29 de junho de 2017

Entre o capital e o "volk"

O AfD da Alemanha se apresenta como um defensor do "homem comum", mas busca impor uma forma autoritária de neoliberalismo.

Sebastian Friedrich e Gabriel Kuhn

Jacobin

Uma manifestação do partido AfD em Mainz, Alemanha, em 2015. Franz Ferdinand Photography

Tradução / O partido “Alternativa para a Alemanha” (Alternative für Deutschland, ou AfD) ganhou as manchetes desde sua fundação em 2013. Depois de enfrentar uma série de lutas ideológicas, conflitos interpessoais e deserções, o partido conseguiu em apenas alguns anos o que nenhum outro partido alemão conseguiu desde 1945: unir todas as principais correntes políticas à direita da chamada “União” – os democratas-cristãos (CDU) e seu aliado bávaro, a União Social Cristã ( CSU) – em uma organização. A AfD também atrai o apoio da periferia mais conservadora da Democracia Cristã, estabelecendo uma ligação orgânica entre o conservadorismo e a extrema direita.

O AfD está atualmente representado em quase todos os dezesseis parlamentos estaduais da Alemanha – um desenvolvimento aparentemente impensável alguns anos atrás – além de ter a maior bancada de oposição no parlamento nacional, o Bundestag. Mas que tipo de partido é a AfD? Por que foi capaz de sacudir a política alemã e quais são as razões por trás de sua ascensão?

O racha conservador

Desde 1945, a maioria dos conservadores da Alemanha se organizou na União, que sempre conteve uma forte ala nacional-conservadora. Esta ala tem sofrido pressão crescente devido a mudanças fundamentais na sociedade alemã nas últimas décadas, cujo início pode ser rastreado até a década de 1960: os imigrantes exigiam ser mais do que apenas hóspedes, as mulheres eram mais do que esposas e gays e lésbicas ser mais do que desviantes sexuais. As lutas sociais que se seguiram levaram a mudanças significativas nas atitudes e valores da população alemã.

Hoje, até mesmo a União reconhece a Alemanha como um “país de imigração”. Sua ala direita foi enfraquecida e posições totalmente reacionárias, como uma definição étnica da identidade alemã, foram marginalizadas. As mulheres não são mais vistas como servas naturais de seus maridos, e os direitos de gays e lésbicas a parcerias para a vida toda e à paternidade estão legalmente consagrados. A modernização das políticas de imigração, gênero e família da União é principalmente estratégica: particularmente desde que Angela Merkel se tornou líder do partido em 2000, o partido tem procurado cada vez mais atrair novos eleitores do centro, ao invés da direita.

Várias revoltas internas contra a “deriva liberal” da União realmente ocorreram, mas não só foram malsucedidas, como também ajudaram a fortalecer a posição de Merkel, à medida que numerosos direitistas desencantados deixaram o partido revoltados. Esses renegados se juntaram a um crescente movimento conservador popular acusando a União de trair a causa conservadora. Aqui, o que eventualmente se tornaria o AfD começou a se aglutinar.

Contradições dentro da capital alemã

A crise do conservadorismo coincidiu com uma crise do neoliberalismo, quando a destruição provocada pela crise financeira de 2008 tornou os perigos do neoliberalismo flagrantemente óbvios.

De modo geral, uma crise estrutural pode ter dois resultados possíveis: ou as classes dominantes fazem ajustes à ordem prevalecente que lhe permite sobreviver, ou o paradigma político passa por uma mudança mais fundamental. Embora uma mudança de paradigma na política europeia parecesse possível por um breve momento (a ascensão do Syriza na Grécia, por exemplo), logo ficou claro que uma versão ligeiramente modificada do neoliberalismo prevaleceria.

O governo alemão reagiu à crise aceitando déficits orçamentários, a fim de impulsionar a economia vacilante e compensar a queda da demanda. Em 2009, no entanto, foi aprovado o chamado Schuldenbremse (literalmente, um “freio da dívida“), uma emenda constitucional que exige orçamentos equilibrados no futuro do país. O aumento dos gastos do governo seria uma medida estritamente temporária.

A oferta continuou a ser o princípio orientador da política fiscal e econômica não apenas na Alemanha, mas em toda a União Europeia (UE), e as políticas de austeridade que varreram o continente foram sua consequência lógica. No entanto, surgiu um conflito entre o caminho neoliberal da UE e uma nova posição “nacional-neoliberal” que busca reforçar a soberania nacional. Essa corrente foi particularmente pronunciada na Alemanha, até porque o euro, moeda comum de 19 países da UE, também foi fortemente afetado pela crise econômica. A questão de saber se as dívidas individuais dos Estados membros da zona do euro deveriam ser cobertas por todos os Estados membros ou apenas os endividados abriu uma divisão entre a classe dominante alemã.

Por décadas, os capitalistas da Alemanha permaneceram unidos, articulando seus interesses em uma voz comum. Mas a Grande Recessão trouxe diferenças subjacentes à tona, mais notavelmente entre as empresas que produzem, principalmente, para os mercados internacionais e aquelas que produzem aos mercados domésticos. Esse conflito de interesses é a chave para entender por que certas facções do capital alemão se uniram em apoio à AfD.

As empresas orientadas para os mercados internacionais são relativamente flexíveis quando se trata de mudar locais de produção e metas de consumo. O capital voltado para a exportação lucra tanto com o mercado comum europeu quanto com um euro fraco, ao passo que, para as empresas que produzem para o mercado interno, não faz diferença se seus produtos são pagos em euros ou em moeda nacional como o antigo marco alemão. Para eles, mais integração europeia significa mais competição.

Muitas pequenas e médias empresas alemãs se ressentiram dos esforços do governo alemão para resgatar o euro, agindo assim no interesse do capital voltado para a exportação. Esses “eurocéticos” eram apoiados por economistas nacionalistas que exigiam um Estado-nação forte diante das instituições europeias para resolver a crise.

A nova corrente nacional-neoliberal inicialmente tentou ganhar uma posição nos principais partidos, a União e o Partido Democrático Livre (FDP), mas fracassou em grande parte. O euro facilitou novos laços em todo o continente que os partidos estabelecidos não conseguiam e não queriam romper. Diante dessa situação intratável, os céticos do euro se viram marginalizados e precisam de uma estrutura organizacional alternativa para fundir a economia neoliberal com o conservadorismo cultural e a soberania do Estado-nação. Essa estrutura foi fornecida pelo AfD, que se propôs a unir o campo conservador-nacional tradicional com o novo campo neoliberal nacional.

A ala “Völkisch”

Não demorou muito para que um terceiro campo, a ala etnacionalista ou “völkisch”, emergisse dentro do partido. O nacionalismo Völkisch, que tem suas raízes nos ideais românticos pan-germânicos do final do século XIX, equipara a identidade nacional a uma população exclusiva e homogênea. O Estado völkisch não é baseado em um contrato social, mas na herança comum de seu povo (Volk), onde a questão de quem pertence é determinada pela ancestralidade. Essa ancestralidade não é necessariamente de natureza exclusivamente étnica, mas estipula uma compreensão monolítica da cultura. O “outro” pode não ser excluído pelos traços físicos, mas é marcado por uma diferença cultural tida como essencial e irrevogável. Kulturkreis (literalmente, “círculo cultural”) é o termo alemão mais comumente usado para essas comunidades supostamente hegemônicas. As contradições dentro deles, bem como as trocas e sobreposições históricas entre eles são negadas ou banalizadas. Como uma categoria quase natural, o Kulturkreis define a identidade de qualquer indivíduo associado a ele.

Esse tipo de “racismo sem raças” cresceu consideravelmente na Alemanha desde o verão de 2015. Na época, o governo de Merkel decidiu abrir temporariamente as fronteiras para refugiados que chegavam em massa do Oriente Médio, Ásia Central e Norte da África. Os ultraconservadores e adeptos da ideologia völkisch foram rápidos em alertar sobre o chamado Überfremdung, a “dominação estrangeira” do povo alemão. Aos seus olhos, o governo havia perdido o controle da situação e abandonado seus súditos. Esta opinião foi generalizada mesmo entre as bases da União. Essa dinâmica encorajou o AfD, particularmente sua ala völkisch, que recebeu um novo impulso quando uma onda de políticos moderados renunciou ao partido.

Assim, o AfD começou a se concentrar nos eleitores “perdedores da globalização”. O apoio inicial do partido veio principalmente de profissionais e empresários dos escalões superiores da sociedade. Agora, o apoio entre os desempregados e desprivilegiados também cresceu, devido ao sucesso do AfD na vinculação da ideia de que desigualdade social aumentou devido à imigração. Enquanto os interesses materiais semelhantes dos refugiados e dos pobres alemães foram minimizados, as diferenças étnicas e culturais foram ampliadas.

Representantes da ala völkisch até falaram de uma “nova questão social” na Alemanha, dando a entender que a principal contradição não era mais entre a base e o topo da sociedade, mas entre dentro e fora. O AfD raramente visa os ricos em sua defesa do “homem comum”, mas em vez disso concentra sua ira nos imigrantes e refugiados, acusando-os de aceitar doações do governo sem contribuir para o Estado de bem-estar. De acordo com o AfD, são os migrantes e refugiados que roubam os frutos dos trabalhadores alemães, não seus patrões alemães.

A defesa do “homem comum” se tornou uma parte central das relações públicas do AfD. Mas a retórica do partido não deve ser confundida com seu programa, que favorece a desoneração fiscal que beneficia os ricos e defende uma versão autoritária da economia neoliberal.

Para realmente entender por que o AfD é capaz de ganhar apoio entre a classe trabalhadora alemã, precisamos considerar mais uma crise da qual ela tinha proveito: a crise do socialismo.

Como em muitas nações industrializadas, a desigualdade social aumentou na Alemanha desde os anos 1970. Com o apoio ideológico ao capitalismo diminuindo por causa da Grande Recessão, esta se tornou uma questão política importante. Embora a economia alemã tenha saído da recessão relativamente ilesa devido ao comércio exterior agressivo e aos baixos salários internos, a era de ouro do capitalismo alemão acabou.

A Alemanha do pós-guerra foi caracterizada pelo conservadorismo social, sindicatos fortes, baixo desemprego e apoio quase universal ao parlamentarismo democrático. Quando as tentativas neoliberais de abrir novos mercados e garantir o crescimento permanente através da desregulamentação e privatização falharam, a classe trabalhadora pagou o preço: os salários diminuíram, o trabalho tornou-se cada vez mais flexível, o emprego menos seguro e um setor com baixos salários precário foi estabelecido.

Uma crise social não beneficia automaticamente a esquerda. Embora o partido de esquerda Die Linke tenha conseguido atrair vários trabalhadores insatisfeitos, o apoio da classe trabalhadora ao Partido Social Democrata (SPD) despencou nos últimos 15 anos. Em sua tentativa de acompanhar o desenvolvimento econômico, o SPD ignorou os interesses da classe trabalhadora e se transformou em um agente político confiável do neoliberalismo. O AfD frequentemente aparece como o único partido que trata dos padrões de vida em declínio da classe trabalhadora, embora com falsas soluções nacionalistas.

Cem anos atrás, o escritor de esquerda Kurt Tucholsky comparou o alemão médio a um ciclista: olhando timidamente para cima e chutando violentamente para baixo. Todas as promessas da AfD são baseadas nesta imagem.

A nova direita

O AfD é o resultado de desenvolvimentos distintos, mas convergentes: a crise do conservadorismo, a crise do capital e a crise do socialismo. Este é o pano de fundo contra o qual uma nova direita, com o AfD no centro, emergiu. Engloba meios de comunicação, intelectuais, movimentos sociais, think tanks, fundamentalistas cristãos, entidades estudantis, organizações antifeministas, libertários de direita, aristocratas e certas facções do capital.

O AfD é o eixo desse desenvolvimento. Ele fornece uma plataforma para as diferentes correntes se fundirem e expressarem suas opiniões para um público maior. O AfD é tanto um reflexo da nova direita quanto seu motor – seu futuro mostrará se as diferentes correntes de direita da Alemanha são capazes de colaborar entre si a longo prazo e se alguma delas tem a capacidade de assumir um papel de liderança.

A maior ameaça do AfD é, de longe, o conflito interno dentro de suas próprias fileiras. Se o partido entrar em colapso em um futuro próximo, será apenas por esse motivo. A nova direita é extremamente heterogênea e pode haver conflito a qualquer momento. Os conservadores nacionais moderados e os neoliberais nacionais estão profundamente preocupados com a colaboração da ala völkisch com as forças da extrema direita extraparlamentar. O maior potencial de conflito, no entanto, está relacionado à política econômica, uma vez que o partido não conseguiu se unir em questões-chave como o livre comércio. Enquanto alguns membros do partido rejeitam a Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento (TTIP) categoricamente, outros estão dispostos a apoiá-la se certas condições forem atendidas. Propostas de políticas concretas que atendem aos interesses dos mais ricos da Alemanha estão ao lado de afirmações retóricas que finge representar os pobres e oprimidos. As tentativas da ala völkisch de introduzir políticas de bem-estar se chocam com o programa favorável ao capital do partido e com o forte apoio de que ainda goza entre os proprietários de pequenas e médias empresas e a pequena burguesia.

Unir todas as correntes do partido é uma ideologia da desigualdade. Não importa se o foco está no coletivo (como na ala völkisch) ou no individual (como na ala nacional-neoliberal). O lema é o mesmo: o mais forte dominará o mais fraco.

A resposta da esquerda

Para analistas políticos, o sucesso do AfD não é nenhuma surpresa. As pesquisas mostram que um partido à direita da União tem um grande potencial na Alemanha há muito tempo. Cerca de 20% da população declara regularmente sua disposição de votar no partido se um candidato sério surgir.

No passado, o sucesso dos partidos de direita durou pouco, principalmente devido a conflitos dentro do movimento mais amplo da direita. Nas décadas de 1980 e 1990, tanto os republicanos (Die Republikaner) quanto a União do Povo Alemão (Deutsche Volksunion, DVU) estavam representados em alguns parlamentos estaduais da Alemanha. O Partido Nacional Democrático (NPD), de extrema direita, teve membros eleitos para vários parlamentos estaduais mais recentemente, mas seu apelo aos eleitores conservadores permaneceu limitado devido às suas ligações claras com o passado nazista do país. Atualmente, o NPD desempenha um papel insignificante na política eleitoral, principalmente devido à ascensão do AfD.

Como afirmado acima, o AfD é o primeiro partido do pós-guerra capaz de unir as diferentes correntes da direita alemã. No entanto, é sustentado apenas por uma minoria da população alemã (embora significativa). As pesquisas estão entre 7% e 11% em todo o país, rivalizando com outros partidos de oposição menores, como os Verdes, FDP e Die Linke, mas não tem o poder de moldar a política governamental.

Sob este aspecto, parece que tanto os partidos quanto a mídia exageraram a ameaça representada pela AfD. A quebra de tabus políticos é uma ferramenta estratégica que lhe confere atenção desproporcional na mídia. Ao mesmo tempo, as ações do governo muitas vezes escapam ao escrutínio. Afinal, foram a União e o SPD que reduziram drasticamente a lei de asilo alemã nos últimos meses, não o AfD. Como consequência, os refugiados recebem menos apoio financeiro e serviços sociais, os pedidos de asilo são rejeitados sem investigação adequada, o Residenzpflicht (“residência obrigatória”) foi reintroduzido, limitando severamente a livre circulação de requerentes de asilo dentro da Alemanha, e países dilacerados pela guerra foram declarados seguros para viver, o que significa que os refugiados são devolvidos a eles em números cada vez maiores. Todas essas medidas refletem e ecoam as demandas do AfD.

Apesar disso, os partidos governantes continuam a se apresentar como a última linha de defesa contra a ascensão da extrema direita. Liberais, sociais-democratas, conservadores modernos e cosmopolitas neoliberais afirmam formar uma frente contra as forças ultraconservadoras e os völkisch. Muitos na esquerda ajudaram a estabelecer esta frente, mas é a frente errada para lutar.

Os principais neoliberais da Alemanha dão as boas-vindas à modernização da sociedade. Eles são socialmente progressistas, enquanto seu programa econômico se baseia exclusivamente no desempenho individual e na competição. Eles implementaram leis para proteger a diversidade social e cultural, mas também priorizaram os interesses do capital voltado para a exportação em detrimento a classe trabalhadora. O neoliberalismo progressista atingiu seu ápice na coalizão entre social-democratas e verdes, que governou a Alemanha de 1998 a 2005. Representando a ala esquerda do que Tariq Ali apelidou de “centro extremo“, conseguiu melhorar o status legal das minorias enquanto estava, ao mesmo tempo, desmantelando o Estado de bem-estar social em que muitos deles dependiam. Também aprovou uma série de incentivos fiscais para os ricos. Os governos liderados pela União seguiram o mesmo curso. A resposta do AfD é dupla: busca reverter as reformas dos direitos civis e reinterpretar o neoliberalismo em termos nacionalistas e protecionistas.

Parece que há apenas duas posições possíveis em relação à lei de asilo alemã: Merkel e AfD. A solidariedade com os refugiados demonstrada por grande parte da população alemã não foi conduzida a uma alternativa viável. A direita definiu rapidamente os termos do debate e muitos na esquerda se viram defendendo Angela Merkel e sua retórica humanitária. Padrões semelhantes caracterizam os debates sobre a União Europeia, a globalização e a intervenção militar estrangeira: a direita dá o tom, a esquerda fica em silêncio e os partidos do establishment se apresentam como os nobres defensores da sociedade civil.

Livrar-se dessa situação difícil é o maior desafio da esquerda alemã hoje. Qualquer projeto de esquerda deve ser baseado em princípios de solidariedade, justiça e igualdade social. Isso significa que ele não pode se limitar a uma crítica ao nacionalismo reacionário, deixando assim o neoliberalismo progressista fora do alvo – um projeto de esquerda incapaz de se posicionar em oposição a ambos está fadado ao fracasso.

Sobre os autores

Sebastian Friedrich é jornalista freelance em Berlim. Ele é o autor de Der Aufstieg der AfD. Neokonservative Mobilmachung in Deutschland (2015) e Die AfD. Analysen - Hintergründe - Kontroversen (2017).

Gabriel Kuhn é um escritor austríaco que publicou extensivamente sobre a esquerda de língua alemã. Sua última publicação é Antifascism, Sports, Sobriety: Forging a Militant Working-Class Culture. Selected Writings by Julius Deutsch (2017).

26 de junho de 2017

O futuro do socialismo pode ser seu passado

O comunismo está em um beco sem saída, mas podemos recuperar o socialismo.

Bhaskar Sunkara


Tradução / Cem anos depois do trem blindado de Lênin chegar à Estação Finlândia e desencadear os eventos que levaram aos gulags de Stálin, a ideia que nós deveríamos retornar a essa história para nos inspirarmos pode soar absurda. Mas havia uma boa razão para que os Bolcheviques uma vez se chamarem “social- democratas”. Eles eram parte de um amplo movimento de partidos em crescimento que buscavam lutar por maior democracia política e, usando a riqueza e a nova classe trabalhadora criada pelo capitalismo, estender os direitos democráticos para as esferas econômica e social, o que nenhum capitalista permitiria.

O movimento comunista inicial nunca rejeitou essa premissa ampla. Ele nasceu de uma sensação de traição por parte dos partidos de esquerda mais moderados da Segunda Internacional, a aliança de partidos socialistas e trabalhistas de 20 países fundada em Paris em 1889. Em toda a Europa, partido atrás de partido fez o impensável, abandonando suas promessas de solidariedade às classes trabalhadoras entre todas as nações e apoiando seus respectivos governos na I Guerra Mundial. Aqueles que permaneceram leais às velhas ideias se autodenominaram “comunistas” para se distanciar dos socialistas que haviam cometido um abate que custou 16 milhões de vidas. (Em meio à carnificina, a Segunda Internacional se desmoronou em 1916).

Certamente, a movimentação nobre dos comunistas a fim de parar a guerra e criar uma via humana para a modernidade na Rússia atrasada acabou aparentemente afirmando a noção burkeana de que qualquer tentativa de revogar uma ordem injusta acabaria somente por criar outra.

A maioria dos socialistas tem sido castigada pelas lições do comunismo do século XX. Hoje, muitos dos que teriam se animado com a Revolução de Outubro têm menos confiança nas perspectivas de transformar radicalmente o mundo em uma única geração. Eles colocam uma ênfase no pluralismo político, no dissenso e na diversidade.

Ainda assim, o espectro do socialismo evoca o medo de um novo totalitarismo. Um relatório recente da Fundação Memorial das Vítimas do Comunismo revela que os jovens tendem a ver o socialismo favoravelmente e que um “impulso Bernie Sanders” pode estar contribuindo para um giro millenial contra o capitalismo. Ano passado, o próprio presidente da Câmara de Comércio dos Estados Unidos, Thomas J. Donohue, achou necessário lembrar os leitores que o “Socialismo é um Perigoso Caminho para a América”.

A direita denuncia ainda o socialismo como um sistema econômico que levará à miséria e privação, mas com menos ênfase no autoritarismo político que frequentemente andava de mãos dadas com o socialismo no poder. Isso talvez ocorra em virtude das elites hoje não terem os direitos democráticos na linha de frente de seus pensamentos – talvez porque eles sabem que as sociedades que eles dirigem são difíceis de justificar nesses termos.

O capitalismo é um sistema econômico: um modo de organizar a produção para o mercado através da propriedade privada e da motivação do lucro. Na medida em que permitiu a democracia, ele fez isso com extrema relutância. É por isso que os primeiros movimentos operários como os cartistas britânicos no começo do século XIX organizaram-se em primeiro lugar pelos direitos democráticos. Dirigentes capitalistas e socialistas acreditavam igualmente que a luta pelo sufrágio universal encorajaria trabalhadores a usar seus votos na esfera política para demandar uma ordem econômica que os colocasse no controle.

Não funcionou desse jeito. Por todo o Ocidente, os trabalhadores vieram a aceitar uma espécie de compromisso de classe. O empreendimento privado seria domesticado, não superado, e uma maior parcela de uma torta em crescimento forneceria benefícios universais através de generosos estados de bem-estar. Os direitos políticos também seriam consagrados, à medida que o capitalismo evoluía e adaptava-se de tal forma que uma sociedade civil democrática e um sistema econômico autoritário fizeram um improvável, porém aparentemente bem-sucedido, emparelhamento.

Em 2017, tal arranjo está bastante morto. Com os movimentos da classe trabalhadora adormecidos, o capital tem surtado, traçando um curso destrutivo, sem mesmo a promessa de crescimento sustentado. A raiva que levou à eleição de Donald Trump nos Estados Unidos e ao voto pelo Brexit na Grã-Bretanha é palpável. As pessoas sentem-se como se elas estivessem em um trem fugitivo com um destino desconhecido e, por uma boa razão, desejam voltar às misérias familiares.

Em meio a essa turbulência, alguns temem um retorno para a Estação da Finlândia através de líderes abertamente socialistas como o Sr. Sanders e Jean-Luc Mélenchon na França. Mas a ameaça para a democracia hoje está vindo da direita, não da esquerda. A política parece apresentar dois caminhos a seguir, ambas as formas decididamente não-stalinistas de coletivismo autoritário.

Trabalhadores da tecelagem Likinskaya, na Rússia, em 1917. Crédito... RIA Novosti/Sputnik, via Associated Press

A “Estação Cingapura” é o destino inconfesso do trem do centro neoliberal. É um lugar onde pessoas de todos os credos e cores são respeitadas – desde que conheçam o seu lugar. Afinal, as pessoas são grosseiras e irracionais, incapazes de governar. Deixem a administração da Estação Cingapura para os especialistas.

Esta é uma visão viável para as elites que analisam o surgimento de um populismo errático de direita com medo justificado. Muitos deles argumentam a necessidade das medidas de austeridade para manter uma frágil economia global e preocupam-se com o fato de que os eleitores não querem sofrer no curto prazo para se poupar das disfunções de longo prazo. O mesmo se aplica à ameaça iminente de mudança climática: a ciência é incontestável entre os cientistas, mas ainda assim está em debate na esfera pública.

O modelo Cingapura não é o pior de todos os possíveis pontos finais. É aquele em que especialistas são autorizados a ser especialistas, capitalistas são autorizados a acumular e trabalhadores comuns são autorizados a ter um semblante de estabilidade. Mas não deixa espaço para os passageiros do trem gritarem “Pare!” e a pegarem um destino de sua própria escolha.

A “Estação Budapeste”, assim nomeado por causa dos poderosos partidos de direita que dominam a Hungria hoje, é a parada final da direita populista. Budapeste nos permite ao menos nos sentir de volta ao comando. Chegamos lá, desaclopando alguns dos vagões, acelerando para a frente e lentamente retrocedendo. Nós estamos todos nisso juntos, a menos que você seja um estrangeiro que não tem um ticket e, então, má sorte.

O “trem Trump” é dirigido dessa maneira. O presidente Trump não pode oferecer ganhos tangíveis para as pessoas comuns desafiando as elites, mas ele pode oferecer uma valorização superficial do “trabalhador” e estimular a raiva pelas supostas causas do declínio nacional – imigrantes, acordos comerciais ruins, globalistas cosmopolitas. A imprensa, a academia e quaisquer outras partes não- conformes da sociedade civil estão sob ataque. Enquanto isso, além de ter que ajustar mais protecionismo e políticas de imigração restritivas, tudo permanece o mesmo para a maioria das corporações.

Mas há uma terceira alternativa: voltar à “Estação Finlândia”, com todas as lições do passado. Desta vez, as pessoas conseguem votar. Bem, debater, deliberar e depois votar – e ter fé que as pessoas podem organizar-se juntas para traçar novos destinos para a humanidade.

Despojado para a sua essência, e voltado às suas raízes, o socialismo é uma ideologia da democracia radical. Numa época em que as liberdades estão sob ataque, o socialismo procura empoderar a sociedade civil para permitir a participação nas decisões que afetam nossas vidas. Uma burocracia estatal enorme, é claro, pode ser tão alienante e antidemocrática quanto as salas de reuniões corporativas, por isso precisamos pensar fortemente sobre as novas formas que a propriedade social poderia tomar.

Alguns grandes conceitos já devem estar claros: cooperativas de trabalhadores, competindo em um mercado regulamentado; serviços governamentais coordenados com a ajuda do planejamento do cidadão; e a provisão dos conceitos básicos necessários para viver uma boa vida (educação, habitação e cuidados de saúde) garantidos como direitos sociais. Em outras palavras, um mundo onde as pessoas têm a liberdade de atingir suas potencialidades, independentemente das circunstâncias do nascimento.

Nós só podemos chegar a esta estação da Finlândia com o apoio de uma maioria; essa é uma das razões pelas quais os socialistas são defensores tão enérgicos da democracia e do pluralismo. Mas não podemos ignorar a perda de inocência do socialismo ao longo do século passado. Podemos rejeitar a versão de Lênin e os bolcheviques como demônios loucos e optar por vê-los como pessoas bem intencionadas tentando construir um mundo melhor em uma crise, mas nós devemos descobrir como evitar suas falhas.

Esse projeto implica um retorno à social-democracia. Não a social-democracia de François Hollande, mas a dos primeiros dias da Segunda Internacional. Esta social-democracia envolveria um compromisso com uma sociedade civil livre, especialmente para as vozes de oposição; a necessidade de verificações e balanços institucionais sobre o poder; e uma visão de uma transição para o socialismo que não requer uma ruptura do “ano zero” com o presente.

Nossa Estação Finlândia não do século XXI não será um paraíso. Você pode sentir desgosto e miséria lá. Mas será um lugar que permite a muitos agora esmagados pela desigualdade participarem da criação de um novo mundo.

A crise do Catar

A batalha entre a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos contra o Qatar é uma luta pelo poder regional, sem heróis a serem elogiados.

Adam Hanieh


Porto Arábia, Qatar. Abraham Puthoor / Flickr

Tradução / A decisão de 5 de junho da Arábia Saudita, dos Emirados Árabes Unidos (EAU), do Bahrein e do Egito em suspender as relações diplomáticas com o Qatar enviou ondas de choque pelo Oriente Médio.

O bloqueio que se seguiu encerrou grande parte do comércio marítimo e terrestre do Golfo com o Qatar, provocando receios de que o pequeno estado logo enfrentaria uma escassez de alimentos. As principais transportadoras aéreas, incluindo a Emirates, a Gulf Air, a Flydubai e a Etihad Airways, cancelaram os voos e os cidadãos do Qatar que viviam nas nações participantes tiveram apenas duas semanas para voltar para suas casas. Mesmo os imigrantes com permissões de residência do Qatar seriam alvos de expulsão.

Os Emirados Árabes Unidos proibiram qualquer expressão de solidariedade para com o Qatar – até mesmo através do Twitter – e ameaçaram os infratores com penas de prisões de até quinze anos.

Os governos estreitamente ligados à Arábia Saudita e aos Emirados Árabes Unidos expressaram rapidamente o apoio ao bloqueio, incluindo a Câmara dos Deputados na Líbia com base em Tobruk (uma das facções governamentais em conflito do país), o governo de Abed Rabbo Mansour Hadi no Iêmen, apoiado pelos sauditas, bem como Comores, a Mauritânia e as Maldivas.

O movimento contra o Qatar veio após meses de publicidade negativa na mídia americana e no Golfo, em que autoridades estatais alegaram repetidamente que o Qatar estava financiando grupos islâmicos e se aproximando do Irã.

Yousef Al Otaiba, embaixador dos Emirados Árabes Unidos nos Estados Unidos, desempenhou um papel importante nesta campanha. Desde o início das revoltas árabes em 2010, Otaiba tem percorrido os corredores do poder em Washington, alertando que essas revoltas populares ameaçam a ordem estabelecida da região e afirmando também que o Qatar apoia movimentos e indivíduos hostis tanto à Arábia Saudita como aos Emirados Árabes Unidos.

Ex-funcionários do governo americano e think tanks – notadamente a neoconservadora Fundação Pró-Israel para a Defesa das Democracias (FDD), uma apoiadora proeminente na invasão do Iraque em 2003 – assumiram essa cruzada anti-Qatar. Em 23 de maio, a FDD convocou um seminário de alto nível para discutir o relacionamento do país do Golfo com a Irmandade Muçulmana e como a administração de Trump deveria responder. Ali, o ex-secretário de defesa, Robert Gates, pediu ao governo americano que deslocasse sua maciça base aérea no Qatar, a menos que o país cortasse relações com esses grupos.

De acordo com e-mails divulgados logo após a conferência, Otaiba supostamente revisou e encorajou os comentários de Gates. Na verdade, esse vazamento supostamente ajudou a desencadear o bloqueio, revelando a confortável relação do embaixador com Gates, com a FDD, e com outras figuras próximas à administração Trump.

Tanto os Emirados Árabes Unidos quanto a Arábia Saudita também alegaram que o Qatar tem procurado fortalecer os laços com o Irã nos últimos meses. Uma evidência oferecida para isso é a alegação de que o Qatar pagou recentemente US$ 700 milhões ao Irã para garantir a libertação de vinte e seis membros da realeza do Qatar, que haviam sido sequestrados no Iraque em 2015, e haviam sido mantidas no Irã por um ano e meio. Esta história – que também alegadamente envolveu um pagamento à parte de até US$ 300 milhões para grupos alinhados com a Al Qaeda na Síria – foi negada pelo primeiro-ministro iraquiano Haider al-Abadi, que declarou em 11 de junho que o dinheiro permanece no banco central iraquiano.

Por sua parte, a Arábia Saudita criticou uma declaração atribuída ao Emir do Qatar, Tamim bin Hamad Al Thani, publicada na Agência Estatal de Notícias do Qatar. Durante um discurso de graduação para oficiais da guarda nacional na base de Al Udeid, Al Thani supostamente elogiou o Irã e criticou os estados do Golfo que veem a Irmandade Muçulmana como uma organização terrorista. Qatar explicou que o site havia sido pirateado – uma afirmação que mais tarde teve o apoio do FBI – e que Al Thani não havia feito tais declarações.

Em meio a todas essas declarações conflitantes, alguns observadores argumentam que a visita de Donald Trump à Arábia Saudita em 20 de maio representou um momento-chave na campanha contra o Qatar, alegando que Trump deu à Arábia Saudita e aos Emirados Árabes Unidos o sinal verde. Na verdade, um de seus caracteristicamente eloquentes tweets parece confirmar isso, enquanto o presidente se gabava de que o bloqueio saiu a partir de suas reuniões em Riyadh.

Nem todos em Washington, no entanto, apoiam totalmente a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos. Outros funcionários – notadamente Rex Tillerson – estão pedindo uma flexibilização do bloqueio e uma solução pacífica. O secretário de relações exteriores do Reino Unido, Boris Johnson, também opinou, pedindo o fim do conflito, ao mesmo tempo que afirmou que o Qatar “precisa urgentemente fazer mais para resolver o tema do apoio a grupos extremistas”.

Disputas intestinas não são novidade para as turbulentas famílias governantes do Golfo, mas a decisão de isolar o Qatar marca uma escalada significativa. Como devemos entender o bloqueio no contexto de desenvolvimentos mais amplos no Oriente Médio, particularmente na sequência das revoltas árabes? Esses eventos marcam um cisma irreconciliável na política do Golfo ou uma mudança fundamental nos padrões históricos das alianças americanas na região?

Interesses e rivalidades compartilhados

Não podemos entender o conflito atual sem analisar o projeto mais amplo de integração regional, incorporado ao Conselho de Cooperação do Golfo (GCC). Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Kuwait, Qatar, Bahrein e Omã estabeleceram esta organização dois anos após a revolução iraniana de 1979 e no início da guerra entre o Iraque e o Irã que duraria até 1988.

Na época, o GCC era amplamente visto como uma resposta apoiada pelos Estados Unidos para esses distúrbios regionais, projetado para estabelecer um guarda-chuva de segurança nos seis Estados membros, que os Estados Unidos iriam encorajar, equipar e supervisionar.

Não só esses estados possuem recursos ricos em petróleo e gás – a explicação definitiva para o interesse dos Estados Unidos em tal aliança -, mas também compartilham estruturas semelhantes, marcadas por famílias governantes autoritárias e uma força de trabalho que consiste principalmente de migrantes temporários, em grande parte sem direitos trabalhistas – uma característica muitas vezes esquecida na enxurrada de discussões na mídia sobre o Golfo nas últimas semanas. O projeto de integração do GCC refletiu os interesses coletivos desses estados, que estão alinhados, de forma singular, com as potências ocidentais.

A relação entre os Estados Unidos, outras potências ocidentais e o GCC tem se fortalecido consideravelmente desde 1981, como demonstra a base aérea Al Udeid do Qatar.

Agora, com mais de 14 anos de idade, Al Udeid hospeda mais de dez mil soldados norte-americanos e é a maior base aérea no exterior dos Estados Unidos. Como a sede do quartel-general avançado do Comando Central das Operações Especiais e do Comando Central das Forças Aéreas, o Qatar ajuda a coordenar a presença militar dos Estados Unidos em toda a região, inclusive no Iraque e no Afeganistão.

Os Estados Unidos também controlam sua principal base naval a partir do Bahrein, sede do Comando Central das Forças Navais e da Quinta Frota. Mais de vinte mil militares americanos estão estacionados em todo o resto do Golfo.

A venda de equipamentos militares ao Golfo pelos Estados Unidos e por nações europeias, particularmente o Reino Unido e a França, está intimamente ligada a essa presença militar. A recente visita de Trump à Arábia Saudita colocou esse aspecto da relação EUA- Arábia Saudita em destaque: o negociador-em- chefe teria assinado contratos de mais de cem bilhões de dólares. (Os valores precisos continuam a ser contestados, pois são centralmente baseados em cartas de intenções e incluem ofertas acordadas com a administração de Obama).

De acordo com o Programa de Despesas Militares e com Armamento do Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo, cerca de 20% das importações militares mundiais foram para países do CCG em 2015; A Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos ocuparam o primeiro e o quinto lugar. A Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos representaram 80% de todas as importações militares do GCC naquele ano, mas o Qatar, o Kuwait e o Omã também aparecem na lista dos primeiros quarenta países que mais importam armas do mundo. A participação do GCC no mercado global mais do que duplicou desde 2011 e tornou-se o maior mercado de armas do mundo.

Essas compras reciclam uma parte dos excedentes de petrodólares do Golfo para as empresas que produzem o hardware militar mundial. O GCC não só hospeda as forças americanas, mas também paga generosamente por esse privilégio.

A economia política do Golfo

Mas o significado do projeto do GCC se estende para além de proteger um clube exclusivo de monarquias ricas em petróleo e manter o papel da região como sede para o poder militar americano no Oriente Médio, Ásia Central e África Oriental.

Ao longo dos anos 1990 e 2000, o quadro institucional estabelecido pelo GCC encorajou os seis estados membros a elaborar um alinhamento político e econômico muito mais próximo, um acordo geralmente comparado com a União Europeia. As duas últimas décadas têm visto progressos consideráveis em direção a esse objetivo: aumento dos níveis de fluxos de capitais pan-GCC, um movimento em direção a impostos e tarifas padronizados para os produtos importados, políticas que incentivam a livre circulação de trabalhadores que são cidadãos dos distintos países membros, e instituições políticas mais unificadas. Até mesmo uma moeda comum, o khaleeji, foi proposta.

Este processo de integração regional dá suporte à forma específica do capitalismo que os Estados do GCC compartilham. Os grandes conglomerados do Golfo (estatais e privados) que dominam a economia política do Golfo operam nas fronteiras do Golfo e, como a União Europeia, também são marcados por uma interpenetração pronunciada das estruturas de propriedade do capital em diferentes estados do Golfo.

É importante ressaltar, no entanto – e isso nos ajuda a entender os últimos conflitos na região – este projeto de integração não extinguiu as rivalidades dos membros ou as tensões competitivas. Uma hierarquia acentuada do poder político e econômico marcou o GCC desde a sua criação, com o pivô principal girando em torno de um eixo Arábia Saudita-Emirados Árabes Unidos.

Estes dois países tornaram-se os principais locais de acumulação de capital e as empresas da Arábia Saudita e dos Emirados Árabes Unidos dominam a economia do GCC nos setores de imóveis, finanças, comércio, logística, telecomunicações, petroquímica e indústria. Há também importantes investimentos trans-fronteiriços entre a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos.

Este eixo não existe sem suas tensões próprias – refletidas, por exemplo, na rejeição dos Emirados do projeto – apoiado pela Arábia Saudita – de moeda unificada em 2009 – mas seu alinhamento político se desenvolveu juntamente com seus laços econômicos.

O Bahrain está estreitamente integrado a esse eixo como um sócio minoritário. Sua monarquia governamental da Casa de Al Khalifa depende do apoio financeiro, político e militar saudita, como as revoltas de 2011 o demonstraram claramente.

Esta sub-aliança influencia como os outros estados do GCC se relacionam com o resto do mundo, uma característica claramente ilustrada pelos padrões comerciais da região. Devido a níveis relativamente baixos de produção de não-hidrocarbonetos e às pequenas dimensões dos setores agrícolas, o GCC depende fortemente das importações. O eixo Arábia Saudita – Emirados Árabes Unidos intermedia esse fluxo: eles trazem as mercadorias, em seguida as reexportam para outros estados, às vezes após o processamento de valor agregado.

As importações de alimentos são de particular importância. Os outros quatro estados do GCC importam mais alimentos da Arábia Saudita e dos Emirados Árabes Unidos do que de qualquer outro país do mundo. Em 2015, a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos classificaram-se como ou primeiro ou segundo exportador de alimentos para cada um dos outros estados do GCC.

Notavelmente – especialmente porque esses números incluem grandes exportadores de trigo e carne, incluindo os Estados Unidos, Índia, Brasil e Austrália – a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos foram responsáveis por 53% do valor total da exportação de alimentos para Omã, 36% para o Qatar, 34 % para o Bahrain e 24% para o Kuwait.

Essas tendências não só ressaltam a importância de colocar o eixo Arábia Saudita – Emirados Árabes Unidos no centro da nossa compreensão do resto do Golfo, mas também ajudam a explicar os potenciais efeitos do atual bloqueio.

A escala regional

Dominados por este eixo Arábia Saudita – Emirados Árabes Unidos, os outros Estados menores têm desempenhado um papel mais marginal na economia política do Golfo. Com uma pequena população cidadã (apenas 313 mil cidadãos de uma população total de 2,6 milhões, espantosos 12% do país) e uma enorme riqueza de suas vastas reservas de gás natural, o Qatar tem particularmente se irritado com essa estrutura hierárquica.

Em uma base per capita, o Qatar é o país mais rico do mundo – com 17,5% de suas famílias cidadãs com bens de mais de um milhão de dólares -, mas em grande parte tem sido negado ao Qatar um lugar nas estruturas políticas e econômicas mais amplas do GCC, dominadas pelos seus vizinhos maiores.

Limitados pelo tamanho dos seus mercados nacionais e inundados pelo capital excedente de quase quinze anos de crescentes preços de petróleo e gás, uma das principais consequências dessas hierarquias competitivas internas tem sido a tentativa por todos os Estados do Golfo de crescerem para além das fronteiras do GCC. Os grandes conglomerados privados e respaldados pelo estado têm expandido suas operações globalmente, investindo em imóveis, instituições financeiras, tecnologias emergentes, agronegócios e outros setores. Enquanto todos os estados do GCC têm participado deste processo, a Arábia Saudita, os Emirados Árabes Unidos e o Qatar têm liderado esta corrida.

Embora os fluxos de capital do Golfo tenham se concentrado em grande parte na América do Norte e na Europa, o Oriente Médio também se tornou um alvo importante. A medida em que os estados árabes abriram seus mercados e liberalizaram setores econômicos fundamentais – um processo liderado pelo garoto-propaganda neoliberal do Banco Mundial, o Egito de Mubarak -o capital do Golfo teve um papel de liderança ao longo dos anos 2000, ao comprar os ativos privatizados (frequentemente através de acordos corruptos com as elites estatais) e ao se beneficiar com a abertura do mercado que se seguiu na esteira da reforma neoliberal.

De 2003 a 2015, os estados do GCC foram responsáveis por um notáveis 42,5% do total dos novos investimentos diretos estrangeiros (IDE) em outros países árabes. Neste período, cerca de metade de todos os investimentos estrangeiros na Jordânia, Egito, Líbia, Líbano, Palestina e Tunísia vieram do Golfo. Além disso, de 2010 a 2015, os investidores da Europa, do Golfo e da América do Norte gastaram pouco mais de vinte bilhões de euros em fusões e aquisições no mundo árabe. A participação do GCC representou quase metade, com 44,7%.

Por mais impressionantes que sejam esses números, eles realmente subestimam o nível de internacionalização. Eles não incluem, por exemplo, os níveis consideráveis de ajuda bilateral do Golfo, nem necessariamente incorporam investimentos de portfólio das empresas do Golfo em mercados de ações regionais.

À medida que este processo se desenrolava, o papel político do GCC tornava-se cada vez mais proeminente. O Golfo não só conduziu a construção de uma ordem regional marcada por estados autoritários e economias liberalizadas, mas também se beneficiou com isso. Tudo isso ocorreu sob os auspícios de potências ocidentais e instituições financeiras internacionais.

À medida que esse processo tornava os estados do GCC mais próximos entre si, também intensificava suas rivalidades. Uma das manifestações mais importantes dessa tensão ocorreu quando o Qatar tentou adotar uma política regional autônoma, relativamente independente da Arábia Saudita e dos Emirados Árabes Unidos.

O Qatar começou a patrocinar diferentes forças políticas – a Irmandade Muçulmana, o Hamas e o Talibã – e a hospedar uma variedade de dissidentes exilados – o clérigo egípcio Sheikh Yusuf al-Qaradawi, que protagoniza programas populares nos canais de TV do Qatar e o intelectual palestino Azmi Bishara. O Qatar também usou sua ampla rede de mídia para se promover como uma força regional, nomeadamente através da Al Jazeera e de suas afiliadas e, mais recentemente, através do jornal e canal de televisão Al-Araby Al-Jadeed, lançado no início de 2015.

As revoltas árabes que começaram na Tunísia no final de 2010 acentuaram essas divisões, mas também enfatizaram os interesses compartilhados do Golfo. Ao ameaçar profundamente a ordem regional e seus regimes autoritários, as revoltas colocaram um agudo desafio aos estados do GCC: como evitar os movimentos populares e reconstituir a ordem autoritária e neoliberal? Cada estado teve um interesse comum neste processo contrarrevolucionário, mas suas respostas diferiram ao longo das linhas descritas acima.

O Qatar apoiou forças aliadas com a Irmandade Muçulmana, enquanto a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos inclinaram-se para pessoas como Abdel Fattah el-Sisi no Egito e o antigo agente da CIA, Khalifa Haftar, na Líbia. Uma constelação de alianças, contraditórias e em constante mudança, se formou em torno dos interesses comuns do GCC e suas rivalidades internas.

O Qatar apoiou a intervenção saudita no Bahrein, participou da guerra contra o Iêmen e, na Síria, se opôs ao seu suposto novo aliado, o Irã. No Egito, na Líbia, na Tunísia e na Palestina, no entanto, o Qatar tendeu a apoiar facções rivais. As linhas ficam desfocadas e tênues mesmo nesses casos: o Qatar expressou apoio a Sisi após o golpe de 2013, apesar de sua clara aliança com a Irmandade Muçulmana Egípcia.

Essas alianças divergentes também se estendem a outros participantes no atual bloqueio; o Egito de Sisi, por exemplo, apoia o regime de Assad na Síria, alinhando-se com o Irã, mas contra a Arábia Saudita, apesar de sua dependência quase completa do eixo Arábia Saudita – Emirados Árabes Unidos.

O ponto-chave, muitas vezes ignorado no comentário da mídia sobre o bloqueio, é que não existem posições políticas de princípios envolvidas nessas alianças – trata-se de uma conveniência calculada e de uma avaliação pragmática por cada estado sobre a melhor forma de promover sua influência regional, sempre dentro do quadro de reordenação da região de uma forma acessível ao seu poder político e econômico coletivo.

Precisamos manter ambas as tendências em mente quando avaliamos a situação atual. Uma forte unanimidade de interesses sustenta a posição dos Estados do Golfo sobre a ordem regional, uma situação plenamente apoiada por – e em pleno apoio às – potências ocidentais. Simultaneamente, o GCC é dividido por rivalidades e competições, refletidas nas diferentes visões dos membros em como manter seus interesses compartilhados.

A questão de Israel

Na esteira dos levantes árabes, agora estamos vendo uma afirmação de ambas as tendências. Especificamente, o bloqueio atual é uma jogada da Arábia Saudita e dos Emirados Árabes Unidos para afirmar completamente sua hegemonia sobre a região e colocar o Qatar de volta ao seu lugar.

Mas não se trata apenas da Arábia Saudita e dos Emirados Árabes Unidos; expressa fundamentalmente um processo contrarrevolucionário geral que tem estado presente desde o início dos levantes – restaurando o status quo dos estados autoritários neoliberais que atenderam os interesses do GCC como um todo (incluindo o Qatar) por várias décadas. Tudo isso também deve ser visto através do prisma da aliança contínua e sempre fortalecida do Golfo com os EUA e outras potências ocidentais.

Dentro desse processo, o lugar de Israel desempenha um papel fundamental. Desde a década de 1990, a política regional americana tem procurado aproximar o GCC e Israel, normalizando as relações econômicas e políticas entre os dois pilares do poder dos EUA na região. Desde a revolta árabe, essa aproximação pareceu cada vez mais provável.

Não é por acaso que a primeira viagem internacional de Trump o fez visitar a Arábia Saudita e depois Israel (voando diretamente entre os dois), uma agenda de viagem que ilustra perfeitamente as prioridades estratégicas dos Estados Unidos na região. Apesar do boicote de longa data da Liga Árabe às relações com Israel, a região do Golfo (particularmente o eixo Arábia Saudita – Emirados Árabes Unidos) e Israel concordam em questões políticas fundamentais, e ambas as partes estão ativamente buscando construir laços mais estreitos.

No final de março de 2017, o Haaretz informou que os Emirados Árabes Unidos e Israel participaram de exercícios militares conjuntos na Grécia ao lado dos Estados Unidos e de vários países europeus. Esta não foi a sua primeira colaboração: um ano antes, Israel, Emirados Árabes Unidos, Espanha e Paquistão participaram da Red Flag, um exercício de treinamento de combate aéreo que ocorreu em Nevada (EUA).

No final de novembro de 2015, Israel abriu um escritório diplomático na capital dos Emirados Árabes, Abu Dhabi, como parte da Agência Internacional de Energia Renovável – a primeira vez que uma presença diplomática israelense oficial apareceu nesse país. A Bloomberg Businessweek informou em fevereiro de 2017 que o escritório poderia atuar como uma embaixada para os laços crescentes de Israel no Golfo.

As empresas israelenses de segurança alegadamente instalaram equipamentos de infraestrutura e segurança no valor de mais de US $ 6 bilhões nos Emirados Árabes Unidos; isso ocorre depois de Israel ter vendido cerca de US $ 300 milhões de tecnologia militar para a nação do Golfo em 2011.

As empresas militares e de segurança de alta tecnologia israelenses também estão ativas na Arábia Saudita, onde elas estão supostamente ajudando a Saudi Aramco ([2])a estabelecer segurança cibernética, vender sistemas de mísseis avançados e até mesmo realizar pesquisas de opinião pública para a família real. A mídia israelense afirmou que o país ofereceu aos sauditas sua tecnologia militar Iron Dome para se defender contra os ataques do Iêmen.

Essas relações, outrora clandestinas, estão agora sendo comentadas abertamente. O The Times de Israel informou em junho de 2015 que a Arábia Saudita e Israel realizaram cinco reuniões secretas desde o início de 2014. Em maio de 2015, o então diretor-geral do Ministério dos Negócios Estrangeiros Israelense, Dore Gold, apareceu publicamente com o general saudita aposentado, Anwar Eshki. No ano seguinte, Eshki visitou Israel para se encontrar com o ex-porta-voz das Forças de Defesa de Israel e atual coordenador de atividades governamentais nos territórios ocupados, o Major-General, Yoav Mordechai.

Não deve ser uma surpresa, então, que Israel apoie o bloqueio contra o Qatar. Mas isso não significa que o Qatar também não tentou normalizar suas relações com Israel. Como os outros estados do GCC, o envolvimento do Qatar na Palestina foi projetado para garantir a si próprio um assento melhor na mesa – um objetivo que os israelenses têm apoiado alegremente quando atende a seus interesses.

Em 1996, o Qatar permitiu que Israel abrisse um escritório comercial em Doha, tornando-o o único estado do Golfo a manter relações oficiais com Israel naquela época. Embora o escritório tenha sido fechado após o bombardeio israelense em Gaza em 2008, o Qatar tem repetidamente se oferecido para restabelecer os laços em troca de ter permissão para fornecer ajuda financeira e material a Gaza. Uma delegação comercial israelense que visitou o Qatar em 2013 alegadamente descobriu, que o Qatar estava interessado em investir no setor de alta tecnologia israelense.

O Qatar é o único estado do GCC que admite visitantes israelenses e que tem permitido que atletas israelenses participem de eventos esportivos e culturais. Em 2013, o Qatar presidiu a reunião da Liga Árabe que mudou a iniciativa de paz de 2002 para permitir que Israel mantivesse seus blocos de assentamentos em qualquer acordo final. Tzipi Livni, então ministra da Justiça israelense, descreveu o desenvolvimento como “muito positivo”. E no início de fevereiro de 2017, Muhammad al-Imadi, chefe do comitê nacional de Doha para a reconstrução de Gaza, afirmou que “mantém laços excelentes” com os oficiais militares israelenses.

Todas essas tendências indicam que nenhum dos estados do Golfo – incluindo o Qatar – pode ser visto de alguma forma como aliado ou amigo confiável da luta palestina. Mas as atuais tensões no Golfo também possuem implicações potencialmente importantes para o poder político na Palestina.

A crescente influência política de Mohammed Dahlan dialoga com essa possibilidade. Alguns acreditam que Dahlan, líder de uma das frações da Al-Fatah (principal corrente da Organização para a Libertação da Palestina – n. da tradutora) irá substituir Abu Mazen – também conhecido como Mahmud Abbas, n. da tradutora – (o atual chefe da Autoridade Palestina baseada em Ramallah). Dahlan vive em Abu Dhabi, e os Emirados Árabes Unidos há muito o apoiam política e financeiramente. Ele tem laços estreitos com Israel e os Estados Unidos e tornou-se, para esses dois últimos, o candidato preferido para suceder o octogenário Mazen.

Embora as rivalidades dentro do Fatah possam cortar a ascensão de Dahlan, sua crescente importância aponta para a forma como as tensões atuais no Golfo podem realinhar o equilíbrio de poder nas áreas vizinhas.

Rumos futuros

Nem todos os Estados do GCC ou atores regionais apoiam o bloqueio atual. No momento da redação deste artigo, Omã permitiu que os navios vinculados ao Qatar usassem os seus portos, e o Kuwait tem se empenhado em frenéticos esforços diplomáticos para acalmar as tensões. Somente o Bahrein apoiou totalmente a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos, em grande parte devido à longa dependência da monarquia de Al Khalifa para com a Arábia Saudita.

A Turquia ofereceu enviar tropas a uma base militar turca no Qatar e o Irã se comprometeu a enviar comida e água para superar o fechamento da única fronteira terrestre do Katar com a Arábia Saudita. Enquanto isso, as tentativas da Arábia Saudita em recrutar outros países com grandes populações muçulmanas – como Senegal, Níger, Djibouti e Indonésia – falharam em grande parte. Países árabes como Marrocos, Argélia e Tunísia também rejeitaram o bloqueio.

À luz dessas disputas, devemos lembrar o que o GCC representa como um todo. Este bloco de estados está totalmente integrado em uma estrutura de poder regional alinhada aos EUA, tem se beneficiado massivamente das reformas neoliberais no mundo árabe e tem se tornado cada vez mais interligado com a dinâmica política da região.

Esses estados compartilham o interesse em preservar sua posição regional e suas antigas estruturas políticas. Esses compromissos superam os potenciais benefícios da fratura do projeto. Do mesmo modo, o Ocidente e Israel querem ver o GCC juntos, já que o bloco tem servido muito bem a seus interesses nas últimas décadas.

Apesar dos cismas atuais, algum tipo de solução negociada que veja o Qatar aderindo ao eixo Arábia Saudita – Emirados Árabes Unidos e sua aceitação em ter uma influência regional diminuída é o resultado mais provável.

Este acordo acabaria por fortalecer o eixo Arábia Saudita – Emirados Árabes Unidos e ajudar a consolidar a contrarrevolução; também provavelmente precipitaria um realinhamento do poder político em lugares como Tunísia, Líbia e Palestina.

Mas a esquerda deve perceber que nenhum dos supostos aliados do Qatar – especificamente a Turquia e o Irã – representam uma alternativa progressiva para a região. Enquanto eles podem estar alinhados contra a frente Arábia Saudita – Emirados Árabes Unidos neste contexto, esses estados participaram do processo contrarrevolucionário pós-2011 tão entusiasticamente quanto seus rivais.

Talvez a lição mais importante da crise atual seja a de que devemos evitar leituras simplistas do Oriente Médio, especialmente aquelas baseadas na noção de que “o inimigo do meu inimigo é meu amigo”.

Seria profundamente tolo considerar o Qatar, a Turquia ou o Irã como representantes de algum realinhamento progressivo apenas porque eles estão – pelo menos por enquanto – contra a Arábia Saudita, os Emirados Árabes Unidos e Israel. A disputa feroz pelo poder regional provocou essas tensões e produziu todo tipo de alianças políticas contraditórias e instáveis, mas nenhum dos estados envolvidos representa qualquer tipo de alternativa política digna do apoio da Esquerda.

Sobre o autor

Adam Hanieh é professor sênior na Escola de Estudos Orientais e Africanos (SOAS) da Universidade de Londres e autor de Lineages of Revolt: Issues of Contemporary Capitalism in the Middle East. (Linhagens da Revolta: Questões do capitalismo contemporâneo no Oriente Médio)

22 de junho de 2017

Relembrando Peekskill

Os motins de Peekskill de 1949 nos lembram de um período de rebelião e reação do pós-guerra que preparou o cenário para o resto do século.

Joel Feingold


Paul Robeson canta em 4 de setembro de 1949 perto de Peekskill, NY, cercado por guarda-costas, muitos dos quais eram membros de sindicatos de esquerda.

Ao entardecer de 27 de agosto de 1949, em um prado chamado Lakeland Acres, nos arredores de Peekskill, Nova York, o cantor, ator e intelectual negro radical Paul Robeson deveria ser a atração principal de um show. Pete Seeger e seus colegas do People's Artists abririam o show.

Esse desempenho seria a terceira aparição de Robeson no norte do condado de Westchester em tantos anos. O “cinturão vermelho de verão” no norte do condado de Westchester havia se tornado uma espécie de cinturão de Borscht para os radicais da classe trabalhadora de Nova York. As colônias e os acampamentos de verão socialistas também atraíram radicais negros e muitos liberais viajantes.

Cada resort tinha um pedigree político diferente: Mohegan Colony (uma vez que um antigo campo anarquista, em 1949, tornou-se o lar de uma mistura eclética de esquerdistas e liberais), Camp Unity (estreitamente afiliado ao Partido Comunista), Camp Followers of the Trail (um enclave de comunistas da classe trabalhadora hardcore), Camp Three Arrows (um retiro do Partido Socialista) e Shrub Oak Park (um campo “progressista” para New Dealers de esquerda, sindicalistas, sionistas “trabalhistas”, um punhado de comunistas , e até mesmo alguns judeus religiosos).

Os lucros dessa apresentação no final do verão de 1949 apoiariam o capítulo do Harlem da luta pela liberdade do Congresso dos Direitos Civis e ajudariam a pagar a defesa legal de alguns de seus líderes comunistas, em julgamento na Foley Square de Manhattan sob as disposições do Smith Act. Howard Fast, proeminente romancista e comunista americano, serviu como presidente do concerto.

Um desfile de protesto, composto por veteranos de direita, conservadores de Westchester e Putnam County e adolescentes locais, marchou sobre o show. A contramobilização rapidamente se transformou em um tumulto total, e os organizadores tiveram que cancelar o concerto beneficente do Congresso dos Direitos Civis antes de começar.

Robeson, Fast, and the People's Artists, no entanto, não se assustaram. Woody Guthrie se juntou a eles – não como artista, mas como testemunha e guarda – e eles remarcaram o show para 4 de setembro de 1949.

Naquele dia, o concerto foi em frente. Um público racialmente integrado de pelo menos quinze mil social-democratas, comunistas, socialistas e amantes da música compareceu. Mais de mil membros de sindicatos de base, veteranos de esquerda e “guardas do povo” voluntários formaram uma corrente humana para proteger o show – mas os “fascistas” de Peekskill estavam esperando por participantes após o término do show.

Com a ajuda da polícia, os contra-manifestantes mutilaram mais de uma centena de espectadores. A violência se estendeu de volta para a cidade. De acordo com muitos relatos, o motim seguiu os ônibus que voltavam para casa e os reacionários jogaram pedras pelas janelas “descendo até a 210th Street e a Broadway”.

Os Peekskill Riots contam a história da reação do pós-guerra. Eles documentam o impulso conservador e os programas de reajuste estrutural que bloquearam a capacidade da esquerda americana de estabelecer os Estados Unidos social-democratas após a Segunda Guerra Mundial, mas também contam a história da resistência ao fascismo local: uma resistência que ressurgiu na década de 1960 e está crescendo hoje de novo.

Massacrar os comunistas

Howard Fast lembrou-se do motim de agosto como o inferno na terra. Em seu polêmico Peekskill U.S.A. de 1951, ele escreveu:

Seus líderes estavam bebendo de cantis e garrafas de bolso até o momento do ataque, e agora, enquanto batiam e arranhavam nossas linhas, derramavam uma torrente de palavras e slogans obscenos. Eles estavam conscientes de Adolf Hitler. Ele era um deus em suas fileiras e eles gritavam sem parar,

“Nós somos os meninos de Hitler – os meninos de Hitler!”

“Nós vamos terminar o trabalho dele!”

“Deus abençoe Hitler e f... — seus n... —– bastardos e bastardos judeus!”

“Lynch Robeson! Dê-nos Robeson! Vamos amarrar aquele grande n... —– pendurá-lo! Dêem-no para nós, seus bastardos!”

Para os frequentadores de shows negros, a noite se transformou em um motim da raça branca, um linchamento. Para os judeus, foi um pogrom. A pequena cruz em chamas que apareceu confirmou as suspeitas de ambos os grupos. As organizações de veteranos negaram a responsabilidade por isso, mas muitos dos conservadores que marcharam no show se viram como a tropa de choque da guerra doméstica contra o comunismo. Eles estavam determinados a vencer, de preferência por meio de publicidade, mas pela força, se necessário.

Os contra-manifestantes explicaram suas motivações de diferentes maneiras. Alguns alegaram indignação com o comentário de Robeson em abril de 1949 no Congresso Mundial dos Partidários da Paz, onde ele disse: “É impensável que os negros americanos iriam à guerra em nome daqueles que os oprimiram por gerações contra a União Soviética, que em uma geração elevou nosso povo à plena dignidade humana”.

Outros, observando que a Legião Americana local se opôs à aparição de Robeson em 1947 no Estádio Peekskill, tinham ressentimentos de longa data para resolver.

Outros ainda discordaram da escolha do local dos organizadores: Lakeland Acres ficava do outro lado da rua de um cemitério onde os mortos de guerra de Peekskill foram enterrados. Na tarde do segundo concerto, os veteranos de direita cantaram:

Roll out the commies
We’ve got the Reds on the run,
Roll out the commies
The cleanup has only begun:
Roll out the barrel
Let’s sing a song of good cheer —
Tell the vodka boys we’re marching
And we’re marching over here.

Embora esses distúrbios tenham surgido diretamente da reação do pós-guerra, o catalisador estava na crise mais local de Peekskill. Em 1949, a cidade desindustrializada e profundamente conservadora havia diminuído para apenas dezoito mil habitantes. Seus trabalhadores sofreram com o desemprego acima da média graças à Lei Taft-Hartley de 1947, que autorizou os estados a aprovar uma legislação de “direito ao trabalho”.

As fábricas sindicalizadas do Norte – como as fábricas de fogões de aquecimento e as fundições de ferro de Peekskill – não podiam competir com a mão de obra barata do Sul. Muitos desses empregadores fecharam no final dos anos quarenta e início dos cinquenta. “[Com] o uso doméstico de fogões a carvão diminuindo”, escreveu o historiador local Clinton Acker em 1962, “e com apenas negócios de exportação restantes, a indústria de fogões de Peekskill faliu gradualmente, pois a concorrência de Birmingham, Alabama, tornou impossível continuar. ” Ele acrescentou: “Todo esforço deve ser feito para produzir mais empregos”.

Os tumultos só provocaram mais reações. Em novembro do mesmo ano, George Benzinger, comandante do posto da Legião Americana de Peekskill, que liderou os veteranos nos tumultos, assumiu o crédito por fraturar o movimento trabalhista e por despojar a luta pela liberdade negra de dois de seus campeões. Ele escreveu:

O CIO, por sua recente ação em expulsar o sindicato dos trabalhadores elétricos [UE] e montar a máquina para a expulsão de outras dez organizações de esquerda, começou a rolar a bola na direção certa. A derrota de Ben Davis [o membro comunista negro do Conselho da Cidade de Nova York], a condenação de Red, no julgamento por traição, na eleição de terça-feira [é] também gratificante, duplamente porque ele foi espancado por um homem de sua própria raça, um repúdio perfeito por seu próprio povo. Paul Robeson tem estado bastante quieto ultimamente e sua eficácia como influência foi consideravelmente reduzida. ... O caso em Peekskill, N.Y. teve muito a ver com esses eventos.

Ele acrescentou: “A derrota de Ben Davis ocorreu em grande parte como resultado de sua participação em Peekskill”. Mesmo que a declaração de Benzinger não passe de uma ostentação absurda, ela afirma claramente sua intenção de silenciar os radicais trabalhistas e os líderes militantes dos direitos civis.

De fato, os Peekskill Riots ajudaram a consolidar um “liberalismo embutido” americano, que fragmentou e desradicalizou o movimento trabalhista para criar um ambiente mais favorável ao capital do que aos trabalhadores.

Quando o líder do sindicato comunista Irving Potash implorou ao Sindicato dos Fabricantes de Levedura Local 42 (CIO) de Peekskill por uma declaração de solidariedade após o segundo motim, a liderança do sindicato respondeu com um insulto que eles sabiam que iria doer: “Nós protestamos contra você e sua espécie no movimento trabalhista que fazem mais para prejudicar o movimento do que a Lei Taft-Hartley, o N.A.M. [Associação Nacional de Fabricantes] e todos os empregadores anti-sindicais combinados.”

Tomar a linha

Os Peekskill Riots também documentam a resistência das pessoas comuns a esse clima reacionário do pós-guerra. Sidney Marcus, membro do Sindicato Internacional dos Trabalhadores de Pele e Couro e marxista de longa data, perdeu um olho protegendo Robeson e seu público naquele setembro. Trinta anos depois, Marcus relembrou esse momento reacionário:

Subestimamos os perigos. Esse foi o nosso maior erro. A prova disso é que logo em seguida tivemos abate por atacado. O Comitê de Atividades Antiamericanas da Câmara. Os resultados do Smith Act, o expurgo em massa dos artistas[,] a delação que aconteceu[,] as submissões à autoridade fascista, tudo isso foi orquestrado. Eles queriam gerar um clima neste país que produzisse medo nas pessoas. Você não ousa falar pelos direitos dos negros ou pelos direitos dos judeus ou pelos direitos de qualquer pessoa porque o mesmo que aconteceu em Peekskill aconteceria com você. Geramos animosidade porque atende à nossa estrutura de lucro.

A resistência de Sidney Marcus o deixou fisicamente e psicologicamente marcado, mas ele teria lutado novamente: “Eu daria um passo além”, disse ele em 1979:

Se] hoje houvesse uma tentativa honesta e organizada de derrotar a estrutura que está nos destruindo hoje, eu estaria pronto para me juntar a ela novamente, aos 58 anos e mesmo com minhas deficiências físicas. Porque é assim que eu sou e nada vai deter-me.

Os manifestantes de Peekskill atacaram um show – de certa forma, atacaram a própria música radical. Portanto, esta história também nos conta sobre como a cultura popular, canções de liberdade negra, hinos antifascistas e música folclórica animaram e sustentaram a resistência à reação anticomunista, antitrabalhadora e racista do pós-guerra.

Essa música preservou e acabou transformando a tradição radical do pré-guerra. The songs — which called for a racially integrated, socially democratic United States and critiqued Cold War imperialism — carried these ideas into the 1950s underground and back into mainstream American life in the sixties.

The songs specifically about the Peekskill Riots, in their profoundly American forms and in their plainspoken rejection of racism, imperialism, war, and capitalism, directly link Popular Front radicalism to the New Left. These jeremiads and dirges and sweet ditties mounted fierce resistance to what the Left called fascism at home.

Pete Seeger, the left-wing singer and radical musicologist, performed the seminal “Hammer Song (If I Had A Hammer)” “almost for the first time” at the second Peekskill concert. Less than a year later, the inaugural issue of Sing Out! magazine featured the song on its cover.

The somewhat cryptic lyrics become startlingly clear in the context of the Peekskill show, the second violent attack on “people’s songs” in the span of eight days. The two protests also bookended the week when the Soviet Union first successfully detonated an atom bomb — although the American public wouldn’t learn about that for another month. At the moment when postwar reaction was ossifying, Seeger sang:

I’d hammer out danger
I’d hammer out warning
I’d hammer out love between all of my brothers
All over this land.

In May 1950, Sing Out! editor Robert Wolfe — a Peekskill veteran — published The Weavers’ anthem “Hold The Line,” the second of the magazine’s first seven songs. Wolfe, or perhaps songwriter Lee Hays, another Peekskill survivor, prefaced the song with a brief comment that captured the scale and the class composition of resistance to postwar reaction: “The gallant defense of the concert audience by veterans and trade unionists against Peekskill fascists inspired the stirring song.” Next to this local background, “Hold The Line” begins and ends with a call for greater resistance:

We shed our blood at Peekskill, and suffered many a pain
But we beat back the fascists and we’ll beat them back again!

Hold the line! Hold the line! As we held the line at Peekskill we will hold it ev-‘ry-where;
Hold the line! Hold the line! We will hold the line for-ev-er till there’s free-dom ev-‘ry-where.

In 1949, Woody Guthrie followed the Weavers’ model, describing a vision of euphoric resistance to postwar reaction. In his unpublished song “Streets Of Peekskill,” he mingled the Old Left’s emphasis on a unionized, antifascist, and antiracist working class with the anticipation of the New Left’s utopian counterculture. Guthrie’s emphasis on black freedom reflected both the Popular Front’s campaign to end Jim Crow and the special violence reserved for black concertgoers:

Jimmy Crow & racial hate cant stop me
Jimmy Crow & racey hate cant stop me wunna these days halleloo!
Jimmy Crow and a racial hate can’t stope [sic] me,
Bring brotherly love to Peekskill wunna big day.

Hitler’s forty million could not hold me
Hitler’s forty million could notta hold me wunna big day hale!
Hitler’s forty million could notta stop me,
Gonna stop old Hitler at Peekskill wunna big day.

I’ma gonnta sing & dance around Peekskill
I’ma gonnta sing & dance around Peekskill wunna big day halleju
I’ma gonnta sing & dance around Peekskill
Bring my union love to Peekskill wunna big day.

The song imagines how Guthrie’s “union love” could defeat Nazism and organize millions of workers. If this resistance had won, perhaps workers in solidarity with black self-organization could have sped civil rights in an American social democracy. Nothing less than this was at stake in the fields outside Peekskill those two days.

O último ano do pós-guerra

At the benefit concert, Paul Robeson sang “Go Down, Moses” and his radicalized version of “Old Man River,” which deleted the racial epithet and added the line “I must keep fightin’ until I’m dyin’.” He also performed the Yiddish freedom anthem “Song of the Warsaw Ghetto” for at least the second time that summer.

He first sang it in Moscow that June, immediately after he learned that the Soviet regime had arrested and murdered his friend Solomon Mikhoels, the renowned Soviet-Jewish actor. In response, Robeson demanded to meet with the Yiddish poet Itzik Feffer, whom Stalin’s regime had imprisoned and probably tortured. Officials reluctantly staged a brief, bugged meeting between the two artists.

The Soviet Union had liberated the bulk of European Jewry during the war, but, just as Stalin had already betrayed the revolution, he swiftly betrayed the emancipatory promise of the Allies’ antifascist victory. His government was no stranger to massive and coercive population transfers, and, by 1949, the regime had embarked on a low-key, but gradually escalating, public campaign that targeted some of the nation’s most prominent Jewish citizens and workers.

It took supreme bravery for Robeson to perform “Song of the Warsaw Ghetto” in that Moscow concert hall. He dedicated his rendition to Mikhoels and Feffer, told the audience that he had met with Feffer (as if to ensure the poet’s survival), and translated the freedom cry into Russian so that every attendee would understand his blackness, Mikhoels’s and Feffer’s Jewishness, and the Soviet-American reaction of 1949:

Never say that you have reached the very end,
When leaden skies a bitter future may portend,
For sure the hour for which we yearn will yet arrive,
And our marching steps will thunder: we survive!

In 1974, Arthur Miller called 1949 “the last postwar year,” exclaiming, “What a world we had almost grasped!” He continued: “A sort of political surrealism came dancing through the ruins of what had nearly been a beautifully moral and rational world.”

Miller was right. In the first postwar years, millions of American workers struck to organize the unorganized, including black workers, and for cradle-to-grave social security. The labor and civil rights leader A. Philip Randolph summed up their demands:

When this war ends, the people want something more than the dispersal of equality and power among individual citizens in a liberal, political democratic system. They demand with striking comparability the dispersal of equality and power among the citizen-workers in an economic-democracy that will make certain the assurance of the good life– the more abundant-life– in a warless world.

Faced with a mass working-class revolt, Truman and factions of the first postwar Democratic congress continued pressing for a single-payer health-care program underwritten by the federal government. They fought on even after the American Medical Association attacked them as “followers of the Moscow party line.”

It might also represent the first year of what Stephen J. Whitfield calls “Cold War culture.” In 1949, Mao’s Communist Party won the Chinese Civil War, and Moscow held its first successful atom bomb test, giving more impetus to those warning of the “communist menace” in the West.

It certainly marked an economic watershed — the culmination of four years of profound economic change accomplished through structural readjustment programs. The labor constraints inaugurated by the 1947 Taft-Hartley Act — the ban on solidarity strikes or “secondary boycotts,” the illegalization of closed shop clauses in contracts, the provision allowing states to enact “right-to-work” laws, the ban on union-administered health care rules, and the provision allowing bosses to ignore unions with leaders who hadn’t sworn a loyalty oath — remain the most famous, but this law represents just one of the changes to American capitalism’s structure during those first postwar months and years.

Between 1945 and 1949, wartime rent and price controls were ended. Rapid automation replaced militant workers. Early Northern deindustrialization and Southern “right-to-work” laws shifted the geography of American manufacturing. December 1945 marked the birth of the International Monetary Fund (IMF) and the World Bank, which would spread capitalism worldwide.

Indeed, the World Bank immediately globalized anticommunism — not only as a Cold War foreign policy but as a tool to retard social-democratic progress — when it compelled France to exclude the hugely popular Communist Party (PCF) from its post-Vichy coalition government. Cutting out the PCF came as an implicit condition for the World Bank’s very first loan. The Marshall Plan included many of the structural provisions the American government had enacted at home: an end to price controls, balanced or even austerity budgets instead of deficit spending on social programs, and so on.

During these four years, American domestic policy prefigured the IMF’s, World Bank’s, and Marshall Plan’s repertoire. These institutions would export this program in the years and decades that followed. Workers bore the brunt of the ruling class’s long-term project to maximize profit from labor and to minimize workers’ rights.

Outro mundo

Woody Guthrie’s Peekskill songs document his unadulterated rage at the events that summer. In “My Thirty Thousand,” an ode to the trade-union guards and the audience at the second show, Guthrie’s anger was fierce:

Each eye you tried to gouge,
each skull you tried to crack,
has a thousand thousand friends
around this green grass!
You’ll furnish the skull someday
I’ll pass the clubs and guns
to the billion hands that love
my thirty thousand!

In “Talkin’ Peekskill,” he wrote:

I’ma tellin’ you kukluck hoodlum thugs
I’ma tellin’ you bloodyhound nazi dogs
I’ma tellin’ you twobit fascist rats
I’ma rollin’ back ta Peekskill with bulletproof glass!

Other songs balanced his anger with a nuanced understanding of the region’s decline in the context of the deindustrializing economy. Guthrie’s solidarity with poor and working-class kids tempered his severe judgment. In “Letter To Peekskillers (from Woody Guthrie),” he imagined a young man looking for work, swept up into a concert attack squad:

I thought when I climbed on that truck they would carry us down
To line up and sign up for some kind of work round the town;
When they used our hands to smash cars for that cowardly klan,
I’m glad the cops caught me and hauled me back here to the can.

Lots of the kids just a year or two older than I
Hated the wild tales and never did fall for their line;
I’d rather make new cars than wreck them any old day,
And nine out of ten in my gang I know feel the same way.

Guthrie added in a postscript: “I was that kid,” referencing his own Klan-scarred Oklahoma childhood.

The final verse of “No More Peekskill” imagines another world, a world to come that we still aspire to:

There’s agonna be lots more meetings! Lots more music!
Gonnta be lots more singin’ afterwhile!
When that Nazi dust goes blowing
When a world at peace gets growing,
I can walk and sing and dance with all my friends!

Colaborador

Joel Feingold é um organizador e escritor residente no Brooklyn, NY.

Os bolcheviques e o antissemitismo

O anti-semitismo pode ser encontrado em todo o espectro político no ano da revolução russa.

Brendan McGeever

Jacobin

Membros do Bund judeu com corpos de seus companheiros mortos em Odessa durante a revolução russa de 1905. Wikimedia Commons

Tradução / Manhã, 25 de outubro de 1917. Os trabalhadores ocupam pontos estratégicos nas ruas fustigadas pelo vento de Petrogrado. No Palácio de Inverno, o líder do Governo Provisório, Alexander Kerensky, aguarda ansioso pelo seu carro de fuga. Do lado de fora, a Guarda Vermelha controla a estação telefônica central. A tomada de poder por parte dos bolcheviques é iminente.

Não há luz nem telefone no palácio. De sua janela, Kerensky consegue ver a Ponte do Palácio: ela está ocupada por marinheiros bolcheviques. Por fim, um carro da embaixada americana lhe é assegurado e Kerensky inicia sua fuga da Petrogrado vermelha. Enquanto virava uma das esquinas, ele observara algumas pichações recém escritas nos muros do palácio: “Fora o yid (judeu) Kerensky! Vida longa ao camarada Trotsky!”.

O absurdo dessa palavra de ordem mantém sua força um século depois: Kerensky, é claro, não era judeu, enquanto Trotsky, de fato, era. Todavia, o que ela aponta é justamente para o papel complicado e contraditório que o antissemitismo teve durante o processo revolucionário. Em boa parte da literatura existente sobre a Revolução Russa, o antissemitismo é entendido como uma forma “contrarrevolucionária”, como algo ligado a uma direita antibolchevique.

É fato que essa afirmação contém muito de verdade: o regime czarista era definido por seu antissemitismo e, diante da devastadora onda de violência contra os judeus que ocorreu nos anos posteriores à Revolução, em plena Guerra Civil (1918-1921), a maior parte das atrocidades foram tocadas pelo Exército Branco e por outras forças que se opunham ao nascente governo Soviético. Mas essa é apenas uma parte da história.

O antissemitismo atravessava as divisões políticas da Rússia revolucionária, encontrando adesão em praticamente todos os grupos sociais e lealdade políticas. Dentro do marxismo, o racismo e o radicalismo político geralmente são colocados em polos opostos; em 1917, contudo, antissemitismo e ressentimento de classe poderiam ser tanto visões de mundo concomitantes ou conflitantes.

Fevereiro: uma revolução na vida judaica

A Revolução de Fevereiro transformou a vida judaica. Nos primeiros dias após a abdicação do czar Nicolau II, todas as restrições legais sobre os judeus foram suspensas. Mais de 140 estatutos, totalizando milhares de páginas, foram removidos da noite para o dia. Para lembrar esse momento histórico de abolição, uma reunião especial foi marcada pelo Soviete de Petrogrado. Era a noite de Páscoa, 24 de março de 1917. O deputado judeu que se apresentara na reunião rapidamente estabeleceu a seguinte ligação: a Revolução de Fevereiro era comparável com a libertação dos judeus no cativeiro no Egito.

Porém, a emancipação formal não foi acompanhada do fim da violência contra os judeus. O antissemitismo tinha raízes profundas na Rússia, e sua persistência, em 1917, estava diretamente ligada ao fluxo e refluxo da própria Revolução. Ao longo do ano, pelo menos 235 ataques contra judeus foram registrados. Ainda que totalizassem meros 4,5% da população, eles foram vítimas de cerca de um em cada três atos de violência física contra minorias nacionais naquele ano.

A partir da Revolução de Fevereiro, rumores de iminentes pogroms contra os judeus circulavam nas ruas do país, tanto que, quando os sovietes de Petrogrado e Moscou organizaram seus primeiros encontros, a questão do antissemitismo estava no topo da agenda. A eclosão de violência direta foi rara naquelas primeiras semanas. Mas em junho, a imprensa judaica começava a relatar que “multidões de trabalhadores” estavam se reunindo nas esquinas para saudar discursos a favor dos pogroms, que afirmavam que o Soviete de Petrogrado estaria “nas mãos dos judeus”. Por vezes, os próprios líderes bolcheviques se depararam pela primeira vez com esse preconceito. Ao andar nas ruas no início de julho, Vladimir Bonch-Bruevich – o futuro secretário de Lênin – encontrou uma multidão que abertamente clamava por pogroms contra os judeus. Ele então abaixou a sua cabeça e apressou o seu passo. Mais e mais relatos surgiram a respeito de aglomerações similares.

Às vezes o ressentimento de classe e as representações antissemitas acerca do judaísmo se entrecruzavam: mais tarde, naquele mesmo mês, oradores num comício de rua em Petrogrado clamavam para a multidão para “esmagar os judeus e a burguesia!”. Enquanto no imediato momento após a Revolução de Fevereiro, tais discursos não conseguiriam ter adesão, eles agora estavam atraindo audiências cada vez maiores. E foi nesse contexto que se reuniu em Petrogrado o Primeiro Congresso dos Sovietes de Deputados Operários e Soldados de Toda a Rússia.

A questão do antissemitismo

O Primeiro Congresso dos Sovietes foi um encontro histórico. Mais de mil delegados de todos os partidos socialistas participaram do evento, representando centenas de Sovietes locais e cerca de 20 milhões de cidadãos russos. Em 22 de junho, enquanto chegavam várias notícias de cada vez mais incidentes antissemitas, o Congresso produziu a sentença mais autoritária do movimento socialista russo na questão do antissemitismo.

Elaborado pelo bolchevique Evgenii Preobrazhenskii, a resolução chamava-se “Na luta contra o antissemitismo”. Quando Preobrazhenskii terminou de lê-la em voz alta, um deputado judeu ficou de pé para demonstrar sua mais sincera aprovação, antes de acrescentar que mesmo que isso não trouxesse de volta os judeus assassinados nos pogroms de 1905, a resolução ajudaria a curar uma das feridas que continuavam a causar tanta dor na comunidade judaica. Ela foi aprovada por unanimidade pelo Congresso.

A resolução reafirmara a antiga visão socialdemocrata que concebia que o antissemitismo seria o equivalente à contrarrevolução. Contudo, ela continha uma importante admissão: o “grande perigo”, segundo Preobrazhenskii, seria “a tendência de disfarçar o antissemitismo sob palavras de ordem radicais”. Essa convergência entre política revolucionária e o antissemitismo, continuava a resolução, representava “uma enorme ameaça ao povo judeu e para o movimento revolucionário como um todo, uma vez que ameaça[va] banhar a liberação do povo com o sangue de nossos irmãos e cobrir com desgraça todo o movimento revolucionário”. Admitir que o antissemitismo e o radicalismo político poderiam caminhar lado a lado trouxe à tona um novo terreno de debates para o movimento socialista russo, que, até então, tendia a enquadrar o antissemitismo como um resquício vinculado à extrema-direita. Conforme o processo revolucionário se aprofundou na segunda metade de 1917, a presença do antissemitismo dentro de setores da classe trabalhadora e do movimento revolucionário se tornou um problema crescente que demandava uma resposta socialista.

A resposta dos Sovietes

Até o final do verão, os Sovietes tinham iniciado uma ampla e abrangente campanha contra o antissemitismo. O Soviete de Moscou, por exemplo, organizou palestras e encontros sobre este tema em fábricas, entre agosto e setembro. Na antiga zona de assentamento judeu na Rússia, os Sovietes locais eram instrumentos de prevenção à eclosão de crimes de ódio. Em Chernigov, na Ucrânia, em meados de agosto, os Centenas Negras acusaram os judeus de estarem armazenando pão, o que levou a uma série de violentos distúrbios antijudeus. Foi necessário enviar uma delegação do Soviete de Kiev para organizar um grupo de tropas locais para acabar com os tumultos.

O Governo Provisório tentou iniciar sua própria resposta ao antissemitismo. Em meados de setembro, o governo passou uma resolução que prometia tomar “as mais drásticas medidas contra todos os ‘pogromistas’”. Uma resolução semelhante, anunciada duas semanas depois, ordenava os ministros do governo a usar “todos os poderes à sua disposição” para acabar com os pogroms. Contudo, com a transferência do poder aos Sovietes já sendo encaminhada, a autoridade do Governo Provisório estava em processo de desintegração. Um editorial do jornal governista, Russkie Vedomosti, no dia 1º de outubro, capturou bem a situação: “a onda de pogroms cresce e se expande… inúmeros telegramas chegam diariamente… [e] o Governo Provisório está atolado… a administração local está sem poder de fazer qualquer coisa… os meios de coerção estão completamente esgotados.”.

Esse não era o caso dos Sovietes. Conforme a crise política se aprofundou e o processo de bolchevização continuou rapidamente, alguns sovietes provinciais estabeleceram suas próprias campanhas contra o antissemitismo. Em Vietbsk, uma cidade a cerca de 560 km a Oeste de Moscou, o Soviete local formou uma unidade militar no início de outubro para proteger a cidade dos ‘pogromistas’. Na semana seguinte, o Soviete de Orel aprovou uma resolução a fim de coibir todas as formas de violência antissemita.

No extremo-oriente da Rússia, um encontro dos Sovietes de Toda Sibéria publicou uma resolução contra o antissemitismo, declarando que o Exército revolucionário local deveria tomar “todas as medidas necessárias” para evitar novos ataques. Isso revela o quão enraizada estava a luta contra o antissemitismo entre os diferentes setores do movimento socialista organizado: mesmo no extremo-oriente, onde havia, em termos comparativos, menos judeus e até mesmo menos pogroms, os Sovietes locais identificavam-se com os judeus no lado ocidental que sofriam nas mãos dos antissemitas.

Sem dúvidas, em meados de 1917 os Sovietes tinham se tornado a principal oposição política ao antissemitismo na Rússia. O editorial do jornal Evreiskaia Nedelia (Semana Judaica) sintetizou bem: “Deve ser dito, e devemos dar-lhes os devidos créditos, que os sovietes encamparam uma enérgica luta contra [os pogroms]. Em muitos lugares, foi graças a sua força que a paz fora restaurada”.

Porém, convém observar que essas campanhas contra o antissemitismo eram direcionadas aos operários nas fábricas e, por vezes, também para militantes dentro do movimento socialista mais amplo. Em outras palavras, o antissemitismo era identificado como um problema dentro da base social da esquerda radical e mesmo em seções do próprio movimento revolucionário. O que isso revelava, é claro, é que o antissemitismo não emanava simplesmente “de cima para baixo”, como mero reflexo das instituições czaristas; ele possuía uma base orgânica em setores da classe trabalhadora e tinha de ser confrontado dessa maneira.

O inimigo interno

Para a liderança bolchevique, as políticas revolucionárias não eram apenas incompatíveis com o antissemitismo; elas eram a sua antítese. Assim afirmava a manchete da capa do Pravda, principal jornal do partido, em 1918: “Ser contra os judeus é ser a favor do Czar!”. Todavia, seria um erro levar em consideração as posições de Lenin e Trotsky e “deixar de lado” os pensamentos e sentimentos que emergiam da base. Como os acontecimentos de 1917 demonstravam, revolução e antissemitismo nem sempre estavam em conflito.

Notícias de jornal no verão e no outono de 1917 revelam que grupos locais de bolcheviques eram frequentemente acusados por outros socialistas de perpetuarem o antissemitismo, além de, por vezes, manter antissemitas dentro da base social do partido. Por exemplo, em meados de junho e de acordo com o jornal de Georgy Plekhanov, o Edinstvo, quando os Mencheviques tentaram falar nos quarteis moscovitas na região de Vyborg, em Petrogrado, soldados aparentemente incitados pelos bolcheviques, gritaram “Abaixo todos eles! São todos Judeus!”. É importante observar que Plekhanov era um antibolchevique obsessivo por volta de meados de 1917, então esta fonte tem que ser tratada com cautela.

Contudo, tais alegações eram bastante disseminadas. Mais ou menos na mesma época, o jornal Menchevique Vpered relatou que os bolcheviques em Moscou calaram os Mencheviques, sob a acusação de serem “judeus” que “exploravam o proletariado”. Quando centenas de milhares de trabalhadores tomaram as ruas de Petrogrado em 18 de junho, foi registrado que alguns bolcheviques derrubaram as bandeiras de grupos bundistas, gritando palavras de ordem antissemitas. Em resposta, o bundista Mark Liber acusou os bolcheviques de serem “pró-ataques aos judeus”.

Com a chegada do mês de outubro, essas acusações se tornaram mais frequentes. Na edição de 29 de outubro do Evreiskaia Nedelia, um editorial chegou ao ponto de alegar que o grupo antissemita “Centenas Negras” estava “entrando nas fileiras dos bolcheviques” em todo o país.

Tais alegações eram evidentemente exageradas. A liderança bolchevique se opôs ao antissemitismo e a maioria dos membros do partido participou do desenvolvimento da resposta pluripartidária contra o antissemitismo nas fábricas e nos Sovietes. Mesmo assim, a ideia de que o bolchevismo poderia ser atraente aos antissemitas de extrema-direita não era totalmente sem fundamento. Em 29 de outubro, um impactante editorial no veículo antissemita de extrema-direita, Groza (‘Tempestade’), declarou:

“Os Bolcheviques tomaram o poder. O judeu Kerensky, lacaio dos britânicos e dos banqueiros do mundo, tendo descaradamente assumido o título de comandante-chefe das forças armadas e se auto declarado Primeiro-Ministro do Império Ortodoxo Russo, será varrido do Palácio de Inverno, de onde profanou os resquícios do pacificador Alexandre III com sua presença. Em 25 de outubro, os bolcheviques unificaram todos os regimentos que se recusaram a submeter-se a um governo composto por banqueiros judeus, generais traiçoeiros, senhores de terra traidores e comerciantes ladrões”.

O jornal foi imediatamente fechado pelos bolcheviques, mas esse apoio indesejado alarmou a liderança do Partido.

O que preocupava os socialistas moderados acerca da capacidade do antissemitismo e da revolução se justaporem era a forma a qual os bolcheviques mobilizavam as massas e canalizavam o seu ressentimento de classe. Em 28 de outubro, quando a revolução estava em fluxo intenso, o Comitê Eleitoral dos Mencheviques de Petrogrado lançou um apelo desesperado aos trabalhadores da capital, alertando que os bolcheviques haviam seduzido os “trabalhadores e soldados ignorantes”, e que o apelo de “Todo poder aos Sovietes!” facilmente poderia se tornar “Acabem com os judeus, acabem com os lojistas”. Para o Menchevique Lvov-Rogachevskii, a “tragédia” da Revolução Russa estaria no fato aparente de que “as massas sombrias (temnota) são incapazes de distinguir um provocador de um revolucionário, ou um pogrom de uma revolução social”.

A imprensa judaica ecoava essas preocupações. De acordo com um artigo em destaque no Evreiskaia Nedelia, “o camarada Lênin e seus companheiros bolcheviques conclamam o proletariado para ‘transformar suas palavras em ações’ (pereiti ot slovo k delu), mas onde quer que se juntem os eslavos, o “transformar as palavras em ações”, significa, na verdade, ‘atacar todos os judeus’.”.

Entretanto, contrária a essas predições alarmistas, nas horas e nos dias que se seguiram após a tomada de poder dos bolcheviques, não houve nenhum grande pogrom no interior da Rússia. A insurreição não se voltou para a violência antissemita que se previa. O que os alertas citados acima revelam, contudo, é justamente o quão profundo era o medo das “massas sombrias” entre os setores da esquerda socialista que alegavam falar em seu nome. E isso é especialmente verdadeiro ao se falar da intelligentsia, que geralmente abordava a noção de levante proletário com horror, pois acreditavam que o seu resultado inevitável seria uma torrente de violência e barbárie.

O que definia os bolcheviques durante esse período era precisamente sua proximidade para com as massas de Petrogrado que eram tão temidas pela intelectualidade.

Contudo, as justaposições entre antissemitismo e política revolucionária eram reais. Dias após a Revolução de Outubro, o escritor Ilia Ehrenburg – que logo se tornaria o mais prolífico e famoso autor judeu na União Soviética – recolheu-se para registrar suas reflexões sobre os eventos atribulados que tinham ocorrido. Seu registro talvez seja a mais vívida descrição acerca da articulação entre o antissemitismo e o processo revolucionário de 1917:

“Ontem eu estava esperando na fila, aguardando para votar para a formação da Assembleia Constituinte. Pessoas estavam dizendo ‘Quem estiver contra os judeus, vote no número 5! [os bolcheviques]’, ‘Quem é a favor de uma revolução mundial, vote no número 5!’ O patriarca então passou, jogando água benta e todos tiraram seus chapéus. Um grupo de soldados que passava começou a entoar a Internacional em direção a ele. Onde estou? Ou será que esse é o inferno de verdade?”

Nessa assustadora recordação, a distinção entre bolchevismo revolucionário e antissemitismo contrarrevolucionário mostra-se embaçada. De fato, o relato de Ehrenburg antecipa a atormentadora questão que seria trazida posteriormente por Isaac Babel, em seus contos da Guerra Civil, reunidos no livro A cavalaria vermelha: “qual é a Revolução e qual é a contrarrevolução?”

Apesar da insistência bolchevique de enquadrar o antissemitismo como um fenômeno puramente contrarrevolucionário, ele escapava de categorizações simples e podia ser encontrado nas diferentes clivagens políticas, em formas altamente complexas e inesperadas. Isso seria melhor revelado seis meses depois, na primavera de 1918, quando os primeiros pogroms desde a Revolução de Outubro eclodiram na antiga zona de assentamento judeu de Pale. Nas aldeias e nas cidades do nordeste da Ucrânia, como Glukhov, o poder bolchevique se consolidou a partir da violência antijudaica advinda de quadros locais do partido e da Guarda Vermelha. O conflito dos bolcheviques com o antissemitismo em 1918, mostrava-se como um frequente conflito contra o antissemitismo de sua própria base social.

Conforme relembramos o centenário da Revolução de Outubro, nós acertadamente a celebramos como um momento de transformação social radical, quando um novo mundo pareceu ser possível. A revolução, porém, precisa também ser lembrada em todas as suas complicações.

O antirracismo precisa ser cultivado e renovado, em um processo contínuo. Um século depois, enquanto lutamos contra os danos feitos pelo racismo à política de classe, 1917 pode nos ensinar bastante sobre como ideias reacionárias podem assumir o controle, mas também como elas podem ser confrontadas.

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