5 de março de 2017

Armadilhas da igualdade

O que está em jogo não é somente a questão demográfica, mas mudanças no mercado de trabalho

Lena Lavinas


Beneficiários lotam agência do INSS em busca de atendimento. Foto: Guilherme Pinto/Agência O Globo

O debate sobre a equalização da idade mínima para aposentadoria entre homens e mulheres, em pauta no âmbito de uma reforma da Previdência que atropela e pouco esclarece, parece ser hoje um divisor de águas entre feministas.

De um lado, estão as que julgam que a sobrecarga do trabalho doméstico nas jornadas que se multiplicam em apenas 24 horas demanda tratamento diferenciado. Diga-se de passagem que o argumento, com ares “corporatistas”, nada tem de estranho à lógica capitalista, em que ônus variados costumam ser compensados através de deduções fiscais, isenções e outras vantagens financeiras.

De outro, encontram-se as que clamam por igualdade entre os sexos, princípio que deve ser reconhecido e aplicado, em nome da coerência intelectual e do entendimento de que, reivindicar as tarefas domésticas como nossas, apenas nos encerra numa divisão sexual do trabalho que repudiamos. Ou seja, enquanto não houver mudança de mentalidades de modo a que o tempo alocado às atividades domésticas seja equitativamente dividido entre homens e mulheres, o diferencial salarial de gênero resistente no mercado de trabalho será replicado na inatividade forçada que a idade impõe.

Na verdade, sabemos que é uma falsa clivagem, da mesma forma que não há modelo ideal de Previdência. Este, qualquer que seja seu desenho, vai expressar um determinado contrato social. Desde meados da década de 1970, com a mudança na dinâmica do capitalismo, o padrão redistributivo que caracterizava os regimes previdenciários passa a ser questionado e de forma quase permanente se redefinem os parâmetros que regulam direitos. Entre eles, o tempo de contribuição e a idade mínima para aposentadoria.

Esses “ajustes” acabaram levando à adoção, em alguns casos, de regras uniformes entre homens e mulheres. Mas rapidamente à compreensão de que, invariavelmente, havia um claro prejuízo para as mulheres que, ao se aposentar, recebiam benefícios de baixo valor, inadequado para manter um padrão de consumo satisfatório, e, por vezes, inferior ao patamar da pobreza. Até porque, em virtude da maior esperança de vida e da incidência crescente dos divórcios e de novos padrões de conjugalidade, as mulheres, ao se tornarem idosas, tendem mais e mais a dispor apenas de seu próprio benefício, um benefício individual.

A situação de desvantagem reflete aquilo que caracteriza a ocupação feminina remunerada em todos as latitudes do planeta, qual seja maior intermitência do emprego, mais contratos precários quando existem, informalidade como regra, rupturas frequentes nas trajetórias profissionais, maior exposição ao desemprego. Como a gente sabe, o trabalho doméstico é só parte do problema. Até sem filhos, sem cônjuge e sem outras responsabilidades familiares, a inserção mais permanente, em funções mais bem remuneradas, valorizadas e portadoras de êxito e reconhecimento é sina para poucas.

Para enfrentar os determinantes estruturais das desigualdades de gênero, a grande maioria dos países da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) instituiu o sistema de crédito de aposentadorias para as mulheres, alguns deles estendendo isso aos homens, por razões de isonomia. Assim, Suécia, Noruega, Suíça, e em tantos outros países, as mulheres que podem justificar dedicação a filhos e idosos, familiares doentes, ou até desemprego de longo prazo, receberam créditos (menos tempo de contribuição ou idade mínima menor para aposentar) ou terão suas contribuições ao sistema pagas pelo Estado. Ainda assim, indicam pesquisas, tais mecanismos compensatórios não conseguem resgatar as perdas acumuladas por quebras na atividade remunerada.

A outra medida foi desconsiderar, para cálculo de aposentadorias, o diferencial de sobrevida das mulheres. Usam-se tábuas demográficas unissex.

Não por acaso, os exemplos acima referem-se a sociedades onde o grau de formalização é elevado, onde a taxa de atividade das mulheres é alta (superior a 80% em muitos deles), onde um dos florões da política social são os benefícios universais para crianças, forma de evitar ex ante que a pobreza ou períodos de escassez e dificuldades possam comprometer o desenvolvimento das novas gerações. E onde a provisão pública de serviços que substituem com qualidade o tempo das mulheres (creches, escolas tempo integral, serviços de care para idosos, etc) tende a ser consequente e efetiva. No Brasil, a taxa de atividade das mulheres é da ordem de 62%. Ora, ao invés de se pensar em como estimular a participação feminina no mercado de trabalho para elevar sua densidade contributiva, por meio do aumento da produtividade da sua força de trabalho, da sua taxa de atividade e do número de horas trabalhadas por semana, visa-se a outra ponta, que penaliza.

Mas na América Latina a proteção às mulheres mais velhas levou Chile e Uruguai a adotarem o crédito de aposentadoria por filho, aumentando o valor dos benefícios nos grupos mais vulneráveis. A compreensão de que a velhice é um fenômeno essencialmente feminino não se resolve com restrições à cobertura previdenciária das mulheres, exigindo mais tempo de contribuição, o que torna cada vez menos plausível cumprir com os requerimentos. Ademais, o tempo obrigatório de contribuição tende a ser vinte anos, menor do que o que se pretende implantar no Brasil.

O que está em jogo, de fato, não é tão somente a questão demográfica, senão e prioritariamente mudanças no mercado de trabalho em decorrência de novas formas de produzir riqueza que restringem o crescimento econômico, cada vez mais anêmico, gerando menos e piores empregos.

Discutir uma reforma previdenciária em fatias, sem a visão do todo, deixando de lado as mudanças que se pretende implementar com a reforma trabalhista — cuja meta é generalizar o trabalho precário e agravar a rotatividade da mão de obra —, tudo isso na ausência de uma reforma tributária séria capaz de corrigir as distorções que nos impedem de sermos uma sociedade mais igualitária, é apostar contra o povo brasileiro. Portanto, também contra as mulheres. Aqui vale o refrão feminista: nem uma a menos. Seguimos juntas, todas!

Sobre a autora

Lena Lavinas é professora da UFRJ e visitante da Universidade de Berlim

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