10 de fevereiro de 2015

A contracultura perdida

Vício Inerente descreve brilhantemente como o neoliberalismo cooptou a contracultura.

Stephen Maher

Jacobin


Tradução / A princípio, a perspectiva da “arte cinematográfica” parece que nunca foi tão desanimadora. A estratégia comercial dos estúdios corporativos tem o objetivo de gerar alguns blockbusters por ano, cada vez mais na forma de sequências intermináveis e spin-offs. Com isso, fazer arte é algo praticamente inadequado dentro da lógica de produção de filmes de Hollywood.

Essa situação deprimente foi brilhantemente satirizada no filme Birdman de Alejandro Gonzalez Inarritu. Agora, Vício Inerente de Paul Thomas Anderson traz um pouco de esperança na possibilidade de outro tipo de cinema.

Anderson consegue criar de forma consistente filmes que vão além do que foi feito antes e do que seus colegas estão fazendo atualmente. Realmente, é bastante comum ver diretores surfarem confortavelmente na produção de remakes de seus “maiores sucessos” — basta olhar para Wes Anderson, cujos mundos fantasiosos e engraçadinhos demonstram a mesma combinação de desapego cínico, presunção e falta de sinceridade, enquanto reformam tematicamente a importância central da paternidade para a geração de sentido em nossas vidas; ou os Irmãos Coen, que refizeram a Odisseia de Homero algumas dezenas de vezes ou mais até então, embora com personagens um pouco excêntricos.

Mas cada filme novo de Paul Thomas Anderson revoluciona o que pensávamos ser possível na tela. Talvez seja por isso que seus filmes podem ser compreendidos apenas depois de um tempo: precisamos assisti-los mais de uma vez, digerir, pensar.

Vício Inerente talvez seja o retrato mais brilhante da construção da hegemonia neoliberal e do fim severo dos sonhos da geração de 60. Ele conversa de forma muito poderosa com o aqui e agora, indicando a fuga nostálgica que anseia pelos “anos sessenta” e mostrando que esse mundo sublime, como é normalmente imaginado, nunca existiu.

A atualidade do filme também vem de sua exploração do momento no qual é possível detectar o surgimento das forças neoliberais que, por fim, gerariam a crise de 2008: privatização, desregulamentação, especulação imobiliária e booms de desenvolvimento. Não foi por acidente que Vício Inerente de Thomas Pynchon foi publicado em 2009. E, conforme sugerem tanto o filme quanto o livro, o ideal hippie continha em si a própria semente — o “vício inerente” — que o transformaria num pesadelo.

Um noir pós-moderno

O filme opera dentro da convenção de gênero “film noir”, repleto de sombras, névoa, becos escuros, um tipo de mulher fatal e um enredo complexo, quase impenetrável: Doc Sportello, um detetive particular hippie e maconheiro, recebe a visita de sua ex-namorada, Shasta Faye Hepworth, que passou a ter um caso com Mickey Wolfmann, um poderoso investidor imobiliário. Shasta diz, logo antes de desaparecer, que a esposa de Mickey, Sloane, e seu amante e suposto “guia espiritual” têm planos de dar um jeito em Mickey e fugir com seu dinheiro. Mais tarde, Doc é contratado por Hope Harlingen, uma ex junkie com dentes falsos, para descobrir o que aconteceu com seu marido — Coy, um comunista viciado em heroína que virou a casaca e tornou-se informante do Cointelpro.

No final das contas, os dois casos estavam relacionados à “Golden Fang”, uma enorme corporação e rede de tráfico de heroína com uma fachada de empresa fiscal estabelecida por um cartel de dentistas. A Fang também é proprietária de uma instituição de saúde mental recém-privatizada, na qual enfermeiros vestidos como Jesus correm de lá pra cá com Uzis, e onde os “loucos” são “curados”: ou seja, reprogramados mentalmente para se tornarem cidadãos responsáveis, dóceis e obedientes.

Depois de ser enviado à instituição, Burke Stodger, um ator famoso, foi transformado de comunista procurado em reacionário dedicado. Agora, os pacientes da instituição assistem o dia todo a maratonas de filmes do Stodger. Poderia haver um símbolo mais adequado, ou mais hilário, para o final dos anos 60 e o surgimento da nova ideologia hegemônica?

Vício Inerente tem tudo a ver com os filmes recentes de Anderson — O Mestre e Sangue Negro — mais do que com seus trabalhos anteriores (Magnólia, Embriagado de Amor e Boogie Nights: Prazer sem limites). Enquanto os anteriores abrangiam interrogações pós-modernas sobre filme, fama, desempenho, genialidade, infância, culpa e amor, os trabalhos mais recentes incorporam essas questões na exploração de momentos reveladores do desenvolvimento histórico dos Estados Unidos, resultando em filmes dos mais sofisticados e complexos já produzidos.

Nesses últimos filmes, que são sequências cronológicas, Anderson consegue uma convergência impressionante entre o ethos e o caráter de toda uma era, e as batalhas subjetivas de seus personagens.

Em Sangue Negro, há o encontro fatal do fundamentalismo religioso, do capitalismo e da extração de recursos naturais — fenômenos que continuamclaramente centrais a qualquer concepção sã de “América”, especialmente durante a invasão do Iraque — sobre o pano de fundo da expansão do capitalismo durante o final do séc. XIX. Em O Mestre, há a busca por sentido e propósito no despertar da Segunda Guerra Mundial, e o vazio da suburbanização pós-guerra, consumismo em massa e o núcleo familiar dos anos 50.

Assim, faz todo sentido que Vício Inerente ocorra no momento em que o lance dos “anos sessenta”, qualquer que seja o significado disso, chegou definitivamente ao fim; um momento no qual o sentido simbólico foi subvertido, produzindo uma sensação profunda de incerteza e desorientação. A mudança é onipresente em Vício Inerente.

Em uma das primeiras cenas do filme, Sortilege — a narradora do filme, e alguém possivelmente alucinada — diz a Doc que ele precisa mudar seu corte de cabelo: “Mude seu cabelo, mude sua vida.” Quando Doc pergunta qual estilo ele deveria usar, a resposta ambígua resume o filme de forma magnífica: todos precisam se adaptar, mas ninguém sabe o que se tornar, ou como chegar lá.

Muito mais clara é a transformação rápida e violenta do ambiente urbanizado de Los Angeles. Quando Tariq Khalil, membro da Black Guerrilla Family, inspirada em Marcus Garvey, contrata Doc para encontrar um dos guarda-costas de Mickey, um sujeito defensor da Supremacia Branca, ele o informa de que toda sua comunidade havia sido destruída e seus moradores despejados para dar espaço ao Channel View Estates, o investimento imobiliário mais recente de Mickey.

A narração de Sortilege conecta esse evento com a “longa e triste história” do redesenvolvimento urbano em Los Angeles, incluindo a “Batalha de Chavez Ravine”, na qual os residentes latinos tentaram resistir à demolição de sua comunidade, que abria caminho para o que é hoje o Estádio do Dodgers.

Cuidado com a Golden Fang

A complexidade da trama serve principalmente para ilustrar a relativa insignificância da busca de Doc, e para destacar que o que está “realmente” acontecendo ocorre a portas fechadas. Por becos escuros, em reuniões fechadas nos fundos de uma festa, em salas ocultas no consultório do dentista e em prédios comerciais comuns, uma entidade corporativa enorme e imensamente poderosa está transformando rapidamente a sociedade, de maneira kafkiana, da valorização e redesenvolvimento urbano para a Cointelpro e a venda de heroína.

Ninguém, contudo, parece perceber algo, em parte porque o excesso de drogas, sexo e rock é basicamente uma fuga. Como nos informa Sortilege, “valia a pena escapar da vida americana”.

Os hippies não estavam desafiando o poder conscientemente, mas sim buscando a felicidade pessoal. Eles pareciam acreditar que, se fechassem os olhos bem apertados, ou dessem mais um tapa, os demônios do mundo se dissolveriam em flores e luzes. “Pessoas como você perdem qualquer direito ao respeito no momento em que pagam o aluguel”, diz um personagem a Doc perto do final do filme.

Essa necessidade de “negar a realidade por meio de histórias”, de acordo com Hope, indica um motivo pelo qual a contracultura hippie foi recuperada (usando termos dos Situacionistas) com tanto sucesso. Enquanto os hippies fechavam seus olhos, as forças de reação espreitavam logo abaixo da superfície, recuperando suas forças de forma silenciosa e constante.

Mas essa recuperação resultou também do dinamismo ideológico do capitalismo. “Turmas obscuras” em festas hippies, escritórios corporativos e mansões suburbanas aproveitaram os aspectos da revolução contracultural que os convinha, adotando o vernáculo, o vestuário, o simbolismo, o espiritualismo e a emancipação sexual, e fazendo-se passar efetivamente por almas irmãs emancipadas.

Conforme escreve Slavoj Zizek, “o novo capitalismo” que surgiu nos anos 70 “apropriou-se de forma triunfante dessa retórica anti-hierárquica de 68, apresentando-se como revolta libertadora contra as organizações sociais opressoras do capitalismo corporativo e do socialismo realmente existente”: pense nos filmes anticomunistas de Burke Stodger junto com a emancipação sexual e iluminação espiritual de Sloane Wolfmann.

“O que sobrou da liberação sexual dos anos 60”, continua Zizek, “foi o hedonismo tolerante prontamente incorporado em nossa ideologia hegemônica”. O resultado foi o surgimento do “mestre permissivo pós-moderno, cuja dominação é maior por ser menos visível”.

O filme explora de forma intensa essa transformação cultural-simbólica. Como podemos ver, está cada vez mais difícil distinguir os hippies do sistema. Primeiro conhecemos Bigfoot Bjornson, inimigo e doppelgänger, uma versão malvada de Doc. Bigfoot é um policial com corte de cabelo flat-top “de proporções cavernosas” e “olhos que gritam violações dos direitos civis”, que aparece como ator em um comercial da Channel View Estates. Primeira fala de Bigfoot: “Cara, não quero que você pague aluguel!” Ele segue explicando, em linguagem hippie debochada, que pagar aluguel é “sacal” e “uma barra”, e que a solução é comprar uma casa nova em Channel View, construída sobre o que era antes uma comunidade de trabalhadores negros.

Adrian Prussia, um agiota e assassino de aluguel da polícia, diz coisas como “psicodélico” e “massa”. A esposa de Wolfmann, Sloane, tem um “guia espiritual” com quem ela obviamente tem intimidade sexual. Quanto ao próprio Wolfmann, ficamos sabendo por um dos informantes de Doc que é “um judeu que quer ser nazista”. Ele tem também um armário cheio de gravatas enfeitadas com imagens de mulheres nuas com as quais (supostamente) fez sexo, e abre um hospital psiquiátrico privado cujo nome é “uma antiga palavra indiana que significa serenidade”.

Um filme implacável

Bigfoot é um ator em todos os sentidos — não apenas no comercial da Channel View, mas também como figurante no programa “Adam-12”, que compete, enquanto Doc troca os canais da TV, com o discurso de Richard Nixon em um comício da “Vigilant California” (uma coalizão reaça espontânea, um pouco parecida com o Tea Party). Tanto o discurso quanto o programa policial mandam a mesma mensagem: há uma desordem nas ruas, e ela deve ser reprimida.

Durante todo o filme, assim como em sua obra-prima Magnólia, Anderson destaca como a televisão molda as percepções da realidade, desde a persona de Bigfoot na frente e por trás das câmeras, até a aparente interrupção de Coy Harlingen em um comício da Vigilant California (que, descobre-se depois, era apenas uma cena). Enquanto a comparação do comício com “Adam-12” aponta que as duas situações são essencialmente um show, a “interrupção” de Coy rende a ele credibilidade com as organizações de esquerda, de modo a infiltrar-se nelas com mais eficiência. Ou seja, Coy não está interrompendo a apresentação de Nixon, masparticipando dela. Nada disso é mais “real” do que “Adam-12”. Assim, a representação torna-se realidade.

Somos expostos à violência apenas duas vezes durante o filme, e ambas são impressionantes, algo como uma explosão de “realidade”. E essa violência não é de forma alguma purificadora: Doc não se redime como resultado, nenhum erro é desfeito e não ficamos aliviados.

Uma dessas explosões é representada pelo sexo entre Doc e Shasta, uma mistura atormentada de arrependimento, frustração, confissão e tragédia. Em vez de nos proporcionar uma satisfação spielberguiana de união da família ou casal, isso ilustra como a (não) relação entre Doc e Shasta ainda é muito problemática, contribuindo com a aura de tragédia inescapável do filme.

Ao contrário de filmes no estilo Odisseia, do tipo que os irmãos Coen produzem incessantemente, nos quais o personagem principal precisa passar por alguma aventura transformadora a fim de acomodar o “lar” para o qual ele retorna ao final da jornada, este filme se concentra em como o mundo está mudando, impondo a todos a necessidade de tornar-se algo novo — embora ninguém saiba o quê. A verdade é que não há um lar, e Doc não pode simplesmente voltar à sua vida como homem mais forte e mais sábio (como acontece em O Grande Lebowski, entre tantos outros).

O único gostinho de redenção que temos é a volta para casa de Coy, que mostra uma reviravolta interessante. Coy é resgatado de seu papel de informante da COINTELPRO e entra novamente na sociedade. Mas mesmo nesse momento a câmera permanece focada no rosto de Doc, que revela um vazio existencial, negando-nos a capacidade de dividir esse momento de felicidade.

Ao final do filme, Doc e Shasta parecem literalmente dirigir-se rumo a um abismo: aparentemente estão em um carro, mas do lado de fora da janela há apenas uma escuridão homogênea — nenhum cenário, outros carros etc. — enquanto Shasta diz que a sensação é “de o mundo todo estar debaixo d’água e nós sermos os únicos sobreviventes”. Até mesmo a narração de Sortilege desaparece.

É nesse abismo que vivemos desde então, quando as forças que testemunhamos no filme — reação do Estado, restabelecimento da cultura conservadora, neoliberalismo — começaram a fundir-se. Essas forças apenas se intensificaram, aprofundando a alienação, enquanto fazemos da nostalgia um escape, pensando em um período que jamais foi tão puro quanto nos lembramos. Parece que “ainda vale a pena escapar” da vida americana.

Colaborador

Stephen Maher é editor assistente do Socialist Register.

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