27 de fevereiro de 2015

Para além do modelo sueco

A Suécia demonstra a promessa e os limites do estado de bem-estar social.

Uma entrevista com
Petter Nilsson

Entrevistado por
Michal Rozworski

Jacobin

Manifestação em 2014 na Suécia, com grande presença de militantes do Partido da Esquerda (Vänsterpartiet). Foto: Editorial do Avanti (Suécia)

Tradução / Muitos dos debates na esquerda contemporânea remetem ao legado da social-democracia. Alguns anseiam por um retorno a essa época aparentemente idílica, enquanto outros apontam o que ela tinha de inadequado e nos incentivam a olhar para além do Estado de bem-estar social. Visto que a experiência sueca no pós-guerra foi a que chegou mais perto de cumprir os ideais social-democratas, ela é extremamente instrutiva para essas discussões.

Visto que a experiência sueca no pós-guerra foi a que chegou mais perto de cumprir os ideais social-democratas, ela é extremamente instrutiva nessas discussões.

Michal Rozworski conversou com Petter Nilsson, do Partido da Esquerda da Suécia ( Vänsterpartiet ), sobre a social-democracia em seu país e seu significado mais amplo. A entrevista foi condensada e editada para melhorar a compreensão.

Michal Rozworski

A Suécia ainda é vista por muita gente em todo o mundo como um modelo de Estado de bem-estar social, mas ela passou por mudanças drásticas durante as últimas duas décadas. Você pode dar um breve resumo do que significa olhar para a Suécia, como você já disse, “sem ilusões”?

Petter Nilsson

Nós temos uma piada na esquerda sueca de que todo mundo gostaria de ter o modelo sueco, e talvez os suecos gostariam de tê-lo mais do que ninguém. O que é considerado como sendo o modelo sueco atingiu o seu pico talvez no final dos anos 70, início dos anos 80 e, desde então, passou pelos mesmos desenvolvimentos que o resto da Europa com a onda neoliberal.

Como a Suécia começou esse processo partindo de um alto nível de compressão salarial e de igualdade em termos de gênero, ela ainda é muito igualitária em comparação com outros países europeus. Ainda assim, ao mesmo tempo, nós temos o crescimento mais acelerado das diferenças de classe dentro da OCDE.

Quando os sociais-democratas deram uma guinada à direita por volta de 1986, muitos dos desenvolvimentos ocorridos em outros países europeus chegaram à Suécia em uns poucos golpes rápidos. Em apenas alguns anos, tivemos grandes aumentos nas diferenças de classe e isso afetou nosso sistema universal de bem-estar social.

Esse sistema sempre foi baseado na alta compressão dos salários, que incluía a classe média no mesmo sistema de bem estar social que as demais pessoas. Seus membros sentiam que, como a qualidade dos programas de bem-estar era tão alta, eles estavam dispostos a pagar impostos para financiá-los. Mas assim que o financiamento para os serviços públicos é cortado, a qualidade cai e a classe média opta por migrar para soluções privadas.

Michal Rozworski

O que acontece quando se sai desse círculo virtuoso que cria igualdade e que conquista apoio para serviços públicos de alta qualidade? Como a sabotagem dos serviços públicos leva a um tipo diferente de círculo vicioso?

Petter Nilsson

Há um equívoco sobre o estado de bem-estar social nórdico, de que ele só teria sido possível devido ao alto nível de confiança da população. Nos últimos anos, pesquisas têm mostrado que na realidade um dos efeitos do sistema de bem-estar universal é que as pessoas passam a confiar mais umas nas outras e então o sistema de bem-estar social se torna um reflexo ainda mais profundo dessa confiança.

Mas se você olhar, por exemplo, para os trabalhos mais polêmicos de Milton Friedman, ele diz que se você quiser cortar o sistema de bem-estar social, você deve cortar os recursos e manter o sistema em déficit por alguns anos para que a qualidade caia – e então as pessoas não terão interesse em defender o serviço público.

Na verdade, é isso o que a direita normalmente faz quando chega ao poder: corta o financiamento para que, por exemplo, a qualidade das escolas públicas caia e depois propõem escolas privadas. As pessoas começam a dizer: “Bem, se as escolas públicas são tão ruins, então temos de ter uma alternativa privada para aqueles que podem pagar.” Isso é um ataque ideológico e uma estratégia explícita para minar a confiança no sistema público de bem-estar social.

Ao mesmo tempo, na Suécia, entre 80% e 90% do público diz que estaria disposto a pagar um nível mais alto de impostos para financiar níveis mais altos de bem-estar social. Portanto, a expectativa de programas de bem-estar social ainda é bem alta – eles apenas não estão sendo impulsionados por nenhum outro partido político além do Partido de Esquerda.

Michal Rozworski

O que você acha que explica essa desconexão entre o alto nível de apoio ao sistema de bem-estar social e a disposição de pagar por ele, por um lado, e o que está realmente acontecendo politicamente, pelo outro?

Petter Nilsson

Na Suécia, os sociais-democratas estiveram no poder por mais de oitenta dos últimos cem anos. Eles tinham um projeto político. A ideia era formar uma população homogênea e igualitária. Havia também uma estratégia de verdade para eliminar capitais menos competitivos e, portanto, para transferir fundos para setores mais produtivos. A Suécia teve talvez a estratégia fordista mais bem-sucedida entre todos os países.

Isso produziu algo único. Nós tínhamos um partido social-democrata no poder com um Estado social-democrata que produzia pessoas com uma mentalidade social-democrata. No final da década de 1970, esse arranjo se chocou com contradições. Algumas coisas pararam de funcionar: os salários eram mantidos mais baixos nas empresas privadas que tinham a maior produtividade, para transferi-los para o setor público, mas as corporações acabaram tendo superlucros.

Os fundos dos assalariados foram uma proposta para resolver esse conflito. A Suécia havia alcançado a democracia política com o direito ao voto; tínhamos uma democracia pública, com o estado de bem-estar social; e então passaríamos a ter democracia econômica, por meio do que na prática seria a compra das corporações para a classe trabalhadora.

Para encurtar a história, os limites da estratégia fordista tornaram-se aparentes no final dos anos 1970. O estado de bem-estar sempre foi “comprado” com os ganhos de produtividade. A divisão entre os trabalhadores e o capital permaneceu basicamente a mesma, mas o nível de crescimento da produtividade era tão grande que era possível comprar ganhos para o estado de bem-estar social, embora o capital mantivesse o mesmo nível de lucros.

No início dos anos 70, houve uma onda de greves “selvagens” [por fora dos sindicatos estabelecidos]. Era um protesto contra esse modelo que funcionou tão bem entre, digamos, 1932 e 1979. Depois disso, os Sociais-Democratas se tornaram um partido tradicional, da social-democracia da Terceira Via. Eles estabeleceram uma meta de inflação, permitiram que o desemprego crescesse e a Suécia se tornou um país europeu tradicional.

O que acontece a seguir é que os partidos de direita, que nunca haviam sido capazes de se unir até então, o fazem. Eles obtiveram muito sucesso e venceram duas eleições consecutivas, o que era inédito. Isso polariza o sistema político sueco, e os sociais-democratas então sentem que precisam reconquistar os eleitores indecisos de classe média que foram para a coalizão de direita.

Michal Rozworski

Como é a luta pelo futuro do estado de bem-estar social sueco, então? Vocês estão voltando sem nostalgia por algo que já passou, ou será que terá de ser algo diferente?

Petter Nilsson

Acho que existe um perigo em ficarmos nostálgicos com o estado de bem-estar social sueco. Eu cresci no auge do estado de bem-estar social sueco e, em muitos aspectos, era uma sociedade melhor do que a que temos hoje. Ao mesmo tempo, ela estava repleta de contradições internas.

A Nova Esquerda de 1968 tinha muitas críticas ao estado de bem-estar social que não devemos esquecer: que era centralizado e burocratizado, que era difícil promover mudanças. Não devemos retornar a isso.

Ao mesmo tempo, os próprios sociais-democratas não entendem a genialidade do estado de bem-estar social: ele produziu uma sociedade que tinha uma subjetividade coletiva. Havia instituições dentro da sociedade que “interpolavam” (por falta de um termo melhor) as pessoas como uma entidade coletiva. Porém, se você tem privatizações e um modelo baseado no consumo, as pessoas passam a atuar como sujeitos econômicos neoliberais.Para avançar, precisamos defender o que resta do estado de bem-estar social como uma espécie de fronteira do que pode ou não ser privatizado e do que a direita política pode alcançar. Ao mesmo tempo, temos que começar a pensar em outros tipos de empreendimentos coletivos que possam produzir uma sociedade que, na próxima etapa, impulsione um Estado de bem-estar social mais coletivo e universal – e terão de ser novas formas. As grandes questões são: como produzir uma nova forma coletiva e universal de subjetividade? Que tipo de instituições serão capazes de produzi-la? E como elas poderiam sobreviver a derrotas eleitorais?

Sobre o entrevistado

Petter Nilsson é membro do Centro para Estudos Sociais Marxistas e trabalha em Estocolmo para o Partido de Esquerda da Suécia.

Sobre o entrevistador

Michal Rozworski pesquisa e escreve sobre sindicalismo. É co-autor, junto de Leigh Phillips, de A República Popular do Walmart (em breve no Brasil, pela Autonomia Literária).

24 de fevereiro de 2015

A alternativa na Grécia

A estratégia negocial da liderança do Syriza falhou, mas não é tarde de mais para evitar a derrota completa.

Stathis Kouvelakis

Jacobin

Kostas Tsironis / Reuters

Tradução / Vamos começar com o que deveria ser indiscutível: o acordo do Eurogrupo para que o governo grego foi arrastado, na sexta-feira, equivale a uma retirada precipitada.

O regime do memorando deverá ser prorrogado, o contrato de empréstimo e a totalidade da dívida reconhecida, a "supervisão", outra palavra para o domínio da troika, deverá manter-se sob outro nome, havendo agora poucas hipóteses de o programa do Syriza poder ser implementado.

Um falhanço tão completo não é, não pode ser, uma questão de sorte, ou o produto de uma manobra tática mal concebida. Ela representa a derrota de uma linha política específica, em que se tem apoiado a abordagem atual do governo.

Acordo de sexta-feira

No espírito do mandato popular para uma ruptura com o regime do memorando e a libertação da dívida, o lado grego entrou nas negociações rejeitando a prorrogação do atual "programa", acordado com o governo Samaras, juntamente com a tranche de € 7 mil milhões, com a exceção dos € 1,9 mil milhões de retorno sobre títulos gregos a que tinha direito.

Não consentindo em quaisquer procedimentos de supervisão e de avaliação, pediu um "programa ponte", de quatro meses de transição, sem medidas de austeridade, para assegurar a liquidez e implementar pelo menos parte de seu programa, no âmbito de orçamentos equilibrados. Pediu também que os credores reconhecessem a inviabilidade da dívida e a necessidade imediato de uma nova ronda de negociações compreensivas sobre ela.

Mas o acordo final equivale a uma rejeição, ponto por ponto, de todas estas exigências. Além disso, ele implica um outro conjunto de medidas destinadas a atar as mãos do governo e frustrar qualquer medida que possa significar uma ruptura com as políticas do memorando.

No comunicado de sexta-feira do Eurogrupo, o programa existente é referido como um "compromisso", mas isso não muda absolutamente nada de essencial. A "extensão" que o lado grego está agora a solicitar (ao abrigo do "Acordo Guia Facilitador de Assistência Financeira" - AGFAF), deve ser executada “no âmbito do compromisso existente" e visa "a conclusão com sucesso da revisão com base nas condições do compromisso atual”.

E também se diz claramente que

“apenas a aprovação pelas instituições da conclusão da revisão do compromisso alargado (...) permitirá qualquer desembolso da parcela remanescente do Programa FEEF atual e a transferência dos lucros SMP de 2014 [estes são os tais 1,9 mil milhões de lucros com os títulos gregos a que a Grécia tem direito]. Ambos são novamente sujeitos à aprovação pelo Eurogrupo.”

Assim, o governo grego vai receber a tranche que tinha inicialmente recusado, mas com a condição de respeitar os compromissos dos seus antecessores.

O que temos, portanto, é uma reafirmação da postura típica alemã de impor - como pré-condição para qualquer acordo e qualquer desembolso futuro do financiamento - a conclusão do processo de "avaliação" pelo mecanismo tripartido (seja isso chamado de "troika" ou de "instituições ") para a supervisão de todos os acordos, do passado e do futuro.

Além disso, para deixar bem claro que o uso do termo "instituições" em vez do termo "troika" é de fachada, o texto reafirma especificamente a composição tripartida do mecanismo de supervisão, enfatizando que as "instituições" incluem o BCE ("neste contexto, recordamos a independência do Banco Central Europeu") e o Fundo Monetário Internacional ("nós também concordamos que o FMI vai continuar a desempenhar o seu papel").

No que respeita à dívida, o texto menciona que "as autoridades gregas reiteram o seu compromisso inequívoco de honrar as suas obrigações financeiras para com todos os seus credores, de forma plena e tempestiva". Por outras palavras, esqueça-se qualquer discussão sobre "cortes de cabelo", "redução da dívida", para não falar já da "anulação da maior parte da dívida", que é o compromisso programático do Syriza.

Qualquer futuro "alívio da dívida" só é possível com base no que foi proposto na decisão do Eurogrupo de novembro 2012, ou seja, uma redução nas taxas de juros e um reescalonamento, que, como é bem conhecido, faz pouca diferença para o peso do serviço da dívida, afetando apenas o pagamento de juros, que já são muito baixos.

Mas isso não é tudo, porque, para o pagamento da dívida, o lado grego está aceitando plenamente o mesmo enquadramento decidido pelo Eurogrupo em novembro de 2012, na época do governo de três partidos de Antonis Samaras. Ele incluiu os seguintes compromissos: 4,5% de superávites primários a partir de 2016, privatizações aceleradas e a criação de uma conta especial para o serviço da dívida – para a qual o sector público grego deverá transferir todos os rendimentos dos privatizações, os superávites primários, e 30% dos excedentes suplementares.

Foi também por esta razão que o texto de sexta-feira menciona não apenas os excedentes, mas também "procedimentos de financiamento". Em qualquer caso, o núcleo central da pilhagem do memorando, nomeadamente a realização de superávites primários escandalosos e o desbaratamento de bens públicos com a exclusiva finalidadede encher os bolsos dos credores, permanece intacto. O único indício de relaxamento da pressão é uma garantia vaga de que "as instituições, para a meta de superávite primário de 2015, tomarão em conta as circunstâncias económicas especiais do ano 2015".

Mas não foi o suficiente que os europeus rejeitassem todas as exigências gregas. Eles tinham, em todos os sentidos, que atar de pés e mãos o governo Syriza, a fim de demonstrar na prática que qualquer que seja o resultado eleitoral e o perfil político do governo que possa surgir, nenhuma reversão da austeridade é viável no âmbito europeu existente. O presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, afirmou mesmo: "não pode haver escolha democrática contra os tratados europeus."

E as providências para isso devem ocorrer de duas maneiras. Em primeiro lugar, tal como indicado no texto: "As autoridades gregas se comprometem a abster-se de qualquer reversão de medidas e alterações unilaterais das políticas e reformas estruturais que impactem negativamente nas metas fiscais, na recuperação econômica ou na estabilidade financeira, conforme a avaliação das instituições."

Portanto, nenhum desmantelamento do regime do memorando ("reversão de medidas"), e nenhumas "alterações unilaterais". E isto não só no que diz respeito às medidas com um custo orçamental (tal como a abolição de impostos, a elevação do limiar de isenção de impostos, aumentos em pensões e assistência "humanitária"), como tinha sido indicado inicialmente, mas também num sentido muito mais amplo, incluindo tudo o que poderia ter um "impacto negativo" sobre "a recuperação económica ou a estabilidade financeira", sempre de acordo com o decisivo julgamento das "instituições"

Escusado será dizer que isso é relevante não só para a reintrodução de um salário mínimo e o restabelecimento da legislação trabalhista que foi desmantelada nos últimos anos, mas também para as mudanças no sistema bancário que pudessem reforçar o controlo público (não há uma palavra, sequer, é claro, sobre a "propriedade pública", conforme previsto na declaração fundadora do Syriza).

Além disso, o acordo especifica que

“os fundos disponíveis até ao momento na almofada do Fundo Helénico de Estabilidade Financeira (FHEF) devem ser detidos pelo Fundo Europeu de Estabilidade Financeira (FEEF), livres de direitos de terceiros durante todo o período de prorrogação AGFAF. Os fundos continuam a estar disponível para o período de prorrogação AGFAF e só podem ser utilizados para a recapitalização dos bancos e custos de resoluções. Eles só serão libertados a pedido do BCE / SSM.”

Esta cláusula mostra como não escapou à atenção dos europeus que o Programa de Thessalonica de Syriza afirmava que "o dinheiro para alimentar o setor público e um dinheiro intermediário para o estabelecimento de bancos de propósitos especiais, de um montante total da ordem dos € 3 mil milhões, será fornecido através de chamada "almofada" do FHEF de cerca de €11 mil milhões para os bancos”.

Em outras palavras, adeus a qualquer idéia de usar fundos FHEF para objectivos orientados para o crescimento. Quaisquer ilusões ainda subsistentes a respeito da possibilidade de utilizar fundos europeus para fins exteriores à camisa de força para a qual foram especificamente reservados - e mais ainda que eles pudessem ser colocados sob a jurisdição do governo grego – ficaram assim dissipadas.

Derrota da estratégia do "bom euro"

Pode o lado grego, possivelmente, acreditar ter conseguido algo mais do que a criatividade verbal impressionante do texto? Teoricamente, sim, na medida em que já não há quaisquer referências explícitas às medidas de austeridade, e as "mudanças estruturais" citadas (reformas administrativas e a repressão à evasão fiscal) não pertencem a esta categoria, uma modificação que, naturalmente, precisa de uma verificação cruzada contra a lista de medidas que devem surgir nos próximos dias (2).

Mas dado que o objetivo dos escandalosos excedentes orçamentais foi mantido, juntamente com a totalidade da maquinaria de supervisão e avaliação da troika, qualquer noção de um relaxamento da austeridade parece fora de contato com a realidade. Novas medidas e, é claro, a estabilização do adquirido pelo "memorando" são uma via de sentido único, enquanto o regime atual prevaleça e se perpetue, renomeado.

Resulta claro do exposto que, no decurso das "negociações", com o revólver do BCE apontado à cabeça e o resultante pânico nos bancos, as posições gregas sofreram um colapso quase total. Isso ajuda a explicar as inovações verbais ("instituições" em vez de "troika", "disposições actuais" em vez de "programa atual", "Acordo Guia Facilitador de Assistência Financeira" em vez de "Memorando", etc.). Consolo simbólico ou mais trapaça, dependendo da maneira como você queira olhar.

A questão que surge, naturalmente, é como é que chegamos a este embaraço. Como é possível que, apenas algumas semanas após o resultado histórico de 25 de janeiro, tenhamos esta contra-ordem do mandato popular para a derrubada do memorando?

A resposta é simples: o que se desmoronou nas últimas duas semanas é uma opção estratégica específica que tem suportado toda a abordagem do Syriza, particularmente depois de 2012: a estratégia que excluía "ações unilaterais", como a suspensão de pagamentos e, mais ainda, a saída do euro, argumentando que:


  • Sobre a questão da dívida, uma solução favorável ao devedor pode ser encontrado com a anuência do credor, seguindo o modelo dos acordos de Londres, de 1953, para as dívidas da Alemanha - ignorando, é claro, o facto de que as razões porque os Aliados se comportaram generosamente para com a Alemanha não se aplicam, de modo algum, aos europeus hoje com respeito à dívida grega e, mais geralmente, à dívida pública dos mais endividados Estados da UE de hoje.
  • O derrube dos memorandos, a expulsão da troika, e um modelo diferente de política econômica (por outras palavras, a execução do Programa de Thessalonica) poderiam ser implementados independentemente do resultado das negociações da dívida e, acima de tudo, sem provocar nenhuma reação real dos europeus, acima e para além das ameaças iniciais, que foram minimizadas como bluff. Na verdade, foi prevista a possibilidade de metade do financiamento para o Programa de Thessalonica ser proveniente de recursos europeus. Em outras palavras, não só os europeus não reagiriam, como acabariam por financiar generosamente políticas opostas às que tinham vindo a impor durante os últimos cinco anos.
  • Finalmente, o cenário do "bom euro" pressupunha a existência de aliados de algum significado ao nível dos governos e/ou instituições (a referência aqui não é o apoio dos movimentos sociais ou outras forças de esquerda). Os governos da França e da Itália, os social-democratas alemães, e, finalmente, em um verdadeiro frenesim de fantasia, o próprio Mario Draghi eram, de vez em quando, invocados como tais potenciais aliados.


Tudo isso veio por água abaixo em poucos dias. A 4 de fevereiro, o BCE anunciou a suspensão da principal fonte de liquidez para os bancos gregos. A saída de capitais, que já tinha começado, tomou dimensões incontroláveis, enquanto as autoridades gregas, temendo que uma tal reação sinalizasse o início do Grexit (3), não tomaram a menor medida "unilateral" (como a imposição de controlos de capitais).

As expressões "redução" da dívida e até mesmo o famigerado "corte de cabelo" foram rejeitadas da forma mais categórica possível, por credores que ficam enfurecidos só de ouvi-las (em resultado do que elas foram quase imediatamente retiradas de circulação). Em vez de sua derrubada, descobriu-se que o único elemento "inegociável" foi manter os memorandos e a supervisão da troika. Nem um único país apoiou as posições gregas, para além de algumas cortesias diplomáticas daqueles que queriam que o governo grego pudesse, apesar de tudo, marginalmente, salvar a sua face.

Temendo o Grexit (3) mais do que este assustava os seus interlocutores, totalmente impreparado perante a contingência absolutamente previsível da desestabilização bancária (arma clássica do sistema, internacionalmente, há quase um século, quando confrontado com governos de esquerda), o lado grego foi essencialmente deixado sem quaisquer ferramentas de negociação. Encontrou-se de costas contra a parede e com apenas más opções à sua disposição. A derrota de sexta-feira foi inevitável e marca o fim da estratégia de "uma solução positiva dentro do euro", ou para ser mais preciso "uma solução positiva a todo o custo dentro do euro".

Como evitar a derrota total

Raramente foi uma estratégia refutada tão inequívoca e tão rapidamente. Manolis Glezos, do Syriza, teve portanto razão em falar de "ilusão" e, elevando-se à altura da ocasião, pedir desculpas ao povo por ter contribuído para cultivá-la. Precisamente pela mesma razão, mas, inversamente, e com a ajuda de alguns meios de comunicação locais, o governo tentou representar este resultado devastador como um "sucesso negocial", confirmando que "a Europa é uma arena para a negociação", que está "deixando para trás a troika e os memorandos" e outras afirmações semelhantes.

Com medo de fazer o que Glezos se atreveu a fazer - ou seja, reconhecer o fracasso de toda a sua estratégia - a liderança está tentando uma manobra de diversão, "tentando fazer passar carne como peixe", para citar o provérbio popular grego.

Mas apresentar uma derrota como um sucesso é, talvez, pior do que a própria derrota. Por um lado, transforma o discurso governamental em mero palavreado, uma sequência de clichês e chavões que é simplesmente convocada para legitimar retrospetivamente qualquer decisão, vendo preto onde está branco; por outro lado, porque prepara o terreno, inevitavelmente, para as próximas, e mais definitivas, derrotas, uma vez que se dissolvem completamente os critérios pelos quais o sucesso pode ser distinguido de uma retirada.

Para realçar este argumento com recurso a um precedente histórico bem conhecido da gente de esquerda, se o Tratado de Brest-Litovsk, segundo o qual a União Soviética garantiu a paz com a Alemanha, aceitando perdas territoriais enormes, houvesse sido proclamado como uma "vitória", não há dúvida alguma de que a Revolução de Outubro teria sido derrotada.

Se, portanto, queremos evitar uma segunda, e desta vez definitiva, derrota - o que poria fim à experiência esquerdista grega, com consequências incalculáveis para a sociedade e para a esquerda, dentro e fora deste país - temos de olhar a realidade em face e falar a língua da honestidade. O debate sobre a estratégia deve finalmente recomeçar, sem tabus e com base nas resoluções do congresso do Syriza, que já há algum tempo se transformaram em ícones inócuos.

Se o Syriza ainda tem uma razão para existir como sujeito político, uma força para a elaboração de política emancipatória, e um contributo a dar para as lutas das classes subordinadas, deve ser uma parte neste esforço para iniciar uma análise em profundidade da situação atual e dos meios para a superar.

"A verdade é revolucionária", para citar as palavras de um líder famoso que sabia do que estava falando. E só a verdade é revolucionária, podemos agora acrescentar, com a experiência histórica que temos adquirido desde então.

21 de fevereiro de 2015

O problema com Dijsselbloem

A carreira política do ministro das finanças holandês Jeroen Dijsselbloem mostra a virada à direita da social-democracia europeia.

Pepijn Brandon

Jacobin

Partij van de Arbeid / Flickr

Tradução / Desde o seu infame meio aperto de mão com o ministro das Finanças da Grécia Yanis Varoufakis, que Jeroen Dijsselbloem ministro das Finanças holandês e temporariamente presidente do Eurogrupo tem sido alvo de justificado desprezo. Mas com a chantagem ao governo grego, ele está a desfrutar agora do seu melhor momento.

Internacionalmente, Dijsselbloem tornou-se o sujeito de intermináveis piadas e caricaturas em que é retratado ou como o burocrata cinzento de roupa e gravata a ser ensinado pelo seu elegante e inteligente homólogo grego ou como chicote da Alemanha. Mas uma questão fica por responder no meio do jogo de poder entre o governo de esquerda grego e os duros neoliberais da União Europeia: por que é que Dijsselbloem trata esta questão de forma tão pessoal?

Embora insignificante de um ponto de vista psicológico, isto interessa em termos do conflito de interesses no coração da UE assim como na luta em desenvolvimento pela alma da esquerda europeia.

Toda a carreira política de Jeroen Dijsselbloem assinala-o como o típico representante da direita da social democracia. Aderiu ao Partido Trabalhista Holandês em 1985, no mesmo ano em que concluiu o ensino secundário. Foi o último ano em que o partido foi chefiado por Joop den Uyl, o icônico líder trabalhista que por duas vezes tentou e falhou em suster um governo de coligação com os democrata-cristãos mantendo o curso de esquerda do partido.

Um ano mais tarde, o dirigente sindicalista de direita Wim Kok assumiu o cargo. Kok foi o arquitecto da capitulação histórica do movimento sindical que lançou as bases para um quarto de século de “paz social” que acompanhou o desmantelamento daquilo que foi em tempos um exemplo de Estado-Providência.

Kok tornou-se uma figura emblemática para a Terceira Via e o “modelo pólder” dos Países Baixos, de cooperação entre funcionários partidários, sindicatos e empregadores foi aclamado por Bill Clinton e Tony Blair como o modelo do futuro. Durante os anos 90, ele chefiou dois governos neoliberais que supervisionaram privatizações em larga escala e profundos cortes sociais. Depois de ter deixado de ser primeiro ministro em 2002, Kok tornou-se uma figura poderosa no mundo dos negócios da Holanda, detendo comissariados da Royal Dutch Shell, do banco ING, do TNT Post privatizado e de numerosas outras empresas.

Este é o Partido Trabalhista onde Dijsselbloem esteve incondicionalmente, sem reservas. Nunca na sua carreira ele deteve posições significativas fora desse mundo estreito – Haia e a burocracia de Bruxelas. O seu longo, leal e rotineiro percurso através da política de compromisso e a microgestão neoliberal foram a preparação perfeita para a sua posição como ministro das finanças no atual governo de coligação em que o Partido Trabalhista é o parceiro subalterno do fervoroso adepto do mercado livre Partido do Povo pela Liberdade e Democracia.

A total devoção de Dijsselbloem pelo aparelho burocrático acabou por o meter em problemas legais. Desrespeitando uma ordem do tribunal, Dijsselbloem recusou reveler o nome da pessoa com quem o seu antecessor fez um duvidoso acordo fiscal. Numa altamente atípica Parceria Público-Privada, um informador anónimo ajudou a detetar evasores fiscais em troca de uma parte nos lucros. Por dar protecção a este informador e aos que fizeram o acordo com ele, Dijsselbloem viu no passado mês de novembro serem-lhe feitas acusações penais – o que é praticamente algo sem precedentes para um ministro holandês.

Como presidente do Eurogrupo, Dijsselbloem foi acusado de proteger interesses alemães. Dado o papel de liderança da Alemanha em fazer cumprir as imposições da troika e as fortes ligações económicas e políticas entre Haia e Berlim, há poucas dúvidas onde residem as lealdades de Dijsselbloem. No entanto, é interessante notar que os representantes alemães da UE expressaram algumas preocupações por Dijsselbloem estar ainda demasiado agarrado aos interesses holandeses. Dijsselbloem respondeu a estas críticas nos media holandeses dizendo que, na sua opinião, os interesses holandeses são os interesses da União Europeia.

Estes são conflitos diplomáticos relativamente menores numa relação Alemanha-Holanda que no global é claramente harmoniosa. No entanto, compreendendo a postura intransigente de Dijsselbloem, é importante notar que existe de facto um interesse especificamente holandês que ele represnta junto e em apoio às exigências alemãs.

Sendo um dos seis membros originais da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, a antecessora da União Europeia, a Holanda foi sempre uma força pequena mas motriz por detrás da integração económica europeia. O seu interesse económico na expansão continuada da UE cresceu e não diminuiu. A Holanda é o segundo maior exportador na UE e mais de 50% das suas exportações e reexeportações ficam na UE.

Significativamente, os doze países da UE que entraram para a união desde 2004 formam os mercados de exportação que crescem mais rapidamente para os produtos manufacturados holandeses. Além do mais, os holandeses continuam a desempenhar um importante papel internacional na intermediação bancária e financeira, inclusive em relação à Grécia. Em 2011, o Departamento de Planeamento Central holandês calculou que a Holanda é responsável por 5 a 9% de empréstimos bilaterais à Grécia. Os maiores bancos holandeses e, sobretudo, o ING detêm para cima de três mil milhões de euros em obrigações gregas. Assim, Dijsselbloem não representa apenas as políticas de extorsão alemãs, mas também os interesses comerciais e financeiros da terra natal.

Tudo isto ajuda a explicar a avidez com que Dijsselbloem agarrou no chicote. Mas não responde à pergunta por que razão ele é tão azedo. Em comparação, Wolfgang Schäuble da Alemanha personifica a extrema arrogância e auto-confiança do poder, enquanto a chefe do FMI Christine Lagarde, aparentemente sem esforço, faz o papel do tubarão com um sorriso.

Abundam as explicações psicológicas baratas. Aqui um jovem e empertigado mestre em economia enfrentando alguém que podia facilmente ter sido o descontraído, intelectualmente superior e irritantemente popular professor catedrático devolvendo-lhe um parco artigo com um sorriso condescendente.

Mas há uma outra dimensão, mais política e importante para o futuro da esquerda na Europa e na Holanda. A promessa do governo do Syrisa representa tudo que a social-democracia do pós-guerra já não é nem pode voltar a ser. Subjacente à carreira de Dijsselbloem está a perspectiva que, na melhor das hipóteses, a política progressista contemporânea só pode ser uma variante da política conservadora com mais alguns ligeiros escrúpulos.

Enquanto permanecer desafiante e apesar das limitações da sua agenda de governo, Varoufakis representa uma alternativa a esta posição. A direita europeia detestará isto com brutalidade nua e crua. Mas é a social-democracia dominante que vai sentir mais directamente as repercussões eleitorais e por isso é mais amarga na sua resposta.

Para Dijsselbloem, é imperioso extinguir a promessa do Syrisa. É uma pré-condição para restaurar a estabilidade da UE que ele, o seu partido e as elites econômicas assim desejam. Mas é igualmente necessário para a continuação do progressivismo sem sonhos, empresarial, de terno e gravata de que nunca se afastou.

19 de fevereiro de 2015

O Syriza está recuando?

The latest from Europe is not good. Syriza appears to have backtracked in negotiations, and Germany is seeking total surrender.

Stathis Kouvelakis

Jacobin

Kostas Tsironis / Reuters

Tradução / Para usar um clichê muito gasto, “os tempos são críticos”. De fato, são mais do que isso: estamos à beira de uma sequência temporal crucial. Todo o comportamento do governo Syriza será julgado pela sua reação à chantagem e aos ultimatos sem precedentes que está a receber por parte dos seus tragicamente denominados “parceiros” europeus.

E as notícias da linha de frente não são agradáveis. É claro que é muito difícil ter uma visão clara da situação atual das negociações -- “negociações” que são um paradoxo, dada a completa assimetria na balança de forças, e o fato de um lado ter uma arma (o Banco Central Europeu) apontada à cabeça do outro. O que é claro, porém, é que o governo grego retrocedeu em aspectos cruciais, especialmente no que diz respeito aos seus compromissos para com o povo que o elegeu.

Antes de examinar a substância do pedido para uma extensão do “Programa de Assistência Econômica e Financeira” enviado na quarta-feira pelo governo grego a Bruxelas, vejamos com mais detalhe o “documento Moscovici” divulgado pelo governo grego durante a reunião do Eurogrupo na última segunda-feira, na mesma altura em que declarou estar disposto a assiná-lo.

Este documento descarta “ações unilaterais”, estabelece como objetivo fiscal superavits primários num volume indefinido, e reconhece a dívida na sua totalidade. Todos os ajustamentos futuros para a reestruturação da dívida terão de estar em linha com as decisões do Eurogrupo de novembro de 2012.

Essencialmente, a implementação das medidas fundamentais do programa eleitoral do Syriza de Salônica ficam sujeitas à aprovação prévia dos credores, o que corresponde de fato à anulação do programa. Além disso, reconhece os termos odiosos dos acordos com os credores, dessa forma enfraquecendo a posição negocial da Grécia sobre essa questão. É óbvio que ao aceitar este enquadramento como um supostamente “acordo honroso”, o governo do Syriza fica com as mãos atadas.

O pedido de extensão do Programa de Assistência Econômica e Financeira inclui todos os pontos acima mencionados e acrescenta -- pela primeira vez -- o reconhecimento da “supervisão no âmbito da [União Europeia] e do BCE e, no mesmo espírito, com o Fundo Monetário Internacional para a duração de um acordo de extensão (alínea f)”. Por outras palavras, a Troika está de volta mas com um nome diferente. Os meios de comunicação gregos já começaram a falar das “Instituições”.

Mas nem isso é suficiente para a UE e o ministro das Finanças alemão Wolfgang Schäuble. Tendo compreendido que o lado grego -- ansioso por evitar qualquer ruptura e até uma ação unilateral -- está num caminho constante de retirada, o “parceiro” optou pela rendição total como o seu alvo primordial.

Ao dar uma lição ao governo do Syriza, também estão a advertir o Podemos e qualquer outra força na Europa que possa desafiar a austeridade, os memorandos e a escravatura da dívida. O lado alemão rejeitou tanto o pedido grego para o Programa de Assistência Econômica e Financeira, aparentemente visando mais concessões da Grécia, e a completa humilhação do governo de esquerda grego.

É aqui, talvez, que reside a esperança. Não pode ser descartado que a escalada de exigências da UE e dos credores seja rejeitada por um governo que empreendeu alguns compromissos básicos para com o seu povo. E, mais importante, serão rejeitados por um povo que acredita de novo na esperança e que a leva para as ruas e praças do país. Uma retirada não deveria ser tratada como inevitável, e o governo grego merece apoio até o ponto em que aguente firme na guerra travada contra ele.

Qualquer que seja a conclusão, uma coisa é certa. Todos os argumentos tranquilizadores que circularam nos últimos anos -- acerca de um bluff europeu, acerca da possibilidade de derrotar a austeridade dentro da eurozona, de separar os acordos com os credores dos memorandos, de soluções na linha da conferência de Londres de 1953 sobre a dívida alemã (quer dizer, de uma reestruturação favorável ao devedor com o acordo do credor) -- por outras palavras, os elementos constituintes da narrativa do “bom euro” -- entraram todos em colapso.

Nalgum momento, também nos devem explicações sobre isto.

Sobre o autor:

Stathis Kouvelakis é professor de Filosofia Política no King’s College de Londres e membro do Comité Central do Syriza.

12 de fevereiro de 2015

Mudar o mundo tomando o poder

Seus críticos estão demostrando estar equivocados. O Syriza não desmobiliza os movimentos, mas os ajuda a crescer.

David Renton

Jacobin


Tradução / Para aqueles que, até recentemente, simpatizavam com Antarsya, a outra coalizão da esquerda radical na Grécia, é saudável refletir sobre o quão bem Syiriza tem ido no último mês e como foi mal Antarsya, em comparação.

A justificativa da existência separada de Antarsya é algo como: Antarsya, diferente de Syriza é uma coalizão de partidos que acreditam que a Grécia só pode ser salva por uma transformação revolucionária do Estado. Syriza diferente de Antarsya, se equivoca neste tema, tanto no que se refere à Grécia permanecer na Europa quanto se deve concordar em pagar a dívida a seus credores internacionais.

Aqueles que votam por Antarsya, votam por uma alternativa revolucionária ao capitalismo e, ao fazê-lo, mantém viva a possibilidade de uma verdadeira política revolucionária. Syriza, ao contrário, é meramente reformista e, provavelmente sofra um desgaste como o Pasok e os outros partidos sociais-democratas.

O voto em Antarsya se reduziu a somente 0,6% na última eleição, dado que esta se converteu em um referendo sobre a possibilidade, ou não, de um governo de esquerda (coisa a qual os trabalhadores mais politizados aspiram), mas mediante sua posição, Antarsya permaneceu exercendo uma pressão de esquerda sobre Syriza.

Manter-se fora da Syryza tem todos os benefícios de ser associado a um movimento em alta (as vendas do jornal “Solidariedade dos Trabalhadores” de alguns membros de Antarsya, aparentemente, são maiores que nunca), mas nenhuma das desvantagens de ser associado com a derrota de Syriza, quando venha a decepção inevitavelmente.

Onde esta justificativa de Antarsya começa a falhar é com a afirmação de que a melhor alternativa a um programa de reformas é oferecer um programa rival de reformas mais profundas ainda. Neste marco, os revolucionários são diferentes dos reformistas, principalmente, porque pedem mais. Se Syriza ofereceu nacionalidade grega aos filhos de todos os imigrantes, Antarsya, como jogador de pôquer, sobe a aposta e oferece legalizar todos os imigrantes na Grécia. Quando Syriza declarou que vai parar todas as privatizações planejadas, Antarsya respondeu dizendo que reverterá cada uma das privatizações da história grega.

Mas usar as eleições para gerar consciência revolucionária não se trata de subir a aposta do rival. Implica em uma explicação de como um governo, nos marcos do capitalismo, tem um poder limitado e como essas limitações podem ser superadas: somente através do conflito direto direto com a classe capitalista internacional.

Neste ponto, Syriza aparece com uma política mais sofisticada que Antarsya, porque possui uma análise de seus próprios limites como governo reformista (os poderes europeus não permitiram mais que um pequeno abatimento de nossa dívida) e uma ideia de como ir mais além desse limite (sobre a base da agitação fora do parlamento, mantendo a pressão sobre o governo e com o apoio da esquerda de fora da Grécia).

Coerentemente com sua política estratégica para lidar com a questão Syriza, os mais articulados partidários de Antarsya estão tomando cada exemplo da “traição da Syriza”, e contrapondo a eles, as potenciais virtudes dos protestos. As condições que possibilitam um governo de esquerda são atribuídas unicamente à atuação dos movimentos sociais. A razão pela qual os gregos tem uma Syriza seria, então, o único fato de terem feito trinta e duas greves gerais, enquanto os britânicos carecem de uma alternativa de massas ao Partido Trabalhista, por que só contam com a batalha pelas pensões no setor público.

Mas, de onde se supõe que virá um movimento de massas capaz de levantar-se de um modo direto e contínuo, convertendo-se em poderosos o suficiente para derrotar o Estado? A deficiência de Syriza seria que, como outros governos reformistas, continuamente conspira para desmobilizar os movimentos de massas, dizendo aos trabalhadores que votem, quando deveriam estar protestando.

Entretanto, quando observamos a Grécia, podemos ver claramente (admitindo que se encontra em suas primeiras duas semanas e, até agora, durante o período de “lua-de-mel”) que Syriza não tem desmobilizado os movimento, pelo contrário, tem aberto novas possibilidades para que emerjam, removendo as barreiras de fora do parlamento, com as manifestações de apoio à demanda da renegociaão da dívida e a propaganda feita ao enviar ministros a toda a Europa.

E a versão parlamentar do representante sindical que sempre quisemos ter, o que verdadeiramente aproveita a luta com os chefes e não retrocede ante ao primeiro sinal de problemas. E o povo responde ao que luta, até agora o governo Syriza está aumentado a confiança dos movimentos sociais.

Sujeita à sua lei-de-ferro, a classe capitalista global não renuncia à hegemonia na presença de uma ameaça localizada e não fará isto. Portanto, as maiores batalhas se encontram pela frente. Os partidários internacionais de Antarsya se equivocam e os que apoiam Syriza estão corretos ao desfaiar a noção dos primeiros que predizem: Syriza responderá ao poder real moderando-se cada vez mais.

Uma última posição fundamental dos partidários de Antarsya é que a classe operária tem um conjunto infinito de oportunidades e que pode prescindir da presente. Não importará muito, já que em outro cenário futuro, outro partido invariavelmente surgirá da esquerda, encarnado em outras pessoas de diferentes tradições e, portanto, melhor preparado a levar adiante a previamente inexistente guerra contra o Estado.

Se Syriza fracassar, não se voltará a uma situação de normalidade política. A polícia e o Aurora Dourada estarão em festa e sua vingança sobre os movimentos não será mais tolerante que a contrarrevolução agora em marcha no Egito.

Este é um resultado que nenhum socialista deve supor como aceitável.

Sobre o autor

David Renton is the author of The New Authoritarians: Convergence on the Right.

10 de fevereiro de 2015

A contracultura perdida

Vício Inerente descreve brilhantemente como o neoliberalismo cooptou a contracultura.

Stephen Maher

Jacobin


Tradução / A princípio, a perspectiva da “arte cinematográfica” parece que nunca foi tão desanimadora. A estratégia comercial dos estúdios corporativos tem o objetivo de gerar alguns blockbusters por ano, cada vez mais na forma de sequências intermináveis e spin-offs. Com isso, fazer arte é algo praticamente inadequado dentro da lógica de produção de filmes de Hollywood.

Essa situação deprimente foi brilhantemente satirizada no filme Birdman de Alejandro Gonzalez Inarritu. Agora, Vício Inerente de Paul Thomas Anderson traz um pouco de esperança na possibilidade de outro tipo de cinema.

Anderson consegue criar de forma consistente filmes que vão além do que foi feito antes e do que seus colegas estão fazendo atualmente. Realmente, é bastante comum ver diretores surfarem confortavelmente na produção de remakes de seus “maiores sucessos” — basta olhar para Wes Anderson, cujos mundos fantasiosos e engraçadinhos demonstram a mesma combinação de desapego cínico, presunção e falta de sinceridade, enquanto reformam tematicamente a importância central da paternidade para a geração de sentido em nossas vidas; ou os Irmãos Coen, que refizeram a Odisseia de Homero algumas dezenas de vezes ou mais até então, embora com personagens um pouco excêntricos.

Mas cada filme novo de Paul Thomas Anderson revoluciona o que pensávamos ser possível na tela. Talvez seja por isso que seus filmes podem ser compreendidos apenas depois de um tempo: precisamos assisti-los mais de uma vez, digerir, pensar.

Vício Inerente talvez seja o retrato mais brilhante da construção da hegemonia neoliberal e do fim severo dos sonhos da geração de 60. Ele conversa de forma muito poderosa com o aqui e agora, indicando a fuga nostálgica que anseia pelos “anos sessenta” e mostrando que esse mundo sublime, como é normalmente imaginado, nunca existiu.

A atualidade do filme também vem de sua exploração do momento no qual é possível detectar o surgimento das forças neoliberais que, por fim, gerariam a crise de 2008: privatização, desregulamentação, especulação imobiliária e booms de desenvolvimento. Não foi por acidente que Vício Inerente de Thomas Pynchon foi publicado em 2009. E, conforme sugerem tanto o filme quanto o livro, o ideal hippie continha em si a própria semente — o “vício inerente” — que o transformaria num pesadelo.

Um noir pós-moderno

O filme opera dentro da convenção de gênero “film noir”, repleto de sombras, névoa, becos escuros, um tipo de mulher fatal e um enredo complexo, quase impenetrável: Doc Sportello, um detetive particular hippie e maconheiro, recebe a visita de sua ex-namorada, Shasta Faye Hepworth, que passou a ter um caso com Mickey Wolfmann, um poderoso investidor imobiliário. Shasta diz, logo antes de desaparecer, que a esposa de Mickey, Sloane, e seu amante e suposto “guia espiritual” têm planos de dar um jeito em Mickey e fugir com seu dinheiro. Mais tarde, Doc é contratado por Hope Harlingen, uma ex junkie com dentes falsos, para descobrir o que aconteceu com seu marido — Coy, um comunista viciado em heroína que virou a casaca e tornou-se informante do Cointelpro.

No final das contas, os dois casos estavam relacionados à “Golden Fang”, uma enorme corporação e rede de tráfico de heroína com uma fachada de empresa fiscal estabelecida por um cartel de dentistas. A Fang também é proprietária de uma instituição de saúde mental recém-privatizada, na qual enfermeiros vestidos como Jesus correm de lá pra cá com Uzis, e onde os “loucos” são “curados”: ou seja, reprogramados mentalmente para se tornarem cidadãos responsáveis, dóceis e obedientes.

Depois de ser enviado à instituição, Burke Stodger, um ator famoso, foi transformado de comunista procurado em reacionário dedicado. Agora, os pacientes da instituição assistem o dia todo a maratonas de filmes do Stodger. Poderia haver um símbolo mais adequado, ou mais hilário, para o final dos anos 60 e o surgimento da nova ideologia hegemônica?

Vício Inerente tem tudo a ver com os filmes recentes de Anderson — O Mestre e Sangue Negro — mais do que com seus trabalhos anteriores (Magnólia, Embriagado de Amor e Boogie Nights: Prazer sem limites). Enquanto os anteriores abrangiam interrogações pós-modernas sobre filme, fama, desempenho, genialidade, infância, culpa e amor, os trabalhos mais recentes incorporam essas questões na exploração de momentos reveladores do desenvolvimento histórico dos Estados Unidos, resultando em filmes dos mais sofisticados e complexos já produzidos.

Nesses últimos filmes, que são sequências cronológicas, Anderson consegue uma convergência impressionante entre o ethos e o caráter de toda uma era, e as batalhas subjetivas de seus personagens.

Em Sangue Negro, há o encontro fatal do fundamentalismo religioso, do capitalismo e da extração de recursos naturais — fenômenos que continuamclaramente centrais a qualquer concepção sã de “América”, especialmente durante a invasão do Iraque — sobre o pano de fundo da expansão do capitalismo durante o final do séc. XIX. Em O Mestre, há a busca por sentido e propósito no despertar da Segunda Guerra Mundial, e o vazio da suburbanização pós-guerra, consumismo em massa e o núcleo familiar dos anos 50.

Assim, faz todo sentido que Vício Inerente ocorra no momento em que o lance dos “anos sessenta”, qualquer que seja o significado disso, chegou definitivamente ao fim; um momento no qual o sentido simbólico foi subvertido, produzindo uma sensação profunda de incerteza e desorientação. A mudança é onipresente em Vício Inerente.

Em uma das primeiras cenas do filme, Sortilege — a narradora do filme, e alguém possivelmente alucinada — diz a Doc que ele precisa mudar seu corte de cabelo: “Mude seu cabelo, mude sua vida.” Quando Doc pergunta qual estilo ele deveria usar, a resposta ambígua resume o filme de forma magnífica: todos precisam se adaptar, mas ninguém sabe o que se tornar, ou como chegar lá.

Muito mais clara é a transformação rápida e violenta do ambiente urbanizado de Los Angeles. Quando Tariq Khalil, membro da Black Guerrilla Family, inspirada em Marcus Garvey, contrata Doc para encontrar um dos guarda-costas de Mickey, um sujeito defensor da Supremacia Branca, ele o informa de que toda sua comunidade havia sido destruída e seus moradores despejados para dar espaço ao Channel View Estates, o investimento imobiliário mais recente de Mickey.

A narração de Sortilege conecta esse evento com a “longa e triste história” do redesenvolvimento urbano em Los Angeles, incluindo a “Batalha de Chavez Ravine”, na qual os residentes latinos tentaram resistir à demolição de sua comunidade, que abria caminho para o que é hoje o Estádio do Dodgers.

Cuidado com a Golden Fang

A complexidade da trama serve principalmente para ilustrar a relativa insignificância da busca de Doc, e para destacar que o que está “realmente” acontecendo ocorre a portas fechadas. Por becos escuros, em reuniões fechadas nos fundos de uma festa, em salas ocultas no consultório do dentista e em prédios comerciais comuns, uma entidade corporativa enorme e imensamente poderosa está transformando rapidamente a sociedade, de maneira kafkiana, da valorização e redesenvolvimento urbano para a Cointelpro e a venda de heroína.

Ninguém, contudo, parece perceber algo, em parte porque o excesso de drogas, sexo e rock é basicamente uma fuga. Como nos informa Sortilege, “valia a pena escapar da vida americana”.

Os hippies não estavam desafiando o poder conscientemente, mas sim buscando a felicidade pessoal. Eles pareciam acreditar que, se fechassem os olhos bem apertados, ou dessem mais um tapa, os demônios do mundo se dissolveriam em flores e luzes. “Pessoas como você perdem qualquer direito ao respeito no momento em que pagam o aluguel”, diz um personagem a Doc perto do final do filme.

Essa necessidade de “negar a realidade por meio de histórias”, de acordo com Hope, indica um motivo pelo qual a contracultura hippie foi recuperada (usando termos dos Situacionistas) com tanto sucesso. Enquanto os hippies fechavam seus olhos, as forças de reação espreitavam logo abaixo da superfície, recuperando suas forças de forma silenciosa e constante.

Mas essa recuperação resultou também do dinamismo ideológico do capitalismo. “Turmas obscuras” em festas hippies, escritórios corporativos e mansões suburbanas aproveitaram os aspectos da revolução contracultural que os convinha, adotando o vernáculo, o vestuário, o simbolismo, o espiritualismo e a emancipação sexual, e fazendo-se passar efetivamente por almas irmãs emancipadas.

Conforme escreve Slavoj Zizek, “o novo capitalismo” que surgiu nos anos 70 “apropriou-se de forma triunfante dessa retórica anti-hierárquica de 68, apresentando-se como revolta libertadora contra as organizações sociais opressoras do capitalismo corporativo e do socialismo realmente existente”: pense nos filmes anticomunistas de Burke Stodger junto com a emancipação sexual e iluminação espiritual de Sloane Wolfmann.

“O que sobrou da liberação sexual dos anos 60”, continua Zizek, “foi o hedonismo tolerante prontamente incorporado em nossa ideologia hegemônica”. O resultado foi o surgimento do “mestre permissivo pós-moderno, cuja dominação é maior por ser menos visível”.

O filme explora de forma intensa essa transformação cultural-simbólica. Como podemos ver, está cada vez mais difícil distinguir os hippies do sistema. Primeiro conhecemos Bigfoot Bjornson, inimigo e doppelgänger, uma versão malvada de Doc. Bigfoot é um policial com corte de cabelo flat-top “de proporções cavernosas” e “olhos que gritam violações dos direitos civis”, que aparece como ator em um comercial da Channel View Estates. Primeira fala de Bigfoot: “Cara, não quero que você pague aluguel!” Ele segue explicando, em linguagem hippie debochada, que pagar aluguel é “sacal” e “uma barra”, e que a solução é comprar uma casa nova em Channel View, construída sobre o que era antes uma comunidade de trabalhadores negros.

Adrian Prussia, um agiota e assassino de aluguel da polícia, diz coisas como “psicodélico” e “massa”. A esposa de Wolfmann, Sloane, tem um “guia espiritual” com quem ela obviamente tem intimidade sexual. Quanto ao próprio Wolfmann, ficamos sabendo por um dos informantes de Doc que é “um judeu que quer ser nazista”. Ele tem também um armário cheio de gravatas enfeitadas com imagens de mulheres nuas com as quais (supostamente) fez sexo, e abre um hospital psiquiátrico privado cujo nome é “uma antiga palavra indiana que significa serenidade”.

Um filme implacável

Bigfoot é um ator em todos os sentidos — não apenas no comercial da Channel View, mas também como figurante no programa “Adam-12”, que compete, enquanto Doc troca os canais da TV, com o discurso de Richard Nixon em um comício da “Vigilant California” (uma coalizão reaça espontânea, um pouco parecida com o Tea Party). Tanto o discurso quanto o programa policial mandam a mesma mensagem: há uma desordem nas ruas, e ela deve ser reprimida.

Durante todo o filme, assim como em sua obra-prima Magnólia, Anderson destaca como a televisão molda as percepções da realidade, desde a persona de Bigfoot na frente e por trás das câmeras, até a aparente interrupção de Coy Harlingen em um comício da Vigilant California (que, descobre-se depois, era apenas uma cena). Enquanto a comparação do comício com “Adam-12” aponta que as duas situações são essencialmente um show, a “interrupção” de Coy rende a ele credibilidade com as organizações de esquerda, de modo a infiltrar-se nelas com mais eficiência. Ou seja, Coy não está interrompendo a apresentação de Nixon, masparticipando dela. Nada disso é mais “real” do que “Adam-12”. Assim, a representação torna-se realidade.

Somos expostos à violência apenas duas vezes durante o filme, e ambas são impressionantes, algo como uma explosão de “realidade”. E essa violência não é de forma alguma purificadora: Doc não se redime como resultado, nenhum erro é desfeito e não ficamos aliviados.

Uma dessas explosões é representada pelo sexo entre Doc e Shasta, uma mistura atormentada de arrependimento, frustração, confissão e tragédia. Em vez de nos proporcionar uma satisfação spielberguiana de união da família ou casal, isso ilustra como a (não) relação entre Doc e Shasta ainda é muito problemática, contribuindo com a aura de tragédia inescapável do filme.

Ao contrário de filmes no estilo Odisseia, do tipo que os irmãos Coen produzem incessantemente, nos quais o personagem principal precisa passar por alguma aventura transformadora a fim de acomodar o “lar” para o qual ele retorna ao final da jornada, este filme se concentra em como o mundo está mudando, impondo a todos a necessidade de tornar-se algo novo — embora ninguém saiba o quê. A verdade é que não há um lar, e Doc não pode simplesmente voltar à sua vida como homem mais forte e mais sábio (como acontece em O Grande Lebowski, entre tantos outros).

O único gostinho de redenção que temos é a volta para casa de Coy, que mostra uma reviravolta interessante. Coy é resgatado de seu papel de informante da COINTELPRO e entra novamente na sociedade. Mas mesmo nesse momento a câmera permanece focada no rosto de Doc, que revela um vazio existencial, negando-nos a capacidade de dividir esse momento de felicidade.

Ao final do filme, Doc e Shasta parecem literalmente dirigir-se rumo a um abismo: aparentemente estão em um carro, mas do lado de fora da janela há apenas uma escuridão homogênea — nenhum cenário, outros carros etc. — enquanto Shasta diz que a sensação é “de o mundo todo estar debaixo d’água e nós sermos os únicos sobreviventes”. Até mesmo a narração de Sortilege desaparece.

É nesse abismo que vivemos desde então, quando as forças que testemunhamos no filme — reação do Estado, restabelecimento da cultura conservadora, neoliberalismo — começaram a fundir-se. Essas forças apenas se intensificaram, aprofundando a alienação, enquanto fazemos da nostalgia um escape, pensando em um período que jamais foi tão puro quanto nos lembramos. Parece que “ainda vale a pena escapar” da vida americana.

Colaborador

Stephen Maher é editor assistente do Socialist Register.

8 de fevereiro de 2015

Não armem a Ucrânia

Enviar armas para a Ucrânia não resgatará seu exército e, em vez disso, levará a uma escalada no conflito. Tal passo é especialmente perigoso.

John J. Mearsheimer


Soldados do Exército Ucraniano em um exercício de treinamento de armas no oeste da Ucrânia na semana passada. Crédito Pavlo Palamarchuk/Associated Press

A crise na Ucrânia tem quase um ano e a Rússia está vencendo. Os separatistas no leste da Ucrânia estão ganhando terreno e o presidente russo, Vladimir V. Putin, não mostra sinais de recuar diante das sanções econômicas ocidentais.

Não é de surpreender que um coro crescente de vozes nos Estados Unidos esteja pedindo o armamento da Ucrânia. Um relatório recente de três importantes think tanks americanos endossa o envio de armamento avançado para Kiev, e o indicado da Casa Branca para secretário de defesa, Ashton B. Carter, disse na semana passada ao comitê de serviços armados do Senado: "Eu me inclino muito nessa direção".

Eles estão errados. Seguir esse caminho seria um grande erro para os Estados Unidos, a OTAN e a própria Ucrânia. Enviar armas para a Ucrânia não resgatará seu exército e, em vez disso, levará a uma escalada nos combates. Tal passo é especialmente perigoso porque a Rússia tem milhares de armas nucleares e está buscando defender um interesse estratégico vital.

Não há dúvida de que o exército da Ucrânia está muito desarmado pelos separatistas, que têm tropas e armas russas ao seu lado. Como o equilíbrio de poder favorece decisivamente Moscou, Washington teria que enviar grandes quantidades de equipamento para que o exército ucraniano tivesse uma chance de lutar.

Mas o conflito não terminará aí. A Rússia contra-escalaria, tirando qualquer benefício temporário que Kiev pudesse obter das armas americanas. Os autores do estudo do think tank admitem isso, observando que "mesmo com enorme apoio do Ocidente, o Exército Ucraniano não será capaz de derrotar um ataque determinado dos militares russos". Em suma, os Estados Unidos não podem vencer uma corrida armamentista com a Rússia sobre a Ucrânia e, assim, garantir a derrota da Rússia no campo de batalha.

Os defensores do armamento da Ucrânia têm uma segunda linha de argumento. A chave para o sucesso, eles sustentam, não é derrotar a Rússia militarmente, mas aumentar os custos da luta a ponto de Putin ceder. A dor supostamente obrigará Moscou a retirar suas tropas da Ucrânia e permitir que ela se junte à União Europeia e à OTAN e se torne uma aliada do Ocidente.

Essa estratégia coercitiva também dificilmente funcionará, não importa quanta punição o Ocidente inflija. O que os defensores do armamento da Ucrânia não conseguem entender é que os líderes russos acreditam que os principais interesses estratégicos de seu país estão em jogo na Ucrânia; é improvável que eles cedam terreno, mesmo que isso signifique absorver custos enormes.

Grandes potências reagem duramente quando rivais distantes projetam poder militar em sua vizinhança, muito menos tentam fazer de um país em sua fronteira um aliado. É por isso que os Estados Unidos têm a Doutrina Monroe, e hoje nenhum líder americano jamais toleraria que o Canadá ou o México se juntassem a uma aliança militar liderada por outra grande potência.

A Rússia não é exceção a esse respeito. Portanto, o Sr. Putin não se mexeu diante das sanções e é improvável que faça concessões significativas se os custos dos combates na Ucrânia aumentarem.

Aumentar a aposta na Ucrânia também corre o risco de uma escalada indesejada. Não apenas os combates no leste da Ucrânia certamente se intensificariam, mas também poderiam se espalhar para outras áreas. As consequências para a Ucrânia, que já enfrenta profundos problemas econômicos e sociais, seriam desastrosas.

A possibilidade de que o Sr. Putin possa acabar fazendo ameaças nucleares pode parecer remota, mas se o objetivo de armar a Ucrânia é aumentar os custos da interferência russa e, eventualmente, colocar Moscou em uma situação aguda, isso não pode ser descartado. Se a pressão ocidental tiver sucesso e o Sr. Putin se sentir desesperado, ele teria um poderoso incentivo para tentar resgatar a situação agitando o sabre nuclear.

Nossa compreensão dos mecanismos de escalada em crises e guerras é limitada, na melhor das hipóteses, embora saibamos que os riscos são consideráveis. Encurralar uma Rússia com armas nucleares seria brincar com fogo.

Os defensores do armamento da Ucrânia reconhecem o problema da escalada, e é por isso que eles enfatizam dar a Kiev armas "defensivas", não "ofensivas". Infelizmente, não há distinção útil entre essas categorias: todas as armas podem ser usadas para atacar e defender. O Ocidente pode ter certeza, no entanto, de que Moscou não verá essas armas americanas como "defensivas", já que Washington está determinado a reverter o status quo no leste da Ucrânia.

A única maneira de resolver a crise na Ucrânia é diplomaticamente, não militarmente. A chanceler alemã, Angela Merkel, parece reconhecer esse fato, pois ela disse que a Alemanha não enviará armas para Kiev. O problema dela, no entanto, é que ela não sabe como pôr fim à crise.

Ela e outros líderes europeus ainda trabalham sob a ilusão de que a Ucrânia pode ser retirada da órbita da Rússia e incorporada ao Ocidente, e que os líderes russos devem aceitar esse resultado. Eles não aceitarão.
Para salvar a Ucrânia e, eventualmente, restaurar uma relação de trabalho com Moscou, o Ocidente deve procurar fazer da Ucrânia um estado-tampão neutro entre a Rússia e a OTAN. Deve se parecer com a Áustria durante a Guerra Fria. Para esse fim, o Ocidente deve explicitamente tirar a expansão da União Europeia e da OTAN da mesa e enfatizar que seu objetivo é uma Ucrânia não alinhada que não ameace a Rússia. Os Estados Unidos e seus aliados também devem trabalhar com o Sr. Putin para resgatar a economia da Ucrânia, um objetivo que é claramente do interesse de todos.

É essencial que a Rússia ajude a acabar com os combates no leste da Ucrânia e que Kiev recupere o controle sobre a região. Ainda assim, as províncias de Donetsk e Luhansk devem receber autonomia substancial, e a proteção dos direitos da língua russa deve ser uma prioridade máxima.

A Crimeia, uma vítima da tentativa do Ocidente de fazer a OTAN e a União Europeia marcharem até a porta da Rússia, certamente está perdida para sempre. É hora de acabar com essa política imprudente antes que mais danos sejam causados ​​— à Ucrânia e às relações entre a Rússia e o Ocidente.

John J. Mearsheimer, professor de ciência política na Universidade de Chicago, é autor de The Tragedy of Great Power Politics.

3 de fevereiro de 2015

O partido e sua história de sucesso: Uma resposta a "Duas Revoluções"

Como deve ser avaliado o balanço do comunismo chinês? Em uma réplica à comparação de Perry Anderson das revoluções russa e chinesa, Wang Chaohua oferece um veredicto crítico sobre a utopia de Mao e o pragmatismo de Deng, e o legado sombrio do esmagamento das aspirações populares em 1989.

Wang Chaohua


91 Jan/Fev 2015

“Duas revoluções”, publicado na New Left Review (NLR) há cinco anos, Perry Anderson expôs como objetivo fornecer uma explicação do contraste entre os resultados históricos das revoluções comunistas russa e chinesa. Sua tentativa envolveria, segundo ele, uma reflexão em quatro níveis: agências revolucionárias originais, pontos de partida objetivos para a reforma, políticas escolhidas durante as reformas e suas consequências e determinantes histórico-culturais de longo prazo. O leitor poderia assim ser levado a esperar um tratamento simétrico das duas revoluções, mas não foi o que se seguiu: “Uma vez que a República Popular da China (RPC) sobreviveu à União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e que seu futuro talvez constitua a principal incógnita da política mundial, o centro em torno do qual se ordenam as anotações seguintes será a China, tal como vista no espelho russo”, observou Anderson. Em outras palavras, a função do caso russo era ajudar a lançar luz sobre o caso chinês, não o contrário. A União Soviética fracassou, e seu fracasso poderia servir como testemunho do sucesso da RPC.

Essa não é a única assimetria em seu texto. A parte I, “Matrizes”, abrange, em nove páginas, o período entre o fim do governo imperial e os primeiros trinta anos do governo do Partido Comunista em cada país. Em contraste, a parte II, “Mutações”, que trata das reformas do regime pós-revolucionário em cada sociedade a partir de um ponto, fixado no início da década de 1980, e a parte III, “Pontos de ruptura”, enfocando as crises de 1987-1989 na China, contam com vinte páginas. A quarta parte, “O novum”, resume, em seis páginas, as principais interpretações do desempenho econômico da China nas últimas três décadas e o compara brevemente ao de outros países asiáticos – Japão, Coreia do Sul, Taiwan e Singapura. Embora o ensaio comece com um olhar sobre o “impressionante contraste” atual entre os dois países, a distribuição de espaço deixa claro que o núcleo de “Duas revoluções” está em sua análise dos respectivos períodos iniciais de reformas na Rússia e na China, antes que as duas revoluções chegassem, ao mesmo tempo, a um momento de inflexão, no fim da década de 1980. Nem a União Soviética nem a Rússia figuram na última parte. O resultado histórico que requer explicação já está fixado, portanto, entre 1989 e 1991. Para Anderson, a base da história de sucesso da RPC foi lançada na primeira década da Era da Reforma, determinada por três características decisivas herdadas da Revolução Chinesa: um campesinato de espírito enérgico; uma liderança nacional capaz de manter suas habilidades estratégicas e a autoconfiança da Revolução original; e uma atitude criticamente confiante, como aquela demonstrada por Lênin e seus camaradas, diante tanto da cultura nacional quanto do mundo exterior.

Uma perspectiva comparativa pode lançar nova luz sobre um assunto que se tornou excessivamente familiar. Quando a comparação se estende por um século e abrange questões sociais, culturais, econômicas e políticas, ao mesmo tempo que se mantém atenta aos contextos internacionais, será um desafio lidar com tudo isso em menos de quarenta páginas. Mesmo se as considerações de espaço forem deixadas de lado, toda comparação tem seus limites, e a iniciativa de Anderson não é exceção. Ao comparar as duas revoluções comunistas com foco na década de 1980, por exemplo, vê a experiência de reforma da China, deflagrada três anos após a morte de Mao, num espelho russo de mais de três décadas (1953-1985), uma discrepância de periodização tão grande que inevitavelmente gera simplificação e má interpretação do processo na China. Outro problema fundamental é a conexão precária entre a questão que ordena o ensaio – o resultado histórico da Revolução Chinesa, à luz da ascensão econômica da RPC no século XXI – e a resposta que ele oferece implicitamente – as três características distintivas enraizadas na Revolução e ainda visíveis na década de 1980. Elas realmente explicam a trajetória da China desde 1978? Podem oferecer um norte para prever o futuro do país? Em sua breve conclusão, olhando para os últimos vinte anos da experiência chinesa, Anderson deixa tais questões em aberto, aguardando novos desdobramentos.

Em minha resposta, enfocarei primeiramente algumas questões-chave levantadas pela comparação de Anderson das revoluções russa e chinesa, e então buscarei corrigir sua explicação sobre a entrada da China na Era da Reforma com uma análise mais detalhada de sua trajetória, defendendo que não são as características irrepreensivelmente positivas enraizadas na Revolução, mas sua desconsideração pelo Partido e até mesmo sua completa supressão, mais notoriamente no massacre da praça da Paz Celestial, que moldaram o caminho específico da ascensão da China na economia mundial hoje.

I. ANATOMIA DA REVOLUÇÃO

1.

Tomando a definição do Estado como “o exercício do monopólio da violência legítima sobre determinado território” de [Max] Weber, Anderson argumenta que uma revolução política pode decorrer de uma quebra em qualquer um desses termos – monopólio, legitimidade ou território –, permitindo a derrubada de um regime existente e sua substituição por um novo. Uma vez que seu ensaio se estende às matrizes da Rússia tsarista e da China Qing no século XIX, Anderson poderia, com essa concepção, ter considerado a Revolução de Fevereiro de 1917 na Rússia e a Revolução Republicana de 1911 na China, que derrubaram esses dois longevos regimes imperiais. Ao omitir os levantes antidinásticos nos dois países, ele concentra a comparação nas revoluções lideradas por comunistas que as sucederam, mas diz pouco sobre o que as definia como comunistas, em oposição a outros tipos de mudança de regime. A palavra “comunismo” é usada alternadamente em maiúsculas e minúsculasa, às vezes ironicamente. As ideologias dos partidos que fizeram essas revoluções e o tipo de formação do Estado que elas representavam, porém, não são especificados. Eles precisam ser considerados. De uma perspectiva internacional, estabeleceram duas formas bastante diferentes de “comunismo”, cujas forças e fraquezas teóricas, políticas e econômicas exigem sua própria avaliação histórica.

Do ponto de vista intelectual, os bolcheviques russos, sob a liderança de Lênin, envolviam-se ativamente no movimento internacional de trabalhadores havia muito tempo, participando de debates teóricos acalorados e desenvolvendo suas próprias estratégias para a tarefa organizacional de construir – em geral de maneira clandestina – um partido revolucionário moderno. Convencido de que o desenvolvimento de forças produtivas avançadas era uma precondição para o comunismo, o partido leninista via a maioria camponesa da Rússia com prudência, se não com vigilância, como um potencial bastião da produção mercantil pequenoburguesa no campo que provavelmente seria um obstáculo ao objetivo de industrialização em larga escala. Esse compromisso ideológico permaneceu constante sob Stálin e seus sucessores. O stalinismo interpretava o marxismo mecanicamente e o implementou de forma violenta e dogmática em um programa de coletivização brutal e de industrialização forçada antes da guerra. Mais tarde, a industrialização em expansão e a crescente mecanização na agricultura tornaram-se políticas fundamentais na URSS. Como observa Anderson, mais de 80% da população vivia no campo em 1917, ao passo que, na década de 1980, a força de trabalho rural representava apenas 14% do total nacional.

2.

O preparo teórico e político dos bolcheviques era um patrimônio do qual os revolucionários chineses anti-Manchu, sob o comando de Sun Yat-sen, não tinham a menor ideia. Levaria mais uma década até que esses jovens chineses que se tornaram comunistas começassem a adquiri-lo, por meio da Terceira Internacional (Comintern). O apelo do marxismo e de seu desenvolvimento por Lênin sobre os líderes do Partido Comunista Chinês (PCC) como Mao Tsé-tung era duplo. O materialismo histórico ofereceu uma maneira de extrair sentido socioeconômico do longo passado do país e projetá-lo para a frente com um propósito para além de qualquer coisa que os chineses tivessem imaginado até então. Ele diminuiu a ansiedade intelectual sobre o vácuo político-moral deixado pelo colapso da ortodoxia confuciana – sempre olhando para o passado como uma Era de Ouro – ao fornecer uma base confiável para as esperanças de um futuro melhor para o país que tinha visto a circulação de visões utópicas de literatos desde o período final da dinastia Qing, especialmente a “Grande Harmonia” de Kang Youwei. Ao mesmo tempo, o materialismo dialético e a teoria leninista do partido revolucionário pareciam fornecer o melhor conjunto de ferramentas teóricas para a estratégia revolucionária e a mobilização social moderna. Não resta dúvida sobre o desenvolvimento criativo dessa vertente por Mao, que produziu sua inovadora análise de classes da sociedade chinesa em 1926, seguida de muitos movimentos estratégicos brilhantes durante os anos de guerra.

O foco na mobilização social levou o PCC, desde o início, a identificar o campesinato chinês como uma força revolucionária de importância crítica e, depois, a dar prioridade a seu papel na luta de libertação nacional contra a ocupação militar estrangeira. A guerra de guerrilha de base camponesa contra os governos coloniais ou os tiranos domésticos se tornaria a marca registrada das rebeliões maoistas em todo o mundo, rompendo os limites teóricos estabelecidos do movimento comunista internacional. A abordagem teve, porém, suas desvantagens. Uma vez estabelecida a RPC, a primeira geração de líderes e quadros do PCC esteve sempre atenta à sociedade rural, embora isso não signifique que eles a protegessem socialmente. A zona rural foi sistematicamente explorada para o desenvolvimento industrial, e deu-se pouca atenção efetiva aos desafios de transformar a vasta população camponesa da China em uma classe trabalhadora urbana. Nem a análise econômica do capitalismo moderno e suas contradições internas, nem o inescapavelmente longo e sinuoso caminho da mobilização social imediata para um futuro definitivo de igualdade e abundância figuraram entre as principais preocupações de Mao depois que o PCC assumiu o poder. Ao fim da primeira década da RPC, ele lançou o país no Grande Salto para a Frente, uma tentativa ilusória de emular o desenvolvimento industrial do Reino Unido e dos Estados Unidos, buscando às cegas conduzir a China diretamente ao comunismo por meio apenas de seus próprios esforços. Nos últimos anos de sua vida, ele levou ao extremo o culto à autossuficiência na Revolução Cultural, organizando a sociedade chinesa em unidades protomilitares e concebendo a igualdade social em um espírito mais próximo de um nivelamento primitivo, pré-capitalista, que de um comunismo avançado, pós-industrial. Foi como se o fracasso do Grande Salto para a Frente tivesse desiludido Mao da ideia de alcançar seus objetivos por meio do desenvolvimento econômico. Com a Revolução Cultural, ele desviou sua imaginação utópica do materialismo histórico, em uma direção que era o completo oposto de tudo o que é moderno. Suas visões do futuro, se comparadas ao legado dos debates bolcheviques, eram inferiores em termos de qualidade intelectual, e os experimentos aos quais elas levaram foram desastrosos em sua conclusão.

3.

Anderson observa que, em sua origem, “a emergente URSS não fez nenhuma conclamação ao orgulho patriótico ou à construção nacional. Seu apelo era internacional: dirigia-se à solidariedade do movimento operário mundial”[b]. Como o impacto externo das duas revoluções pode então ser comparado? Os Estados que elas criaram, pertencentes a um movimento político comum, tinham ambos uma dimensão internacional inerente. Por outro lado, as duas guerras mundiais levaram os dois partidos a reconhecer o apelo do nacionalismo. Para o PCC, isso significava a adaptação às realidades sociais da sociedade local e a proteção de sua própria independência nacional no interior de uma aliança garantida por obrigações assumidas internacionalmente. Para o Partido Comunista da União Soviética (PCUS), que lutava contra Hitler sob o comando de Stálin, era hora de dissolver a Comintern e restabelecer o patriotismo russo. Isso teve implicações mais amplas que vencer a guerra. Quando a vitória do Exército Vermelho sobre o Terceiro Reich trouxe a maior parte da Europa Oriental ao campo socialista, esses países não se juntaram à URSS como repúblicas socialistas soviéticas adicionais, mas formaram seus próprios Estados nacionais.

Nos anos da Guerra Fria, os dois Estados comunistas forneceram apoio moral e material aos movimentos de camaradas em outros países. A União Soviética ajudou a sustentar e equipar a Revolução Vietnamita. Permitiu que Cuba sobrevivesse a um bloqueio estadunidense a milhares de quilômetros de distância da costa soviética, enquanto Cuba, por sua vez, ajudava nas lutas de libertação nacional da África sob dominação portuguesa. A existência da URSS forneceu uma gama de escolhas alternativas – domésticas e diplomáticas – para nações menores que eram recémindependentes ou ainda lutavam pela descolonização. Do ponto de vista socioeconômico, em vez de um conjunto fixo de políticas econômicas do tipo imposto pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), a União Soviética ofereceu um modelo que incluía indústrias nacionalizadas em setores estratégicos, juntamente com programas de provisão pública e universal de educação, habitação e saúde, e transmitia uma ideologia de valorização das massas trabalhadoras como a principal força da sociedade. Ajuda material considerável frequentemente acompanhava isso. O modelo não produziu casos espetaculares de decolagem econômica, como ocorreu com alguns países sob proteção dos Estados Unidos, mas contribuiu para a recuperação econômica em muitas nações recém-independentes, muitas vezes em ruínas após a devastação causada pela guerra. A jovem RPC da década de 1950 foi um desses exemplos.

Em oposição a tudo isso, no fim da Segunda Guerra Mundial, a URSS não concedeu qualquer autonomia aos Estados da Europa Oriental ocupados pelo Exército Vermelho, reduzidos a satélites soviéticos. Suas sucessivas intervenções militares na Alemanha Oriental, na Hungria e na Tchecoslováquia foram atos de inequívoca repressão. Além disso, o PCUS procurou impor sua liderança sobre todo o movimento comunista internacional, exigindo dos partidos fraternos obediência e tentando intimidar aqueles que resistiram a isso – o da Iugoslávia na época de Stálin, o da China na época de Khruschov. Não há dúvida quanto ao peso do hegemonismo soviético no “campo socialista” da alta Guerra Fria. Após a vitória da revolução, a China também estendeu abundante apoio político e material a outros movimentos comunistas, em particular em dois países vizinhos, Coreia e Vietnã. Para atingir além dos vizinhos imediatos, porém, sua influência geralmente dependia da força de seu exemplo, não da imposição de sua vontade. Quando a cisão sino-soviética do início da década de 1960 viu uma reação em cadeia de divisões no interior dos movimentos de esquerda em todo o mundo, com muitos partidos recém-formados se intitulando “maoistas”, o PCC não fez nenhuma tentativa de reuni-los em uma organização mundial ou em um movimento maoista globalmente coordenado. As posições gerais do Partido, que enfatizavam a libertação nacional, a autossuficiência agrária e a revolta contra a desigualdade social e internacional, podiam ser detectadas sob a superfície de sua eventual cooperação semiclandestina com partidos irmãos do exterior. No entanto, a RPC evitou empunhar abertamente uma bandeira maoista de solidariedade internacional em sua política externa oficial. O Partido e o Estado funcionavam em duas camadas. O que estava sob a superfície nunca chegou a vir totalmente às claras.

4.

Em seus últimos anos, Mao afirmaria que não havia diferença essencial entre o papel desempenhado pela União Soviética nas questões internacionais e aquele desempenhado pelos Estados Unidos, duas superpotências disputando uma hegemonia idêntica. Essa afirmação nunca foi totalmente convincente. A posição ideológica da URSS era muitas vezes bastante distinta e, na verdade, diametralmente oposta à dos EUA. Durante a Guerra Fria, a União Soviética contrabalançou ativamente o poder supremo dos Estados Unidos, tendo desde o primeiro dia transformado o Conselho de Segurança das Nações Unidas em um campo de batalha, no qual, entre 1946 e 1972, exerceu seu direito ao veto 112 vezes – muito mais que os próprios Estados Unidos. A partir de então, seu uso do veto caiu drasticamente, e, nos termos de Anderson, “os alentos do internacionalismo”[c], que ainda existiam sob Khruschov, diminuíram sob o brejnievismo. Ainda assim, uma influência indireta da URSS podia ser sentida mesmo em países e movimentos muito distantes do “campo socialista”. Basta considerar os bem-sucedidos processos de democratização na Coreia do Sul e no Brasil na década de 1980, ambos em grande parte baseados na mobilização da classe trabalhadora em ondas de greve de grande escala. Desde a dissolução da URSS e o fim da Guerra Fria, não vimos nenhum movimento comparável de militância política com essa origem. Os protestos de trabalhadores não desapareceram, mas seus objetivos geralmente são limitados: defender níveis salariais ou benefícios sociais, sem qualquer horizonte de transformação política. A ameaça de um “Estado operário”, de qualquer tipo, não existe mais.

No plano internacional, a RPC distinguiu-se propondo os Cinco Princípios da Coexistência Pacífica, aceitos em 1955 pela Conferência Afro-Asiática em Bandung. Tudo isso, porém, desmoronou quando a guerra da fronteira sino-indiana eclodiu em 1962. Depois que a China conseguiu ingressar na ONU, o desempenho da RPC nesse âmbito não melhorou. Poucos meses depois de Pequim tomar seu assento no Conselho de Segurança, Mao recebeu Nixon em Zhongnanhai. O nacionalismo cínico por trás dessa súbita mudança de linha era inconfundível, e, embora os apelos oficiais à revolução tenham persistido durante toda a vida de Mao, a RPC logo se mostrou incapaz de lutar diplomaticamente por justiça e igualdade internacionais. O país usou seu veto apenas quatro vezes até o fim do século – duas vezes em 1972 e duas vezes no fim da década de 1990, para punir Taiwan e seus partidários bloqueando missões de paz da ONU na Guatemala e na Macedônia [1]. Durante o quarto de século que separa essas intervenções, sob Mao e Deng, o país se manteve discreto.

No novo século, a ascensão da China em direção à posição de superpotência atua como contrapeso à predominância comercial estadunidense e oferece algum espaço diplomático de manobra às nações da América Latina e da África. Entretanto, a RPC não procura ser nem é vista como modelo alternativo de sociedade, como foi a URSS. A China apresenta-se como um poder que, com louvor, evita o hegemonismo, mas, com maior frequência, sua abstenção assume a forma de condescendência com a hegemonia existente – em relação à Guerra do Iraque, para dar apenas um exemplo – ou de busca de um estreito interesse próprio – como no Sudão –, e suas relações com os países do Terceiro Mundo permanecem estritamente instrumentais. A impressão deixada por seu registro diplomático é a de um egoísmo tacanho. O orgulho nacional, fazendo coro ao chauvinismo do Grande Han, aumentou rapidamente com o crescimento econômico, mostrando-se opressivo aos povos minoritários domésticos e agressivamente assertivo ao lidar com os Estados vizinhos. Nas disputas com vários países do Sudeste Asiático no mar do Sul da China, as autoridades locais tomaram emprestado abertamente um antigo termo estadunidense para criticar potências estrangeiras por se intrometerem no “quintal da China”. Por outro lado, no novo século, a China se uniu à Rússia três vezes ao usar seu poder de veto para bloquear resoluções referentes a Mianmar (2007), Zimbábue (2008) e Síria (2011). É isso que resta do legado internacionalista das duas revoluções.

Uma das razões pelas quais Perry Anderson não tenta considerar os diferentes fundos ideológicos e os impactos internacionais das duas revoluções em seu relato é que, nas poucas ocasiões em que aborda a ideologia em sua discussão – observações sobre o grande chauvinismo russo ou as esperanças maoistas de eliminar as “três [grandes] diferenças” –, ele presta maior homenagem às vertentes intelectuais (representadas a seus olhos por Lênin, na Rússia, e Lu Xun, na China) que buscavam visões novas e criativas da política por meio de ataques impiedosos sobre suas próprias culturas tradicionais, lançando mão de recursos de todas as direções possíveis – e não menos de apropriações críticas do Ocidente. Estas, no entanto, eram ideias ou posições relacionadas a questões da “modernidade”, noção que nunca foi realmente significativa para o movimento operário clássico, cuja perspectiva, definida pelo contraste marcante entre capitalismo e socialismo, sempre foi reivindicada tanto pelo PCUS como pelo PCC.

II. CAMINHOS PARA A REFORMA

1.

Quando considera a situação histórica que levou a reformas, na década de 1980, tanto na RPC como na URSS, Anderson opta por se concentrar em três questões: a estagnação econômica ou o impasse político que motivou a iniciativa de reformar; o modo como se tratou o legado do ditador revolucionário em cada país; e o caráter dos líderes que iniciaram as respectivas reformas. Tal abordagem deixa sem resposta questões importantes sobre a profunda transformação na economia da China. Consideremos primeiro o quadro comparativo que ele traça dos dois países. Uma dificuldade óbvia na comparação é que a conexão entre o ditador revolucionário e a liderança da reforma foi muito diferente nos dois países.

One obvious difficulty in Anderson’s comparison is that the connexion between the revolutionary dictator and the leadership of the reform was so different in the two countries.Se as reformas chinesas foram de fato uma reação rápida à Revolução Cultural após a morte de Mao, os desastres da década de 1930 sob Stálin não representaram um impulso comparável para o programa de Gorbatchov. Da mesma forma, seria provavelmente exagerado criticar Khruschov por não reformar a Gosplan a tempo, levando-a a se fossilizar pelos vinte anos seguintes. O tratamento dado por Anderson às crises imediatamente anteriores às reformas em cada caso também é desequilibrado. De acordo com ele, na URSS havia estagnação econômica agravada pela burocratização política e pelo esvaziamento intelectual do PCUS, enquanto na RPC havia a Revolução Cultural, cujos custos políticos faziam aumentar a desilusão popular e o descontentamento social. Sua análise diz pouco sobre o impacto da Revolução Cultural no interior do próprio Partido e silencia quase completamente sobre os sacrifícios que ela impôs à economia chinesa.

Isso está em marcante contraste com a justificativa oficial dada pelo PCC para a reforma na época, quando sua liderança coletiva sustentou que – nas palavras do sucessor designado por Mao, Hua Guofeng, em fevereiro de 1978 – a economia nacional estava “à beira de um colapso total” [1]. A economia chinesa registrou crescimento ano a ano entre 1966 e 1976. No entanto, não apenas seu ritmo foi mais lento que entre 1953 e 1966 ou entre 1977 e 1982, como a agricultura fez a aposta mínima em necessidades alimentares, e a indústria leve ficou muito atrás da indústria pesada – orientada para projetos de infraestrutura e produção militar, em consonância com a política de Mao de “preparar-se para a guerra” com uma “terceira linha” de indústrias de defesa espalhadas pelas províncias do interior. Na década da Revolução Cultural, a população total da China cresceu quase 30%, enquanto a produção de tecidos de algodão, apenas 20% (os tecidos sintéticos eram ainda uma raridade, mesmo em Pequim); e, embora a produção de grãos tenha aumentado ao longo desses anos, o consumo per capita caiu abaixo do nível de 1952 [2]. A questão crítica, em todo caso, não é se houve crescimento nominal do PIB. Por essa medida, a União Soviética ainda cresceu até 1986, quando Gorbatchov lançou sua perestroika, e não teria sido considerada em crise econômica. Na época, a RPC tinha, na realidade, uma economia artificialmente mantida em um nível muito inferior a sua capacidade produtiva real, especialmente na agricultura e nos setores industriais leves, sob a pressão da utopia primitivista de Mao e das prioridades de defesa nacional.

2. 

O sistema econômico instalado por Mao durante a Revolução Cultural tinha uma estrutura muito diferente do complexo de planejamento central da União Soviética. Anderson destaca esse contraste, mas a análise que faz dele é equivocada e excessivamente positiva. Embora, como observa, os planejadores centrais em Pequim fixassem os preços de apenas 1% dos itens sujeitos às diretrizes da Gosplan em Moscou, isso não significa que houvesse um sistema de trocas mercantis mais vivo na China. Do mesmo modo, quando Mao implementou a descentralização econômica, isso não deixou aos “governos locais maior margem de iniciativa”[a]. A realidade é que, após o caótico período inicial na Revolução Cultural, mais ou menos entre 1966 e 1969, o impulso básico da política econômica na China foi um esforço sustentado para conter trocas de mercado de qualquer tipo e reprimir tanto quanto possível todo tipo de atividade comercial. As “Escolas de Quadros Sete de Maio”, instituições protomilitares para funcionários do Estado, foram a inovação típica da época. Elas derivaram em parte das Comunas Populares, datadas do período do Grande Salto para a Frente, e foram projetadas para se enquadrar em uma estrutura na qual todas as unidades de trabalho e todas as províncias do país alcançariam a autossuficiência local completa e entregariam às autoridades centrais toda a produção excedente, que serviria a projetos nacionais (em vez da redistribuição para consumo nacional, como na URSS e no Bloco do Leste). Variados cupons para cotas de suprimentos rotineiros eram distribuídos aos residentes urbanos pelos governos locais, sem circulação através das fronteiras provinciais ou mesmo dos limites dos municípios.

Mesmo em projetos especiais de larga escala patrocinados pelo governo central, como campos petrolíferos recém-explorados, os funcionários eram encorajados (ou obrigados) a se organizar em unidades de estilo militar para, além de cumprir suas atribuições formais de trabalho, produzir grãos e hortaliças, a fim de alcançar a autossuficiência e reduzir a dependência de trocas comerciais além dos limites regionais. O mesmo aconteceu com o Exército Popular de Libertação (EPL). Em seus regimentos, oficiais e soldados eram convocados a instalar fazendas ou mesmo pequenas plantas industriais para total autossuficiência em suprimentos. Na zona rural, os camponeses – todos pertencentes às Comunas Populares locais a essa altura – recebiam pequenas parcelas de “terra para automanutenção” (ziliudi), nas quais podiam plantar hortaliças ou criar um pequeno número de galinhas, cabras ou porcos. Os produtos cultivados ou os animais criados em tais lotes eram, no entanto, considerados potenciais “germens do capitalismo” caso excedessem o consumo de subsistência e entrassem no mercado, um perigo a ser enfrentado com atenção. Os mercados rurais regulares, uma forma vibrante de atividade econômica local ao longo da história da China, não puderam ser totalmente suprimidos; ainda operavam em graus variados nas províncias durante a Revolução Cultural, mas em condições recessivas em razão da falta tanto de vida comercial em geral como do comércio de longa distância entre as províncias.

O controle dessa ordem econômica pelo governo central era duplo. Do lado burocrático, certos órgãos do governo mantidos dos tempos pré-Revolução Cultural continuaram com o planejamento central, de acordo com o qual as cotas para “excedentes” agrícolas e lucros industriais eram arbitrariamente determinadas e extraídas. Os fundos para o próximo ciclo da produção eram então canalizados de volta para os governos locais e as empresas industriais por meio de ferramentas orçamentárias. A tomada de decisões, porém, estava ao mesmo tempo sujeita a todo tipo de capricho político e ideológico. O antigo sistema, embora ainda em funcionamento, era considerado suspeito e tornou-se semiparalisado, deixando as atividades econômicas suscetíveis à manipulação por facções, especialmente quando os produtos não eram insumos de necessidade imediata para as indústrias pesadas estratégicas. As metas de produção eram estabelecidas de forma tão errática que às vezes uma súbita escassez de determinados produtos tinha de ser amenizada por meio de uma “campanha” de produção visando alcançar a demanda real. Esses casos incluíam lavatórios para áreas sem água encanada ou canos de chaminés antes do inverno. A descrição que Anderson faz do panorama sombrio que confrontava a liderança soviética quando Brejniev enfim expirou poderia ser aplicada, ponto a ponto, aos principais setores industriais da China no momento em que Mao faleceu: “A produtividade do trabalho estagnou; a relação capital/produto piorou; o maquinário obsoleto não foi transformado em sucata; as novas tecnologias de informação não foram assimiladas”[b]. A mistura de imposição central e autossuficiência local no nível de subsistência criou uma estrutura incoerente, distinta de qualquer forma de comunismo já imaginada.

3.

Em abril de 1976, numa reviravolta do entusiasmo generalizado de 1966, jovens desiludidos foram à praça da Paz Celestial protestar contra o centro de poder político que se agrupara em torno de Mao. Grandes multidões se reuniram lá, cantaram, proferiram e ouviram discursos e afixaram cartazes políticos no Monumento aos Heróis do Povo – condenando abertamente o Bando dos Quatro, liderado pela esposa de Mao, Jiang Qing, lamentando a morte de Zhou Enlai e expressando apoio a um aliado dele, Deng Xiaoping. Mao não poderia deixar isso passar despercebido e despachou Deng, que ele mesmo havia convocado de volta do exílio interno para ajudar a administrar a economia. Pouco depois, fez de Hua Guofeng, um insípido funcionário de nível intermediário do partido, seu sucessor. Então, um mês após a morte de Mao, em setembro de 1976, um golpe militar derrubou o Bando dos Quatro, e a Revolução Cultural acabou.

Esses eventos condicionaram a forma como o Partido lidou com a imagem de Mao depois de sua morte. Com o fim da Revolução Cultural, viu-se um esforço concertado, no discurso oficial, para separar Mao do Bando dos Quatro. Para esse fim, Hua, como seu sucessor designado, trabalhou em estreita colaboração com a Velha Guarda do Partido, que ficou conhecida como os “Oito Imortais” no fim da década de 1980. Os dois lados também concordaram que era hora de o partido transferir suas prioridades da luta de classes para as tarefas de modernização econômica. A insistência de Hua em manter o culto de Mao, no entanto, frustrou as exigências dos Anciãos. A mudança veio no fim de 1978, quando Chen Yun, um proeminente Ancião, lançou um ataque contra Hua, prolongando para cinco semanas uma conferência de trabalho marcada para durar quinze dias. Com apoio popular, a reunião conseguiu reverter o veredito oficial sobre o protesto de 1976 na praça da Paz Celestial, abrindo caminho para o retorno total de Deng ao poder. Este proferiu um discurso de encerramento da conferência que incluiu dois pronunciamentos impressionantes. Declarou, em primeiro lugar, que a democracia era imperativa para a campanha de libertação do pensamento em curso a fim de orientar o caminho da China para a modernização e, depois, que a unidade ecumênica deveria ter prioridade em relação aos esforços para esclarecer os erros do passado [3]. Não havia necessidade de examinar, por exemplo, o histórico de Mao como líder. Para Deng, ambas as afirmações eram movimentos táticos, e não posições baseadas em princípios, como a década de 1980 mostraria. Algumas semanas após o encontro, estabeleceram-se relações diplomáticas com os Estados Unidos e, em janeiro de 1979, Deng embarcou em sua histórica visita ao país. No mês seguinte, a China lançou um ataque surpresa ao Vietnã, em uma dispendiosa guerra de fronteira. Enquanto isso, a polícia isolou o Muro da Democracia e cercou seus ativistas. Wei Jingsheng, o principal dissidente a pedir a democratização e advertir às pessoas que Deng era um “novo ditador”, foi condenado a quinze anos de prisão com base em acusações forjadas. No fim de março, um dia depois de Wei ser levado, o Partido tornou públicos quatro “princípios cardeais” – a liderança do partido, a orientação pelo pensamento marxista-leninista-maoista, a ditadura do proletariado e o socialismo – cujo conteúdo não podia ser questionado nem discutido e que foram usados para punir qualquer dissidência política.

Foi após essa sequência de eventos que Deng e seus colegas prepararam os julgamentos públicos para punir exemplarmente Jiang Qing e seus aliados e a resolução oficial do PCC sobre Mao e a Revolução Cultural, ambos entre 1980 e 1981. A essa altura, a maioria das massas, ainda sob estrita vigilância ideológica, aceitara – passiva ou ativamente – a separação discursiva entre Mao e seus subordinados, que era central para a retrospectiva do Partido sobre o Grande Timoneiro. Anderson contrasta a resolução formal sobre Mao com o discurso secreto de Khruschov condenando Stálin. A pobreza deste último, porém, não é prova da excelência do primeiro. É verdade, como Anderson diz, que a resolução de 1981 aceitou a responsabilidade coletiva do partido pela Revolução Cultural, mas o fez apenas em termos bastante vagos. Não menos vaga foi a conclusão arbitrária de que Mao era 70% grande revolucionário e 30% déspota errático. O relatório foi principalmente um produto da realpolitik interna, que bloqueou qualquer reflexão crítica real sobre a memória de Mao ou sobre o partido sob sua liderança.

Juntando as peças, é mais correto dizer que Deng e seus camaradas fizeram uma sequência clássica de movimentos para consolidar um controle inicialmente precário do poder que haviam reconquistado: entre 1976 e 1978, reavivar a repulsa popular às tiranias dos últimos anos da Revolução Cultural para poder voltar ao centro; entre 1978 e 1979, eliminar as iniciativas perigosas que demandavam democracia real e desafiavam a própria legitimidade de Deng; em 1979, exaltar o apoio patriótico inventando um perigo vindo do Vietnã; e, finalmente, conclamar o país a “unir-se e olhar para a frente” (tuanjie yizhi xiang qian kan) – um lema oficial expressamente voltado contra aqueles que acreditavam que a memória importava, mais tarde motivo de piada popular no trocadilho xiang qian kan (“procurar dinheiro”).

III. PRAÇA DA PAZ CELESTIAL: ANTES E DEPOIS

1.

Anderson insinua que foi a visão clara e a vontade firme dos Anciãos que, bem ou mal, estabeleceram as diretrizes para a Era da Reforma. Será, porém, que os acontecimentos na China na década de 1980 foram moldados principalmente pelos veteranos de guerra da revolução original, que não tinham perdido suas habilidades estratégicas nem a autoconfiança? Se sim, até que ponto essas habilidades foram usadas? Uma maneira de ler o texto de Anderson levaria a crer que a repressão sangrenta de manifestantes pacíficos em 1989 foi um acontecimento inevitável, embora lamentável, na saga de reformas bem-sucedidas, mesmo que Deng infelizmente tenha mudado de rumo três anos depois, descartando qualquer distinção entre capitalismo e socialismo em 1992 – o lado negativo do regime do PCC pôde ser reconhecido mais prontamente depois disso. Contra tal visão, nossas primeiras questões serão as seguintes: qual foi o caráter político do caminho de reformas de Deng na década de 1980? Se ainda estava apegado ao socialismo à época, como ele pôde dar uma guinada com tanta ligeireza em 1992?

Vimos que a principal força a impulsionar as mudanças após a morte de Mao foi uma reação contra a Revolução Cultural. No entanto, isso nunca foi apresentado como uma revolta contra o socialismo. Tanto no discurso oficial como no entendimento popular, a Revolução Cultural foi tratada como o socialismo que deu errado. Do ponto de vista econômico, a revolução socialista não significava manter as pessoas na pobreza. Do ponto de vista político, ela prometia a emancipação em vez da tirania demagógica exercida pelo “Bando dos Quatro”. Em um movimento pela “libertação do pensamento”, os apelos à democracia socialista na imprensa ao mesmo tempo encorajaram ativistas e beneficiaram Deng em suas lutas pelo poder dentro do Partido. Uma vez que o ambiente internacional já não era tão hostil à China como nas décadas de 1950 e 1960, e quadros do partido – ainda não corrompidos – seguiam capazes de implementar diretivas, essa deveria ter sido a oportunidade ideal para o PCC experimentar um socialismo genuíno, com apoio popular e toda uma geração de jovens ansiosos por participar.

Se a liderança do PCC estivesse realmente enraizada nas tradições revolucionárias, teria reconhecido a necessidade de um debate aberto sobre as lições a serem tiradas da Revolução Cultural e sobre o propósito essencial de uma revolução socialista. Teria sido ávida por encontrar maneiras de garantir às massas o acesso à participação política institucionalizada. Não teria explorado as memórias do caos da Guarda Vermelha para censurar todo tipo de movimento social vindo de baixo. Infelizmente, fracassou em todos esses testes. Com uma popularidade muito maior e um risco muito menor de crise política no início da Era da Reforma do que tinha Gorbatchov em 1986, Deng Xiaoping e seus companheiros anciãos estavam determinados a não deixar que as esperanças de reformas políticas ameaçassem seu próprio poder – se necessário, revertendo as mudanças para melhor que eles próprios haviam introduzido, ou permitido, a fim de preservá-lo. A habilidade estratégica e a confiança que mostraram serviram aos interesses do partido como um detentor do poder, e não aos das pessoas e da sociedade a que a revolução original propunha servir.

Os primeiros sinais disso vieram cedo. O protesto popular de 1976 foi decisivo para facilitar o retorno de Deng ao poder após a morte de Mao. Logo após sua restauração oficial, porém, Deng fechou o Muro da Democracia, que se mostrou vivo demais para o seu gosto. Em 1982, a Constituição foi revisada para eliminar dispositivos que garantissem às massas o direito de iniciar debates públicos e pregar jornais-murais (dazibao) em espaços públicos, supostamente à luz das terríveis lições da Revolução Cultural. Essas medidas não foram implementadas com determinação até o verão de 1989, mas já estava claro que a liderança do Partido não tinha interesse em diferenciar a violência da Guarda Vermelha nos primeiros anos da Revolução Cultural das garantias do direito das massas à autoexpressão política.

No entanto, o discurso democrático permaneceu importante para Deng em sua tentativa de consolidar o poder. Em junho de 1979, Hua Guofeng – no papel, presidente do Partido na época – declarou no Relatório de Trabalho do Governo Central à II Reunião do V Congresso Nacional do Povo:

“Para garantir que, no futuro, não haja mais brechas no sistema político de nosso país que possam ser exploradas por conspiradores como Lin Biao e o Bando dos Quatro, é urgente fortalecer a democracia socialista e o sistema legal socialista” [6].

Hua acrescentou:

A democracia socialista ou democracia popular significa que o povo como um todo, desfrutando de várias formas de propriedade e usufruto dos meios de produção, tem o direito primordial de administrar o Estado. Este é o princípio político inabalável de um sistema socialista. Trair esse princípio fundamental é destruir a essência de um Estado socialista.[7]

Nessa reunião, foi aprovada uma nova legislação eleitoral que regia a representação nos Congressos do Povo locais, para os quais foram realizadas novas eleições em 1980. Uma onda de campanhas eleitorais varreu os principais campi universitários nas grandes cidades, e logo candidatos autoproclamados, opondo-se aos candidatos do Partido apesar da constante obstrução, ganharam assentos distritais em Xangai e Pequim. Na esfera teórica, vários quadros intelectuais do PCC e acadêmicos começaram a discutir a relevância do conceito de alienação de Marx sob o socialismo, introduzindo temas clássicos do humanismo de sua juventude no contexto chinês. O ponto de referência imediato deles era claramente a Revolução Cultural, e sua pergunta subjacente era o propósito moral de uma revolução socialista. Com o apoio de alguns funcionários do alto escalão, artigos sobre esses temas foram publicados durante dois ou três anos no Renmin Ribao [Diário do Povo] e no Guangming Ribao [Diário Claridade]. Esse desenvolvimento, no entanto, foi o sinal para uma reação oficial. Aumentando o alarme, os mesmos cães de guarda do Partido que haviam insistido com sucesso na abertura econômica a investimentos ocidentais, enfrentando a oposição de Hua Guofeng, trouxeram Deng para seu lado, publicando nos principais jornais do PCC ataques violentos aos intelectuais. Em 1983, uma campanha contra-“liberal” evoluiu para uma repressão policial mais ampla à “poluição espiritual”, conspurcando deliberadamente as concepções liberais de debate como vícios sociais. Os principais participantes da discussão sobre a alienação foram afastados de suas posições-chave na propaganda. Depois disso, as pesquisas teóricas coletivas – algo de que Deng nunca gostou – tornaram-se muito mais difíceis [8].

2.

O assunto da sucessão tornou-se outro sinal da direção em que o Partido estava se movendo. Ao contrário da impressão dada por Anderson, o PCC debateu-se desajeitadamente com essa questão. Desde a morte de Lin Biao em 1971, houve um crescente entendimento – acompanhado de frustração – de que Mao havia mergulhado a China em uma crise como consequência de sua incapacidade de encontrar um sucessor confiável. Depois que Mao morreu, tornou-se um consenso que a raiz do problema foi sua rendição a um culto à personalidade, que culminou na Revolução Cultural. No início da Era da Reforma, portanto, a ênfase estava na liderança coletiva no Partido e no Estado de direito em geral. A liderança máxima do PCC e do Estado foi simplificada, e os limites de idade para a aposentadoria, fixados para várias categorias de postos oficiais, com esquemas de garantia de benefícios para reduzir a resistência à mudança.

Desde a morte de Mao até 1989, porém, os Anciãos removeram três líderes máximos em treze anos: Hua Guofeng (1976-1981), Hu Yaobang (1981-1987) e Zhao Ziyang (1987-1989). Hua renunciou sob pressão popular e interna, uma partida amplamente acolhida pela sociedade chinesa. Se sua destituição representou o adeus do Partido a seu passado, as saídas de Hu e Zhao demonstraram sua incerteza e dificuldade para seguir em frente. O procedimento de sucessão regularizado que agora estabelece novos recrutamentos uma vez a cada década só foi estabelecido bem depois do massacre da praça da Paz Celestial em 1989. Seu significado político deve ser compreendido em conexão com as lutas da década de 1980.

Quando Hua Guofeng sucedeu Mao como líder máximo, ele ocupou três cargos. Era simultaneamente o presidente do Partido e da Comissão Militar Central do Partido, além de primeiro-ministro do país. Cinco anos depois, ele foi deposto por uma ação conjunta dos Anciãos e seus aliados mais jovens, sustentados por apoio popular. Depois que Hua deixou o cargo, o Partido mudou o título de seu cargo máximo de “presidente” para “secretário-geral”, e o Estado tinha agora um presidente e um primeiro-ministro. Os quatro cargos máximos no Partido, no Estado e no Exército também foram atribuídos a pessoas diferentes. Nenhum dos Anciãos assumiu o cargo de secretário-geral. Duas figuras relativamente mais jovens foram promovidas. Hu Yaobang tornou-se secretário-geral do Partido, e Zhao Ziyang, primeiro-ministro. Porém, depois da saída de Hua, Deng ocupou – de modo decisivo –, durante a década de 1980, o posto de presidente da Comissão Militar Central, o que lhe garantia a palavra final sobre questões controversas.

Uma vez que o poder estava assegurado em suas mãos, no entanto, os Anciãos se tornaram menos interessados numa liderança coletiva procedimentalmente condicionada. Do ponto de vista de Deng, Hu Yaobang fora indulgente sem necessidade – de modo até irritante – com os defensores do humanismo e os estudantes que exigiam direitos democráticos. Em 1987, Hu sofreu críticas intensas por “violar o princípio de liderança coletiva do Partido” e foi forçado a renunciar. No entanto, sua renúncia foi “aceita” sem qualquer reunião do Comitê Central, o que era exigido pela Constituição do PCC. As mensagens contraditórias do episódio revelaram tanto a determinação dos Anciãos de não perder o controle do poder político como a pressão persistente por reformas políticas às quais eles – especialmente Deng – se sentiam obrigados a prestar atenção.

Na crise do verão de 1989, os Anciãos mudaram de direção novamente. Após a repressão sangrenta do protesto popular liderado por estudantes, Zhao Ziyang, que havia sido secretário-geral por apenas dois anos, foi destituído de todos os seus cargos por “rachar” o partido, embora não houvesse maioria contra ele em seu Comitê Permanente nem o Comitê Central tivesse votado por isso – o “princípio da liderança coletiva” agora significava apenas a vontade dos Anciãos. Jiang Zemin, secretário do Partido em Xangai que demonstrara disciplina rígida ao fechar uma revista liberal dois meses antes, foi convocado a Pequim para se tornar o novo secretário-geral, e o secretário do Partido no Tibete, Hu Jintao, que tinha reprimido protestos na região em março de 1989, foi designado por Deng como o futuro sucessor de Jiang. Esses dois formaram a base para os procedimentos de sucessão eventualmente regularizados dos vinte anos seguintes. Além disso, cinco meses após o massacre da praça da Paz Celestial, Deng inesperadamente transferiu o título de presidente da Comissão Militar Central para Jiang, embora ninguém realmente acreditasse que este pudesse ter poder supremo sobre o Exército enquanto Deng estivesse vivo. Quatro anos depois, quando outro Ancião se aposentou como presidente da República Popular, Deng conseguiu colocar Jiang nesse cargo também. A regularização da sucessão foi, assim, acompanhada de uma recentralização do poder em detrimento até mesmo da liderança coletiva formal. O chefe do Partido passou a ser simultaneamente chefe de Estado e comandante militar supremo. Isso foi mantido nos últimos 25 anos (Jiang Zemin, 1989-2002; Hu Jintao, 2002-2012; e Xi Jinping, desde 2012).

Esses arranjos não funcionaram perfeitamente. A base da transferência relativamente suave de poder de Jiang para Hu foi a permanência da imagem póstuma de determinação autocrática de Deng, estabelecida firmemente pelo massacre da praça da Paz Celestial. No entanto, o caso Bo Xilai, em 2012, mostrou quão frágeis as convenções que se seguiram poderiam ser, quando os fortes Anciãos não mais existiam e as lutas de facções dentro do partido foram corrompidas por interesses escusos.

3.

Em retrospecto, a conversão política de Deng ao conservadorismo na década de 1980 é clara. Na época, porém, quase todas as medidas de reforma econômica foram acompanhadas por um discurso de liberalização. Como resultado, quando o crescimento acelerou, o afastamento do Partido em relação às reformas políticas iniciais ficou pouco nítido. Em outras palavras, enquanto a economia estivesse indo bem, a tensão entre liberalização econômica e estagnação política ficaria oculta da opinião pública. Ela, porém, se aguçou tão logo a economia piorou, em 1988, contribuindo diretamente para os protestos da praça da Paz Celestial no ano seguinte. O ponto central subjacente à contradição entre as duas direções era a questão dos custos – quem deveria arcar com o ônus econômico da reforma e quem deveria decidir sobre quem esse fardo recairia? Os custos sociais e ambientais já estavam lá desde o começo, embora as pessoas tenham dado pouca atenção a eles.

Quando a reforma econômica inicial foi deflagrada, o Partido-Estado proclamou uma mudança da “luta de classes” para a “construção econômica socialista”, com o afrouxamento dos controles no campo, concedendo aos camponeses maior liberdade econômica. Essas medidas foram muito bem recebidas. No entanto, a ideia básica por trás delas não era uma inovação. Nos primeiros dias da RPC, elas assumiram a forma de isenções fiscais e de aluguéis, para ajudar o campo a se recuperar dos estragos da guerra. No início da década de 1960, foram tomadas medidas para fechar as feridas do Grande Salto para a Frente, libertando os camponeses, em certa medida, do poder coletivo das Comunas Populares. Todas as vezes, o relaxamento dos controles fez maravilhas, e isso aconteceu novamente no início da década de 1980. O novo “sistema de responsabilidade familiar” visava à recuperação, não à modernização. O que o tornou possível foi o baixo nível de desenvolvimento da China e a liberação de energias camponesas com raízes na sociedade agrária que precedeu a Revolução. Como Anderson observa, quando a Era da Reforma começou, 70% da população ainda era rural, um contraste dramático com a URSS de 1986. Nenhuma opção remotamente similar estava à disposição de Gorbatchov.

Na forma como desmantelou as Comunas Populares, no entanto, a reforma rural do início da década de 1980 prejudicou as ligações entre a revolução original e o campo. É verdade que as Comunas haviam sufocado o trabalho e a vida do campesinato. Ao mesmo tempo, porém, por mais de duas décadas, desde o fim dos anos 1950, tornaram-se uma instituição social abrangente, que fornecia serviços públicos – educação básica por professores de aldeias e assistência médica por “médicos descalços” – em uma estrutura cooperativa. Elas também eram o proprietário nominal da terra coletiva. O “sistema de responsabilidade familiar” anulou a função da Comuna como organizadora da produção agrícola, transformando a família camponesa na unidade básica da produção. O resultado econômico foi tão encorajador que se permitiu à Comuna desaparecer em 19841985. As sedes dos coletivos em todo o país foram transformadas em governos de nível local que não tinham fundos para administrar sistemas escolares adequados nem redes de saúde nas aldeias. Desde aquela época, os serviços públicos no campo não retornaram aos níveis relativos de provisão de que desfrutavam em comparação com as cidades. A mudança também deixou a propriedade rural em situação pantanosa. A terra, hoje, em muitos lugares, embora não em toda parte, ainda é propriedade “coletiva” em teoria. Na realidade, porém, é administrada por agências do Estado em nível do povoado ou da aldeia, deixando os camponeses à mercê dos funcionários locais sempre que surgem disputas por terra com outros produtores.

Os custos sociais da reforma rural, em termos de piora dos serviços públicos e títulos de terra precários, não se tornaram totalmente aparentes até que algum tempo se passasse. Ainda assim, a falta de atenção concedida a eles, retrospectivamente, é surpreendente, dado o envolvimento ativo de muitos intelectuais nos processos de formulação das políticas do período. Essas pessoas faziam parte da onda geral de “libertação do pensamento” na década de 1980, mas tinham pouco interesse em debates sobre humanismo ou alienação; em vez disso, estudaram energicamente as teorias econômicas e políticas ocidentais para aplicação na China. Ambiciosos e confiantes, eles pressionaram pela mercantilização da economia chinesa, quase sempre com o apoio de Deng Xiaoping e Zhao Ziyang no combate com os antigos ideólogos do Partido. Para eles, a reforma política era um meio de facilitar o caminho para a reforma econômica, que era a prioridade real. O que defendiam era uma espécie de “desenvolvimentismo com características chinesas”. Não podiam dispersar muita atenção com questões de custos sociais.

As mesmas atitudes moldaram a reforma industrial urbana. Experimentos com o objetivo de aumentar a produtividade industrial começaram no início da década de 1980. Nas empresas estatais, os gerentes recebiam maior liberdade para tomar decisões sobre a produção quando as metas planejadas eram cumpridas, vendendo os produtos extras a preços de mercado. Os ministérios cooperaram para criar um sistema tributário que substituísse a “extração de lucros” das empresas como ocorria sob a economia planejada. A produção industrial cresceu rapidamente, mas também a corrupção, à medida que gerentes e funcionários exploravam a diferença entre os preços administrados e os preços de mercado para produtos dentro da cota e acima dela em mercados recém-desregulados. Em todos esses experimentos, os habitantes urbanos continuaram protegidos pelos baixos preços dos bens domésticos. Para Zhao Ziyang, que como primeiro-ministro presidiu o programa de reforma, o objetivo era garantir que as empresas industriais se tornassem agentes econômicos não sujeitos a decisões políticas em suas atividades produtivas diárias e, ao mesmo tempo, simplificar a circulação de bens industriais e manter sob controle o mercado paralelo para eles. O Banco Central aumentou a oferta de moeda para facilitar o crescimento das atividades comerciais, mas os bancos estatais foram deixados em dificuldades, sem saber como agir em meio a essas mudanças.

Em 1986, presumivelmente com a aprovação de Deng, Zhao elaborou um projeto de reforma política para acelerar a reforma econômica. Embora Hu Yaobang ainda fosse o secretário-geral do Partido e por toda uma década tivesse sido uma figura proeminente na defesa da reforma política, ele não foi convidado a participar do processo de redação. A proposta não fazia menção aos direitos das massas de participar da política e solenemente reiterou os “quatro princípios cardeais” de Deng. O objetivo do comunicado era duplo: diferenciar a administração política da administração econômica das empresas industriais e diferenciar as atividades políticas do Partido da administração civil nos governos locais [6]. A proposta era em si mesma crível e muito necessária. Sua principal preocupação, no entanto, era aumentar a independência das estatais como empresas solventes. A reforma política foi mais uma vez reduzida a um mero meio para fins econômicos: a posição dos trabalhadores em empresas pertencentes a um Estado socialista foi ignorada. Zhao não prestou muita atenção à reforma eleitoral. Deng pensava que o sucesso econômico lhe emprestaria crédito suficiente para rejeitar as demandas por mais mudanças políticas. Os dois cooperaram nessa fase, pois ambos precisavam avançar com reformas urbanas, ainda que por razões ligeiramente diferentes. Quando forçou Hu Yaobang a renunciar no início de 1987, Deng promoveu Zhao para sucedê-lo. Em seu primeiro grande discurso como secretário-geral, Zhao proclamou que a nova linha do Partido tinha “um centro” (desenvolver a economia) e “dois pontos básicos” (abertura + reforma e os quatro princípios cardeais). Deng ficou satisfeito com essa ênfase.

Sob a nova liderança e sua concepção burocraticamente minimalista de “reforma política”, foi dada rápida tramitação a uma lei de falências e a uma série de regulamentações que reduziam o ônus econômico sobre as estatais ao alterar a segurança de emprego vitalício em uma economia planejada para contratos de emprego em um mercado de trabalho. A sensação de insegurança que se seguiu nos centros urbanos mais populosos foi intensificada pela abolição dos controles de preços de uma gama de bens que, numa economia já superaquecida, elevou a taxa de inflação a quase 20%, provocando pânico generalizado e saques de poupanças dos bancos públicos. O governo de Zhao queria convencer o partido e o público de que o ajuste de preços de 1988 era urgente e necessário. Ao olhar para os benefícios que as mudanças trariam, porém, deu-se pouca atenção a seus custos ou sobre quem recairiam os ônus. A população urbana que sofreu o impacto imediato tinha todos os motivos para sentir que lhe foi negada qualquer voz política no processo de reforma. A crise econômica de 1988 se tornaria um fator importante no apreço popular pelos protestos na praça da Paz Celestial um ano mais tarde.

Uma vez que Deng tinha consolidado o poder coletivo dos Anciãos, praticamente não havia meios de vazão para a expressão de sentimentos populares. Em 1987, quando o segundo turno de eleições locais se encerrou, seus regulamentos foram revistos e uma diretriz especial foi promulgada para garantir que apenas candidatos indicados pelo Partido aparecessem nas cédulas. Foi essa alteração que havia desencadeado as manifestações estudantis do fim de 1986, as quais levaram à deposição de Hu Yaobang por ter sido muito brando com elas. Ainda assim, os estudantes da Universidade de Pequim conseguiram que seu candidato fosse eleito para o distrito de Haidian no fim de 1987, contando com a coleta de assinaturas de porta em porta mesmo tendo enfrentado pressão do regime muito maior que sete anos antes. Esse foi o pano de fundo, raramente mencionado pelos comentaristas, para a forte reação universitária diante da morte de Hu.

À medida que a atmosfera política se alterou, as elites favoráveis a reformas ainda resistiram à mudança de direção, e uma sociedade havia muito politizada ficou antecipadamente agitada. Deng permaneceu com seu ponto de vista essencialmente instrumental: enquanto pudesse seguir seu curso econômico, preferia não compartilhar o poder com as massas nem discutir muito com os autodesignados guardiões da ortodoxia, remanescentes de décadas anteriores dentro do Partido. As sementes da posterior recusa de Deng em debater sobre o sr. S. (socialismo) ou o sr. C. (capitalismo) já estavam sendo plantadas. A partir de vários livros de memórias, pode-se ver que os intelectuais e quadros orientados teoricamente estavam ficando desesperados no fim da década de 1980, quando a elite ainda celebrava progressos graduais. No início de 1989, as massas urbanas em geral, e os estudantes universitários em particular, estavam perdendo a paciência com os autoenganos oficiais. Eles estavam frustrados com uma era de reforma que parecia não mais oferecer um futuro promissor, fosse para eles pessoalmente, fosse para o país como um todo. E sua voz foi resolutamente excluída.

4.

Vinte e cinco anos depois, o significado histórico dos eventos na praça da Paz Celestial ainda não foi totalmente compreendido. Anderson identifica três forças interconectadas em ação quando a revolta eclodiu: o idealismo democrático dos estudantes, apoiado pela solidariedade dos cidadãos comuns; a inclinação liberal de Zhao Ziyang e seus conselheiros intelectuais, atraídos por modelos ocidentais; e os Anciãos. Em sua versão, o embate evoluiu para um confronto entre a última e as outras duas. Porém, ao esmagar uma revolta popular pacífica, argumenta Anderson, Deng e seus aliados perderam a legitimidade de que desfrutavam como fundadores da RPC e restauradores da ordem após a Revolução Cultural. Depois disso, gastas as “credenciais ideológicas” antes conquistadas, o único substituto para o qual eles poderiam se voltar era o crescimento econômico. Na realidade, como a análise anterior indica, a repressão de 1989 foi um resultado lógico da estratégia de Deng ao longo da década anterior, que é a linha a unir os pontos dispersos dos anos 1980. O principal significado do evento da praça da Paz Celestial, eu diria, é o seguinte: ele aliviou o peso da dívida que Deng tinha junto ao povo desde 1976. Agora ele poderia prosseguir com um programa de reformas que não poria em questão a autoridade do partido – especialmente no terreno dos princípios socialistas. O massacre da praça da Paz Celestial, portanto, abriu o caminho para a integração da China ao sistema capitalista global.

Quando Hu Yaobang morreu, em meados de abril de 1989, estudantes em Pequim começaram a marchar para a praça. Seguiram-se brigas com a polícia e uma ocupação que virou a noite. Ainda assim, o maior impulso para uma colisão veio do próprio regime. Diante da expansão dos protestos estudantis após o funeral de Hu, em vez de minimizá-los, o Diário do Povo publicou um editorial duro em 26 de abril sob o título “Devemos nos opor resolutamente à turbulência”. Milhões ficaram chocados com seu tom ameaçador e sua linguagem, que lembravam os dos dias da Revolução Cultural. As piadas políticas se tornaram virais – sem a ajuda das mídias sociais de hoje – com pessoas comentando que o Bando dos Quatro fora libertado da prisão para ajudar a escrever o texto. O editorial provocou, no dia seguinte, o maior protesto popular de base da história da RPC, o que deixou claro que as massas tinham uma visão muito diferente sobre os perigos de uma reversão para “turbulências” ao estilo da Revolução Cultural e sublinhou o caráter ambíguo da legitimidade de que Deng e seus aliados Anciãos desfrutaram na década de 1980 por embarcarem em uma nova era de reforma.

A supressão militar da revolta popular pôs fim a um período moldado pelas reações à Revolução Cultural. A eleição democrática dos representantes do povo desapareceu completamente da agenda política. Dali em diante, qualquer um que ousasse concorrer a um lugar no Congresso do Povo como candidato independente era invariavelmente assediado ou perseguido. Deng e o Partido não pararam de falar em “reforma política” depois de 1989. Porém, não tendo mais de bancar a democracia socialista ou a política participativa, o lema encolheu para apenas dois significados: eleição para comitês de aldeias e capacidade administrativa do governo, incluindo às vezes disciplina partidária e eficiência.

Anderson, no entanto, está errado em pensar que, depois de 1989, o crescimento se tornou a única ideologia justificadora do PCC. O crescimento econômico deu conta de apenas metade da legitimidade necessária ao Partido. A outra metade veio de uma extensão do que se tornara uma palavra de ordem para Deng desde o evento da praça da Paz Celestial. O PCC explicaria incessantemente que o pré-requisito do desenvolvimento econômico era a “estabilidade” política contra uma suposta “turbulência” ao estilo da Revolução Cultural, expressa no protesto da praça. O sufocamento de manifestações políticas era o preço necessário ao governo caso se quisesse que ele promovesse crescimento econômico. “O pontochave é a estabilidade” tornou-se o refrão oficial – “manter a estabilidade a todo custo” e “eliminar os elementos de instabilidade no estágio embrionário” tornaramse diretivas permanentes. No novo século, esse imperativo foi institucionalizado com a consolidação de “órgãos para manutenção da estabilidade” (weiwen bangongshi) por meio do aparato estatal, com orçamentos e equipes amplamente aumentados, agora acompanhados por programas “antiterroristas” que visavam às regiões étnicas não Han.

Essa ideologia forneceu a justificativa mais conveniente para a “liberalização” nos últimos 25 anos. Toda vez que uma nova política econômica era introduzida, quaisquer que fossem os benefícios, os custos eram sempre lançados nas costas das massas sem rosto e do meio ambiente sem voz. Foi assim com as reformas na habitação, na educação, na saúde, nos direitos trabalhistas, no mercado de ações, entre muitas outras [12].

IV. O MILAGRE ECONÔMICO 

1. 

Na análise de Anderson, a Caravana pelo Sul de Deng, em 1992, aparece como o ponto crucial de ruptura, quando a China finalmente abandonou sua orientação socialista anterior e abraçou a corrente hegemônica do capitalismo mundial. Como observado anteriormente, porém, ao menos desde 1987 Deng já abraçava resolutamente o desenvolvimento econômico como a tarefa central do Partido. Para ele e para o PCC, o significado mais importante e duradouro do massacre da praça da Paz Celestial foi o cancelamento da necessidade de justificar posições políticas com o antigo discurso “socialista”, que costumava suscitar perguntas irritantes. O “socialismo” agora significava simplesmente que o Partido permaneceria no poder a todo custo e para sempre. Foi no rescaldo dos eventos da praça que se tornou possível para Deng propagar o lema “estabilidade acima de tudo” (wending yadao yiqie). 

Foi contra esse pano de fundo que Deng ordenou aos formuladores das políticas que deixassem de lado conversas fúteis sobre “S maiúsculo” e “C maiúsculo”. Para entender isso, é útil olhar novamente para a Rússia. A comparação que Anderson faz dos dois países termina nesse ponto, presumivelmente sob o argumento de que a União Soviética deixou de existir em 1991. No entanto, mesmo a Rússia póssoviética pode ter algo de importante para nos dizer sobre a China pós-maoista. A perestroika, é claro, privilegiou a reforma política em detrimento da econômica, enquanto na China a reforma econômica foi a prioridade o tempo todo, e a reforma política foi sacrificada em seu nome. O primeiro caminho levou, segundo a avaliação dominante, ao completo desastre; o segundo, a um sucesso espetacular. Medido pelo crescimento do PIB, o contraste é bastante válido. Há, porém, outro lado da história que geralmente é negligenciado. Nas duas sociedades, quem arcou com os custos da reforma? Na URSS, como a mudança política veio primeiro, assegurando ao menos a liberdade de expressão (e, até certo ponto, a de organização), com uma gama de opções nas urnas, foi difícil para o Estado abandonar todas as responsabilidades por bem-estar social. Mesmo depois do colapso da União Soviética e da celebração aberta do capitalismo por governantes e pela mídia, os Estados que lhe sucederam invariavelmente mantiveram – em alguma medida – programas públicos de educação e de saúde herdados do tempo da URSS. Em contraste, ao colocar a reforma econômica em primeiro lugar (e último), a liderança chinesa concentrou-se em reduzir os encargos do Estado, quebrando sem qualquer objeção as promessas morais e políticas da República Popular a suas classes trabalhadoras e à sociedade como um todo. Bem antes da inflação de 1988, numa época em que Deng cooperava amigavelmente com Zhao, o governo central já estava esboçando a legislação de falências e esquemas para privatização do trabalho e da moradia, sem se preocupar com a opinião popular. 

2. 

O referencial e o formato em quatro partes do ensaio de Anderson fazem com que a reforma econômica da China pareça uma história de sucesso contínuo nas últimas três décadas. O que resta encoberto é o difícil período pós-1989, quando o capital estrangeiro recuou em grande escala e o governo gastou enormes somas ano após ano para fazer lobby junto ao Congresso estadunidense por um status de “Nação Mais Favorecida” comercialmente. Uma interpretação analítica da ascensão econômica da China nos últimos vinte anos exige ir além dos parâmetros da pesquisa de Anderson. A seguir, esboçarei algumas das principais características do processo de reforma, tanto na frente industrial-urbana como no campo. Diante das dificuldades contínuas na reforma urbana e industrial após 1989, a mídia oficial do país passou quase uma década inteira denunciando como um obstáculo insuperável para melhorias na produtividade a “tigela de ferro para arroz” – emprego seguro e salário estável – dos trabalhadores das empresas estatais. Sob Jiang Zemin e Zhu Rongji, o emprego vitalício foi eliminado por demissões em massa e contratos por tempo determinado, sem pensões compensatórias, em um setor após o outro – manufatura, energia, construção –, deixando intocados apenas quadros do Partido e funcionários do governo (cujas fileiras se multiplicaram). Enormes parcelas da população urbana perderam seus empregos e salários, sem que o Estado sequer começasse a pensar em – quanto mais a entregar – uma rede mínima de seguridade social para eles. Foram mais de 20 milhões de demissões na década de 1990. Ao longo de trinta anos, uma geração inteira – ou duas – da classe trabalhadora da China foi vítima do processo de reforma. Para eles, o efeito líquido não foi melhor que o da “terapia de choque” na Rússia. 

E quanto às empresas estatais? Originalmente, elas eram conhecidas como “empresas públicas geridas pelo Estado” (quanmin suoyouzhi guoying qiye), frequentemente abreviadas como “empresas geridas pelo Estado” (guoying qiye). Teoricamente, elas pertenciam à coletividade abstrata de todos os cidadãos da República Popular, e o Estado só as administrava em nome do povo. Hoje em dia, são conhecidas simplesmente como empresas pertencentes ao Estado. Qualquer ligação com o povo, mesmo que nominal, foi cortada. Muitas das empresas restantes foram vendidas com grandes descontos para seus gerentes e especuladores, se não tão escandalosamente quanto fez Iéltsin na Rússia, ainda assim de forma escandalosa. O resultado raras vezes foi muito melhor quando a privatização não ocorreu. Em todo o país, megaprojetos são aprovados – barragens e usinas hidrelétricas mais que dobraram desde 1999, e a maior quilometragem de ferrovias de alta velocidade do mundo foi construída em menos de uma década – sem que se considerem os custos sociais nem haja quaisquer procedimentos que permitam ao público monitorar ou salvaguardar ativos, outrora mantidos em seu nome, mas agora apropriados pelo Estado. 

Independentemente da parcela da economia nacional que as empresas estatais continuem a representar, porém, o governo central sempre esteve ansioso por atrair investimentos estrangeiros a fim de manter a liquidez do capital. Anderson observa que o comércio exterior da China equivale a dois terços de seu PIB, uma proporção muito maior que a observada nos Estados Unidos ou no Japão. O que ele deixa de dizer é que as indústrias exportadoras, que formam o setor mais dinâmico da economia, têm sido esmagadoramente financiadas pelo capital privado, tanto nacional como estrangeiro. Porém, controlando a taxa de câmbio e o influxo monetário, o governo pode extrair fundos do enorme volume de exportações, por meio de suas funções protobancárias, para favorecer outros projetos. No novo século, a sede por investimento estrangeiro direto (IED) desencadeou uma onda frenética de ofertas públicas iniciais (IPOs) por parte de empresas chinesas, de Hong Kong a Nova York. Depois de um período no qual os fundos de capital privado (private equity) emergentes prestaram serviços financeiros às autoridades locais, todos os níveis de governo aprenderam a arte do momento. Hoje há mais de 360 grandes empresas estatais de investimento na China, todas criadas nos últimos anos, com uma média de mais de dez por província. Nessa financeirização do patrimônio público, a corrupção é endêmica. Em meio a tamanho turbilhão, de modo previsível, enormes projetos imobiliários e de infraestrutura foram o cenário dos dois maiores casos de corrupção a vir à tona até agora: o desvio de fundos de pensão, em 2006, pelo chefe do Partido em Xangai, Chen Liangyu, e um grupo de subordinados, e a prisão do ministro das Ferrovias, Liu Zhijun, em 2011, por uma gigantesca fraude na fiscalização dos sistemas ferroviários de alta velocidade do país. A campanha anticorrupção em curso, liderada por Xi Jinping, tem como alvo “tigres” ainda maiores no Partido. É de conhecimento comum que a corrupção é generalizada nos altos escalões. 

Hoje, as estatais não estão mais sobrecarregadas pelo dever de fornecer emprego vitalício aos trabalhadores, nem por quaisquer outros benefícios. Elas recrutam trabalhadores em contratos de curto prazo como qualquer empresa privada e não lhes pagam melhor. Durante vinte anos, os salários reais dos trabalhadores chineses ficaram estagnados, enquanto o governo permanecia impassível. Finalmente, uma nova Lei do Contrato de Trabalho entrou em vigor no início de 2008. Mais tarde, naquele ano, quando a crise financeira global viu o governo lançar enormes fundos para assegurar ou impulsionar grandes firmas, as pressões trabalhistas aumentaram e decretou-se um salário mínimo, cuja fiscalização foi deixada aos governos locais. Em nenhum lugar, no entanto, ele acompanhou a inflação subsequente. Com muitas das maiores estatais competindo agora em aquisições imobiliárias e construções especulativas – em 2010, todos os terrenos mais valiosos vendidos pelo governo municipal de Pequim foram para empresas pertencentes a grandes conglomerados estatais, cujos principais negócios são em mineração, tabaco, armamento etc. –, a terceirização da força de trabalho tornou-se rotina nessas empresas, com a subcontratação de mão de obra por meio de camadas e mais camadas de empregadores intermediários para reduzir seu custo. A ligação entre a indústria nacionalizada e os programas de proteção relativa da classe trabalhadora tornaram-se há tempos coisa do passado. 

3.

Será que os camponeses se saíram melhor que os operários? Anderson não pode ser acusado de subestimar a importância histórica do campesinato chinês, descrevendoo em perspectiva histórica como a “pedra angular da nação” e como a principal base social da Revolução Chinesa e principal beneficiário da Era da Reforma. No entanto, quando ele passa ao período pós-1989, suas reflexões sobre o destino do campo se tornam muito superficiais. Aqui, ao menos três desdobramentos exigem algum comentário, ainda que breve. 

Em primeiro lugar, se as TVEs (Empresas de Povoados e Aldeias) eram tão bem-sucedidas na década de 1980, por que foram abandonadas no fim da década de 1990? Foi apenas em razão da crescente influência da ideologia neoliberal na RPC? A realidade foi menos simples. Dois grandes acontecimentos selaram seu destino. Primeiro, uma mudança crucial no sistema tributário desobrigou o governo central de financiar as despesas administrativas das autoridades em níveis mais baixos: a presunção, a partir de então, era de que os governos locais gastariam dentro do limite dos impostos que pudessem arrecadar com a cobrança dos habitantes sob sua jurisdição. Ao mesmo tempo, os governantes e quadros locais passaram a ser julgados por seu desempenho na execução de políticas determinadas pelo centro, especialmente no planejamento familiar e no desenvolvimento econômico – após 1997, com critérios específicos por atração de investimentos externos (zhaoshang yin zi). É claro que não havia critérios equivalentes para educação ou saúde. Sem fiscalização democrática e em meio a uma completa falta de transparência, essas mudanças transformaram os órgãos administrativos locais em monstros gerenciais semicorporativos, que exploravam os habitantes com um número crescente de impostos e contribuições para alimentar sua própria expansão contínua. Gabinetes encarregados de sementes, fertilizantes, fornecimento de eletricidade, irrigação e controle de enchentes elevaram o preço de seus serviços a ponto de, em muitas províncias rurais do interior, a agricultura não poder mais fornecer o retorno mínimo necessário para apoiar o plantio de lavouras por camponeses, eliminando os ganhos anteriores do “sistema de responsabilidade por unidade familiar” no campo. Essa deterioração foi um grande golpe para as TVEs a partir da metade da década. Em geral, além disso, com exceção dos anos iniciais da Reforma, sempre que havia competição potencial por mercados ou recursos entre as empresas locais (TVEs) e as estatais convencionais, ou conflitos entre o campo e as grandes cidades, o governo invariavelmente agia contra as primeiras e protegia as segundas. As TVEs, portanto, sofreram uma aguda e dupla pressão: de governos locais predatórios, que buscavam maximizar a receita, e de grandes empresas estatais [1]. Foi em condições tão propícias que o culto neoliberal da privatização tomou conta, e a maioria das TVEs perdeu qualquer caráter coletivo, tornando-se empresas privadas – cada vez menos bem-sucedidas. 

Em segundo lugar, o que aconteceu no fim da década de 1990? A reforma tributária de 1994 aumentou substancialmente as receitas do governo central, dando-lhe, em princípio, maior alavancagem para equilibrar a economia. No entanto, a crise financeira do Leste Asiático de 1997-1998 reduziu drasticamente o investimento estrangeiro direto e o comércio exterior da China, ambos ainda muito dependentes dos vizinhos do Leste Asiático e de uma diáspora chinesa duramente atingida pelo contexto. O resultado foi que o país sofreu grave deflação por cinco anos (1997-2001). Diante de um mercado doméstico fragilizado e da persistência de fraco consumo, o governo poderia ter escolhido um caminho de crescimento mais lento e gradual para ajudar os camponeses a nutrir uma recuperação da agricultura de base doméstica e desenvolver mercados mais fortes no campo, aumentando a renda dos camponeses. (Também poderia ter tentado ajudar milhões de trabalhadores demitidos a abrir pequenos negócios nas cidades.) Em vez disso, acelerou a mercantilização de suas funções sociais e elevou os custos da produção agrícola, reduzindo o espaço para o desenvolvimento rural. As TVEs foram vendidas em bloco; as estatais foram reduzidas sob o lema de “manter as grandes, libertar as pequenas”; grandes vendas de terra foram deflagradas – também a partir de 1997 – para arrecadar dinheiro para os cofres do Estado; e programas de privatização do ensino superior e dos serviços de saúde entraram em vigor. Essencialmente, o governo optou por transferir a pressão da deflação para os ombros do campesinato, a um tremendo custo para o tecido das comunidades rurais. As condições desesperadoras no campo duraram quase uma década, até que – alarmado, ao cabo, com sinais de agitação rural – o governo aboliu todos os impostos e taxas agrícolas em 2005. 

Em terceiro lugar, acompanhando a pauperização das aldeias, e em decorrência disso, milhões e milhões de habitantes rurais se mudaram do campo para cidades litorâneas ou do interior como “trabalhadores migrantes” para alimentar de força de trabalho o setor exportador, cujo crescimento disparou após a entrada da China na Organização Mundial do Comércio (OMC), em 2002. Estimativas variam, mas não resta dúvida sobre a gigantesca magnitude geral dessa onda de fuga da terra. De acordo com dados oficiais, publicados pelo Departamento Nacional de Estatísticas e pelo Ministério de Recursos Humanos e Seguridade Social, em 2008 havia cerca de 225 milhões de trabalhadores com registro rural empregados em áreas urbanas, onde não têm direito a moradia, educação ou qualquer tipo de proteção social, em consequência do infame sistema hukou, que separa a população do campo e a das cidades. Cinco anos depois, o número havia crescido para mais de 270 milhões, dos quais mais da metade era formada de migrantes de longa distância, mesmo quando a mídia estava repleta de queixas de “escassez de mão de obra” nas empresas exportadoras. Tais migrantes não são oficialmente reconhecidos como membros da classe trabalhadora e estão à mercê de seus empregadores, que podem reter seus salários de vários meses. O capital e o Estado uniram forças para explorar uma enorme massa da humanidade, transformando centenas de milhões de camponeses em um subproletariado a uma velocidade e em uma escala sem precedentes na história mundial.

4.

“Duas revoluções” toca apenas brevemente, ao final, no panorama social da China no novo século. Sem dúvida, Anderson indica que grande parte desse cenário é sombrio, lembrando ao leitor – que de outro modo poderia ter esquecido – que ele falou, no início, de “mais de uma (amarga) ironia” na história de sucesso que distingue o comunismo chinês do russo. Embora cuidadosamente controlada no tom, sua avaliação geral da Era da Reforma, assim que cruza o limiar dos anos 1990, é certamente crítica. Tampouco há vestígio da euforia vazia, tão comum no Ocidente quanto na esquerda chinesa, celebrando “a Ascensão da China” como se fosse um substituto da emancipação humana em relação ao capital[2]. Mesmo assim, a meu ver, seu tratamento comparativo das revoluções russa e chinesa e do que aconteceu com elas permanece desequilibrado e é – como tentei mostrar – tacitamente favorável em demasia à China, à custa da Rússia. Em parte, isso se deve à estrutura assimétrica de sua comparação e a seus intervalos de tempo. A URSS durou 74 anos antes de cair. A RPC, hoje com 65 anos de idade, atingiu o ponto em que a União Soviética esteve em 1982, ainda no auge de seu poder internacional[15]. Quem pode ter certeza de onde estará a República Popular daqui a dez anos?

No entanto, talvez haja mais uma razão para o desequilíbrio. O PCC continua a descrever seu regime como socialista, mas com “características chinesas”. Se há tão poucas pessoas no Ocidente ainda dispostas a aceitar essa afirmação como verdadeira, permanece uma tentação à esquerda de dar a ela uma espécie de benefício da dúvida. “Rumo a que horizontes está se deslocando o gigantesco junco da RPC, isso é algo que resiste ao cálculo, ao menos quando se utilizam os astrolábios ora conhecidos”[b] – no julgamento suspenso de sua sentença final, devemos entender que Anderson compartilhe isso? Ele diz, em certo momento, que a pretensão do PCC ao socialismo funciona como uma profilaxia necessária contra os ainda fortes sentimentos revolucionários de injustiça e reivindicações por igualdade entre os cidadãos chineses, que o partido não pode ignorar completamente sob pena de perder sua legitimidade. Isso, porém, não é mais que o empenho em sentido negativo. Negligencia-se, aí, a função positiva desse discurso político para a elite dominante do país. Na Era da Reforma, a sociedade chinesa passou por um processo abrangente de mercantilização e comercialização – em todos os aspectos: da atividade econômica aos serviços sociais e à vida cultural – de que o capital financeiro, estatal ou estrangeiro, tem sido a força condutora. Agricultores, operários e até pequenos empreendedores têm muito pouco poder para proteger seus próprios interesses diante deles. E mesmo que tentem fazê-lo, são mais frequentemente confrontados por representantes do Estado – funcionários do governo, quadros partidários, patrulhas locais (chengguan), policiais e, em casos mais sérios, as Forças Armadas – que por representantes imediatos do capital. Essas instâncias burocráticas agem em nome não do capitalismo, mas do socialismo – ou de sua lustrosa forma modernizada, uma “sociedade harmoniosa”. Se aldeões forem despejados de suas casas por barragens no Yang-tsé, ou pastores forem tirados de seus pastos na Mongólia Interior, isso se dará pela causa do bem maior “socialista”. Aqui reside a utilidade positiva do discurso do “socialismo com características chinesas” em mascarar o oposto dos princípios que supostamente defende. Wang Chaohua discursa durante manifestação na praça da Paz Celestial, Pequim, em 1989.

Notas:

[1] Perry Anderson, ‘Two Revolutions—Rough Notes’, nlr 61, Jan–Feb 2010. Earlier versions of this response were published in Chinese and French. See ‘Yi Geming de Mingyi?’, Sixiang [Reflexion], no. 18, June 2011; and Perry Anderson and Wang Chaohua, Deux Révolutions: la Chine au miroir de la Russie, Marseilles 2014.

[2] "Annexe III" to un General Assembly report A/58/47. China vetoed Bangladesh’s membership and joined the ussr to veto a draft resolution on the Middle East in 1972.

[3] For Hua's formulation (binlin bengkui: 濒临崩溃), see Chen Donglin’s survey article, ‘Wenhua Dageming Shiqi Guomin Jingji Zhuangkuang Yanjiu Shuping’ [A Critical Summary of Research on the State of the National Economy during the Cultural Revolution], Dangdai Zhongguo Shi Yanjiu, no. 2, 2008. This formulation was preserved in the party’s official line on the Cultural Revolution in the 1980s.

[4] In part because of the export of food grains to pay for foreign inputs to heavy industries. For figures, see Chen Donglin, ‘A Critical Summary’.

[5] Deng Xiaoping, ‘Liberating Thought, Seeking Truth, Uniting and Looking Forward’ [13 December 1978], in Yang Shengqun and Chen Jin, eds, Historical Pivot, 1977–1978, Beijing 2009.

[6] People’s Daily, 19 June 1979.

[7] Quoted in Wang Ruoshui, Hu Yaobang Xiatai de Beijing: Rendao Zhuyi zai Zhongguo de Mingyun [Behind Hu Yaobang’s Resignation], Hong Kong 1997, p. 359.

[8] See Shu-mei Shih, ‘Is the Post- in Postsocialism the Post- in Posthumanism?’, Social Text 110, Spring 2012; Cui Weiping, ‘Weishenme Meiyou Chunfeng Chuifo Dadi’ [Why Spring Breezes Did Not Blow Through This Land], Sixiang, No 6; Wang Ruoshui, ‘Behind Hu Yaobang’s Resignation’, esp. pp. 329–68.

[9] During the Cultural Revolution, Mao tried unsuccessfully to abolish the position of Head of State and transfer its power to the National People’s Congress (npc). That is why Hua Guofeng was never President of the prc, but only Premier. The Presidency was restated in 1982 by a newly amended Constitution. A revision to the Party Charter in 1981 changed its top post from ‘Chairman’ to ‘General Secretary’. See Wu Wei, ‘Deng Xiaoping’s Talk [of 1980] “On Reforming the Party and State Leadership System’’’ (Deng Xiaoping ‘Dang he Guojia Lingdao Zhidu Gaige’ de Jianghua): Chinese site of the New York Times, last visited on 26 April 2014.

[10] People’s Daily, 17 January 1987. Hu Yaobang had survived the Cultural Revolution relatively unscathed, resuming high-rank positions in 1975 and rising to head the party’s organization department in late 1977. There, he resisted Hua Guofeng’s call to respect ‘whatever’ Mao had decided, and contributed directly to bringing Deng—and other Elders, such as Bo Yibo—back to the centre of power in 1977–78.

[11] Wu Wei, New York Times Chinese website.

[12] This argument was first made by Yuan Jian in his book Da Guaidian [The Pivotal Point], Beijing 2012.

[13] Li Changping gives a vivid account of these crushing pressures, with detailed examples, in ‘The Crisis in the Countryside’, in Wang Chaohua, ed., One China, Many Paths, London and New York 2003, esp. pp. 205–13. For a related debate see Joel Andreas, ‘A Shanghai Model? On Capitalism with Chinese Characteristics’, and Yasheng Huang, ‘The Politics of China’s Path: A Reply to Joel Andreas’, nlr 65, Sept–Oct 2010.

[14] Elsewhere he has specifically attacked this syndrome: ‘Sinomania’, London Review of Books, 10 January 2010.

[15] This point was eloquently made by Yu Minling in a discussion of ‘Two Revolutions’ at the Academia Sinica in October 2010.

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