30 de junho de 2018

A ascensão dos empregos de merda

Um trabalho de merda é um trabalho tão inútil que até mesmo a pessoa que o faz secretamente acredita que ele não deveria existir. E existem mais agora do que nunca.

Uma entrevista com
David Graeber

Jacobin

Imagem: Public Domain Pictures.

Tradução / Em seu livro mais recente, David Graeber, o autor do best-seller Dívida: os Primeiros 5000 Anos, argumenta que muitos empregos hoje são essencialmente inúteis – ou, como o título do livro os chama, Bullshit Jobs (Trabalhos de Merda).

Suzi Weissman, da Jacobin Radio, conversou com Graeber para descobrir o que são trabalhos de merda e por que eles proliferaram nos últimos anos.

Uma taxonomia

Suzi Weissman

Vamos direto ao assunto. Qual é a definição de um trabalho de merda?

David Graeber

Um trabalho de merda é um trabalho tão inútil, ou mesmo pernicioso, que até a pessoa que o faz acredita secretamente que ele não deveria existir. Claro, você tem que fingir – esse é o elemento de merda, que você meio que tem que fingir que existe uma razão para esse trabalho estar aqui. Mas, secretamente, você acha que se esse trabalho não existisse, ou não faria qualquer diferença ou o mundo seria na verdade um lugar um pouco melhor.

Suzi Weissman

No livro, você começa distinguindo entre trabalhos de merda e merdas de trabalhos. Talvez devêssemos começar a fazer isso aqui agora, para depois podermos conversar sobre quais são os trabalhos de merda?

David Graeber

Sim, as pessoas costumam cometer esse erro. Quando você fala sobre trabalhos de merda, elas pensam apenas em trabalhos que são ruins, trabalhos que são degradantes, trabalhos em condições terríveis, sem benefícios e assim por diante. Mas, na verdade, a ironia é que esses trabalhos não são realmente de merda. Você sabe, se você tem um emprego ruim, é provável que ele esteja realmente fazendo algo de bom no mundo. Na verdade, quanto mais o seu trabalho beneficia outras pessoas, menos provavelmente elas pagarão a você e mais provavelmente será uma merda de trabalho nesse sentido. Então, você quase pode ver isso como uma oposição.

Por um lado, você tem trabalhos que são uma merda de trabalho, mas são realmente úteis. Se você está limpando banheiros ou algo assim, os banheiros precisam ser limpos, então pelo menos você tem a dignidade de saber que está fazendo algo que está beneficiando outras pessoas – mesmo que você não consiga muito mais que isso. E, por outro lado, você tem trabalhos onde é tratado com dignidade e respeito, recebe um bom pagamento, recebe bons benefícios, mas trabalha secretamente com o conhecimento de que seu emprego, seu trabalho, é totalmente inútil.

Suzi Weissman

Você divide seus capítulos em diferentes tipos de trabalhos de merda. Existem lacaios, paus-mandados, tapa-buracos, preenchedores de caixinhas, mestres de obras e o que eu chamo de contadores de feijão. Talvez possamos ver quais são essas categorias.

David Graeber

Certo. Isso veio do meu próprio trabalho, de pedir às pessoas que me enviassem testemunhos. Reuni centenas de depoimentos de pessoas que tinham trabalhos de merda. Eu perguntei às pessoas: “Qual é o trabalho mais inútil que você já teve? Conte-me tudo sobre isso; como você acha que aconteceu, qual é a dinâmica, seu chefe sabia?” Eu recebia esse tipo de informação. Fiz pequenas entrevistas com as pessoas depois, material de acompanhamento. E assim, de certa forma, criamos sistemas de categorias juntos. As pessoas me sugeriam ideias e, gradualmente, elas acabaram se reunindo em cinco categorias.

Como você disse, temos, primeiro, os lacaios. Isso é meio evidente. Um lacaio existe apenas para fazer outra pessoa parecer bem. Ou se sentir bem consigo mesmo, em alguns casos. Todos nós sabemos que tipo de trabalho eles são, mas um exemplo óbvio seria, digamos, recepcionistas em lugares que na verdade não precisam de recepcionistas. Alguns lugares obviamente precisam de recepcionistas, que estão ocupados o tempo todo. Em alguns lugares, o telefone toca talvez uma vez por dia. Mas você ainda tem que ter alguém – às vezes duas pessoas – sentado lá, com ar de importância. Então, eu não tenho que ligar para ninguém no telefone, eu terei alguém que dirá apenas: “Há um corretor muito importante que quer falar com você.” Isso é um lacaio.

Um pau-mandado é um pouco mais sutil. Mas eu meio que tive que criar essa categoria porque as pessoas sempre me diziam que achavam que seus empregos eram uma merda – se eles fossem do telemarketing, advogados corporativos, se estivessem em RP, marketing, coisas assim. Eu tive que entender por que eles se sentiam assim.

O padrão parecia ser que esses são trabalhos são realmente úteis em muitos casos para as empresas para as quais trabalham, mas eles sentiam que toda a indústria não deveria existir. Eles são basicamente pessoas que estão ali para irritar você, pressioná-lo de alguma forma. E, em termos de serem necessários, só eram necessários porque outras pessoas os têm. Você não precisa de um advogado corporativo se seu concorrente não tiver um advogado corporativo. Você não precisa de um operador de telemarketing, mas na medida em que você pode inventar uma desculpa para dizer que precisa dele, é porque os outros caras têm um. Tudo bem, isso aí é até fácil.

Tapa-buracos são pessoas que estão lá para resolver problemas que não deveriam existir em primeiro lugar. Na minha antiga universidade, a impressão era que tínhamos apenas um carpinteiro, e carpinteiros eram muito difíceis de conseguir. Um dia, a prateleira do meu escritório na universidade onde eu trabalhava na Inglaterra desabou. O carpinteiro deveria ter vindo, e havia um buraco enorme na parede, dava para ver o estrago. E ele nunca aparecia, ele sempre tinha outra coisa para fazer. Finalmente descobrimos que havia um cara sentado ali o dia todo, se desculpando pelo fato de o carpinteiro nunca ter vindo.

Ele é muito bom no trabalho, é um sujeito muito simpático, que sempre parecia um pouco triste e melancólico, e era muito difícil ficar com raiva dele, e é claro o que trabalho dele era para isso. Ele era efetivamente um sujeito que estava ali para tomar esporro. Mas aí eu pensei, se eles demitissem aquele cara e contratassem outro carpinteiro, não iam precisar mais dele. Então, esse é um exemplo clássico de tapa-buracos.

Suzi Weissman

E os preenchedores de caixinhas?

David Graeber

Preenchedores de caixinhas existem para permitir que uma organização diga que está fazendo algo que na verdade não está fazendo. É como uma comissão de inquérito. Se o governo fica constrangido com algum escândalo – digamos, os policiais estão atirando em muitos cidadãos negros – ou se alguém aceita suborno, há algum tipo de escândalo. Eles formam uma comissão de inquérito, fingem que não sabiam o que estava acontecendo, fingem que vão fazer algo a respeito, o que é completamente falso.

Mas as empresas também fazem isso. Elas estão sempre criando comissões. Existem centenas de milhares de pessoas em todo o mundo que trabalham com compliance em bancos, e isso é uma besteira completa. Ninguém jamais teve a intenção de seguir qualquer uma dessas leis que lhe são impostas. Seu trabalho é simplesmente aprovar todas as transações, mas é claro que não é suficiente aprovar todas as transações porque isso parece suspeito. Então você tem que inventar razões para dizer que há algumas coisas que você investigou. Existem rituais muito elaborados de fingir que se está olhando para um problema que você não está realmente olhando.

Suzi Weissman

Então você vai para o mestre de obras.

David Graeber

Mestres de obras são as pessoas que estão lá para dar às pessoas trabalho que não é necessário, ou para supervisionar pessoas que não precisam de supervisão. Todos nós sabemos de quem estamos falando. A gerência média, é claro, é um exemplo clássico disso. Eu tinha pessoas que me diziam sem rodeios: “Sim, eu tenho um emprego de merda, estou na gerência média. Fui promovido. Eu costumava fazer o trabalho de verdade, e eles me colocaram no andar de cima e disseram para supervisionar as pessoas, fazer com que elas fizessem o trabalho. E eu sei perfeitamente bem que eles não precisam de alguém para supervisioná-los ou obrigá-los a fazer isso. Mas eu tenho que inventar alguma desculpa para existir de qualquer maneira.” Então, eventualmente, em uma situação como essa, você diz: “Tudo bem, bem, vamos apresentar estatísticas de destino, para que eu possa provar que você está realmente fazendo o que eu já sei que você está fazendo, para que eu possa sugerir que eu fui o cara que fez você fazer isso.”

Na verdade, você pede que as pessoas preencham uma série de formulários, de forma que elas gastam menos tempo fazendo o trabalho. Isso acontece cada vez mais em todo o mundo, mas nos EUA alguém fez algum estudo estatístico e descobriu que acho que algo como 39 por cento do tempo médio que um funcionário de escritório deveria estar trabalhando, ele está de fato trabalhando em seu emprego. Cada vez mais, são e-mails administrativos, reuniões inúteis, todos os tipos de preenchimento de formulários e papelada, basicamente.

Inchaço administrativo

Suzi Weissman

No pensamento radical ou marxista, existe o conceito de trabalho produtivo e improdutivo. Eu me pergunto como a categoria do trabalho de merda se conecta à ideia de trabalho ou emprego improdutivos.

David Graeber

É diferente. Porque produtivo e improdutivo significa a existência de produção de mais-valia para os capitalistas. Essa é uma pergunta bem diferente. É uma avaliação subjetiva do valor social do trabalho pelas pessoas que o executam.

Por um lado, as pessoas meio que aceitam a ideia de que o mercado determina o valor. Isso é verdade na maioria dos países agora. Você quase nunca ouve pessoas no varejo ou em serviços dizendo: “Eu vendo bastões para selfies, por que as pessoas querem bastões para selfies? Isso é burrice, as pessoas são imbecis.” Elas não dizem isso. Elas não dizem: “Por que você precisa gastar cinco dólares em uma xícara de café?” Então, as pessoas em trabalhos de serviços não acham que têm trabalhos de merda, em quase nenhum caso. Eles aceitam que se há um mercado para algo, as pessoas querem. Quem sou eu 
para julgar? Eles compram a lógica do capitalismo nesse grau.

No entanto, eles olham para o mercado de trabalho e dizem: “Espere aí, eu recebo 40 mil dólares por ano para sentar e fazer memes de gatos o dia todo e talvez atender um telefonema, isso não pode estar certo.” Portanto, o mercado nem sempre está certo; claramente o mercado de trabalho não funciona de forma economicamente racional. Existe uma contradição. Eles têm que apresentar outro sistema, um sistema tácito de valor, que é muito diferente da relação produtivo/improdutivo para o capitalismo.

Suzi Weissman

Como o aumento desses trabalhos de merda se relaciona com o que consideramos trabalhos produtivos?

David Graeber

Bem, isso é muito interessante. Temos uma narrativa da ascensão da economia de serviços. Você sabe, desde os anos oitenta, estamos abandonando a manufatura. Da forma como é apresentado, nas estatísticas econômicas, parece que a mão-de-obra agrícola em grande parte desapareceu, a mão-de-obra industrial diminuiu – não tanto quanto as pessoas parecem pensar, mas diminuiu – e os serviços estão em alta.

Mas isso também ocorre porque eles dividem os serviços para incluir cargos de escritório, gerenciais, de supervisão e administrativos. Se você os diferenciar, se olhar para os serviços nesse sentido, para as pessoas que estão cortando seu cabelo ou servindo sua comida – bem, na verdade, o serviço permaneceu praticamente estável em 25% da força de trabalho nos últimos 150 anos. Não mudou em nada. O que realmente mudou foi essa explosão gigantesca de burocratas de papel, e esse é o setor de trabalhos de merda.

Suzi Weissman

Você chama isso de burocracia, setor administrativo, setor de gerência média.

David Graeber

Exatamente. É um setor onde o público e o privado se fundem. Na verdade, uma área para a proliferação maciça desses trabalhos é exatamente onde não está claro o que é público e o que é privado: a interface, onde privatizam os serviços públicos, onde o governo está detendo o avanço dos bancos.

A seção bancária é uma loucura. Há um cara com quem eu começo o livro, na verdade. Eu o chamo de Kurt, não sei seu nome verdadeiro. Ele trabalha para um subempreiteiro de um subempreiteiro para um subempreiteiro do exército alemão. Basicamente, há um soldado alemão que deseja mover seu computador de um escritório para outro. Ele tem que fazer um pedido a alguém para ligar para alguém para ligar para alguém – isso passa por três empresas diferentes. Por fim, ele tem que dirigir 500 quilômetros num carro alugado, preencher os formulários, colocar na embalagem, transportar, outra pessoa desempacota, e ele assina outro formulário e vai embora. Esse é o sistema mais ineficiente que você poderia imaginar, mas tudo é criado por essa interface entre as coisas público-privadas, que supostamente tornaria as coisas mais eficientes.

Suzi Weissman

Grande parte do ethos, como você assinala, dos tempos Thatcher-Reagan, é que o governo é sempre o problema e o governo é onde estão todos esses trabalhos. Então, foi um ataque ao setor público. Ao passo que você mostra que muito disso vem do setor privado, dessa burocratização. A necessidade de maximizar lucros e cortar custos – que é o que pensamos em termos de capitalismo e do estresse da competição – não milita contra a criação desses trabalhos inúteis no setor privado?

David Graeber

Seria de imaginar que sim, mas parte da razão pela qual isso não acontece é que, quando imaginamos o capitalismo, ainda estamos imaginando um monte de empresas de médio porte engajadas na manufatura e no comércio, e competindo umas com as outras. Não é bem assim que a paisagem se parece hoje em dia, especialmente no setor FIRE.

Além disso, se você olhar para o que as pessoas realmente fazem, há toda essa ideologia de enxuto e eficiente. Se você é um CEO, é elogiado por quantas pessoas pode demitir, reduzir e acelerar. Os caras que estão sendo reduzidos e acelerados são os operários, os produtivos, os sujeitos que estão realmente fazendo as coisas, movendo-as, mantendo-as, fazendo o trabalho de verdade. Se eu sou UPS, os motoristas estão sendo taylorizados constantemente.

No entanto, você não faz isso com os caras que estão nos escritórios. Acontece exatamente o contrário. Dentro da corporação, há todo esse processo de construção de impérios, por meio do qual diferentes gerentes competem entre si, principalmente para ver quantas pessoas trabalham sob seu comando. Eles não têm nenhum incentivo para se livrar das pessoas.

Você tem esses caras, equipes de pessoas, cujo trabalho todo consiste em escrever os relatórios que executivos importantes apresentam em grandes reuniões. Grandes reuniões são como o equivalente a justas feudais, ou os rituais elevados do mundo corporativo. Você entra lá e tem todo esse equipamento, e tem tudo isso, seus pontos de energia, seus relatórios e assim por diante. Portanto, há equipes inteiras que estão lá apenas para dizer: “Eu faço as ilustrações para os relatórios desse cara” e “Eu faço os gráficos” e “Eu tabulo os dados e mantenho o banco de dados”.

Ninguém nunca lê esses relatórios, eles estão lá apenas para dar uma olhada. É o equivalente a um senhor feudal – tenho um cara cujo trabalho é apenas aparar meu bigode e outro cara que está polindo meus estribos e assim por diante. Só para mostrar que eu posso fazer isso.

Suzi Weissman

Você também vê um paralelo com o aumento dos trabalhos de merda, que é o aumento dos trabalhos que não são de merda. Você os chama de trabalhos de cuidar ou prestar cuidados. Pode descrever esses trabalhos? Por que há um aumento nesses trabalhos, e em que setores eles estão?

David Graeber

Estou pegando o conceito em grande parte da teoria feminista. Eu acho que é muito importante, porque a ideia tradicional de trabalho, eu acho, é muito teológica e patriarcal. Temos essa ideia de produção. Vem com a ideia de que o trabalho deve ser doloroso, é o castigo que Deus infligiu a nós, mas também é uma imitação de Deus. Quer seja Prometeu ou seja a Bíblia, os humanos se rebelam contra Deus, e Deus diz: “Ah, você quer meu poder? Tudo bem: você pode criar o mundo, mas será terrível, você vai sofrer para fazer isso.”

Mas também é visto como um negócio essencialmente masculino: as mulheres dão à luz e os homens produzem coisas, é a ideologia. Claro, isso torna todo o trabalho real que as mulheres fazem, de manter o mundo, invisível. Essa ideia de produção, que está no cerne das teorias do movimento operário do século XIX, a teoria do valor-trabalho – é um pouco enganosa.

Você pergunta a qualquer marxista sobre trabalho e valor-trabalho, eles sempre vão imediatamente para a produção. Bem, aqui está uma xícara. Alguém tem que fazer a xícara, é verdade. Mas fazemos um copo uma vez e lavamos dez mil vezes, certo? Esse trabalho simplesmente desaparece por completo na maioria desses relatos. A maior parte do trabalho não é produzir coisas, é mantê-las iguais, é mantê-las, cuidar delas, mas também cuidar de pessoas, cuidar de plantas e animais.

Houve um debate, se não me engano, em Londres sobre os trabalhadores do metrô. Eles estavam fechando todas as bilheterias do metrô de Londres. Muitos marxistas disseram: “Ah, você sabe, de certa forma esse é provavelmente um trabalho de merda, porque você realmente não precisaria de compradores de ingressos no comunismo pleno, o transporte seria gratuito, então talvez não devêssemos defender esses trabalhos.” Lembro-me de pensar que havia algo um tanto superficial ali.

E então eu vi um documento que foi na verdade publicado pelos grevistas, onde eles diziam: “Boa sorte no novo metrô de Londres sem ninguém trabalhando na estação de metrô. Vamos torcer para que seu filho não se perca, vamos torcer para que você não perca suas coisas, vamos torcer para que não haja acidentes. Vamos torcer para que ninguém surte e tenha um ataque de ansiedade ou fique bêbado e comece a assediar você.”

Eles examinam a lista de todas as coisas diferentes que eles realmente fazem. Você percebe que mesmo muitos desses trabalhos clássicos da classe operária são realmente uma mão de obra de cuidado, é sobre cuidar das pessoas. Mas você não pensa nisso, você não percebe isso. É muito mais como uma enfermeira do que como um operário.

Além da merda

Suzi Weissman

Uma das coisas que você diz em seu livro é que você pensou que o Occupy poderia ser o início da rebelião da classe assistencial.

David Graeber

Havia uma página no Tumblr chamada “Somos os 99%”, e era para pessoas que estavam ocupadas demais trabalhando para realmente tomar parte nas ocupações de forma contínua. A ideia era que você pudesse escrever uma pequena placa onde falasse sobre a sua situação de vida e porque apoia o movimento. Sempre terminaria, “Eu sou o 99%.” Teve uma grande resposta; milhares e milhares de pessoas fizeram isso.

Quando eu analisei isso, percebi que quase todos eles estavam no setor de assistência em algum sentido. Mesmo que não fossem, os temas pareciam ser muito semelhantes. Eles estavam basicamente dizendo: “Olha, eu queria um emprego onde pelo menos não estivesse machucando ninguém. Realmente, onde eu estivesse fazendo algum tipo de benefício para a humanidade, eu queria ajudar as pessoas de alguma forma, eu queria cuidar dos outros, eu queria beneficiar a sociedade”. Mas se você acabar na saúde ou na educação, no serviço social, fazendo algo onde você cuida de outras pessoas, eles vão te pagar tão pouco, e vão te deixar tão endividado, que você não consegue nem cuidar de sua própria família. Isso é totalmente injusto.

Foi aquele sentimento de injustiça fundamental que acho que realmente impulsionou o movimento mais do que qualquer outra coisa. Percebi que eles criam esses empregos fictícios, onde basicamente você está lá para fazer os executivos se sentirem bem consigo mesmos. Eles têm que inventar trabalho para outras pessoas fazerem. Na educação, na saúde, isso é incrivelmente realçado. Você vê isso o tempo todo. Frequentemente, os enfermeiros passam metade do tempo preenchendo papelada. Professores, professores do ensino fundamental, pessoas como eu – não é tão ruim no ensino superior quanto se você estiver ensinando na quinta série, mas ainda é ruim.

Suzi Weissman

Todos nós sonhamos com esta sociedade que nos liberta de um trabalho destruidor, para que possamos perseguir nossas paixões e nossos sonhos e cuidar uns dos outros. Então, é apenas uma questão política? É algo que a RBI, renda básica universal, poderia resolver?

David Graeber

Bem, acho que seria uma demanda de transição, faz sentido para mim. Em algum lugar, Marx realmente sugeriu que não há nada de errado com as reformas, desde que sejam reformas que amenizem um problema, mas criem outro problema, que só pode ser resolvido por reformas ainda mais radicais. Se você fizer isso continuamente, pode eventualmente chegar ao comunismo, disse ele. Mas ele é um pouco otimista demais.

Sabe, sou anarquista, não quero criar uma solução estatizante. Uma solução que torne o estado menor, mas ao mesmo tempo melhore as condições e torne as pessoas mais livres para desafiar o sistema, não vai encontrar muita argumentação da minha parte. E é isso que eu gosto na RBI.

Não quero uma solução que crie mais trabalhos de merda. Uma garantia de emprego parece algo bom, mas, como sabemos pela história, tende a criar pessoas pintando pedras de branco ou fazendo outras coisas que não precisam necessariamente ser feitas. Também requer uma administração gigante para administrar isso. Muitas vezes parece que são as pessoas com as sensibilidades da classe profissional-gerencial que preferem esse tipo de solução.

Ao passo que a renda básica universal significa dar a todos o suficiente para que possam sobreviver; depois disso, cabe a você. (Refiro-me às versões radicais, obviamente; não sou a favor da versão de Elon Musk.) A ideia é separar trabalho e compensação, de certa maneira. Se você existe, você merece um meio de vida. Você poderia chamar isso de liberdade na esfera econômica. Eu posso decidir como quero contribuir para a sociedade.

Uma das coisas que é muito importante sobre o estudo que fiz sobre trabalhos de merda é como as pessoas são miseráveis. Isso realmente transpareceu nos relatos. Em teoria, você está recebendo algo por nada, você está sentado aqui sendo pago para fazer quase nada, em muitos casos. Mas isso simplesmente destrói as pessoas. Há depressão, ansiedade, todas essas doenças psicossomáticas, locais de trabalho terríveis e comportamento tóxico, agravados pelo fato de que as pessoas não conseguem entender por que tem motivos justos para estar tão chateadas.

Porque, sabe, por que estou reclamando? Se eu reclamar com alguém, eles vão dizer: “Pô, você está ganhando algo por nada e ainda está reclamando?” Mas isso mostra que nossa ideia básica da natureza humana, que é inculcada em todos pela economia, por exemplo – que todos nós estamos tentando obter a maior recompensa com o mínimo de esforço – não é realmente verdade. As pessoas querem contribuir com o mundo de alguma forma. Então, isso mostra que se você dá às pessoas uma renda básica, elas não vão sentar e assistir TV, o que é uma das objeções.

A outra objeção, claro, é que, talvez eles queiram contribuir com a sociedade, mas eles vão fazer algo estúpido, para que a sociedade fique cheia de poetas ruins e músicos de rua irritantes, mímicos de rua por toda parte, gente desenvolvendo seus dispositivos de movimento perpétuo de manivela e outras bugigangas. Tenho certeza de que haverá um pouco disso, mas veja: se 40 por cento das pessoas já pensam que seus trabalhos são completamente inúteis, como pode ser pior do que já é? Pelo menos eles ficarão muito mais felizes fazendo essas coisas do que preenchendo formulários o dia todo.

Sobre o autor

David Graeber foi um professor de antropologia na London School of Economics. Ele é o autor de vários livros, incluindo Bullshit Jobs: A Theory e Debt: The First 5000 Years.

Suzi Weissman é a autora de "Victor Serge: A Political Biography".

29 de junho de 2018

Por que Alexandria Ocasio ganhou?

A vitória de Alexandria Ocasio-Cortez é um tiro na máquina democrata. Veja como isso aconteceu.

Michael Kinnucan

Jacobin

A sede do comitê de campanha de Alexandria Ocasio-Cortez em 26 de junho de 2018 no Queens, Nova Iorque. Andrew Bard Epstein

Tradução / Quanto mais você conhece a política nova-iorquina, mais surpreso fica com a vitória de Alexandria Ocasio-Cortez sobre Joe Crowley. Crowley não era somente o quarto democrata mais cotado do Congresso, como era também a força dominante na política do Queens durante toda uma década, ele era o Rei da máquina do Queens. A extensão em que Crowley e o “condado” exerceram o poder em todas as disputas no Queens e, mais amplamente, sobre as políticas de Nova York é difícil de expor e exagerar. Há apenas seis meses, Crowley forjou um novo orador para o conselho da cidade – a segunda posição mais poderosa no governo da cidade. O fato de que ele foi derrubado por uma outsider é nada menos que deslumbrante; os centros de poder da política de Nova York estão se recuperando. Se Crowley pode ser derrotado, ninguém está a salvo.

Eu sou membro do Democratic Socialists of America (DSA) e faço trabalho eleitoral no Brooklyn. Acompanhei de perto a campanha de Ocasio-Cortez, apesar de não ter trabalhado diretamente nela.

A partir de agora você deve respeitar um pouco menos minhas visões sobre a política de Nova Iorque, afinal eu nunca imaginei que isso pudesse acontecer. No começo eu pensava: “Isso será legal, porque ela é surpreendentemente boa. Ela vai ter 30% [dos votos], o que prejudicará a aura de Crowley e o poder da máquina. Acima de tudo, será bom para construir o DSA”. Eu estava pronto para, no momento em que ela perdesse, anunciar o crescimento do DSA (o que ocorreu de forma grandiosa, como muitas vezes a eleição faz acontecer). Foi só nas últimas semanas que eu comecei a sonhar com 40%. Fiquei encantado quando ela ganhou. Foi um choque tanto para a máquina como para nós mesmos. Até agora há lições que podemos tirar disso tudo.

Máquina, dinheiro e mídia

Então, ex post facto, por que isto aconteceu? Como aconteceu? Quer dizer, não dê ouvidos a mim, mas:


  • Há muito tempo venho dizendo que a terminologia da “máquina” é uma fonte de confusão. Historicamente, uma máquina política urbana distribuía enormes quantias de patrocínio diretamente para um grande número de pessoas e, portanto, tinha a fidelidade de um grande número de pessoas. Isso foi, na verdade, algo bom: dar empregos para a classe trabalhadora em troca de lealdade política não é o socialismo, mas é melhor do que os reformistas estavam tentando fazer. Porém, no decorrer da história, a máquina perdeu sua capacidade de fornecer esse tipo de patrocínio e atualmente “a máquina”, como existe no nível do condado, distribui coisas como julgamentos para um pequeno número de pessoas nos bastidores – e só. Por essa razão, seu interesse em obter votos e sua capacidade de obtê-los diminuiu de forma massiva, ao passo em que desenvolveu um forte interesse em acabar com o comparecimento às urnas e com a política. Eis a razão de sua vulnerabilidade. “Comparecimento às urnas e vitória” pode não ser uma estratégia plausível em uma eleição presidencial em que 60% das pessoas não votam, mas quando estamos lidando com uma primária onde 3% dos eleitores (10% dos Democratas) estão votando, bom, existem pessoas que estão perto o suficiente para serem politicamente engajadas e que podem fazer você aumentar em até 15% o comparecimento às urnas. E se você pode fazer isso (batendo nas portas), você pode dominar as eleições.
  • Crowley era muito poderoso, mas “poderoso” significa “comandar as cordas do poder de seu partido”, não “capaz de ganhar votos magicamente”. Estas duas coisas estão vinculadas – Crowley podia e de fato controlava o dinheiro, os apoios, etc – porém não significam o mesmo. É tolice pensar, como eu pensei, que só porque Crowley era o Democrata mais poderoso do Queens, que ele era o menos vulnerável eleitoralmente. A tendência era pensar que ninguém poderia desafiá-lo, quando, na verdade, o fato era que ninguém havia ousado fazê-lo.
  • Candidatos de qualidade. Se você já esteve em uma sala com Ocasio-Cortez, você entende o que quero dizer. Ela tem “a coisa”. Você não precisa da “coisa”, muitos dos políticos não têm, mas quando você encontra, a história é outra.
  • Pessoas brancas representando distritos com minorias são intrinsecamente vulneráveis. Há mais do que isso no Queens. Faça uma lista e vá até eles.
  • A base dos Democratas é consistentemente e quase universalmente à esquerda do partido eleito. Bem à esquerda. Não apenas pessoas do DSA, mas também do Indivisible estão à esquerda de seus representantes. Há uma lacuna real entre os políticos cujos instintos foram forjados por Reagan-Clinton e o resto de nós cujos instintos mudaram com 2008 e mudaram ainda mais após Trump. A cobertura da imprensa nacional extremamente favorável deu a Ocasio-Cortez certa credibilidade e uma grande quantia de dinheiro. Quando se é um outsider é muito difícil se separar das dezenas de candidatos marionetes que têm 5% todos os anos. Ter uma cobertura do Intercept é importante para isso. Também é importante para atrair doações de pequeno valor. Entretanto, esse elemento da campanha da Alexandria Ocasio-Cortez não é de fácil reprodução: se quisermos que não apenas um, porém dúzias de socialistas concorram a um cargo no Congresso (e como queremos isso!), nem todos podem ser o foco da atenção da mídia ou das pequenas doações. Precisamos pensar de forma mais sistemática sobre de onde virá o dinheiro.
  • Falando em dinheiro: Alexandria Ocasio-Cortez arrecadou mais de US$300.000 concentrados ao fim da campanha, após ela se tornar viral. Porém os gastos da campanha não foram tão altos assim. Isto pode te convencer que dinheiro não importa, o que certamente seria a conclusão errada. Uma versão da campanha de Ocasio-Cortez sem equipe, comitê e estrutura (em outras palavras, sem ultrapassar US$100.000) não teria chego a lugar algum. O que a sua vitória demonstra é a utilidade decrescente do dinheiro: os primeiros US$100.000 são gastos em essenciais, seus trigésimos US$100.000 servem para comprar inserções de TV. Nós podemos ganhar quando estamos massivamente desarmados, porém não podemos ganhar sem uma séria infraestrutura de captação de recursos que pretende comprar os básicos.
  • Uma coisa que não tem como enfatizar o suficiente: nada substitui uma forte campanha voluntária. US$3.000.000 não substitui uma campanha voluntária. Caso você esteja se perguntando o que é possível fazer para mudar a atual situação política, a resposta é: “campanha voluntária.”

Alianças importam

Se alguém lhe disser que essa foi uma vitória somente do DSA, esta pessoa está errada. Ocasio-Cortez – uma candidata brilhante no momento certo – trouxe toda uma série de voluntários de diferentes lugares – tanto de outras organizações, como também da rua. O que é verdade, eu acho, é que o DSA era o maior bloco organizado entre os seus voluntários. Espero que Alexandria ou outra pessoa esteja organizando o resto deles! A pior coisa do trabalho eleitoral é que às vezes não há organização pronta para construir as conexões que cria. Precisamos nos certificar de que isso não ocorra neste caso.

Algumas pessoas na DSA precisam se acostumar com o fato de que suas vitórias quase sempre estarão em aliança.

Ninguém está a salvo

Nós somos muito mais poderosos em Nova York hoje do que éramos na segunda-feira. Muito mais. Por “nós” me refiro ao DSA, a esquerda e o campo progressista – Todos nós. Mas deixe-me ser claro: nós NÃO somos mais poderosos porque temos um voto a mais no Congresso que estará ao nosso lado. Ela provavelmente irá – sua política é evidentemente boa e bastante destemida – mas isso não importa tanto em relação a outro ponto.

O outro ponto é que um deputado poderoso foi desafiado pela esquerda e perdeu. Acredite em mim quando eu digo que não há um único político em Nova Iorque que não tenha visto e aprendido algo com isso. Aquele que desafiou Yvette Clarke também estava perto. Isso nunca aconteceu antes e eles estão tremendo. Os que já tem mandato nunca perdem. Mas este cara perdeu – justamente aquele que ninguém esperava – e agora estão todos procurando uma forma de não serem desafiados pela esquerda.

Na noite da vitória eu disse: “Este é o nosso momento de Eric Cantor”. O momento em que os Democratas percebem que a sua base está com raiva e ninguém está a salvo. O Partido Republicano enlouqueceu principalmente porque a maioria dos seus deputados é mais vulnerável a um desafio primário do que a um desafio geral e a base republicana (e seus doadores riquíssimos) demonstrou que vai enfurecer se você não for um supremacista psicótico branco. Agora, os Democratas sabem que vamos enlouquecer se eles não tiverem um tom de vermelho. Isso será ótimo.

Isso muda completamente o mapa da política de Nova Iorque. As pessoas estão vulneráveis ​​de uma forma que nunca fora imaginado. Além disso, há um enorme vácuo de poder no Queens. Espero que você esteja recrutando candidatos hoje para 2020 e 2021. Comece agora. Comece a fazer uma lista.

Construir a organização

Obviamente, o trabalho eleitoral fortalece o poder, constrói a organização e fortalece os membros. Espero que esse seja um debate que possamos colocar para descansar.

De repente, o DSA em Nova York tem um pouco de credibilidade, um pouco de poder. Esta é a nossa primeira grande vitória em Nova Iorque. Seremos cuidadosos e atenciosos em relação ao nosso comportamento. O mundo – não o mundo da mídia, mas o mundo do poder – de repente está de olho em nós.

Sobre o autor

Michael Kinnucan is a member of NYC-DSA's Electoral Working Group, a former member of the DSA National Electoral Committee, and deputy campaign manager for the DSA-endorsed state senate campaign of Julia Salazar in North Brooklyn.

28 de junho de 2018

Em defesa do Court-Packing

Não devemos deixar que um punhado de juízes reacionários atrapalhe a mudança progressiva. É hora de arrumar a Suprema Corte.

Todd N. Tucker

Jacobin

Chip Somodevilla / Getty

Tradução / Com a Suprema Corte na terça-feira confirmando a decisão de Trump de banir muçulmanos; na quarta-feira atacando os sindicatos de funcionários públicos; e com o anúncio feito pelo juiz Anthony Kennedy, de que se aposenta, é tempo de trazer outra vez para o topo da agenda uma ideia marginal: superlotar a Suprema Corte. O apoio da maioria conservadora ao trumpismo e sua obcecada oposição a qualquer projeto progressista implica que, na atual formação, a Suprema Corte funcionará como barreira que bloqueará qualquer agenda de qualquer presidente e Congresso que tenham qualquer tendência de esquerda, mesmo que leve. Esse tipo de barreira tem de ser enfrentada e confrontada com firmeza.

Hoje, essas ideias têm cheiro de veneno ao nariz mediano de autoridades democratas eleitas – lembrem a rapidez com que Al Gore rendeu-se ante a decisão de Bush v. Gore em 2000, apesar das provas que depois surgiram de que ele devia ser empossado como vencedor legítimo e legal daquela eleição. Mas essa deferência nem sempre foi a norma. Nada há na Constituição que especifique o número de juízes ou a precisa organização do judiciário federal, nem há qualquer dispositivo que dê poderes à corte para revisar atos do Congresso.

Tudo isso foi exposto nos primeiros anos da república americana, através de uma série de atos judiciários no Congresso e acréscimos de poder por parte do Tribunal. O cientista político Stephen Engel conta 833 esforços do Congresso entre 1800 e 1982 para reorganizar o judiciário para restringir ou canalizar interesses políticos. E todas as condenações bem sucedidas de impeachment na história dos EUA (oito) foram contra os juízes, que também representou a maioria dos dezenove impeachments transmitidos pela Câmara dos Representantes. Isso faz sentido: os fundadores avessos à monarquia ficaram tão angustiados até mesmo por mandatos presidenciais de quatro anos que deram ao Congresso a capacidade de removê-los no meio do caminho. Então, é claro, eles se sentiriam duplamente cautelosos com compromissos judiciais vitalícios – uma das duas únicas especificações para o serviço de juiz (a outra, é a garantia de jamais ter os salários reduzidos).

Desde o tempo em que os juízes da Suprema Corte afirmaram unilateralmente o próprio poder para derrubar a legislação em 1802, uma supremacia judicial que corrói a democracia é perigo eternamente presente. Uma das confrontações mais significativas aconteceu em 1937, quando o governo de Franklin D. Roosevelt decidiu enfrentar a briga contra a Corte.

Impossível imaginar disputa em que as apostas fossem mais altas ou mais radicais. Desde os anos 1890, a chamada “era Lochner”, a Corte fora dominada por juízes dedicados a impedir o crescimento do estado executivo administrativo, mediante interpretações libertárias para a substância do devido processo legal. O caso de 1905 que deu nome à era pôs fim ao limite máximo de horas de trabalho para os padeiros, sob o argumento de que a lei interferia nos direitos dos padeiros que desejassem trabalhar por períodos mais longos. Essa orientação geral prevaleceu até os anos 1930. Conforme contagem feita pelo cientista político Randall Calvert, de 1934 a 1936, a Suprema Corte ouviu 14 casos contra políticas do New Deal e decidiu contra elas nove vezes. Uma dos 'revides' nessa refrega foi a aprovação da 1933 National Industrial Recovery Act (NIRA) – que prometia, dentre outras coisas, levar a sindicalização à maior parte da indústria nos EUA. (Os trabalhistas não gostaram do modo como a lei foi executada, mas essa já é outra história.)

A hostilidade da Corte na era do New Deal, contra a atividade do governo, não acompanhava rigorosamente a divisão entre os partidos: o bloco conservador, de quatro membros, reunia dois Democratas, e os dois juízes 'indefinidos' eram Republicanos. Mesmo os três juízes mais ostensivamente liberais não eram aliados confiáveis. Os três assinaram três sentenças unânimes contra o New Deal exaradas em 27 de maio de 1935, que ficaria conhecida como "segunda-feira negra". Dentre elas, decisões contra a LeRIN (no caso A.L.A. Schechter Poultry Corporation X United States) e contra FDR por ter demitido um comissário conservador da Federal Trade Commission (Humphrey’s Ex’r X United States). O leão liberal Louis Brandeis chegou a assinar a decisão contra moratória em hipoteca, entendendo que seria confisco inconstitucional de propriedade privada dos bancos (Louisville Joint Stock Land Bank X Radford). Outro juiz liberal, Benjamin Cardozo, foi o único a votar contra num caso anterior de processo baseado na (lei) LeRIN (Panama Refining Co. X Ryan). Mas, como o próprio Cardozo escreveu, haveria apenas “estreita” diferença entre sua opinião e a dos demais oito juízes.

Se esses precedentes tivessem perdurado, teria sido impossível construir grande parte da legislação federal básica que assumimos como assegurada (pelo menos até o Tribunal Roberts). FDR sentira desde os primeiros momentos do primeiro mandato as dificuldades que teria de enfrentar; e desde o início considerou várias opções para limitar os poderes dos juízes da Suprema Corte como revisores judiciais. Como o historiador William Leuchtenburg já relatou em seu livro sobre a era, a opinião pública, de modo geral, não acolhia bem as ideias do governo nesse caso – a Suprema Corte tinha imagem associada com a integridade da própria Constituição. Mesmo assim, FDR havia vencido as eleições de 1936, vitorioso em todos os estados, exceto dois, e obtivera a maior quantidade de votos populares da história do sistema bipartidário. Quando voltou ao governo, reeleito, vinha determinado a encontrar um modo de fazer o New Deal avançar.

Em 5 de fevereiro de 1937, Roosevelt propôs a Judicial Procedures Reform Act, lei que lhe daria meios para nomear um novo juiz para cada juiz em atividade que se recusasse a renunciar no período de seis meses depois do 70º aniversário. Naquele momento, seis juízes já haviam ultrapassado esse limite; se aprovada a lei expandiria para 15 o número de juízes. Havia precedentes para a ideia de alterar o número de juízes na Suprema Corte. Em 1789, eram inicialmente seis juízes; ao longo dos anos, os estatutos especificaram cinco, sete, oito e até dez lugares. Nove juízes só passou a ser norma em 1869 – quando James, o meio irmão mais velho de FDR, já tinha 15 anos.

O presidente coordenara o anúncio, de modo a que acontecesse antes da apresentação da defesa oral, no dia 8 de fevereiro no caso N.L.R.B. X Jones & Laughlin Steel Corp., que tratava especificamente da proibição, pela Lei Wagner de 1935, de qualquer discriminação contra membros dos sindicatos e, de modo mais geral, sobre se o governo podia ou não regular relações trabalhistas. A conversa ao pé da lareira, de Roosevelt, dia 9 de março, pelo rádio tratara também de seus objetivos, chamando a atenção para o fato de que a resposta de seu governo, em 1933, à crise financeira, só por um fio conseguira sobreviver à revisão na Suprema Corte:

"Um único voto que mudasse, teria jogado todos os negócios dessa nossa grande nação de volta ao caos mais desesperado. De fato, quatro juízes entenderam que o direito em contrato privado para arrancar uma libra de carne seria mais sagrado que os principais objetivos da Constituição para estabelecer nação forte. ... A Suprema Corte age não como corpo judiciário, mas como corpo legislativo. ... Chegamos portanto ao ponto, como nação, em que temos de salvar a Constituição, da Suprema Corte; e a Suprema Corte, dela mesma."

O efeito da ameaça de FDR foi imediato. Em poucas semanas, no evento que ficou conhecido como “mudança (de votos) a tempo, que salvou nove (juízes da Suprema Corte) [“the switch in time that saved nine”] os dois votos 'oscilantes' uniram-se aos três juízes liberais para aprovar a Lei Wagner e a lei que instituiu o salário mínimo no estado de Washington. Em 1941, com os sindicatos reforçados por importantes proteções de lei, o número de empregados sindicalizados duplicou pela primeira vez na história (antes ainda de os EUA entrarem na Segunda Guerra Mundial, quando a mobilização industrial levou a mais aumentos na sindicalização de empregados). E àquela altura, já houvera aposentadorias e falecimentos em número suficiente para que a maioria dos juízes da Suprema Corte já tivessem sido nomeados por Roosevelt. Até o fim dos dois mandatos de Roosevelt, a Suprema Corte abençoou 100% das iniciativas do New Deal, como Calvert identificou em seu estudo.

Não que superlotar a Suprema Corte seja operação fácil. Historiadores documentaram o quanto foi difícil para FDR administrar, nem sempre com sucesso, a opinião pública e o Congresso, e o quanto foi realmente muito difícil obter maioria favorável ao seu projeto de governo. O triunfo veio, afinal, porque o presidente pode ter mais de dois mandatos até que efetivamente conseguiu configurar a Suprema Corte a favor do projeto eleito de governo –, tempo com o qual, atualmente, os políticos eleitos já não podem contar. Isso, além de já haver hoje, na Suprema Corte juízes conservadores relativamente jovens, como Neil Gorsuch [50 anos] que lá permanecerão por décadas.

Mas nada disso nos deve desanimar. O cientista político David Faris argumenta muito sedutoramente a favor da ideia de que 'superlotar' a Suprema Corte – além de garantir foro de estado ao distrito de Columbia (DC) e Porto Rico, dentre outras reformas – é pré-requisito para reformas progressistas duradouras. Em seu novo livro It’s Time to Fight Dirty, Faris propõe aumentar o quadro de juízes da Suprema Corte para 12 ou 13 imediatamente, e na sequência aprovar lei que permita aos presidentes nomear um novo juiz a cada dois anos. Ao mesmo tempo, os juízes mais velhos serão promovidos para uma espécie de posição Emérita, com menos serviço. Os nove juízes mais recentemente nomeados julgarão o maior número de casos, com os mais antigos podendo ser chamados ao serviço ativo no caso de morte de algum juiz.

Se parecer loucura, considerem o seguinte. Primeiro, o senador Mitch McConnell recusou até a admitir que o Senado votasse o nome de Merrick Garland — o que já pôs por terra todas as regras do bipartidarismo que ainda continuassem de pé quanto ao Judiciário. Segundo, e ainda mais inacreditável, destacados Republicanos ameaçaram não aprovar nenhum dos indicados por Hillary Clinton, caso ela fosse eleita – não só naquele ano eleitoral, mas para sempre. A ação de impedir que presidentes eleitos nomeiem juízes nos casos de vacância legal é praticamente detonar a Constituição – muito diferente, em todos os sentidos, do ato perfeitamente legal e com muitos precedentes, de aumentar o número de juízes. Terceiro, os quatro novos juízes de Faris são menos que os seis que FDR queria pôr na Suprema Corte, e o maior perigo que a mudança gerou for impulsionar a Suprema Corte para cumprir o seu papel legal de não atravancar o processo histórico e permitir que o país e a história sigam seu curso. E este é o ponto importante: com a densidade sindical perto de uma baixa histórica e catástrofe climática no horizonte, os futuros legisladores precisarão de ferramentas ainda mais robustas do que as que FDR foi capaz de conseguir - pense em um NIRA Verde com esteróides. Um punhado de juízes escolhidos nos clubes de debate da Sociedade Federalista não pode e não deve atrapalhar uma economia mais democrática e sustentável.

Uma proposta criteriosa de embalagem judicial garantiria que o Tribunal refletisse com mais cuidado os costumes da época, em vez de amarrar a democracia ao peso do passado. Com a desigualdade e os abusos dos direitos humanos subindo em espiral e as justiças tornando tudo pior, o momento de começar a integrar um tribunal alargado é agora.

Sobre o autor

Todd N. Tucker é cientista político e professor no Roosevelt Institute. É autor de Judge Knot (março, 2018), livro sobre o papel dos juízes e da Suprema Corte no neoliberalismo. Siga-o em @toddntucker.

O que há por trás da guerra comercial?

A crescente guerra comercial de Trump visa afirmar o domínio dos EUA no mundo mais do que ajudar os trabalhadores americanos

David M. Kotz


Donald Trump is flanked by members of the business community as he holds up a signed presidential memorandum aimed at what he calls Chinese economic aggression at the White House on March 22, 2018 in Washington DC. Mark Wilson / Getty

O presidente Trump ataca as tarifas sobre importações de muitos países aliados tradicionais dos EUA, acusando seus líderes de tratamento injusto. A grande mídia adverte sobre a erosão da ordem global.

O presidente Trump ameaça, e depois impõe, altas tarifas sobre os produtos chineses e outras restrições às relações comerciais com a China. A ZTE Corporation, uma empresa estatal líder de alta tecnologia da China, está proibida por motivos de segurança nacional de importar componentes feitos nos Estados Unidos que são essenciais para seus produtos. Em seguida, a ação da ZTE é revertida, levando alguns senadores democratas a denunciar Trump por ser brando com a China.

De que lado devemos estar, se houver, nesta guerra comercial crescente?

Atacando os aliados dos EUA

Existem dois aspectos na política de guerra comercial de Trump. Uma é a ação contra a UE, Canadá e México; a outra é a postura em relação à China. Os problemas são diferentes nos dois casos.

Trump’s actions against the EU, Canada, and Mexico are driven by his right-wing nationalist politics, which are shared by some of his closest advisors. That political posture helped propel his unlikely campaign to the presidency in 2016. According to the right-wing nationalist view of the world, global trade is a zero-sum relationship. Tariffs are the battering ram that can be used to secure better deals for the US at the expense of others.

This right-wing nationalist stance runs contrary to the longtime establishment consensus, which favors “free trade” within a US-dominated global order. Both liberals and conservatives in the US have supported the relatively open global trading system — which, underneath the rhetoric about everyone benefiting, is designed to empower capital to move freely around the globe in search of low-wage labor, low taxes, and lax environmental regulation.

While the Left has long criticized this arrangement, Trump offers nothing better in its place. The US does not have the power to impose a flagrantly unfair set of trade rules on the rest of the world. The average US tariff rate of 2.79 percent is somewhat higher than that of other major developed counties, such as Canada (2.44 percent) and the EU countries (1.92 percent). Whatever the flaws of the current global trading system, it is not rigged against the US. Continuing the tariff offensive against the EU, Canada, and Mexico could spark a global trade war, with no winner and major economic damage to every country.

Confronting China

The Trump administration has invoked similar language in its aggressive trade actions against China. They claim that China has been taking advantage of the US, even suggesting that the Chinese economy’s decades of rapid growth are really due to a huge gift from the US.

Most of US big business, along with the policy analysts who reflect their views, have criticized the Trump’s administration’s tariffs against China. US corporations have been making huge profits in China, which a trade conflict over tariffs would imperil. At the same time, big business supports pressuring China to change its ways. They just disagree with the Trump administration’s approach. Instead, they recommend a united front with US allies to press China to alter its trade practices, a bargaining strategy that can’t be pursued if Trump is alienating those partners by slapping tariffs on their products.

US big business has long felt conflicted about China. On the one hand, access to the storied China market — which has exerted a pull on the imagination of US businesses since the nineteenth century — has allowed them to make hefty profits. Today, major US companies conduct a substantial share of their global business in China. In fiscal year 2017, Apple received 20 percent of its sales revenue from China. That number was even higher for Intel (23 percent) and Qualcomm (65 percent). On the other hand, US corporations resent the strings that are attached. The Chinese state follows a “developmental state policy,” forcing foreign companies to meet certain conditions if they want to enter the country’s market. Unlike in most developing countries, the US government cannot exert its will over the Chinese government to allow US business to do whatever it wants.

Critics of China levy several interrelated charges. The loudest complaint is that China steals US technology. Next, there is the accusation that the Chinese state, through its “industrial policy,” unfairly tilts the playing field by providing subsidies and financing to certain domestic firms. China has used policy to promote industries of the future with some success. For example, China has become the major supplier of solar panels to the world market. A final gripe is that China has a significant sector of state-owned enterprises, some of them in high-tech industries and some of which actively participate in the global market through exports and foreign direct investment. Critics grumble that China’s state-owned enterprises have an unfair advantage due to their state backing.

There is an irony to these charges of unfair competition. Neoliberal economic theory holds that industrial policy weakens a country’s economy since it puts the state in the business of making decisions about what economic activities should be encouraged — decisions, it argues, that only the free market can make effectively. Similarly, neoliberal theory insists that state-owned enterprises are inherently inferior to privately owned ones, and that they will only drag a country’s economy down. Yet when confronted with China’s rapid advance, neoliberals suddenly forget their fundamental beliefs and cry unfair competition!

Does China steal US technologies? It appears there have been a few cases of actual theft by Chinese companies, by such means as paying employees of foreign companies to pass along technological secrets. For perspective, though, it is useful to recall how the US began to industrialize around 1800, when the economy was mainly agricultural. A machine-based textile industry got its start in the 1790s when Samuel Slater, an English mechanic who worked in a textile factory, memorized the design of the machinery, emigrated to Rhode Island, and teamed up with a wealthy merchant to launch a new company. The US, in other words, stole the key technology of the day from England. If less developed countries are to advance economically, then they have to acquire the superior methods of the already developed countries. Theft is one means of accomplishing this, although it would be better if such technology transfer could take place within the law.

There is an important principle here. Socialists usually believe that knowledge should be made freely available. A technology, like all forms of knowledge, is a public good in that once it has been discovered the cost of using it again is effectively zero (since it need not be rediscovered). Hence, the price of using knowledge should be zero, even according to the principles of mainstream economics.

Complaints about Chinese pilfering also overstate its pervasiveness. The main means of technology transfer to China hasn’t been direct theft but rather a deal commonly offered to Western companies: if you want to operate in the country, you have to accept a local partner company, which will then receive access to your technology. Western companies don’t like the trade-off, but they usually grudgingly accept it. This method of state regulation has helped China to move up the technological ladder. At this point, though, the practice is becoming less important, since the Chinese state has been making huge investments aimed at discovering new technologies. Rather than importing advanced technologies from elsewhere, it’s flexing its own R&D muscles.

What about US workers, though? We can’t ignore the cost to working people in the US when relatively high-wage jobs are shifted to China or Indonesia. However, Trump’s tariffs are less a solution than an exercise in scapegoating, diverting attention from the real causes of the problem. We should instead demand policies that protect US workers from the collateral damage of Third World economic development that occurs within the global capitalist system.

A combination of measures would do the trick: 1) a government jobs program to hire, at a living wage, any worker who needs a job; 2) an industrial policy focused on greening the US economy through major investments in renewable energy, efficient forms of mass transit, and a transition to energy-efficient buildings; 3) generously funded retraining and education for workers displaced by imports; 4) an increase in the minimum wage to the level of a living wage. While not in the realm of political possibility in the immediate present, such a program would ensure that the rise of less developed countries wouldn’t harm the living standards of US workers.

Why the attack on China now?

Why is US big business only now demanding that something be done to change China’s behavior? One reason may be that Trump has raised the question of “doing something” about China. But another factor stems from the dynamics of capitalist imperialism. Until recently, China sat relatively low on the technology scale, and US business could establish highly profitable relations by occupying and controlling the more advanced places in the division of labor. China produced toys and clothing to sell to the US through powerful US retailers like Walmart, while the US produced aircraft and advanced computer components to sell to China. Most of the profits generated in both directions accrued to US capital.

Flash forward to today, and China has advanced to the point where it can aim for the technological frontier in many advanced industries, a goal that appears to be reachable in a few decades. This changes the relation with the US to one of rivalry, at least in the near future. Why is that a problem for US big business? Other countries have companies at the world tech frontier, such as Germany and Finland.

This is where the role of capitalist imperialism comes into play. The biggest capitalist states, responding to the profit drive of capitalism, always seek to dominate markets, to control sources of raw materials, and to secure locations for profitable investment of capital. That impels such states to exercise political dominance over as much of the world as possible.

The US, as the dominant imperial power since 1945, can tolerate advanced countries that are small enough, and friendly enough, to accept US leadership (that is, US domination). Thus, Germany and Finland are not a threat. But if any country begins to challenge US economic dominance in key sectors, the alarm bells go off. In the 1970s and 1980s, when Japan was asserting a dominant position in several key markets in the US, it set off a nationalist wave aimed at restricting Japanese imports. Japan was forced to accede to demands for limits on automotive vehicle exports to the US. The “Japanese threat” receded after 1989, when Japan entered a long period of stagnation.

Today, China is on the verge of making the transition to “developed country” status. It is on pace to become the US’s economic equal in a few decades. As a very large country, with institutions that work effectively to promote economic development, and with a state that will not agree to subordinate itself to the US, China’s economic ascent is seen by the US ruling class as a threat to American hegemony. The dominant capitalist power will always try to stop the emergence of an equal. In fact, that’s been the US’s official policy since the demise of the Soviet Union.

A dangerous moment

The conflict with China is a very dangerous one. It is not the same as the Cold War, which pitted two different systems — capitalism and state socialism — against each other. It is a battle between US-led capitalism and a rising power whose system is difficult to classify, with an economy that is largely capitalist but a state that retains many of the practices of state socialism. China’s leadership has consistently claimed that it does not seek dominance in the global system but just wants to participate in it freely. Yet the dynamics of China’s market-driven system have led the country to increasingly insert itself into the global economy — not just through trade in goods but through direct investment and acquisitions of companies in many parts of the world.

What we’re witnessing is an impending collision between a weakened capitalist hegemon and a rising economic power that, whatever the form of its socioeconomic system, is integrated into the global capitalist system. The situation is more akin to the pre-World War I tensions between the leading capitalist states — which led to two devastating world wars — than to the Cold War (really, a Cold Peace) between capitalism and state socialism. The Cold War was a contest for political influence and the loyalty of the world’s population between two different systems, not a contest between intertwined economic rivals.

In this complex set of dangerous global conflicts set off by Trump’s trade war, socialists need a short-run and a long-run policy stance. In the short run, we should press for resolving the growing global tensions through negotiation and compromise rather than threats. We should support reform of the current global trading system to let states pursue industrial policy, to allow a place for public enterprise, and to promote the rapid diffusion of new technologies through compulsory low-cost licensing and a bigger role for public institutions in the development of and control over new technologies.

In the long run, we should work for a socialist future in which the economy is based on production to meet human wants and needs instead of the profit of a small wealthy class, in which new technologies are freely available to all, in which economic progress in one nation will not be seen as threatening to other nations, and in which cooperation replaces competition in the global economy.

If the current trajectory toward trade war cannot be redirected, we will see more acrimony and high-stakes conflict — a disaster for anyone who cares about the interests of the vast majority.

Sobre o autor

David M. Kotz é professor de economia na Universidade de Massachusetts Amherst e autor de The Rise and Fall of Neoliberal Capitalism.

27 de junho de 2018

Uma potencial ruptura no México

Andres Manuel Lopez Obrador está prestes a vencer a presidência do México. Ele prometeu aos mexicanos um novo país - ele pode entregar?

Edwin F. Ackerman

Jacobin

Andres Manuel Lopez Obrador na Cidade do México, no México, em 17 de maio de 2018. Hector Vivas / Getty Images

Em sua terceira disputa pela presidência, Andres Manuel López Obrador (AMLO) detém uma vantagem esmagadora de 17 a 20 pontos percentuais no dia das eleições, em 1º de julho. Como em suas tentativas anteriores, há muitos inimigos poderosos. Dois dos homens mais ricos do país pesaram abertamente contra ele, enviando mensagens a seus funcionários alertando contra um “modelo econômico iminente... que dá doações sem ter que trabalhar” e pedindo que votassem para “preservar o sistema econômico que permite que você tenha o seu trabalho."

Os ataques são reciclados a partir de eleições anteriores: a velhice de AMLO (embora tenha apenas 64 anos), o espectro de um desastre ao estilo da Venezuela, um "retorno" às estratégias protecionistas falidas do Partido Revolucionário Institucional (PRI) dos anos 70, o então e agora partido governante. A comentocracia do país - o elenco recorrente de especialistas em televisão e colunistas de opinião - tráfica em hipérbole, alimentando temores de um governo populista autoritário.

AMLO, comandado por seu recém-criado Movimiento de Regeneración Nacional (MORENA), está em uma disputa de quatro vias. Ele enfrenta Ricardo Anaya, um pretenso prodígio neoliberal liderando uma coalizão entre os fragmentos dos partidos históricos de centro-direita e de centro-esquerda (o Partido da Ação Nacional [PAN] e o Partido da Revolução Democrática [PRD]) e atualmente sob investigação por lavagem de dinheiro; José Antonio Meade, o atual burocrata do regime do PRI, com base em uma "expertise" tecnocrática; e Jaime Rodriguez Calderon, que renunciou ao cargo de governador do grande estado de Nuevo León para fazer uma campanha independente como o "outsider" folclórico cuja principal contribuição ao ciclo eleitoral até agora foi sua proposta de cortar as mãos de detentores de cargos corruptos.

Lopez Obrador chegou muito perto de ganhar antes. Em 2006, ele perdeu por menos de 1% dos votos em uma eleição marcada por irregularidades (embora nunca tenha ficado claro quão sistemáticas eram essas). Em 2012, ele perdeu por uma porcentagem maior (6%), em uma eleição com táticas de compra de votos bem documentadas, implementadas pelo vencedor do PRI, Peña Nieto.

AMLO está em evidência nacional desde 2000, quando se tornou prefeito da Cidade do México. O que explica seu sucesso astronômico agora?

Um status quo em desordem

O estado atual do país parece confirmar a crítica que AMLO expôs durante sua primeira disputa há doze anos.

O ex-governo Peña Nieto presidiu um crescimento econômico anêmico que deixou os níveis de pobreza - que oscilam em torno de 50% - praticamente intocados. O número de mortos no combate às drogas, já na casa das centenas de milhares, cresceu para um pico histórico no ano passado. Casos de corrupção de alto perfil têm atormentado a administração do PRI. Muitas reformas de livre mercado como a abertura da estatal petrolífera PEMEX ao investimento privado e uma “reforma educacional” destinada a enfraquecer os sindicatos de professores - produziram resultados mansos.

Lopez Obrador usou esses anos para construir uma personalidade anti-establishment. Se os defensores do hardcore agora projetam nele muito mais do que ele realmente promete, é porque sua figura se tornou parte de um subconsciente coletivo. Um anúncio da campanha MORENA que intencionalmente omite o nome dele usou uma frase que chamou a atenção do público em geral: "Seria melhor você saber quem é."

Mas o PRI não é o único grande partido político a entrar no ciclo eleitoral em desordem. O PAN, que governou o país entre 2000 e 2012, transformou-se em uma “oposição opressiva” durante a presidência de Peña Nieto, apoiando a maioria de suas principais reformas propostas em bloco.

Além disso, quando chegou a hora de escolher um candidato para a próxima disputa presidencial, Anaya, então presidente do partido, armou com força na indicação, alienando uma ala inteira do partido comprometida com a candidatura de Margarita Zavala, esposa do ex-presidente Felipe Calderón. Zavala se separou e fez uma disputa de curta duração como independente, acabando por desistir da disputa, já que seus números permaneceram em um único dígito.

O PRD, que nomeou a AMLO em suas duas disputas anteriores, entrou em crise após a derrota de 2012. Os centristas do partido assumiram, cortando laços com AMLO e lançando uma reformulação completa do partido como colaboracionista, "responsável à esquerda".

O partido assinou um "Pacto pelo México", prometendo concentrar-se em objetivos políticos compartilhados com a presidência de Peña Nieto. Isso marcou o início de uma erosão de sua identidade como um partido de oposição esquerdista e condenou qualquer tentativa de encaminhar uma mensagem anti-establishment posteriormente. A coligação do PAN-PRD para esta eleição foi um fracasso.

Um ecumenismo questionável

O sucesso da AMLO, no entanto, veio com alianças políticas questionáveis. Um vasto elenco de velhos adversários mudou a sua mente de forma bizarra.

Muitos oportunistas chegaram à costa do partido, abandonando os navios que afundavam. O pragmatismo testou os princípios mais de uma vez, mais claramente na aliança de MORENA com o Partido Encuentro Social, de inspiração evangélica, conservador. AMLO aceitou todos com pouco a nenhum controle. Isso não é totalmente surpreendente de alguém que, em tenra idade, era ele próprio membro do PRI (mais tarde foi parte da ala esquerda do partido que se fragmentou no final dos anos 80). Não é difícil ver nessas alianças as sementes de escândalos e problemas que estão por vir.

Este "ecumenismo" aparentemente contrasta com seus ataques recorrentes contra, como ele cunhou, a máfia do poder. A “máfia do poder” é uma categoria nebulosa, mas refere-se principalmente aos comparsas de um Estado rentista. Não há lista definitiva de membros; também não é uma classe no sentido sociológico, mas mais uma atitude em relação ao exercício do poder. O gerente de campanha da AMLO (e proeminente empresário) Alfonso Romo, por exemplo, afirma que ele "se converteu longe da máfia do poder".

O conceito permite que a AMLO retenha um discurso político de confrontação sem ter que nomear indivíduos (embora frequentemente o faça), e faça uma crítica a um “sistema” sem precisar especificar posições de classe estruturais. Ele não fala de uma classe capitalista explorando uma classe trabalhadora ou de 1% sobre 99%. Em vez disso, ele traça um cisma muito mais obscuro: uma máfia que roubou o aparato estatal do "povo".

Essa visão limita uma agenda esquerdista mais robusta. Seus detratores à direita vêem nessa constante repreensão da máfia do poder uma perigosa tática de polarização social. Eles estranham, no entanto, que o conceito se baseia no princípio de que os interesses entre classes mais baixas e mais altas não estão fundamentalmente em desacordo e podem ser harmonizados.

Para cada membro da máfia no roteiro de AMLO, há um "empresário socialmente orientado". Aqui, a extrema esquerda está certa ao suspeitar que o MORENA será na verdade um cavalo de Tróia para renovar uma classe alta que atualmente carece de autoridade moral e legitimidade política.

Poucos apoiadores de AMLO estão votando de forma ingênua. Como diz um cartaz de um ativista, parafraseando humoristicamente uma canção famosa: "Ele não é perfeito, mas está próximo do que eu simplesmente sonhei". No entanto, enquanto a esperada vitória de AMLO se aproxima, uma efervescência popular rompe a superfície nas grandes manifestações que ele realiza. em todo o país. Se apenas porque os problemas do país correm tão profundamente, a presidência de Lopez Obrador tem, afinal de contas, o potencial para tirar milhões da pobreza, reconstruir uma nação manchada e expandir os horizontes de exigências políticas aceitáveis. A esquerda está prestes a vencer no México, graças à aposta dos eleitores na possibilidade - e não na certeza - de um novo país.

25 de junho de 2018

O George Orwell político

Assinala-se esta semana os 115 anos do nascimento de George Orwell. Lembrado como um exemplo de lucidez e verdade, ele esteve também muito empenhado na política socialista. 

David N. Smith


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George Orwell Illustrated is out now from Haymarket Books.

Tradução / George Orwell levava a política a sério.

Isso pode parecer óbvio, dado o cariz político disseminado no discurso “Orwelliano” e nas pedras de toque dos seus famosos romances, a revolução bolchevique em A Quinta dos Animais [também intitulado em português O Triunfo dos Porcos] e o controlo totalitário do pensamento em 1984. Mas o nível de imersão de Orwell nas correntes da política radical tem sido quase sempre subestimado. Tanto se falou sobre a sua lendária linguagem clara e o seu pensamento livre que ele agora é, para muitos, um símbolo do pensamento não-doutrinário e mesmo anti-doutrinário.

George Orwell, cujo romance mais aclamado apresenta um panfleto de trinta páginas de um inflamado ideólogo ao estilo de Trotsky sobre “a teoria e a prática do coletivismo oligárquico”, é visto muitas vezes como um ingénuo naif para quem o socialismo era moral em vez de teórico, intuitivo em vez de intelectual. A verdade é mais complexa.

Orwell era um iconoclasta, mas no quadro da tradição socialista, não fora dele. As suas sátiras de excessos ideológicos soavam a verdadeiras porque ele conhecia de perto esses excessos — tanto ideologicamente como culturalmente e teoricamente.

Como agora sabemos, graças às suas Obras Completas publicadas entre 1986 e 1998, Orwell sentia-se em casa nos meandros da política de esquerda. Em 1945, quando ele repreendeu os escritores pró-soviéticos por exagerarem o papel de Estaline na revolução russa, foi buscar as provas a uma fonte inesperada: o homem que tinha sido ministro dos Negócios Estrangeiros de Estaline de 1930 a 1939 e que regressara à função após ser embaixador nos EUA durante a II Guerra Mundial.

“Tenho à minha frente”, escreveu Orwell, “o que deve ser um panfleto muito raro, escrito por Maxim Litvinoff em 1918 a descrever os acontecimentos recentes na Revolução Russa. Não faz nenhuma referência a Estaline, mas faz rasgados elogios a Trotsky, e também a Zinoviev”.

Os leitores que por acaso tenham reparado, de passagem, que os personagens inspirados em Leon Trotsky são centrais tanto em 1984 (Goldstein) como em A Quinta dos Animais (Bola-de-Neve), ficam muitas vezes surpreendidos ao encontrarem discussões em torno do trotsquismo nas cartas e ensaios de Orwell — trotsquismo não-filtrado, herético. No seu ensaio de 1945, “Notas sobre Nacionalismo”, Orwell apresenta um catálogo de tendências políticas, incluindo “3. Trotsquismo”, no qual afirmou que esse termo é frequentemente “usado de forma tão vaga que inclui anarquistas, socialistas democráticos e até liberais. Eu utilizo-o aqui no sentido de um marxista doutrinário” e de “hostilidade ao regime de Estaline”.

Ele avisou, para além disso, contra a confusão entre a doutrina e o seu homónimo: “O trotsquismo pode ser melhor estudado através de panfletos obscuros ou em jornais como o Socialist Appeal do que nas obras do próprio Trotsky, que não era de forma alguma um homem limitado a uma ideia”. Ele interessava-se de igual forma por muitas outras correntes, mais ou menos relevantes.

Isso não era uma excentricidade. Orwell nunca romantizou os grupos de esquerda, mesmo os de quem gostava, como o Independent Labour Party britânico ou a milícia do POUM com quem lutou na Guerra Civil espanhola. Mas ele admirava a divergência e sabia que a construção de uma força de oposição, mesmo pequena, é uma conquista. “Nunca o tinha visto com tanto entusiasmo”, viria a lembrar Arthur Koestler, sobre o momento em que decidiram trabalhar juntos para fundarem uma organização de direitos humanos em 1946.

Quando os grupos a que ele se opunha mas respeitava eram vitimados, ele juntava-se em sua defesa, tanto em privado como publicamente. Durante a guerra foi um crítico acutilante dos resistentes anarquistas, mas quando a Scotland Yard invadiu a sua tipografia em 1944, Orwell publicou uma crítica retumbante na socialista Tribuna.

Quando Vernon Richards e outros foram presos por serem contra a guerra, Orwell aceitou o seu convite para ser o vice presidente do Comité em Defesa da Liberdade. Após a sua libertação, ajudou Richards e Marie Louise Berneri a estabelecerem-se como fotógrafos. Ele acabava de conhecer a fama enquanto autor de A Quinta dos Animais, e as fotos que tiraram (do autor reticente e do seu filho Richard) tinham valor comercial. E também continuam a ser as melhores fotos de Orwell.

Organização implica esforço e coragem, e Orwell não tinha vergonha de começar por baixo. Ele recolheu panfletos até dos grupos mais pequenos, e levou-os a sério. O inventário de 214 páginas da sua coleção de 2.700 artigos inclui panfletos do All-India Congress Socialist Party, People’s National Party (Jamaica), Polish Labour Underground Press, Leninist League, Groupe Syndical Français, Workers’ Friend, Freedom Press, Russia Today, Meerut Trade Union Defence Committee, Anglican Pacifist Fellowship, e tantos outros.

Não é desta forma que Orwell é geralmente conhecido. Os seus editores e os seus críticos capitalizaram a sua morte prematura para promover o estereótipo do firme profeta anti-intelectual, cujas fábulas distópicas nasceram ou do bom senso comum ou da lamentável idiossincrasia.

Nenhum destes estereótipos é útil. Orwell escreveu com lucidez, desprezou as ninharias casuísticas, mas estava longe de ser ingénuo ou anti-intelectual. Mesmo nos anos finais marcados pela tuberculose, com a energia a desfalecer enquanto acabava o 1984, ele lia prolificamente.

Isto foi uma realidade por muitos anos, mas fiquei impressionado qiando descobri no capítulo final das Obras Completas, que Orwell conhecera Ruth Fischer na primavera e verão de 1949. Fischer, que tinha sido por pouco tempo a secretária-geral do Partido Comunista Alemão — antes de cindir com a Rússia em 1926 — acabara de publicar um enorme estudo, Estaline e o Comunismo Alemão, publicado em 1948.

Em Abril de 1949, Orwell escreveu a Fischer: “Certamente já recebeu muitos parabéns, mas gostava de lhe dizer o quanto apreciei ler o seu livro Estaline e o Comunismo Alemão”. Fischer respondeu pouco depois, agradecendo as “palavras motivadoras” e dizendo que esperava “arranjar tempo” para o visitar no Sanatório Cotswold durante a sua próxima visita a Inglaterra. Ela acabara de reler a “muito estimulante” Homenagem à Catalunha de Orwell e esperava poder discuti-la com ele em pessoa.

A 23 de maio, ela voltou a escrever, agradecendo a Orwell por lhe mandar uma cópia de 1984 duas semanas antes de ser publicada. Um mês depois, logo após a visita de Fischer, Orwell escreveu ao seu amigo Tosco Fyvel, que lhe tinha mandado o livro de Fischer: “foi engraçado encontrar alguém que tinha conhecido de perto Radek, Bukarine e outros”.

Em julho, Orwell e Fischer trocaram prendas (Burmese Days de Orwell, chocolates de Fischer) e Orwell pediu o conselho de Fischer acerca de um pedido que recebera de um jornal, POSSEV, acabado de fundar por russos refugiados em Frankfurt. (Fischer também esteve em Frankfurt por pouco tempo).

“Suponho”, perguntava Orwell a Fischer, “que os editores deste jornal são pessoas de boa fé e também não Brancos?” (referindo-se às forças da reação na Rússia revolucionária). Noutra carta, ao seu agente, Orwell indicou que pedira a Fischer para contactar o POSSEV.

Tudo isto aguçou a minha curiosidade. Ruth Fischer é agora uma desconhecida para a maior parte dos estudiosos de Orwell e também ignorada por muitos dos atuais especialistas no comunismo. Mas ela foi formidável, chamada pelo romancista Arthur Koestler de “provavelmente a mulher mais brilhante na história do Comunismo”. Fischer era próxima de vários amigos de Orwell, para além de Koestler, Dwight Macdonald e Franz Borkenau.

Borkenau e Orwell eram há muito próximos politicamente. A primeira vez que Orwell usou a frase “coletivismo oligárquico” foi numa recensão crítica a um dos livros de Borkenau, e viria depois a escrever críticas de outros dos seus livros, incluindo a história crítica da Internacional Comunista em 1938. Em março de 1949, quando David Astor pediu a Orwell que sugerisse um académico que pudesse escrever enquanto especialista sobre a Guerra Civil espanhola, ele propôs Borkenau, por considerar The Spanish Cockpit o melhor livro sobre a guerra espanhola logo em 1938. Quando, no mês seguinte, Celia Paget lhe pediu alguém que fosse de confiança para defender a democracia contra o estalinismo, ele voltou a escolher Borkenau.

Em agosto de 1949, Ruth Fischer e Franz Borkenau encontraram-se com Melvin Lasky, cuja revista em alemão e apoiada pelos EUA Der Monat publicava A Quinta dos Animais em fascículos. Esse encontro num hotel alemão é considerado o cadinho no qual se criou a ideia do Congresso para a Liberdade Cultural. Mais tarde, Fischer escreveu a Lasky desde Paris: “Estou a tratar do projeto para o Congresso de Berlim e encontro apoio em todo o lado. Por exemplo, de Koestler, com quem estive ontem”.

Dois dias depois, Koestler enviou a Fischer uma proposta escrita para uma liga dos direitos humanos “que há uns anos queria fundar com Russell e Orwell. Está desatualizada e foi escrita com um objetivo diferente, mas uma ou outra formulação pode ter alguma utilidade”.

A esse texto, que encontrei no ano passado num arquivo esquecido, chamo “Manifesto de Orwell”. Escrito por Orwell no início de 1946 em diálogo com Koestler e o filósofo Bertrand Russell, este manifesto apela à criação de um novo tipo de grupo pelos direitos humanos, que iria lutar para promover “igualdade de oportunidades” para cada “cidadão recém-nascido”, aprofundar e alargar a democracia, e opor-se à exploração económica. Orwell também esperava promover o “desarmamento psicológico” entre as nações.

Eram objetivos ambiciosos, que apenas foram expostos neste manifesto. Mas eram característicos do Orwell político, cuja orientação era sempre prática, bem como literária.

As crescentes tensões entre os Estados Unidos e a União Soviética depressa abriram uma clivagem entre Orwell e os seus antigos co-autores, com Koestler e Russell a tornarem-se militantemente russofóbicos. Orwell acreditava que a melhor forma de evitar o perigo de uma terceira e atómica guerra mundial era pressionar para uma livre troca de notícias e opiniões sem fronteiras. Mas os seus antigos colaboradores assumiram uma posição distinta e mais beligerante.

Orwell morreu em janeiro de 1950, pouco antes do encontro fundador do Congresso para a Liberdade Cultural em Berlim. As opiniões divergem sobre se ele se juntaria a Koestler, Russell e Borkenau nessa organização firmemente anti-soviética, que não só alinhou sem pejo com o Ocidente na Guerra Fria, mas também (como se veio depois a descobrir) foi financiada clandestinamente pela CIA.

Koestler duvida que Orwell se teria juntado a eles, dizendo no seu obituário de Orwell que o seu querido amigo George era demasiado idealista para dissolver o seu socialismo ou calar as suas críticas ao capitalismo e ao Ocidente. Essa teimosia, dizia Koestler pesarosamente, era lamentável, pois ele teria gostado de ver Orwell juntar-se a ele no campo dos EUA. Mas, acrescentou, num tom de um tio mais velho e mais sábio, esse idealismo era encantadoramente típico. George era George e pronto.

Koestler retomou desta forma o que se tornou a escolha padrão para tantos dos críticos políticos de Orwell: a acusação de ingenuidade. Em vez de levar Orwell a sério, ele simplesmente caluniou-o enquanto um peculiar inocente, um excêntrico adorável.

Felizmente, o vasto público leitor de Orwell leva-o bem mais a sério. E entre aqueles leitores que vão mais fundo — lendo os seus ensaios menos conhecidos e as suas recensões críticas, bem como os seus romances proféticos — depressa aprendem que a sua ficção tem raízes na familiaridade com a política do mundo real que não é menos especialista por ser despretensiosa. Nestes tempos de desinformação, a clareza política e a integridade são raras e valiosas.

Orwell foi, e continua a ser, um modelo de lucidez, de verdade e de genuíno discernimento. Que ele encontre um público ainda maior.

Sobre o autor
David N. Smith é professor de sociologia na Universidade do Kansas. É o autor do recém lançado livro George Orwell Illustrated, bem como de muitas outras publicações, incluindo Marx’s Capital Illustrated,.

14 de junho de 2018

Testamentos traídos

Como os vibrantes marxistas humanistas da Iugoslávia se transformaram em nacionalistas de direita.

Laura Secor

Jacobin


Vista de Grbavica, um bairro de Sarajevo, aproximadamente 4 meses após a assinatura do Acordo de Paz de Dayton que encerrou oficialmente a guerra na Bósnia. Foto: Lt. Stacey Wyzowski / Wikimedia

Tradução / Libertada do fascismo pela luta partisana, a partir de 1945, a Iugoslávia socialista afirmava oferecer uma alternativa ao modelo burocrático soviético. Embora o líder comunista Josip Broz Tito tenha permanecido firmemente no comando até sua morte em 1980, seu partido prometia igualdade entre as nacionalidades, autogestão dos trabalhadores na indústria e um grau de liberdade cultural sem paralelos em outras partes do mundo socialista.

Apesar da intolerância geral com a oposição, algumas correntes filosóficas clamavam por uma radicalização da democracia socialista iugoslava e por uma visão mais humanista da mudança social. Entre eles, destacava-se o Grupo Praxis, que de 1964 a 1974 produziu uma das mais inovadoras revistas marxistas internacionalmente, e que também estava vinculado à experiência do Estado socialista. O prestígio do Praxis era tamanho, que seus cursos anuais de verão atraiam figuras de Herbert Marcuse a Erich Fromm. No final da década de 1980, o equilíbrio entre as nacionalidades que compunham a Iugoslávia começou a entrar em colapso, e muitos dos principais membros do Praxis aderiram à onda de chauvinismo étnico. Não sobraram muitos traços do humanismo que o grupo havia pregado por muito tempo.

Neste artigo, Laura Secor explora o apelo de um novo socialismo emancipatório, os esforços do Praxis para resistir às identidades étnicas e as raízes da queda da Iugoslávia ao abismo. O texto a seguir foi originalmente publicado na excelente (e infelizmente extinta) revista literária Lingua Franca em 1999.

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Muita coisa mudou desde que Gerson Sher viajou para a Iugoslávia para fazer sua pesquisa de dissertação em meio à efervescência política e intelectual do final dos anos 1960. Por um lado, o idiossincrático país que capturou sua imaginação já nem existe mais; nem o Praxis, o grupo de filósofos marxistas humanistas que Sher estudou. Mas esta não é a única razão pela qual ele respondeu com cautela a um pedido de entrevista: “Estou chocado”, diz ele, “que você esteja interessada no Praxis neste momento”.

Por quê? Afinal, de acordo com a teórica política de Harvard Seyla Benhabib, “o nome Praxis tem uma história marcante. Foi usado por dissidentes contra o stalinismo e era identificado com o projeto de socialismo democrático. ” A dissertação de Sher, posteriormente publicada como Praxis: Marxist Criticism and Dissent in Socialist Yugoslavia (“Praxis: Crítica e Dissidência Marxista na Iugoslávia Socialista”, 1977), explorou aquilo que parecia uma linha promissora de pensamento humanista que surgiu na Universidade de Zagreb e na Universidade de Belgrado. Durante as décadas de 1960 e 1970, uma lista brilhante de intelectuais ocidentais compareceu aos retiros anuais do grupo Praxis na ilha de Korcula, no Mar Adriático: Jürgen Habermas, A.J. Ayer, Norman Birnbaum, Lucien Goldmann e Herbert Marcuse foram apenas alguns dos que se reuniram em torno do grupo iugoslavo e que fizeram parte do conselho editorial de sua revista homônima. Soa estranho, portanto, que hoje o termo “Praxis” e os nomes de alguns de seus protagonistas estejam frequentemente associados à retórica notoriamente anti-humanista do nacionalismo sérvio e à política assassina de Slobodan Milosevic.

A História, insistiam os praxistas, “não é feita nem por forças objetivas nem por leis dialéticas; é feita, em vez disso, por pessoas, que agem para transformar seu mundo dentro dos limites das possibilidades históricas.” Sher escreveu isso em 1977. Na década precária que se seguiu, os filósofos do Praxis de fato viriam a transformar seu mundo – mas naquela época a maneira como fariam isso não era imaginável para os acadêmicos no Ocidente. Quem poderia imaginar que um dos filósofos do Praxis mais tarde se tornaria vice-presidente do partido de Milosevic – e seu principal ideólogo durante a guerra da Bósnia? Ou que outro membro, que já foi um apaixonado crítico do nacionalismo, assinaria uma petição em 1996 pedindo que Haia retirasse as acusações de crimes de guerra contra o brutal líder sérvio bósnio Radovan Karadzic, a quem a petição chamava de “o verdadeiro líder de todos os sérvios”?

Nem todos os praxistas seguiram seus líderes pela estrada tenebrosa do nacionalismo sérvio. Os membros croatas mantiveram-se apegados aos seus princípios humanistas, mesmo durante os anos mais sangrentos das guerras iugoslavas; e na Sérvia, algumas das expressões de dissidência mais corajosas e solitárias vieram de ex-praxistas e de seus alunos.

As rachaduras ao longo das quais não só o Praxis, mas a própria nação iugoslava mais tarde acabaria se fragmentando eram invisíveis para os admiradores estrangeiros do grupo na década de 1960. Afinal, para os progressistas no exterior, a Iugoslávia de Tito representava algo unicamente inspirador: não apenas era menos autoritária do que os países do bloco oriental, mas Tito havia adotado um ambicioso programa de autogestão operária que prometia ajudar a Iugoslávia a realizar o projeto marxista mais utópico que qualquer país já havia tentado. Na medida em que o grupo Praxis falava de nacionalismo, era para se opor a ele como uma ameaça atávica aos princípios universalistas do humanismo e do marxismo. A história sombria da região e as rivalidades internas latentes eram a última coisa na mente de das pessoas.

Norman Birnbaum, mais tarde professor de Direito na Universidade de Georgetown, explica: “quando fomos para a Iugoslávia naquela época, pensávamos que a questão da nacionalidade já havia sido resolvida. Foi a trégua, ou a ilusão, ou o parêntese titoísta.” A historiadora croata Branka Magas coloca a questão de maneira diferente. Os esquerdistas ocidentais que aderiam ao Praxis ainda na década de 1980 e início de 1990, diz ela, “nunca olharam de verdade para a Iugoslávia. Eles viam a autogestão. Eles só viam o país pelas lentes daquilo que os interessava”.

Quando olhamos de volta para a Iugoslávia durante os anos de Tito, escreve Tim Judah em The Serbs: History, Myth, and the Destruction of Yugoslavia (“Os Sérvios: História, Mito e a Destruição da Iugoslávia”, 1997), “não podemos deixar de nos surpreender com o quão inconseqüentes alguns dos grandes debates do passado acabaram sendo.” Na verdade, pode parecer hoje que o humanismo marxista e a autogestão eram apenas alguns becos sem saída no caminho que levava à guerra em Sarajevo. Mas quando o grupo Praxis se uniu em torno dessas preocupações na década de 1960, eles pareciam para todo o mundo como a estrada de tijolos amarelos para uma utopia onde a democracia finalmente alimentaria o socialismo. Era hora das burocracias comunistas que haviam se ossificado na Europa Oriental cederem, defendiam os marxistas humanistas, e deixarem florescer um socialismo dinâmico e participativo.

Na sua origem, a revista filosófica Praxis era apenas a sucessora da Pogledi, uma revista política publicada na capital da Croácia, Zagreb, na década de 1950. Pogledi foi uma vítima da interferência estatal: durou apenas três anos. Entre os principais colaboradores da extinta revista, estava o sociólogo Rudi Supek da Universidade de Zagreb, que participou da Resistência Francesa como imigrante durante a Segunda Guerra Mundial e mais tarde liderou uma organização clandestina de prisioneiros quando foi preso no campo de concentração nazista de Buchenwald; e o filósofo da Universidade de Zagreb, Gajo Petrovic, um sérvio da Croácia que gravitava em torno dos primeiros escritos de Marx, do existencialismo e de Heidegger. Birnbaum relembra, “Supek e Petrovic eram impressionantes por seu rigor moral, seu total desprezo pelo carreirismo. Eram pessoas de quem você adorava estar perto.” Das cinzas de Pogledi, Supek, Petrovic e seus colegas começaram sua escola de verão em Korcula em 1963 e uma nova revista, a Praxis, em 1964. O grupo que se formou em torno desses empreendimentos consistia em um círculo estreito de amigos e colegas – alguns vindo dos departamentos de Supek e Petrovic na Universidade de Zagreb e outros oito do departamento de filosofia da Universidade de Belgrado.

Os filósofos publicaram sua nova revista em uma edição iugoslava em servo-croata e em uma edição internacional multilíngue. E seu coletivo editorial adotou uma agenda que era mais unificada do que qualquer coisa que o Pogledi já havia tentado: o grupo Praxis defendia a liberdade de expressão e de imprensa e acreditava que o autoritarismo stalinista deveria ser corrigido na prática e extirpado da própria teoria marxista . Para este fim, eles prescreviam um retorno aos primeiros escritos românticos de Marx, especialmente os Manuscritos Econômicos e Filosóficos de 1844. Segundo eles, a obra posterior e mais influente de Marx enfatizaria as leis de ferro do determinismo histórico, enquanto os Manuscritos de 1844 falava com lirismo sobre o potencial criativo da atividade humana, por meio da qual o homem pode realizar seu “ser espécie”.

Essa orientação não era nenhuma invenção iugoslava. Na verdade, os praxistas seguiam um exemplo da vizinha Hungria, onde Georg Lukács reuniu um séquito de dissidentes com ideias semelhantes. Como Lukács, os praxistas foram cativados pela teoria da alienação nas primeiras obras de Marx. Em uma sociedade capitalista comum ou em uma sociedade socialista stalinista, o homem era alienado de si mesmo pela mercadificação de seu trabalho e pelo presunçoso poder de uma pequena classe privilegiada e de suas instituições. Uma sociedade marxista utópica, imaginavam os praxistas, superaria essa alienação, desencadeando a criatividade humana – ou a “práxis” – ao se livrar da classe dominante por meio da autogestão. Os trabalhadores controlariam diretamente não apenas seus locais de trabalho, mas também as instituições sociais e culturais – até mesmo os partidos políticos locais e os órgãos de governo. Nessa perspectiva o Estado, dado tempo suficiente, “murchará” por conta própria, exatamente como Marx previra.

A Iugoslávia, apesar das ousadas iniciativas de Tito, ficou bem aquém desse ideal. Na economia híbrida iugoslava, as celebradas empresas autogestionadas estavam expostas às pressões do mercado, por um lado, e aos caprichos do controle estatal, pelo outro. As oligarquias regionais tomaram conta: no final, os agentes do poder local manipulavam e ignoravam os conselhos de trabalhadores da mesma forma que os administradores fazem em todos os lugares. Mas os praxistas viam esses problemas como evidências de que a autogestão não foi longe o suficiente. Eles eram ao mesmo tempo os expoentes mais apaixonados da autogestão no exterior e os mais ferozes críticos internos do sistema iugoslavo.

É notável que Tito tenha tolerado a Praxis. Praticamente nenhum outro país comunista, com a possível exceção da Hungria, permitia tanto discurso dissidente quanto a Iugoslávia nos dias de Tito. Mas havia limites para a tolerância de Tito. Em uma reunião do corpo docente de filosofia em 1967, Ljubomir Tadic, um filósofo do Praxis da Universidade de Belgrado, instigou um jogo particularmente perigoso com as autoridades. No espírito antiautoritário do Praxis, Tadic criticou publicamente a disposição constitucional que permitia a Tito permanecer no cargo para além de seu mandato de oito anos. Quando o professor renegado passou a ser investigado pelo governo, o corpo docente uniu-se a ele e lhe foi permitido manter seu emprego.

Com o apoio entusiástico dos praxistas de Belgrado, manifestações estudantis convulsionaram a Universidade de Belgrado em junho de 1968. Os estudantes protestaram contra suas péssimas condições de vida e exigiram o fim do autoritarismo, do desemprego e, na medida do possível, da Guerra do Vietnã. As autoridades locais sérvias instaram Tito a enviar tropas militares para o campus de Belgrado – no fim das contas, foi naquele mesmo verão que os tanques soviéticos colocaram um fim nos protestos populares em Praga. Porém, ao contrário de seus colegas desajeitados em Moscou, Tito empregou uma astúcia felina para dispersar seus inimigos. Em um apelo televisionado, ele se declarou profundamente solidário com as preocupações dos manifestantes. Na verdade, disse ele, era apenas a burocracia iugoslava que estava no caminho da agenda que ele e os alunos compartilhavam. Se os burocratas não permitissem que ele atendesse às demandas desses alunos, declarou, ele renunciaria. É claro, as exigências não foram atendidas e Tito não renunciou. De fato, apenas duas semanas depois de fazer esse discurso, ele instou a Universidade de Belgrado a demitir seus filósofos do Grupo Praxis sob o argumento de que eles estavam “corrompendo” estudantes. A situação daqueles filósofos, que ficaram conhecidos como “os 8 de Belgrado”, tornou-se uma preocupação internacional.

Aquele verão foi especialmente memorável em Korcula. Richard Bernstein, mais tarde um filósofo político na New School for Social Research, em Nova Iorque, relembra: “Todo mundo que era importante na esquerda, no Oriente ou no Ocidente, compareceu à reunião de 1968. Todos os líderes dos movimentos estudantis da Alemanha, da Europa Oriental e dos Estados Unidos estavam lá.” Contudo, enquanto os conselhos editoriais da Praxis e da New Left Review se bronzeavam nas praias de Korcula, os 8 de Belgrado mantinham seus empregos por um fio.

Ao longo desse período, o governo iugoslavo estava passando por uma mudança sutil, mas significativa. Do final da Segunda Guerra Mundial até 1966, o principal desafio de Tito era consolidar seu Estado desconjuntadamente multinacional. Mesmo dentro de seu círculo íntimo, acirravam debates sobre se as seis repúblicas que constituíam a Iugoslávia – Bósnia, Croácia, Macedônia, Montenegro, Sérvia e Eslovênia – deveriam receber maior autonomia ou se deveriam ser atadas com mais firmeza a uma autoridade central. A História ensinava que, nos Bálcãs, quem ignora essas questões o faz por sua conta e risco: a breve primeira Iugoslávia (1918-1941) optou por um centralismo rígido; o Estado era governado por uma monarquia sérvia e os militares, a cultura e a política do país eram esmagadoramente dominados pelos sérvios. Ao longo desses anos de opressão, a Croácia fervilhou com ressentimentos – e durante a Segunda Guerra Mundial, as animosidades latentes explodiram. Sob a liderança fascista, a Croácia empreendeu uma campanha genocida contra os sérvios e também contra os judeus. A selvageria das matanças chocou até mesmo oficiais da SS alemães alocados nos Bálcãs.

Com essa história em mente, o regime de Tito caminhava em uma linha tênue entre um forte Estado central, que era de longe era a preferência dos sérvios, e uma confederação de repúblicas mais soltas, que era geralmente a preferência de croatas e eslovenos. O centralismo prevaleceu nos primeiros anos do pós-guerra, mas o ímpeto começou a crescer na outra direção em meados da década de 1960. Um novo conjunto de arranjos constitucionais lentamente tomou forma, oferecendo maior autonomia a cada república, mas isso não apaziguou aqueles que defendiam uma confederação mais livre. Um movimento nacionalista croata nasceu do sentimento de que as reformas do final dos anos 1960 não teriam ido longe o suficiente. Entre as queixas dos ativistas estava que a Croácia, que era mais industrializada e geralmente mais rica do que Sérvia, Montenegro e Macedônia, acabava carregando uma porção maior do fardo econômico da iugoslavo. Extremistas passaram a defender a secessão croata. Estudantes, intelectuais e até autoridades comunistas locais se reuniram em torno de uma sociedade cultural croata chamada Matica Hrvatska até que Tito dissolveu o grupo, expurgou seus participantes da vida política e prendeu líderes estudantis.

Assistindo à crescente militância nacionalista de seus colegas acadêmicos croatas, os praxistas de Zagreb ficaram horrorizados. E por isso mesmo, Tito de súbito descobriu que esses praxistas eram indispensáveis: afinal, o nacionalismo era uma ameaça maior para a frágil nação do que a crítica marxista jamais seria, e os membros do grupo de Zagreb falavam de maneira franca e eloqüente contra o mal maior. Assim, mesmo enquanto os praxistas de Belgrado, associados à agitação estudantil, apelavam à comunidade internacional em busca de proteção, seus colegas de Zagreb, que estavam associados à luta contra o nacionalismo croata, continuavam seu trabalho em paz.

Contra esse pano de fundo, a Praxis publicou uma edição especial sobre nacionalismo em 1968. Foi o ponto alto da resistência da revista contra as políticas do identitarismo étnico. Em um ensaio, Ljubomir Tadic, ele próprio um sérvio-bósnio, argumentou que o nacionalismo contradizia a própria noção de humanidade universal. No lugar da justiça, o nacionalista afirma o direito dos fortes de dominar os fracos e o poder da violência para resolver os conflitos. “Esquecemos rapidamente”, escreveu Tadic, “que os nacionalismos sérvios e croatas […] permaneceram ideologias militantes e despóticas que carecem de criatividade política e cultural em todas as suas formas”. Onde a justiça social e a liberdade política estiverem em declínio, teorizou Tadic, o nacionalismo emergiria em ascensão. Porém, a Iugoslávia socialista haveria demonstrado “a superioridade da consciência de classe proletária sobre a consciência nacionalista, [e] a vantagem da unidade democrática acima da unidade imposta ou da desintegração forçada”.

Outras contribuições da edição falavam de maneira igualmente apaixonada. Danko Grlic, um croata, evocou vividamente a irracionalidade do nacionalismo. Uma vez desencadeado, advertiu, ele seria imune à lógica: “Não é possível debater racionalmente e nem teoricamente sobre a nação; pela nação você apenas luta e morre; você ama a nação como a carne de sua carne, como a essência de seu ser, a bebe com o leite de sua mãe; é corpo e sangue […]”

A lealdade do Praxis a uma Iugoslávia unida parecia bem nítida. Contudo, dada a ameaça sempre presente de censura pelo governo, pouco do que os intelectuais iugoslavos publicavam naqueles anos era completamente transparente. O filósofo de Zagreb Zarko Puhovski, o praxista mais jovem, com cerca de 20 anos de diferença dos outros, diz que as disputas do grupo sobre política e ideologia ficavam muitas vezes disfarçadas como conversas sobre questões menos controversas, como estética ou ontologia. “Um tipo de debate funcionava como um substituto para outros tipos de debate”, lembra ele.

Isso ficou particularmente evidente quando o próprio Puhovski editou uma edição especial da Praxis em 1973. Ele recebeu uma sumissão do conhecido romancista sérvio Dobrica Cosic. Era um pequeno artigo argumentando que o verdadeiro socialismo não era possível em uma sociedade não iluminada e que a fé nas pessoas – que Cosic afirmava não ter muita – seria o “último refúgio para nossas esperanças historicamente frustradas”. Quais pessoas e quais esperanças? O artigo não especificava. Mas Puhovski detectou aí uma perturbadora mensagem nacionalista, mesmo assim. Ele também não ficou impressionado com o argumento do artigo ou com seu rigor: “Eu tinha a abordagem de principiante de acreditar que a filosofia e a sociologia eram campos especializados”, ele relata com um toque de sarcasmo. “Não achei que o artigo de Cosic estivesse à altura. Era uma propaganda nacionalista ruim. ” Ele recusou o artigo.

Os membros mais velhos o repreenderam, dizendo que ele simplesmente não entendia a importância da figura de Cosic. Cosic era mais conhecido como o autor do romance de guerra partisano mais famoso no país, “À Distância Está o Sol” (“Far Away Is the Sun”, de 1950), no qual uma companhia de soldados da resistência partisana afirma seu compromisso com o iugoslavismo e o comunismo executando um nacionalista sérvio em seu meio. Mas as cores de Cosic haviam começado a mudar: em 1968, ele fora expulso do Comitê Central por acusar o regime de fomentar o separatismo albanês em Kosovo. Mesmo assim, ele não seria amplamente considerado um escritor nacionalista até o final dos anos 1970 e início dos anos 1980, quando publicou uma série de romances que abordava explicitamente a história e as queixas sérvias. Naquela época, ele representava uma figura tão distinta em Belgrado que era freqüentemente chamado de “pai da nação sérvia”.

Conforme a edição de 1973 da Praxis se aproximava da publicação, Puhovski se descobriu sozinho: o conselho editorial se dividiu em sete a um em favor de Cosic.

O surgimento de tensões nacionalistas dentro do grupo Praxis foi um prenúncio de tensões que logo se espalhariam por todo o país. Anos depois, quando a guerra eclodiu em Kosovo, os jornais estadunidenses considerariam 1989, o ano em que Milosevic revogou a autonomia de Kosovo, como o início do fim da Iugoslávia. Muitos sérvios, no entanto, diriam que o destino do país estava selado já em 1974. Esse foi o ano em que uma polêmica revisão da constituição iugoslava entrou em vigor, devolvendo poderes mais amplos do que nunca às seis repúblicas e concedendo total autonomia a duas províncias dentro da república da Sérvia: Kosovo e Vojvodina. Como os sérvios estavam espalhados pelas repúblicas – mais de um milhão vivia na Bósnia e pelo menos 500.000 na Croácia – essas reformas constitucionais acabariam alimentando um crescente sentimento de insatisfação entre os sérvios.

Em Belgrado, duas correntes de protesto saudaram a constituição de 1974. Uma greve estudantil tomou o campus universitário em nome dos ideais marxistas: onde, perguntavam os estudantes, estavam refletidos os interesses pan-iugoslavos da classe trabalhadora nessa nova constituição? Os estudantes temiam que a reforma, com sua ênfase nas divisões entre as repúblicas, enfraquecesse a unidade socialista da Iugoslávia, abrindo uma caixa de Pandora de queixas e reivindicações étnicas. Como que para provar que os estudantes estavam certos, outros críticos da constituição, incluindo Dobrica Cosic, protestaram que ela desempoderava injustamente os sérvios.

Nos anos subsequentes, os nacionalistas sérvios reclamariam amargamente que a política de Tito havia se tornado “uma Sérvia fraca é uma Iugoslávia forte”. Mas por que não deveria ter sido assim? Das seis nações oficiais do país, os sérvios eram de longe os mais populosos, superando os croatas em dois para um. Se a cultura e a política multinacionais da Iugoslávia fossem governadas por um governo de maioria, o país não teria como sobreviver: as populações não-sérvias tinham identidades nacionais fortemente desenvolvidas e longas e distintas Histórias próprias. Não só isso, mas elas ocupavam territórios mais compactos do que os sérvios. Se elas se sentissem excessivamente dominadas, poderiam sentir a tentação da secessão. Assim, Tito restringiu a influência potencialmente arrogante dos sérvios, dividindo a Iugoslávia em unidades territoriais e reajustando constantemente o equilíbrio interno de poder.

Hoje, alguns críticos culpam a constituição de 1974 pelo crescimento dos movimentos nacionalistas na Croácia e na Eslovênia. Mais provavelmente, ela foi uma resposta aos movimentos nacionalistas que já estavam ativos. Em qualquer caso, a crítica mais contundente foi feita pelos nacionalistas sérvios: a nova constituição se baseava em um padrão duplo. Se as unidades de participação política da Iugoslávia fossem seus grupos étnicos, ou “nações constituintes”, os sérvios na Bósnia e na Croácia, que eram representados por lideranças muçulmanas e croatas, respectivamente, ficariam sem representação. Mas se as unidades eram territoriais, então por que a Sérvia era a única república cujo território incluía províncias autônomas sobre as quais tinha pouco controle?

A verdade era muito simples: na multinacional Iugoslávia, Tito havia deliberadamente redistribuído o poder dos fortes para os fracos. E se ele realmente acreditava que uma Iugoslávia forte exigia uma Sérvia fraca, talvez ele não estivesse enganado. Muito mais tarde, em 1989, quando Milosevic finalmente impôs o controle sérvio às suas províncias, a Sérvia emergiu forte – e a Iugoslávia se despedaçou. A terrível ironia em tudo isso é que os sérvios, geograficamente dispersos, podem ter se beneficiado mais do que ninguém com os anos de “fraqueza” da Sérvia. Pois, de todas as nações iugoslavas, apenas os sérvios precisavam mais de uma Iugoslávia unificada do que ela precisava deles.

Se 1974 marcou o início da crise nacional iugoslava, o ano também pressagiou o fim da existência legal do grupo Praxis. Tito expurgou os 8 de Belgrado da universidade no ano seguinte. A luta de seis anos entre o Estado e os professores simplesmente se exauriu. Não só os 8 de Belgrado foram proibidos de ensinar, mas a revista Praxis também foi banida. Desta vez, os protestos de acadêmicos estadunidenses (incluindo Daniel Bell, Noam Chomsky e Stanley Hoffman) caíram em ouvidos surdos.

Por mais de uma década, os 8 de Belgrado – Mihailo Markovic, Svetozar Stojanovic, Ljubomir Tadic, Zagorka Golubovic, Dragoljub Micunovic, Miladin Zivotic, Nebojsa Popov e Trivo Indjic – vagaram pelo mundo, aceitando cátedras como professores visitantes no exterior e encontrando-se secretamente em Belgrado. Apenas Indjic aceitou a oferta do governo de um cargo discreto em um instituto. Os outros insistiram em nada menos do que um retorno total à Universidade de Belgrado, o que não aconteceu. Markovic, o membro do grupo mais conhecido no exterior, assumiu um cargo de filosofia em meio período na Universidade da Pensilvânia. Stojanovic ensinou em Berkeley e na Universidade do Kansas. Enquanto isso, em Zagreb, a situação era um pouco menos sombria. “Havia pressões”, lembra Zarko Puhovski. “Não consegui publicar nada por dois anos. Mas não era nem remotamente parecido com a situação em Belgrado. ”

O resto da década de 1970 e o início da década de 1980 foram anos decepcionantes para os 8 de Belgrado. Eles organizaram o que chamaram de Universidade Livre, que consistia principalmente em seminários realizados em casas particulares, mas eles não podiam anunciar essas reuniões e tinham de ficar constantemente em guarda para o risco de interrupção pela polícia. Pelo menos uma sessão da Universidade Livre foi organizada na casa do romancista Dobrica Cosic. Nem marxista nem filósofo, Cosic era amigo pessoal e uma vultosa influência sobre o grupo Praxis, embora nunca tenha sido um membro de verdade. Durante a década de 1980, seus laços com o Praxis se estreitaram; mas até que ponto os praxistas já compartilhavam de seu nacionalismo incipiente permanece um mistério. Cosic colaborou com Tadic em dois projetos no início dos anos 1980: um deles, a proposta de uma revista que criticaria a burocracia e defenderia a liberdade de expressão, foi imediatamente suprimido pelo governo; o outro, uma petição contra as leis de censura, também foi rapidamente derrotado. A imprensa do governo denunciou Cosic e seus amigos do Praxis como “nacionalistas endurecidos e defensores declarados de um sistema multipartidário”, mas o grupo continuou a se reunir como um comitê para promover a liberdade de expressão.

Enquanto isso, a Iugoslávia havia entrado em uma profunda crise econômica: a dívida externa disparou para US $ 19 bilhões, o desemprego subiu para 17,5%, a inflação atingiu 120% e o padrão de vida caiu vertiginosamente. No Ocidente, a experiência iugoslava não gozava mais do prestígio de antes. Além disso, em 1980, a morte de Tito deixou a frágil estrutura multinacional sem liderança e volátil.

Em Kosovo, a maioria albanesa, que em sua maior parte era pobre, sem educação e sem poder, passou à inquietação. Os albaneses nunca haviam tido o status de outras “nações constituintes” da Iugoslávia: o regime de Tito argumentava que, ao invés disso, como havia uma pátria albanesa fora da Iugoslávia, eles deveriam ser considerados uma “minoria nacional”. Os kosovares rebatiam, indicando que 40% da população albanesa de todo o mundo residia na Iugoslávia. Manifestações varreram a província em 1981, exigindo, antes de mais nada, que Kosovo recebesse o status de república, incluindo o direito de secessão. O movimento atingiu um auge febril: sérvios e montenegrinos foram atacados e ameaçados, locais sagrados ortodoxos foram profanados e alguns ativistas começaram a gritar pela secessão e união com a Albânia. A polícia iugoslava reprimiu os tumultos, impondo um estado de lei marcial cuja severidade escandalizou os intelectuais croatas e eslovenos. Muitos albaneses passaram a definhar como prisioneiros políticos em Kosovo. Enquanto isso, a minoria sérvia na província se sentia cada vez mais como bode expiatório e ameaçada.

Com o Praxis conduzido à clandestinidade, a escola de verão em Korcula, nem é preciso dizer, havia muito acabara. Mas algo novo havia começado: o Centro Interuniversitário, na majestosa cidade croata de Dubrovnik, era uma instituição internacional que patrocinava conferências e cursos de curta duração ministrados por intelectuais de todo o mundo. Como não era administrado por iugoslavos, o centro estava relativamente livre da interferência do governo. Mais uma vez, proeminentes membros ocidentais da esquerda cruzaram o Adriático. Um dos praxistas abordou Jürgen Habermas sobre dar um curso em Dubrovnik como uma forma de reviver o espírito de Korcula. O venerado filósofo alemão e herdeiro da Escola de Frankfurt retornou à Iugoslávia com Richard Bernstein para co-ministrar um curso em 1979. O grupo Praxis, embora abatido, se reuniu novamente em Dubrovnik, onde encontrou um novo conjunto de esquerdistas ocidentais simpáticos ao grupo. Seyla Benhabib lembra que foi a Dubrovnik em 1979 para conhecer Bernstein e Habermas. O fato dela também ter encontrado o grupo Praxis foi apenas um feliz acidente. Tudo o que ela sabia sobre as atividades dos Praxistas naquela época era que “eles foram expulsos e foram para a oposição”.

Foi em Dubrovnik que Habermas, Bernstein e o filósofo alemão Albrecht Wellmer traçaram um plano para reviver o jornal Praxis que tanto despertou o seu interesse durante a década de 1960. Fornecer aos dissidentes privados de seus direitos um novo fórum internacional para seu trabalho só poderia fazer bem à causa do socialismo democrático, pensaram os filósofos ocidentais. Junto com Markovic e Stojanovic, eles lançaram a revista Praxis International em 1981.

A nova revista tentou retomar de onde a antigo havia parado, mas com um enfoque menos iugoslavo: incluía muitos ensaios teóricos sobre o marxismo no estilo da Praxis e, à medida que os anos 80 avançavam, cobria os países do Leste Europeu em transição. Produzida principalmente nos Estados Unidos e publicada pela editora Blackwell, a revista era muito mais eclética do que a primeira Praxis: as contribuições no final dos anos 1980 e do início dos anos 1990 abordaram o pensamento político de Cornel West, a relação entre feminismo e socialismo e outros tópicos de interesse geral para intelectuais de esquerda.

A essa altura, Mihailo Markovic era claramente o líder do grupo iugoslavo e passou a desempenhar um papel crucial na revista revivida. Fluente em inglês, ele era gregário, cosmopolita e urbano. Tanto suas credenciais anti-stalinistas quanto antifascistas eram impecáveis: ele havia lutado no exército partisano de Tito durante a Segunda Guerra Mundial e se orgulhava de ter levado ajuda aos judeus iugoslavos. Em seu trabalho filosófico, Markovic enfatizava o compromisso de Marx com a dignidade humana, a liberdade e a autorrealização.

Bernstein e Markovic tornaram-se amigos íntimos durante a direção conjunta da revista. David Crocker, filósofo na Universidade de Maryland e autor de Praxis and Democratic Socialism: The Critical Social Theory of Markovic and Stojanovic (“Práxis e Socialismo Democrático: A Teoria Crítica Social de Markovic e Stojanovic”, de 1983), também passou a considerar Markovic um amigo pessoal. Apenas Andrew Arato, professor de sociologia da New School, tinha uma aversão instintiva pelo velho sérvio. Markovic o lembrava de um apparatchik: “Ele claramente tinha uma personalidade autoritária. Lembro-me de uma vez que ele me manteve do lado de fora durante uma tempestade de neve por quarenta minutos, tentando me convencer de que os partidos políticos eram uma coisa ruim”, diz Arato, rindo. “Ele não me deixava entrar no restaurante – como se só pela força de sua personalidade, ele iria me persuadir de que a democracia não precisava funcionar por meio de partidos.” Outros praxistas de Belgrado, diz ele, eram muito avassalados por Markovic. “Mas quando não estavam com Mihailo, era possível conversar com eles sobre qualquer coisa. Eles eram mais flexíveis e mais ocidentais”.

Dos praxistas de Zagreb, bem poucos dos veteranos eram entusiastas da nova empreitada editorial do grupo de Belgrado. Os membros mais velhos e respeitados de Zagreb, Rudi Supek e Gajo Petrovic, participaram da primeira reunião. Supek foi receptivo à nova revista; mas Petrovic sentia fortemente que o nome Praxis não deveria ser usado. A Praxis, Petrovic argumentou, conotava uma publicação conjunta de Belgrado-Zagreb, cujos componentes internacionais vinham à convite dos iugoslavos. Essa nova revista, entretanto, seria publicada em inglês e dominada pelo pessoal de Belgrado e por estadunidenses. Ela era internacional antes de ser iugoslava e, por isso, insistia ele, deveria ter um novo nome e uma nova identidade. Talvez Petrovic também tenha percebido que seus colegas de Belgrado haviam mudado e que o consenso político era coisa do passado. Se ele havia percebido isso, não comentou.

Os editores americanos da Praxis International não ficaram muito preocupados com o fato de, com exceção de Supek, terem perdido o contingente de Zagreb. Conta Seyla Benhabib: “A questão da etnia era irrelevante. Eles eram todos iugoslavos. Para nós, estrangeiros, não era nem como perguntar: ‘Você é ítalo-americano ou irlandês-americano?’ Era mais como perguntar: ‘Você é bávaro ou de Berlim?’”

As seis repúblicas e as duas províncias autônomas da Iugoslávia já estavam em rota de colisão em meados da década de 1980, mas mesmo os observadores ocidentais mais astutos não perceberam o que estava por vir. O sinal mais visível de problemas estava em Kosovo, onde a lei marcial apenas alimentou as chamas das lutas étnicas. A minoria sérvia clamava pela atenção de Belgrado: em 1985, os sérvios de Kosovo enviaram uma petição ao governo central, alegando que sérvios haviam sido estuprados, assassinados e expulsos de suas casas por grupos étnicos albaneses da província. Será que Belgrado não poderia fazer nada sobre isso?

Até que ponto os sérvios de Kosovo foram perseguidos permanece uma questão discutível. Certamente eles estavam em menor número, e não há razão para duvidar que enfrentaram ameaças, vandalismo, assédio e até mesmo atos ocasionais de violência criminosa de uma maioria albanesa que se ressentia profundamente do regime eslavo. Mas para os iugoslavos fora da Sérvia, as reclamações sobre discriminação anti-sérvios em Kosovo eram incompreensíveis. Afinal, os sérvios passavam longe de ser um grupo oprimido no país como um todo, enquanto os albaneses formavam uma espécie de subclasse.

Portanto, foi uma surpresa para muitos dos admiradores dos praxistas de Belgrado quando três membros-chave do grupo – Markovic, Tadic e Zagorka Golubovic – assinaram uma petição em 1986 em apoio aos sérvios de Kosovo. Cosic também assinou. Não se tratava apenas do fato da petição pintar um quadro floreado do sofrimento sérvio na província do sul; mas também que os signatários incitavam obliquamente que o governo revogasse o status autônomo de Kosovo – algo que os nacionalistas sérvios vinham pressionando o parlamento a fazer. Afinal, raciocinavam os signatários da petição, com sua ajuda “altruísta” à empobrecida província, a Sérvia havia demonstrado amplamente que levava os interesses dos albaneses muito a sério. De maneira agourenta, os autores da petição entoavam: “O genocídio [contra os sérvios de Kosovo] não pode ser evitado pela […] política de entrega gradual de Kosovo […] à Albânia: a capitulação não assinada que leva a uma política de traição nacional.”

Quando Branka Magas, uma historiadora que emigrou da Iugoslávia em 1961, viu a petição, ficou alarmada. Ela a republicou, junto de sua própria crítica devastadora, na revista britânica Labor Focus on Eastern Europe (“Foco Trabalhista no Leste Europeu”). O ensaio de Magas se chamava “O Fim de uma Era” e ela o assinou com um nome falso que disfarçava sua origem croata. “Este alinhamento inesperado, na verdade surpreendente, dos editores da Praxis com o nacionalismo”, escreveu ela, “despertou considerável consternação entre seus amigos e simpatizantes, pois delineia uma ruptura completa com a tradição política e filosófica representada pela revista”.

Segundo Magas, os editores da Labor Focus estavam céticos. A reputação de Mihailo Markovic como humanista o precedia. Será que não havia algum engano? Os editores enviaram o artigo de Magas aos praxistas para que eles escrevessem uma resposta. Markovic, Tadic e Golubovic ficaram indignados. Eles não haviam abandonado seus ideais, escreveram. Eles ressaltaram o fato de que continuaram a publicar a Praxis International, uma revista dedicado ao socialismo democrático, e que faziam parte do comitê de Cosic para a liberdade de expressão. Eles insistiram que se manifestavam contra a repressão, independentemente da origem étnica das vítimas: “Somos nacionalistas porque também escrevemos sobre questões nacionais (que no momento são muito graves na Iugoslávia), ou porque nós, sendo sérvios, também defendemos as vítimas sérvias de repressão? ”

Para Magas, esse intercâmbio despertou um alerta vermelho. A retórica de vitimização sérvia, observou ela, era perturbadoramente semelhante à retórica de um documento que vazara recentemente para a imprensa iugoslava: o rascunho de um Memorando da influente Academia Sérvia de Artes e Ciências. O Memorando era o que o repórter do New York Times Roger Cohen chamou de “um catálogo incendiário de ressentimentos e ambições sérvios”. Seus autores alegavam que os sérvios fora da Sérvia corriam grave perigo, que a Iugoslávia estava se desintegrando e que, apesar da contribuição superior da Sérvia para o lado vencedor na Segunda Guerra Mundial, seu povo estava dividido e sub-representado na Iugoslávia pós-1974. Muitos analistas descreveram o documento de 74 páginas como o catalisador para a ascensão de Milosevic ao poder: Ele fornecia o projeto conceitual para uma “Grande Sérvia”.

Magas later discovered that one of its authors was Mihailo Markovic.

Em 1989, Seyla Benhabib assumiu a editoria estadunidense da Praxis International. Na época, ela sabia que o conflito estava se formando em Kosovo, mas ela ainda não compreendia sua história ou suas dimensões. Seus colegas do Praxis não ajudaram muito. Era curioso, pensou ela, que Svetozar Stojanovic, seu co-editor iugoslavo, nunca escreveu nada sobre os recentes acontecimentos em seu próprio país.

Praticamente todos os colaboradores ocidentais da Praxis se lembram de Stojanovic como o membro mais ideologicamente flexível do grupo de Belgrado. Enquanto Markovic se apegava aos Manuscritos de Marx de 1844, Stojanovic explorava a possibilidade de um livre-mercado limitado. Ele foi o único praxista a investigar seriamente o liberalismo e, em um ensaio da Praxis de 1971, ousou criticar Tito como um “líder carismático”. Arato relembra, “Stojanovic era mais talentoso do que Markovic, e Markovic era o chefe”.

Mas quando Benhabib mencionou Kosovo em 1989, Stojanovic pareceu irritado e surpreso. “Por que você quer saber sobre Kosovo?” ele perguntou. Benhabib respondeu: “há um conflito lá, e não entendemos do que se trata.” Disse Stojanovic: “Alguma vez escrevemos sobre o conflito palestino na Praxis?” Foi a vez de Benhabib ficar desconfortável. “Sveta”, ela se lembra de ter dito, “do que você está falando?”

“Bem, você sabe”, ele argumentou, “muitos dos membros do nosso conselho editorial são judeus. Existem algumas questões que simplesmente não abordamos.”

No entanto, protestou Benhabib, a Praxis International não evitava o conflito palestino porque alguns de seus editores eram judeus. Fazia isso porque o Oriente Médio estava fora de seu escopo. As questões sobre nacionalidade em países marxistas, por outro lado, eram obviamente pertinentes. Stojanovic cedeu. No entanto, Benhabib observa: “Quando o artigo sobre Kosovo foi escrito, Sveta, que era um homem moderado, não o escreveu ele mesmo. Foi Mihailo.”

Publicar o artigo de Markovic sobre Kosovo, diz Benhabib hoje, é a única decisão editorial da qual ela realmente se arrepende. O texto, que saiu em 1990, começa em um tom eminentemente razoável. Os nacionalistas de ambos os lados desse debate, declarava Markovic, haviam falhado em ouvir os argumentos uns dos outros. Era hora de avaliar os fatos.

Os albaneses, explicava Markovic calmamente, são um povo retrógrado, organizado em clãs, que se mostrara incapaz de vencer a pobreza por si mesmos. As outras repúblicas iugoslavas despejaram recursos intermináveis em Kosovo, mas sem resultados. A razão para isso seria simples e sinistra: os nacionalistas albaneses teriam adotado uma taxa de natalidade rápida como arma demográfica contra os sérvios. Como resultado desse estratagema e da má administração fiscal dos corruptos líderes albaneses, simplesmente haveria bocas kosovares demais para alimentar. Combinado com esses problemas econômicos, existiria uma fenda ideológica. Os albaneses étnicos não lutaram ao lado dos guerrilheiros iugoslavos na Segunda Guerra Mundial; por essa razão, lamentou Markovic, a população nunca aceitara a revolução socialista e, pior, alimentava tendências fascistas que sobraram como resquícios da ocupação pelo Eixo.

Mas a parte mais incrível da argumentação de Markovic ainda estava por vir. Pode parecer, refletia Markovic, que os albaneses seriam apenas uma pequena minoria pobre e oprimida. Mas a verdade seria que ao longo da História os albaneses tiveram grandes poderes ao seu lado, enquanto a Sérvia tivera de se virar com seus próprios pés. E quem foram os poderosos protetores dos albaneses de Kosovo? O Império Otomano, a Áustria-Hungria, a Itália, o Vaticano, a Grã-Bretanha, o Comintern, os Estados Unidos, o fundamentalismo pan-islâmico, a Albânia e uma conspiração de burocratas no governo iugoslavo.

Algumas soluções extremas podem ser sugeridas, observava Markovic: a repressão policial violenta e o planejamento familiar obrigatório, por exemplo, ou uma divisão e “intercâmbio de população”, deixando para a Sérvia o norte de Kosovo, rico em minerais, e o resto para a Albânia. Mas Markovic recuava dessas possibilidades. Ele propôs, em vez disso, que a autonomia fosse mantida, que o investimento na província fosse reduzido e que o planejamento familiar fosse instituído “de uma forma gentil e psicologicamente aceitável, instuída pelos próprios albaneses, usando principalmente meios educacionais”.

À luz de hoje, o artigo é assustador. O que mais impressiono Benhabib hoje é a passagem sobre a taxa de natalidade dos albaneses e sua subsequente pobreza abjeta. “Este é o pensamento neofascista clichê, o pensamento racista sobre um grupo oprimido. Você encontrará racistas dizendo a mesma coisa em todos os lugares.” Em 1990, contudo, os sinos de alarme de alguma forma não soaram. Benhabib sabia muito pouco sobre Kosovo e, para saber mais, pediu que Stojanovic comicionasse um artigo.

“Às vezes eu sentia que teias estavam sendo urdidas ao meu redor”, diz Benhabib hoje. Pouco depois do artigo de Markovic ser lançado, a Iugoslávia começou sua sangrenta desintegração. Em 1991, primeiro a Eslovênia e depois a Croácia declararam independência, dando início à guerra servo-croata. Benhabib estava em Frankfurt naquele momento, e as pessoas começaram a abordá-la sobre seu colega Markovic, que nessa época era vice-presidente e o principal ideólogo do partido socialista de Milosevic. “A gente encontrava com indivíduos que diziam: ‘Você está ciente do que está fazendo?’”, lembra ela. Mas foi depois depois que a Bósnia se incendiou, em 1992, que Benhabib ficou realmente desconfortável. “Estávamos sendo instrumentalizados para obter prestígio e crédito”, acredita ela agora. A gota d’água foi uma entrevista que Markovic deu ao New York Times em agosto de 1992: “Não entendo por que há tanta oposição à cantonização”, disse ele ao repórter, sobre a divisão da Bósnia. “A alternativa seria a criação de um estado muçulmano no coração da Europa. Talvez os estadunidenses queiram apoiar isso […] Mas nó achamos isso muito perturbador.”

Em 1993, diz Benhabib, “descobrimos que a situação havia ficado muito suja, moral e politicamente”. A única saída era parar de publicar a revista e cortar relações com Stojanovic e Markovic. A Praxis International publicou sua última edição, “A Ascensão e a Queda da Iugoslávia: Estações de uma Tragédia Europeia,” em janeiro de 1994; incluindo perspectivas eslovenas, croatas e sérvias sobre a desintegração da Iugoslávia. A amizade de Richard Bernstein com Markovic foi destruída pela guerra da Bósnia. Quanto a Benhabib, ela não manteve contato com Markovic ou Stojanovic: Desde a separação, ela diz: “Tenho aversão a acompanhar a carreira deles”.

Se Mihailo Markovic não era quem seus amigos e colaboradores ocidentais pensavam que ele fosse, então quem era ele? Será que ele simplesmente descartou suas crenças humanistas para se acomodar a um novo regime? Ou será que ele havia sido um lobo em pele de cordeiro o tempo todo?

“Muitas pessoas têm lido Markovic como um cínico e um traidor do Praxis”, diz Bernstein. Mas na visão distorcida de Markovic, Bernstein suspeita, “a Sérvia representava o elemento progressista da sociedade iugoslava” – o elemento empenhado em manter a Iugoslávia unida e em preservar sua estrutura socialista. Com o tempo, ele perdeu toda a perspectiva. “Essa é a tragédia de Mihailo Markovic”, diz Bernstein. “Em vez de ver o lado sombrio e feio do nacionalismo sérvio, ele se comprometeu com ele.”

A medida plena desse compromisso ficou evidente quando Markovic se tornou o vice-presidente do partido de Milosevic em 1991. David Crocker encontrou seu velho amigo em uma conferência na África naquele ano. Por que, perguntou Crocker, ele se juntou ao governo sérvio? A resposta do filósofo foi simples: “Me envolvi na política para salvar os sérvios no leste da Croácia”. Caso contrário, afirmou Markovic, “eles teriam sido massacrados”.

O que diabos o fez pensar isso? Mas ele não estava sozinho. Em 1992, os termos do debate político na Iugoslávia haviam sofrido uma mudança dramática. Não era mais uma questão de quão estreitamente as seis repúblicas e as duas províncias autônomas deveriam estar submetidas à autoridade central de Belgrado. À medida que o comunismo desmoronava no antigo bloco oriental, os iugoslavos começaram a reviver seus próprios paradigmas pré-comunistas. Mas na Iugoslávia, esses paradigmas eram extremos e impraticáveis, baseando-se nas memórias mais feias e nos piores temores do país: um Estado unitário dominado pelos sérvios, que os não-sérvios lembravam amargamente da primeira Iugoslávia; e os campos de extermínio fratricidas da Segunda Guerra Mundial, nos quais os sérvios foram esmagadoramente vitimados. Parecia cada vez mais impossível para o país permanecer unido em uma forma multinacional ou se separar sem uma destruição apocalíptica.

Olhando para trás agora, para a edição de Praxis sobre o nacionalismo lançada em 1968, o que parecia ser um consenso antinacionalista começa a tomar uma forma mais ambígua. Tanto os sérvios quanto os croatas repudiavam o então ascendente movimento nacionalista croata e davam apoio à continuação de uma Iugoslávia unida. Para os croatas, essa postura era explicitamente oposta à do nacionalismo croata. Mas para os sérvios, a posição era compatível tanto com um antinacionalismo baseado em princípios quanto com seu próprio interesse nacional: afinal de contas, a Iugoslávia era de fato a única opção viável para manter os sérvios em um único Estado. Isso não quer dizer que Markovic, Tadic e os outros almejavam criar uma Grande Sérvia em 1968 – e sim que eles não precisavam dessa esperança. A Iugoslávia estava perfeitamente confortável. Os croatas podem ter enfrentado seriamente as questões de etnia e nação na Iugoslávia em 1968; mas os sérvios que alegremente apoiavam o iugoslavismo o faziam com toda a arrogância de qualquer maioria, por mais bem intencionada que fosse.

Além disso, o que quer que os praxistas fossem para além disso, eles continuavam sendo marxistas. Na Croácia, continuar a ser marxista – ou iugoslavista – colocava alguém na oposição ao regime nacionalista de direita de Franjo Tudjman. E, de fato, muitos dos praxistas croatas continuaram fortes defensores dos direitos humanos: Zarko Puhovski, que depois foi vice-presidente do Comitê de Direitos Humanos de Helsinque da Croácia, levantou sua voz corajosamente contra as campanhas de limpeza étnica perpetradas pelo exército croata. E o economista Branko Horvat concorreu à presidência em 1992 com uma plataforma anti-guerra e antiautoritária.

Já para os praxistas sérvios, a situação era diferente: continuar a apoiar as forças socialistas do país era aliar-se ao governo de Milosevic – e se opor a Milosevic, ao que parecia, era se opor ao que restava do comunismo iugoslavo. “Seu mundo desmoronou”, diz Benhabib sobre Markovic. “O liberalismo era inaceitável. Ele não queria o capitalismo de livre-mercado. ” Certamente, os novos partidos de oposição, a maioria dos quais não eram apenas nacionalistas, mas também de direita ou mesmo monarquistas, não seriam aceitáveis ​​para um comunista da geração de Markovic. Aparentemente ele decidiu que Milosevic representava o futuro do socialismo iugoslavo. Afinal, Milosevic havia herdado o aparato do Partido Comunista, e seu partido socialista no governo estava entre os últimos a resistir na Europa Oriental. Claro, Milosevic havia preparado aquele coquetel mortal, misturando socialismo e nacionalismo. Markovic se tornou um dos apologistas mais francos e implacáveis ​​do regime. E então, em 1995, ele foi expulso do poder – o governo, ao que parece, passou a considerar as suas visões nacionalistas como extremistas demais.

Dos 8 de Belgrado, ninguém se desgraçou tão completamente quanto Markovic, mas não deve haver dúvidas de que o nacionalismo conquistou os corações e mentes de vários outros praxistas. Considere o caso de Svetozar Stojanovic e seu aliado, Dobrica Cosic.

Em seu livro de 1997, The Fall of Yugoslavia: Why Communism Failed (“A Queda da Iugoslávia: Porque o Comunismo Fracassou”), Stojanovic escreveu que a revolução em seu pensamento ocorreu em 1990, quando foram abertas as valas comuns de Jasenovac, o campo de concentração croata durante a Segunda Guerra Mundial, para dar um novo enterro aos corpos. Stojanovic se viu confrontado com a raiva de seus filhos: ele nunca havia falado com eles sobre Jasenovac antes. Afinal, essas memórias foram suprimidas durante os anos de Tito. A partir desse momento, declarou Stojanovic, ele decidiu que seu trabalho político deveria ser dedicado à memória de Jasenovac.

A carreira política de Stojanovic cresceria junto com a de seu amigo próximo, Cosic. Em 1992, Milosevic nomeou Cosic para a presidência dos restos da Iugoslávia, e Cosic trouxe Stojanovic como seu principal conselheiro. Muitos observadores dentro e fora da Iugoslávia esperavam que a presença de figuras tão respeitáveis, embora abertamente nacionalistas, marcasse uma mudança de curso político. Em vez disso, apenas comprou a Milosevic um ano de melhores relações públicas no exterior, enquanto dentro do governo as mãos dos moderados estavam atadas.

Em seu livro, Stojanovic condena as atividades criminosas do regime de Milosevic por motivos nacionalistas: Se alguém compartilha do orgulho coletivo, argumentou ele, também deveria compartilhar da vergonha coletiva. E ele afirma que Cosic protestou contra a uso de formações paramilitares brutais por Milosevic na Croácia e na Bósnia. Ao mesmo tempo, no entanto, Stojanovic e Cosic apoiavam os objetivos territoriais de Milosevic. A Iugoslávia não poderia ser desmembrada ao longo das fronteiras de suas antigas repúblicas, argumentavam Stojanovic e Cosic. Um “mapa mais profundo”, eles acreditavam, estava submerso sob o mapa da Iugoslávia de Tito; e esse mapa verdadeiro deveria levar em conta as faixas de terras croatas e bósnias que haviam sido povoadas pelos sérvios por centenas de anos.

Cosic e Stojanovic estavam abertos a várias soluções: a independência croata poderia ter sido aceitável, sugere Stojanovic, se a Croácia estivesse disposta a garantir autonomia substancial aos seus territórios povoados pelos sérvios. Na prática, os críticos objetariam, tais soluções eram insustentáveis. Digamos que houvesse autonomia para os sérvios na Croácia; e dentro dessa autonomia, deveria haver autonomia para os croatas na Croácia sérvia? E quanto aos sérvios na Croácia sérvia croata? É tentador enxergar essa linha de raciocínio, que leva inelutavelmente a uma reductio ad infinitum, como um dispositivo sofisticado cujo verdadeiro propósito era forçar a reintegração iugoslava nos termos sérvios.

A presidência de Cosic durou apenas um ano e, quando foi deposto em 1993, Stojanovic também deixou a política. Seis anos depois, no silêncio assustador que se seguiu à guerra de Kosovo, a Academia Sérvia de Artes e Ciências se reuniu novamente para avaliar a questão nacional sérvia. Na reunião de junho de 1999, Cosic falou longamente sobre a ruína sofrida pela nação sérvia. “Apelo à consciência patriótica e à responsabilidade cívica de Slobodan Milosevic para que renuncie a fim de que as mudanças indispensáveis na Sérvia e no Estado Federal possam começar”, concluiu.

Markovic adotou uma linha mais dura: “Nossa tragédia não está no fato de que esta ou aquela pessoa era o chefe de Estado. Nossa tragédia está no fato de que as grandes potências decidiram destruir nosso país.”

Embora apenas Stojanovic e Markovic tenham feito parte do governo, a maior parte dos 8 de Belgrado foram ativos politicamente durante a década de 1990 e apenas alguns se opuseram explicitamente à política do nacionalismo sérvio. Ljubomir Tadic e Dragoljub Micunovic formaram o primeiro partido de oposição democrática da Sérvia, o DS, em 1990. Embora os laços de seus fundadores com o Praxis lhe desse a reputação de ser a ala esquerda do movimento sérvio pela democracia liberal, o DS estabeleceu alianças estratégicas com partidos à direita, incluindo monarquistas e nacionalistas linha-dura. Os líderes do partido explicaram que estes compromissos lhes permitiram ter resultados críveis nas eleições parlamentares. Mas pelo menos a conversão de Tadic ao nacionalismo pareceu completa. Ele deu seu apoio acrítico ao movimento Sérvios da Bósnia, chegando a se encontrar pessoalmente com seu líder, Radovan Karadzic. Juntamente de Markovic, Tadic assinou uma petição em 1996 instando o Tribunal de Haia a retirar suas acusações contra Karadzic, “o verdadeiro líder de todos os sérvios”. Foi um ato notável para um homem que havia escrito de forma tão eloquente em 1968 sobre os nacionalismos como “ideologias militantes e despóticas”. Gerson Sher, que relembra do livro de Tadic de 1967, Ordem e Liberdade, como uma “obra-prima” do pensamento humanista, diz com tristeza: “Tadic é o maior mistério de todos eles.”

O colega de Tadic no DS, Micunovic, manteve uma reputação mais moderada. Ele permaneceu visível na vida pública até que seu ex-aluno Zoran Djindjic o demitiu da liderança do DS em 1994. Djindjic, que também estudou com Habermas e contribuiu com a Praxis International, se tornou um favorito do Ocidente que teve um papel fundamental para levar Milosevic ao Tribunal de Haia, mas suas políticas de reformas chegaram a elevar o desemprego acima de 30% e acabou assassinado em 2003. Micunovic dirigiu uma organização não governamental pró-democracia e depois chegou a ser presidente do parlamento unificado da Sérvia e Montenegro, antes da separação de ambos os países.

É típico da política sérvia que os praxistas que se aproximaram do poder fossem os que menos diferiam do regime dominante. Outros praxistas de Belgrado mantiveram uma distância maior da política, mas mantiveram atividades de agitação por um futuro genuinamente democrático. Foi membro dos 8 de Belgrado – Nebojsa Popov – que participou da fundação de um dos partidos mais baseados em princípios e menos populares da Sérvia, a Aliança Cívica da Sérvia, em 1991. Entre seus objetivos declarados estava “superar o coletivismo nacionalista e de classe”. Como o irmão menor dos dois maiores partidos de oposição, a Aliança Cívica juntou-se à coalizão Zajedno que liderou protestos na Universidade de Belgrado em 1996 e 1997. Em uma das cenas mais surreais que vieram de Belgrado durante os anos 1990, Popov apareceu na Praça Nikola Pasic com uma panela de feijão em fevereiro de 1997. Ele e seus colegas estavam cozinhando feijão para “todos aqueles famintos por liberdade, verdade e democracia”. Eles se comprometeram a continuar cozinhando por 330 dias ou até que Milosevic fosse deposto.

Entre os aliados de Popov estiveram membros de outro rebento do Grupo Praxis: o Círculo de Belgrado, uma pequena organização não-governamental. Seu presidente, Obrad Savic, foi um dos estudantes que os praxistas lideraram nos protestos de 1968. Savic foi implacável em suas críticas à virada de Markovic e Tadic para o nacionalismo; em troca, Tadic o denunciou como o fundador de um “globalismo anti-sérvio”. Algumas das mesmas pessoas que antes eram atraídas pela Praxis e pela Praxis International – Habermas, Richard Rorty, Chomsky – publicaram depois na revista do Círculo de Belgrado.

Em última análise, é a história do fundador do Círculo de Belgrado, o filósofo do Grupo Praxis Miladin Zivotic, que lança a luz mais nítida sobre a tragédia iugoslava. Os intelectuais estrangeiros que naqueles dias mais felizes se sentiam atraídos pela visão do Grupo Praxis de socialismo autogerido não deram muita atenção ao jovem Zivotic, cujas atenções eram devotadas principalmente à cultura. Na década de 1980, Zivotic e seus alunos formaram uma vanguarda pesquisa em estudos pós-estruturalista em Belgrado, abandonando a fascinação do Praxis pelo marxismo em favor de Foucault e Derrida. Juntamente com o velho dissidente Milovan Djilas, que em certo momento aparentara ser o futuro herdeiro político de Tito, ele fundou o Círculo de Belgrado em 1992. De acordo com Richard Bernstein, “chegou um ponto em que o marxismo, até mesmo o humanismo marxista, era coisa ultrapassada. Já não se comunicava com as questões certas. O Círculo de Belgrado permitiu que a geração mais jovem se rebelasse contra os clichês obsoletos da geração mais velha.”

Mas Zivotic e seus seguidores construíram sua verdadeira reputação como ativistas pela paz. Durante os anos de guerra, o Círculo de Belgrado se expandiu para incluir uma variedade heterogênea de trabalhadores, cineastas, intelectuais e artistas. No seu auge, chegou a ter quinhentos seguidores, que se reuniam todos os sábados para eventos públicos voltados para o diálogo interétnico e a paz.

Em 1993, Zivotic viajou para a sitiada Sarajevo, deslizando por entre as as linhas dos Sérvios Bósnios para se encontrar com a liderança muçulmana da cidade. De volta a Belgrado, ele recebeu uma série de telefonemas anônimos de estranhos que ameaçavam cortar sua garganta. Ele falava abertamente em solidariedade aos albaneses do Kosovo, e quando os muçulmanos na região de Sandjak na Sérvia foram ameaçados, ele foi morar com eles em protesto. Contra as investidas de limpeza étnica, ele proclamou: “se vivermos juntos é impossível, então a própria vida também é impossível”.

Embora tivesse recebido permissão para retornar à Universidade de Belgrado em 198, Zivotic já não sentia feliz por lá em 1994. Ele disse ao New York Times: “eu não agüentava mais ir trabalhar. Tinha de ouvir professores e alunos expressando apoio e solidariedade a esses fascistas bósnios, Radovan Karadzic e Ratko Mladic, na chamada “República de Srpska. Hoje está pior do que no comunismo. A corrupção intelectual é mais generalizada e mais profunda.” Um amigo relembra como Zivotic “foi fisicamente destruído pelo tempo e pelo mal em meio ao qual viveu”.

Em 1997, Zivotic deu uma palestra em Londres sobre as manifestações anti-Milosevic que estavam ocorrendo na Universidade de Belgrado. Ele sabia que o Ocidente tinha grandes esperanças naqueles manifestantes, mas também sabia que seus líderes eram nacionalistas. Branka Magas estava nesta palestra. “Ele estava muito desapontado com o pessoal do Grupo Praxis”, diz ela. “Ele era um humanista.”

Duas semanas depois, Zivotic estava morto. “Ele estava extremamente atormentado com o que havia acontecido”, diz Magas. “Eu acho que foi o coração partido que o matou”.

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Adaptado de “Testamentos Traídos”. (Lingua Franca)

Colaborador

Laura Secor era uma editora sênior na revista Lingua Franca.

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