproveita a luta com os chefes e não retrocede ante ao primeiro sinal de problemas. E o povo responde ao que luta, até agora o governo Syriza está aumentado a confiança dos movimentos sociais.

Sujeita à sua lei-de-ferro, a classe capitalista global não renuncia à hegemonia na presença de uma ameaça localizada e não fará isto. Portanto, as maiores batalhas se encontram pela frente. Os partidários internacionais de Antarsya se equivocam e os que apoiam Syriza estão corretos ao desfaiar a noção dos primeiros que predizem: Syriza responderá ao poder real moderando-se cada vez mais.

Uma última posição fundamental dos partidários de Antarsya é que a classe operária tem um conjunto infinito de oportunidades e que pode prescindir da presente. Não importará muito, já que em outro cenário futuro, outro partido invariavelmente surgirá da esquerda, encarnado em outras pessoas de diferentes tradições e, portanto, melhor preparado a levar adiante a previamente inexistente guerra contra o Estado.

Se Syriza fracassar, não se voltará a uma situação de normalidade política. A polícia e o Aurora Dourada estarão em festa e sua vingança sobre os movimentos não será mais tolerante que a contrarrevolução agora em marcha no Egito.

Este é um resultado que nenhum socialista deve supor como aceitável.

Sobre o autor

David Renton is the author of The New Authoritarians: Convergence on the Right.

10 de fevereiro de 2015

A contracultura perdida

Vício Inerente descreve brilhantemente como o neoliberalismo cooptou a contracultura.

Stephen Maher

Jacobin


Tradução / A princípio, a perspectiva da “arte cinematográfica” parece que nunca foi tão desanimadora. A estratégia comercial dos estúdios corporativos tem o objetivo de gerar alguns blockbusters por ano, cada vez mais na forma de sequências intermináveis e spin-offs. Com isso, fazer arte é algo praticamente inadequado dentro da lógica de produção de filmes de Hollywood.

Essa situação deprimente foi brilhantemente satirizada no filme Birdman de Alejandro Gonzalez Inarritu. Agora, Vício Inerente de Paul Thomas Anderson traz um pouco de esperança na possibilidade de outro tipo de cinema.

Anderson consegue criar de forma consistente filmes que vão além do que foi feito antes e do que seus colegas estão fazendo atualmente. Realmente, é bastante comum ver diretores surfarem confortavelmente na produção de remakes de seus “maiores sucessos” — basta olhar para Wes Anderson, cujos mundos fantasiosos e engraçadinhos demonstram a mesma combinação de desapego cínico, presunção e falta de sinceridade, enquanto reformam tematicamente a importância central da paternidade para a geração de sentido em nossas vidas; ou os Irmãos Coen, que refizeram a Odisseia de Homero algumas dezenas de vezes ou mais até então, embora com personagens um pouco excêntricos.

Mas cada filme novo de Paul Thomas Anderson revoluciona o que pensávamos ser possível na tela. Talvez seja por isso que seus filmes podem ser compreendidos apenas depois de um tempo: precisamos assisti-los mais de uma vez, digerir, pensar.

Vício Inerente talvez seja o retrato mais brilhante da construção da hegemonia neoliberal e do fim severo dos sonhos da geração de 60. Ele conversa de forma muito poderosa com o aqui e agora, indicando a fuga nostálgica que anseia pelos “anos sessenta” e mostrando que esse mundo sublime, como é normalmente imaginado, nunca existiu.

A atualidade do filme também vem de sua exploração do momento no qual é possível detectar o surgimento das forças neoliberais que, por fim, gerariam a crise de 2008: privatização, desregulamentação, especulação imobiliária e booms de desenvolvimento. Não foi por acidente que Vício Inerente de Thomas Pynchon foi publicado em 2009. E, conforme sugerem tanto o filme quanto o livro, o ideal hippie continha em si a própria semente — o “vício inerente” — que o transformaria num pesadelo.

Um noir pós-moderno

O filme opera dentro da convenção de gênero “film noir”, repleto de sombras, névoa, becos escuros, um tipo de mulher fatal e um enredo complexo, quase impenetrável: Doc Sportello, um detetive particular hippie e maconheiro, recebe a visita de sua ex-namorada, Shasta Faye Hepworth, que passou a ter um caso com Mickey Wolfmann, um poderoso investidor imobiliário. Shasta diz, logo antes de desaparecer, que a esposa de Mickey, Sloane, e seu amante e suposto “guia espiritual” têm planos de dar um jeito em Mickey e fugir com seu dinheiro. Mais tarde, Doc é contratado por Hope Harlingen, uma ex junkie com dentes falsos, para descobrir o que aconteceu com seu marido — Coy, um comunista viciado em heroína que virou a casaca e tornou-se informante do Cointelpro.

No final das contas, os dois casos estavam relacionados à “Golden Fang”, uma enorme corporação e rede de tráfico de heroína com uma fachada de empresa fiscal estabelecida por um cartel de dentistas. A Fang também é proprietária de uma instituição de saúde mental recém-privatizada, na qual enfermeiros vestidos como Jesus correm de lá pra cá com Uzis, e onde os “loucos” são “curados”: ou seja, reprogramados mentalmente para se tornarem cidadãos responsáveis, dóceis e obedientes.

Depois de ser enviado à instituição, Burke Stodger, um ator famoso, foi transformado de comunista procurado em reacionário dedicado. Agora, os pacientes da instituição assistem o dia todo a maratonas de filmes do Stodger. Poderia haver um símbolo mais adequado, ou mais hilário, para o final dos anos 60 e o surgimento da nova ideologia hegemônica?

Vício Inerente tem tudo a ver com os filmes recentes de Anderson — O Mestre e Sangue Negro — mais do que com seus trabalhos anteriores (Magnólia, Embriagado de Amor e Boogie Nights: Prazer sem limites). Enquanto os anteriores abrangiam interrogações pós-modernas sobre filme, fama, desempenho, genialidade, infância, culpa e amor, os trabalhos mais recentes incorporam essas questões na exploração de momentos reveladores do desenvolvimento histórico dos Estados Unidos, resultando em filmes dos mais sofisticados e complexos já produzidos.

Nesses últimos filmes, que são sequências cronológicas, Anderson consegue uma convergência impressionante entre o ethos e o caráter de toda uma era, e as batalhas subjetivas de seus personagens.

Em Sangue Negro, há o encontro fatal do fundamentalismo religioso, do capitalismo e da extração de recursos naturais — fenômenos que continuamclaramente centrais a qualquer concepção sã de “América”, especialmente durante a invasão do Iraque — sobre o pano de fundo da expansão do capitalismo durante o final do séc. XIX. Em O Mestre, há a busca por sentido e propósito no despertar da Segunda Guerra Mundial, e o vazio da suburbanização pós-guerra, consumismo em massa e o núcleo familiar dos anos 50.

Assim, faz todo sentido que Vício Inerente ocorra no momento em que o lance dos “anos sessenta”, qualquer que seja o significado disso, chegou definitivamente ao fim; um momento no qual o sentido simbólico foi subvertido, produzindo uma sensação profunda de incerteza e desorientação. A mudança é onipresente em Vício Inerente.

Em uma das primeiras cenas do filme, Sortilege — a narradora do filme, e alguém possivelmente alucinada — diz a Doc que ele precisa mudar seu corte de cabelo: “Mude seu cabelo, mude sua vida.” Quando Doc pergunta qual estilo ele deveria usar, a resposta ambígua resume o filme de forma magnífica: todos precisam se adaptar, mas ninguém sabe o que se tornar, ou como chegar lá.

Muito mais clara é a transformação rápida e violenta do ambiente urbanizado de Los Angeles. Quando Tariq Khalil, membro da Black Guerrilla Family, inspirada em Marcus Garvey, contrata Doc para encontrar um dos guarda-costas de Mickey, um sujeito defensor da Supremacia Branca, ele o informa de que toda sua comunidade havia sido destruída e seus moradores despejados para dar espaço ao Channel View Estates, o investimento imobiliário mais recente de Mickey.

A narração de Sortilege conecta esse evento com a “longa e triste história” do redesenvolvimento urbano em Los Angeles, incluindo a “Batalha de Chavez Ravine”, na qual os residentes latinos tentaram resistir à demolição de sua comunidade, que abria caminho para o que é hoje o Estádio do Dodgers.

Cuidado com a Golden Fang

A complexidade da trama serve principalmente para ilustrar a relativa insignificância da busca de Doc, e para destacar que o que está “realmente” acontecendo ocorre a portas fechadas. Por becos escuros, em reuniões fechadas nos fundos de uma festa, em salas ocultas no consultório do dentista e em prédios comerciais comuns, uma entidade corporativa enorme e imensamente poderosa está transformando rapidamente a sociedade, de maneira kafkiana, da valorização e redesenvolvimento urbano para a Cointelpro e a venda de heroína.

Ninguém, contudo, parece perceber algo, em parte porque o excesso de drogas, sexo e rock é basicamente uma fuga. Como nos informa Sortilege, “valia a pena escapar da vida americana”.

Os hippies não estavam desafiando o poder conscientemente, mas sim buscando a felicidade pessoal. Eles pareciam acreditar que, se fechassem os olhos bem apertados, ou dessem mais um tapa, os demônios do mundo se dissolveriam em flores e luzes. “Pessoas como você perdem qualquer direito ao respeito no momento em que pagam o aluguel”, diz um personagem a Doc perto do final do filme.

Essa necessidade de “negar a realidade por meio de histórias”, de acordo com Hope, indica um motivo pelo qual a contracultura hippie foi recuperada (usando termos dos Situacionistas) com tanto sucesso. Enquanto os hippies fechavam seus olhos, as forças de reação espreitavam logo abaixo da superfície, recuperando suas forças de forma silenciosa e constante.

Mas essa recuperação resultou também do dinamismo ideológico do capitalismo. “Turmas obscuras” em festas hippies, escritórios corporativos e mansões suburbanas aproveitaram os aspectos da revolução contracultural que os convinha, adotando o vernáculo, o vestuário, o simbolismo, o espiritualismo e a emancipação sexual, e fazendo-se passar efetivamente por almas irmãs emancipadas.

Conforme escreve Slavoj Zizek, “o novo capitalismo” que surgiu nos anos 70 “apropriou-se de forma triunfante dessa retórica anti-hierárquica de 68, apresentando-se como revolta libertadora contra as organizações sociais opressoras do capitalismo corporativo e do socialismo realmente existente”: pense nos filmes anticomunistas de Burke Stodger junto com a emancipação sexual e iluminação espiritual de Sloane Wolfmann.

“O que sobrou da liberação sexual dos anos 60”, continua Zizek, “foi o hedonismo tolerante prontamente incorporado em nossa ideologia hegemônica”. O resultado foi o surgimento do “mestre permissivo pós-moderno, cuja dominação é maior por ser menos visível”.

O filme explora de forma intensa essa transformação cultural-simbólica. Como podemos ver, está cada vez mais difícil distinguir os hippies do sistema. Primeiro conhecemos Bigfoot Bjornson, inimigo e doppelgänger, uma versão malvada de Doc. Bigfoot é um policial com corte de cabelo flat-top “de proporções cavernosas” e “olhos que gritam violações dos direitos civis”, que aparece como ator em um comercial da Channel View Estates. Primeira fala de Bigfoot: “Cara, não quero que você pague aluguel!” Ele segue explicando, em linguagem hippie debochada, que pagar aluguel é “sacal” e “uma barra”, e que a solução é comprar uma casa nova em Channel View, construída sobre o que era antes uma comunidade de trabalhadores negros.

Adrian Prussia, um agiota e assassino de aluguel da polícia, diz coisas como “psicodélico” e “massa”. A esposa de Wolfmann, Sloane, tem um “guia espiritual” com quem ela obviamente tem intimidade sexual. Quanto ao próprio Wolfmann, ficamos sabendo por um dos informantes de Doc que é “um judeu que quer ser nazista”. Ele tem também um armário cheio de gravatas enfeitadas com imagens de mulheres nuas com as quais (supostamente) fez sexo, e abre um hospital psiquiátrico privado cujo nome é “uma antiga palavra indiana que significa serenidade”.

Um filme implacável

Bigfoot é um ator em todos os sentidos — não apenas no comercial da Channel View, mas também como figurante no programa “Adam-12”, que compete, enquanto Doc troca os canais da TV, com o discurso de Richard Nixon em um comício da “Vigilant California” (uma coalizão reaça espontânea, um pouco parecida com o Tea Party). Tanto o discurso quanto o programa policial mandam a mesma mensagem: há uma desordem nas ruas, e ela deve ser reprimida.

Durante todo o filme, assim como em sua obra-prima Magnólia, Anderson destaca como a televisão molda as percepções da realidade, desde a persona de Bigfoot na frente e por trás das câmeras, até a aparente interrupção de Coy Harlingen em um comício da Vigilant California (que, descobre-se depois, era apenas uma cena). Enquanto a comparação do comício com “Adam-12” aponta que as duas situações são essencialmente um show, a “interrupção” de Coy rende a ele credibilidade com as organizações de esquerda, de modo a infiltrar-se nelas com mais eficiência. Ou seja, Coy não está interrompendo a apresentação de Nixon, masparticipando dela. Nada disso é mais “real” do que “Adam-12”. Assim, a representação torna-se realidade.

Somos expostos à violência apenas duas vezes durante o filme, e ambas são impressionantes, algo como uma explosão de “realidade”. E essa violência não é de forma alguma purificadora: Doc não se redime como resultado, nenhum erro é desfeito e não ficamos aliviados.

Uma dessas explosões é representada pelo sexo entre Doc e Shasta, uma mistura atormentada de arrependimento, frustração, confissão e tragédia. Em vez de nos proporcionar uma satisfação spielberguiana de união da família ou casal, isso ilustra como a (não) relação entre Doc e Shasta ainda é muito problemática, contribuindo com a aura de tragédia inescapável do filme.

Ao contrário de filmes no estilo Odisseia, do tipo que os irmãos Coen produzem incessantemente, nos quais o personagem principal precisa passar por alguma aventura transformadora a fim de acomodar o “lar” para o qual ele retorna ao final da jornada, este filme se concentra em como o mundo está mudando, impondo a todos a necessidade de tornar-se algo novo — embora ninguém saiba o quê. A verdade é que não há um lar, e Doc não pode simplesmente voltar à sua vida como homem mais forte e mais sábio (como acontece em O Grande Lebowski, entre tantos outros).

O único gostinho de redenção que temos é a volta para casa de Coy, que mostra uma reviravolta interessante. Coy é resgatado de seu papel de informante da COINTELPRO e entra novamente na sociedade. Mas mesmo nesse momento a câmera permanece focada no rosto de Doc, que revela um vazio existencial, negando-nos a capacidade de dividir esse momento de felicidade.

Ao final do filme, Doc e Shasta parecem literalmente dirigir-se rumo a um abismo: aparentemente estão em um carro, mas do lado de fora da janela há apenas uma escuridão homogênea — nenhum cenário, outros carros etc. — enquanto Shasta diz que a sensação é “de o mundo todo estar debaixo d’água e nós sermos os únicos sobreviventes”. Até mesmo a narração de Sortilege desaparece.

É nesse abismo que vivemos desde então, quando as forças que testemunhamos no filme — reação do Estado, restabelecimento da cultura conservadora, neoliberalismo — começaram a fundir-se. Essas forças apenas se intensificaram, aprofundando a alienação, enquanto fazemos da nostalgia um escape, pensando em um período que jamais foi tão puro quanto nos lembramos. Parece que “ainda vale a pena escapar” da vida americana.

Colaborador

Stephen Maher é editor assistente do Socialist Register.

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