14 de junho de 2018

Testamentos traídos

Como os vibrantes marxistas humanistas da Iugoslávia se transformaram em nacionalistas de direita.

Laura Secor

Jacobin


Vista de Grbavica, um bairro de Sarajevo, aproximadamente 4 meses após a assinatura do Acordo de Paz de Dayton que encerrou oficialmente a guerra na Bósnia. Foto: Lt. Stacey Wyzowski / Wikimedia

Tradução / Libertada do fascismo pela luta partisana, a partir de 1945, a Iugoslávia socialista afirmava oferecer uma alternativa ao modelo burocrático soviético. Embora o líder comunista Josip Broz Tito tenha permanecido firmemente no comando até sua morte em 1980, seu partido prometia igualdade entre as nacionalidades, autogestão dos trabalhadores na indústria e um grau de liberdade cultural sem paralelos em outras partes do mundo socialista.

Apesar da intolerância geral com a oposição, algumas correntes filosóficas clamavam por uma radicalização da democracia socialista iugoslava e por uma visão mais humanista da mudança social. Entre eles, destacava-se o Grupo Praxis, que de 1964 a 1974 produziu uma das mais inovadoras revistas marxistas internacionalmente, e que também estava vinculado à experiência do Estado socialista. O prestígio do Praxis era tamanho, que seus cursos anuais de verão atraiam figuras de Herbert Marcuse a Erich Fromm. No final da década de 1980, o equilíbrio entre as nacionalidades que compunham a Iugoslávia começou a entrar em colapso, e muitos dos principais membros do Praxis aderiram à onda de chauvinismo étnico. Não sobraram muitos traços do humanismo que o grupo havia pregado por muito tempo.

Neste artigo, Laura Secor explora o apelo de um novo socialismo emancipatório, os esforços do Praxis para resistir às identidades étnicas e as raízes da queda da Iugoslávia ao abismo. O texto a seguir foi originalmente publicado na excelente (e infelizmente extinta) revista literária Lingua Franca em 1999.

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Muita coisa mudou desde que Gerson Sher viajou para a Iugoslávia para fazer sua pesquisa de dissertação em meio à efervescência política e intelectual do final dos anos 1960. Por um lado, o idiossincrático país que capturou sua imaginação já nem existe mais; nem o Praxis, o grupo de filósofos marxistas humanistas que Sher estudou. Mas esta não é a única razão pela qual ele respondeu com cautela a um pedido de entrevista: “Estou chocado”, diz ele, “que você esteja interessada no Praxis neste momento”.

Por quê? Afinal, de acordo com a teórica política de Harvard Seyla Benhabib, “o nome Praxis tem uma história marcante. Foi usado por dissidentes contra o stalinismo e era identificado com o projeto de socialismo democrático. ” A dissertação de Sher, posteriormente publicada como Praxis: Marxist Criticism and Dissent in Socialist Yugoslavia (“Praxis: Crítica e Dissidência Marxista na Iugoslávia Socialista”, 1977), explorou aquilo que parecia uma linha promissora de pensamento humanista que surgiu na Universidade de Zagreb e na Universidade de Belgrado. Durante as décadas de 1960 e 1970, uma lista brilhante de intelectuais ocidentais compareceu aos retiros anuais do grupo Praxis na ilha de Korcula, no Mar Adriático: Jürgen Habermas, A.J. Ayer, Norman Birnbaum, Lucien Goldmann e Herbert Marcuse foram apenas alguns dos que se reuniram em torno do grupo iugoslavo e que fizeram parte do conselho editorial de sua revista homônima. Soa estranho, portanto, que hoje o termo “Praxis” e os nomes de alguns de seus protagonistas estejam frequentemente associados à retórica notoriamente anti-humanista do nacionalismo sérvio e à política assassina de Slobodan Milosevic.

A História, insistiam os praxistas, “não é feita nem por forças objetivas nem por leis dialéticas; é feita, em vez disso, por pessoas, que agem para transformar seu mundo dentro dos limites das possibilidades históricas.” Sher escreveu isso em 1977. Na década precária que se seguiu, os filósofos do Praxis de fato viriam a transformar seu mundo – mas naquela época a maneira como fariam isso não era imaginável para os acadêmicos no Ocidente. Quem poderia imaginar que um dos filósofos do Praxis mais tarde se tornaria vice-presidente do partido de Milosevic – e seu principal ideólogo durante a guerra da Bósnia? Ou que outro membro, que já foi um apaixonado crítico do nacionalismo, assinaria uma petição em 1996 pedindo que Haia retirasse as acusações de crimes de guerra contra o brutal líder sérvio bósnio Radovan Karadzic, a quem a petição chamava de “o verdadeiro líder de todos os sérvios”?

Nem todos os praxistas seguiram seus líderes pela estrada tenebrosa do nacionalismo sérvio. Os membros croatas mantiveram-se apegados aos seus princípios humanistas, mesmo durante os anos mais sangrentos das guerras iugoslavas; e na Sérvia, algumas das expressões de dissidência mais corajosas e solitárias vieram de ex-praxistas e de seus alunos.

As rachaduras ao longo das quais não só o Praxis, mas a própria nação iugoslava mais tarde acabaria se fragmentando eram invisíveis para os admiradores estrangeiros do grupo na década de 1960. Afinal, para os progressistas no exterior, a Iugoslávia de Tito representava algo unicamente inspirador: não apenas era menos autoritária do que os países do bloco oriental, mas Tito havia adotado um ambicioso programa de autogestão operária que prometia ajudar a Iugoslávia a realizar o projeto marxista mais utópico que qualquer país já havia tentado. Na medida em que o grupo Praxis falava de nacionalismo, era para se opor a ele como uma ameaça atávica aos princípios universalistas do humanismo e do marxismo. A história sombria da região e as rivalidades internas latentes eram a última coisa na mente de das pessoas.

Norman Birnbaum, mais tarde professor de Direito na Universidade de Georgetown, explica: “quando fomos para a Iugoslávia naquela época, pensávamos que a questão da nacionalidade já havia sido resolvida. Foi a trégua, ou a ilusão, ou o parêntese titoísta.” A historiadora croata Branka Magas coloca a questão de maneira diferente. Os esquerdistas ocidentais que aderiam ao Praxis ainda na década de 1980 e início de 1990, diz ela, “nunca olharam de verdade para a Iugoslávia. Eles viam a autogestão. Eles só viam o país pelas lentes daquilo que os interessava”.

Quando olhamos de volta para a Iugoslávia durante os anos de Tito, escreve Tim Judah em The Serbs: History, Myth, and the Destruction of Yugoslavia (“Os Sérvios: História, Mito e a Destruição da Iugoslávia”, 1997), “não podemos deixar de nos surpreender com o quão inconseqüentes alguns dos grandes debates do passado acabaram sendo.” Na verdade, pode parecer hoje que o humanismo marxista e a autogestão eram apenas alguns becos sem saída no caminho que levava à guerra em Sarajevo. Mas quando o grupo Praxis se uniu em torno dessas preocupações na década de 1960, eles pareciam para todo o mundo como a estrada de tijolos amarelos para uma utopia onde a democracia finalmente alimentaria o socialismo. Era hora das burocracias comunistas que haviam se ossificado na Europa Oriental cederem, defendiam os marxistas humanistas, e deixarem florescer um socialismo dinâmico e participativo.

Na sua origem, a revista filosófica Praxis era apenas a sucessora da Pogledi, uma revista política publicada na capital da Croácia, Zagreb, na década de 1950. Pogledi foi uma vítima da interferência estatal: durou apenas três anos. Entre os principais colaboradores da extinta revista, estava o sociólogo Rudi Supek da Universidade de Zagreb, que participou da Resistência Francesa como imigrante durante a Segunda Guerra Mundial e mais tarde liderou uma organização clandestina de prisioneiros quando foi preso no campo de concentração nazista de Buchenwald; e o filósofo da Universidade de Zagreb, Gajo Petrovic, um sérvio da Croácia que gravitava em torno dos primeiros escritos de Marx, do existencialismo e de Heidegger. Birnbaum relembra, “Supek e Petrovic eram impressionantes por seu rigor moral, seu total desprezo pelo carreirismo. Eram pessoas de quem você adorava estar perto.” Das cinzas de Pogledi, Supek, Petrovic e seus colegas começaram sua escola de verão em Korcula em 1963 e uma nova revista, a Praxis, em 1964. O grupo que se formou em torno desses empreendimentos consistia em um círculo estreito de amigos e colegas – alguns vindo dos departamentos de Supek e Petrovic na Universidade de Zagreb e outros oito do departamento de filosofia da Universidade de Belgrado.

Os filósofos publicaram sua nova revista em uma edição iugoslava em servo-croata e em uma edição internacional multilíngue. E seu coletivo editorial adotou uma agenda que era mais unificada do que qualquer coisa que o Pogledi já havia tentado: o grupo Praxis defendia a liberdade de expressão e de imprensa e acreditava que o autoritarismo stalinista deveria ser corrigido na prática e extirpado da própria teoria marxista . Para este fim, eles prescreviam um retorno aos primeiros escritos românticos de Marx, especialmente os Manuscritos Econômicos e Filosóficos de 1844. Segundo eles, a obra posterior e mais influente de Marx enfatizaria as leis de ferro do determinismo histórico, enquanto os Manuscritos de 1844 falava com lirismo sobre o potencial criativo da atividade humana, por meio da qual o homem pode realizar seu “ser espécie”.

Essa orientação não era nenhuma invenção iugoslava. Na verdade, os praxistas seguiam um exemplo da vizinha Hungria, onde Georg Lukács reuniu um séquito de dissidentes com ideias semelhantes. Como Lukács, os praxistas foram cativados pela teoria da alienação nas primeiras obras de Marx. Em uma sociedade capitalista comum ou em uma sociedade socialista stalinista, o homem era alienado de si mesmo pela mercadificação de seu trabalho e pelo presunçoso poder de uma pequena classe privilegiada e de suas instituições. Uma sociedade marxista utópica, imaginavam os praxistas, superaria essa alienação, desencadeando a criatividade humana – ou a “práxis” – ao se livrar da classe dominante por meio da autogestão. Os trabalhadores controlariam diretamente não apenas seus locais de trabalho, mas também as instituições sociais e culturais – até mesmo os partidos políticos locais e os órgãos de governo. Nessa perspectiva o Estado, dado tempo suficiente, “murchará” por conta própria, exatamente como Marx previra.

A Iugoslávia, apesar das ousadas iniciativas de Tito, ficou bem aquém desse ideal. Na economia híbrida iugoslava, as celebradas empresas autogestionadas estavam expostas às pressões do mercado, por um lado, e aos caprichos do controle estatal, pelo outro. As oligarquias regionais tomaram conta: no final, os agentes do poder local manipulavam e ignoravam os conselhos de trabalhadores da mesma forma que os administradores fazem em todos os lugares. Mas os praxistas viam esses problemas como evidências de que a autogestão não foi longe o suficiente. Eles eram ao mesmo tempo os expoentes mais apaixonados da autogestão no exterior e os mais ferozes críticos internos do sistema iugoslavo.

É notável que Tito tenha tolerado a Praxis. Praticamente nenhum outro país comunista, com a possível exceção da Hungria, permitia tanto discurso dissidente quanto a Iugoslávia nos dias de Tito. Mas havia limites para a tolerância de Tito. Em uma reunião do corpo docente de filosofia em 1967, Ljubomir Tadic, um filósofo do Praxis da Universidade de Belgrado, instigou um jogo particularmente perigoso com as autoridades. No espírito antiautoritário do Praxis, Tadic criticou publicamente a disposição constitucional que permitia a Tito permanecer no cargo para além de seu mandato de oito anos. Quando o professor renegado passou a ser investigado pelo governo, o corpo docente uniu-se a ele e lhe foi permitido manter seu emprego.

Com o apoio entusiástico dos praxistas de Belgrado, manifestações estudantis convulsionaram a Universidade de Belgrado em junho de 1968. Os estudantes protestaram contra suas péssimas condições de vida e exigiram o fim do autoritarismo, do desemprego e, na medida do possível, da Guerra do Vietnã. As autoridades locais sérvias instaram Tito a enviar tropas militares para o campus de Belgrado – no fim das contas, foi naquele mesmo verão que os tanques soviéticos colocaram um fim nos protestos populares em Praga. Porém, ao contrário de seus colegas desajeitados em Moscou, Tito empregou uma astúcia felina para dispersar seus inimigos. Em um apelo televisionado, ele se declarou profundamente solidário com as preocupações dos manifestantes. Na verdade, disse ele, era apenas a burocracia iugoslava que estava no caminho da agenda que ele e os alunos compartilhavam. Se os burocratas não permitissem que ele atendesse às demandas desses alunos, declarou, ele renunciaria. É claro, as exigências não foram atendidas e Tito não renunciou. De fato, apenas duas semanas depois de fazer esse discurso, ele instou a Universidade de Belgrado a demitir seus filósofos do Grupo Praxis sob o argumento de que eles estavam “corrompendo” estudantes. A situação daqueles filósofos, que ficaram conhecidos como “os 8 de Belgrado”, tornou-se uma preocupação internacional.

Aquele verão foi especialmente memorável em Korcula. Richard Bernstein, mais tarde um filósofo político na New School for Social Research, em Nova Iorque, relembra: “Todo mundo que era importante na esquerda, no Oriente ou no Ocidente, compareceu à reunião de 1968. Todos os líderes dos movimentos estudantis da Alemanha, da Europa Oriental e dos Estados Unidos estavam lá.” Contudo, enquanto os conselhos editoriais da Praxis e da New Left Review se bronzeavam nas praias de Korcula, os 8 de Belgrado mantinham seus empregos por um fio.

Ao longo desse período, o governo iugoslavo estava passando por uma mudança sutil, mas significativa. Do final da Segunda Guerra Mundial até 1966, o principal desafio de Tito era consolidar seu Estado desconjuntadamente multinacional. Mesmo dentro de seu círculo íntimo, acirravam debates sobre se as seis repúblicas que constituíam a Iugoslávia – Bósnia, Croácia, Macedônia, Montenegro, Sérvia e Eslovênia – deveriam receber maior autonomia ou se deveriam ser atadas com mais firmeza a uma autoridade central. A História ensinava que, nos Bálcãs, quem ignora essas questões o faz por sua conta e risco: a breve primeira Iugoslávia (1918-1941) optou por um centralismo rígido; o Estado era governado por uma monarquia sérvia e os militares, a cultura e a política do país eram esmagadoramente dominados pelos sérvios. Ao longo desses anos de opressão, a Croácia fervilhou com ressentimentos – e durante a Segunda Guerra Mundial, as animosidades latentes explodiram. Sob a liderança fascista, a Croácia empreendeu uma campanha genocida contra os sérvios e também contra os judeus. A selvageria das matanças chocou até mesmo oficiais da SS alemães alocados nos Bálcãs.

Com essa história em mente, o regime de Tito caminhava em uma linha tênue entre um forte Estado central, que era de longe era a preferência dos sérvios, e uma confederação de repúblicas mais soltas, que era geralmente a preferência de croatas e eslovenos. O centralismo prevaleceu nos primeiros anos do pós-guerra, mas o ímpeto começou a crescer na outra direção em meados da década de 1960. Um novo conjunto de arranjos constitucionais lentamente tomou forma, oferecendo maior autonomia a cada república, mas isso não apaziguou aqueles que defendiam uma confederação mais livre. Um movimento nacionalista croata nasceu do sentimento de que as reformas do final dos anos 1960 não teriam ido longe o suficiente. Entre as queixas dos ativistas estava que a Croácia, que era mais industrializada e geralmente mais rica do que Sérvia, Montenegro e Macedônia, acabava carregando uma porção maior do fardo econômico da iugoslavo. Extremistas passaram a defender a secessão croata. Estudantes, intelectuais e até autoridades comunistas locais se reuniram em torno de uma sociedade cultural croata chamada Matica Hrvatska até que Tito dissolveu o grupo, expurgou seus participantes da vida política e prendeu líderes estudantis.

Assistindo à crescente militância nacionalista de seus colegas acadêmicos croatas, os praxistas de Zagreb ficaram horrorizados. E por isso mesmo, Tito de súbito descobriu que esses praxistas eram indispensáveis: afinal, o nacionalismo era uma ameaça maior para a frágil nação do que a crítica marxista jamais seria, e os membros do grupo de Zagreb falavam de maneira franca e eloqüente contra o mal maior. Assim, mesmo enquanto os praxistas de Belgrado, associados à agitação estudantil, apelavam à comunidade internacional em busca de proteção, seus colegas de Zagreb, que estavam associados à luta contra o nacionalismo croata, continuavam seu trabalho em paz.

Contra esse pano de fundo, a Praxis publicou uma edição especial sobre nacionalismo em 1968. Foi o ponto alto da resistência da revista contra as políticas do identitarismo étnico. Em um ensaio, Ljubomir Tadic, ele próprio um sérvio-bósnio, argumentou que o nacionalismo contradizia a própria noção de humanidade universal. No lugar da justiça, o nacionalista afirma o direito dos fortes de dominar os fracos e o poder da violência para resolver os conflitos. “Esquecemos rapidamente”, escreveu Tadic, “que os nacionalismos sérvios e croatas […] permaneceram ideologias militantes e despóticas que carecem de criatividade política e cultural em todas as suas formas”. Onde a justiça social e a liberdade política estiverem em declínio, teorizou Tadic, o nacionalismo emergiria em ascensão. Porém, a Iugoslávia socialista haveria demonstrado “a superioridade da consciência de classe proletária sobre a consciência nacionalista, [e] a vantagem da unidade democrática acima da unidade imposta ou da desintegração forçada”.

Outras contribuições da edição falavam de maneira igualmente apaixonada. Danko Grlic, um croata, evocou vividamente a irracionalidade do nacionalismo. Uma vez desencadeado, advertiu, ele seria imune à lógica: “Não é possível debater racionalmente e nem teoricamente sobre a nação; pela nação você apenas luta e morre; você ama a nação como a carne de sua carne, como a essência de seu ser, a bebe com o leite de sua mãe; é corpo e sangue […]”

A lealdade do Praxis a uma Iugoslávia unida parecia bem nítida. Contudo, dada a ameaça sempre presente de censura pelo governo, pouco do que os intelectuais iugoslavos publicavam naqueles anos era completamente transparente. O filósofo de Zagreb Zarko Puhovski, o praxista mais jovem, com cerca de 20 anos de diferença dos outros, diz que as disputas do grupo sobre política e ideologia ficavam muitas vezes disfarçadas como conversas sobre questões menos controversas, como estética ou ontologia. “Um tipo de debate funcionava como um substituto para outros tipos de debate”, lembra ele.

Isso ficou particularmente evidente quando o próprio Puhovski editou uma edição especial da Praxis em 1973. Ele recebeu uma sumissão do conhecido romancista sérvio Dobrica Cosic. Era um pequeno artigo argumentando que o verdadeiro socialismo não era possível em uma sociedade não iluminada e que a fé nas pessoas – que Cosic afirmava não ter muita – seria o “último refúgio para nossas esperanças historicamente frustradas”. Quais pessoas e quais esperanças? O artigo não especificava. Mas Puhovski detectou aí uma perturbadora mensagem nacionalista, mesmo assim. Ele também não ficou impressionado com o argumento do artigo ou com seu rigor: “Eu tinha a abordagem de principiante de acreditar que a filosofia e a sociologia eram campos especializados”, ele relata com um toque de sarcasmo. “Não achei que o artigo de Cosic estivesse à altura. Era uma propaganda nacionalista ruim. ” Ele recusou o artigo.

Os membros mais velhos o repreenderam, dizendo que ele simplesmente não entendia a importância da figura de Cosic. Cosic era mais conhecido como o autor do romance de guerra partisano mais famoso no país, “À Distância Está o Sol” (“Far Away Is the Sun”, de 1950), no qual uma companhia de soldados da resistência partisana afirma seu compromisso com o iugoslavismo e o comunismo executando um nacionalista sérvio em seu meio. Mas as cores de Cosic haviam começado a mudar: em 1968, ele fora expulso do Comitê Central por acusar o regime de fomentar o separatismo albanês em Kosovo. Mesmo assim, ele não seria amplamente considerado um escritor nacionalista até o final dos anos 1970 e início dos anos 1980, quando publicou uma série de romances que abordava explicitamente a história e as queixas sérvias. Naquela época, ele representava uma figura tão distinta em Belgrado que era freqüentemente chamado de “pai da nação sérvia”.

Conforme a edição de 1973 da Praxis se aproximava da publicação, Puhovski se descobriu sozinho: o conselho editorial se dividiu em sete a um em favor de Cosic.

O surgimento de tensões nacionalistas dentro do grupo Praxis foi um prenúncio de tensões que logo se espalhariam por todo o país. Anos depois, quando a guerra eclodiu em Kosovo, os jornais estadunidenses considerariam 1989, o ano em que Milosevic revogou a autonomia de Kosovo, como o início do fim da Iugoslávia. Muitos sérvios, no entanto, diriam que o destino do país estava selado já em 1974. Esse foi o ano em que uma polêmica revisão da constituição iugoslava entrou em vigor, devolvendo poderes mais amplos do que nunca às seis repúblicas e concedendo total autonomia a duas províncias dentro da república da Sérvia: Kosovo e Vojvodina. Como os sérvios estavam espalhados pelas repúblicas – mais de um milhão vivia na Bósnia e pelo menos 500.000 na Croácia – essas reformas constitucionais acabariam alimentando um crescente sentimento de insatisfação entre os sérvios.

Em Belgrado, duas correntes de protesto saudaram a constituição de 1974. Uma greve estudantil tomou o campus universitário em nome dos ideais marxistas: onde, perguntavam os estudantes, estavam refletidos os interesses pan-iugoslavos da classe trabalhadora nessa nova constituição? Os estudantes temiam que a reforma, com sua ênfase nas divisões entre as repúblicas, enfraquecesse a unidade socialista da Iugoslávia, abrindo uma caixa de Pandora de queixas e reivindicações étnicas. Como que para provar que os estudantes estavam certos, outros críticos da constituição, incluindo Dobrica Cosic, protestaram que ela desempoderava injustamente os sérvios.

Nos anos subsequentes, os nacionalistas sérvios reclamariam amargamente que a política de Tito havia se tornado “uma Sérvia fraca é uma Iugoslávia forte”. Mas por que não deveria ter sido assim? Das seis nações oficiais do país, os sérvios eram de longe os mais populosos, superando os croatas em dois para um. Se a cultura e a política multinacionais da Iugoslávia fossem governadas por um governo de maioria, o país não teria como sobreviver: as populações não-sérvias tinham identidades nacionais fortemente desenvolvidas e longas e distintas Histórias próprias. Não só isso, mas elas ocupavam territórios mais compactos do que os sérvios. Se elas se sentissem excessivamente dominadas, poderiam sentir a tentação da secessão. Assim, Tito restringiu a influência potencialmente arrogante dos sérvios, dividindo a Iugoslávia em unidades territoriais e reajustando constantemente o equilíbrio interno de poder.

Hoje, alguns críticos culpam a constituição de 1974 pelo crescimento dos movimentos nacionalistas na Croácia e na Eslovênia. Mais provavelmente, ela foi uma resposta aos movimentos nacionalistas que já estavam ativos. Em qualquer caso, a crítica mais contundente foi feita pelos nacionalistas sérvios: a nova constituição se baseava em um padrão duplo. Se as unidades de participação política da Iugoslávia fossem seus grupos étnicos, ou “nações constituintes”, os sérvios na Bósnia e na Croácia, que eram representados por lideranças muçulmanas e croatas, respectivamente, ficariam sem representação. Mas se as unidades eram territoriais, então por que a Sérvia era a única república cujo território incluía províncias autônomas sobre as quais tinha pouco controle?

A verdade era muito simples: na multinacional Iugoslávia, Tito havia deliberadamente redistribuído o poder dos fortes para os fracos. E se ele realmente acreditava que uma Iugoslávia forte exigia uma Sérvia fraca, talvez ele não estivesse enganado. Muito mais tarde, em 1989, quando Milosevic finalmente impôs o controle sérvio às suas províncias, a Sérvia emergiu forte – e a Iugoslávia se despedaçou. A terrível ironia em tudo isso é que os sérvios, geograficamente dispersos, podem ter se beneficiado mais do que ninguém com os anos de “fraqueza” da Sérvia. Pois, de todas as nações iugoslavas, apenas os sérvios precisavam mais de uma Iugoslávia unificada do que ela precisava deles.

Se 1974 marcou o início da crise nacional iugoslava, o ano também pressagiou o fim da existência legal do grupo Praxis. Tito expurgou os 8 de Belgrado da universidade no ano seguinte. A luta de seis anos entre o Estado e os professores simplesmente se exauriu. Não só os 8 de Belgrado foram proibidos de ensinar, mas a revista Praxis também foi banida. Desta vez, os protestos de acadêmicos estadunidenses (incluindo Daniel Bell, Noam Chomsky e Stanley Hoffman) caíram em ouvidos surdos.

Por mais de uma década, os 8 de Belgrado – Mihailo Markovic, Svetozar Stojanovic, Ljubomir Tadic, Zagorka Golubovic, Dragoljub Micunovic, Miladin Zivotic, Nebojsa Popov e Trivo Indjic – vagaram pelo mundo, aceitando cátedras como professores visitantes no exterior e encontrando-se secretamente em Belgrado. Apenas Indjic aceitou a oferta do governo de um cargo discreto em um instituto. Os outros insistiram em nada menos do que um retorno total à Universidade de Belgrado, o que não aconteceu. Markovic, o membro do grupo mais conhecido no exterior, assumiu um cargo de filosofia em meio período na Universidade da Pensilvânia. Stojanovic ensinou em Berkeley e na Universidade do Kansas. Enquanto isso, em Zagreb, a situação era um pouco menos sombria. “Havia pressões”, lembra Zarko Puhovski. “Não consegui publicar nada por dois anos. Mas não era nem remotamente parecido com a situação em Belgrado. ”

O resto da década de 1970 e o início da década de 1980 foram anos decepcionantes para os 8 de Belgrado. Eles organizaram o que chamaram de Universidade Livre, que consistia principalmente em seminários realizados em casas particulares, mas eles não podiam anunciar essas reuniões e tinham de ficar constantemente em guarda para o risco de interrupção pela polícia. Pelo menos uma sessão da Universidade Livre foi organizada na casa do romancista Dobrica Cosic. Nem marxista nem filósofo, Cosic era amigo pessoal e uma vultosa influência sobre o grupo Praxis, embora nunca tenha sido um membro de verdade. Durante a década de 1980, seus laços com o Praxis se estreitaram; mas até que ponto os praxistas já compartilhavam de seu nacionalismo incipiente permanece um mistério. Cosic colaborou com Tadic em dois projetos no início dos anos 1980: um deles, a proposta de uma revista que criticaria a burocracia e defenderia a liberdade de expressão, foi imediatamente suprimido pelo governo; o outro, uma petição contra as leis de censura, também foi rapidamente derrotado. A imprensa do governo denunciou Cosic e seus amigos do Praxis como “nacionalistas endurecidos e defensores declarados de um sistema multipartidário”, mas o grupo continuou a se reunir como um comitê para promover a liberdade de expressão.

Enquanto isso, a Iugoslávia havia entrado em uma profunda crise econômica: a dívida externa disparou para US $ 19 bilhões, o desemprego subiu para 17,5%, a inflação atingiu 120% e o padrão de vida caiu vertiginosamente. No Ocidente, a experiência iugoslava não gozava mais do prestígio de antes. Além disso, em 1980, a morte de Tito deixou a frágil estrutura multinacional sem liderança e volátil.

Em Kosovo, a maioria albanesa, que em sua maior parte era pobre, sem educação e sem poder, passou à inquietação. Os albaneses nunca haviam tido o status de outras “nações constituintes” da Iugoslávia: o regime de Tito argumentava que, ao invés disso, como havia uma pátria albanesa fora da Iugoslávia, eles deveriam ser considerados uma “minoria nacional”. Os kosovares rebatiam, indicando que 40% da população albanesa de todo o mundo residia na Iugoslávia. Manifestações varreram a província em 1981, exigindo, antes de mais nada, que Kosovo recebesse o status de república, incluindo o direito de secessão. O movimento atingiu um auge febril: sérvios e montenegrinos foram atacados e ameaçados, locais sagrados ortodoxos foram profanados e alguns ativistas começaram a gritar pela secessão e união com a Albânia. A polícia iugoslava reprimiu os tumultos, impondo um estado de lei marcial cuja severidade escandalizou os intelectuais croatas e eslovenos. Muitos albaneses passaram a definhar como prisioneiros políticos em Kosovo. Enquanto isso, a minoria sérvia na província se sentia cada vez mais como bode expiatório e ameaçada.

Com o Praxis conduzido à clandestinidade, a escola de verão em Korcula, nem é preciso dizer, havia muito acabara. Mas algo novo havia começado: o Centro Interuniversitário, na majestosa cidade croata de Dubrovnik, era uma instituição internacional que patrocinava conferências e cursos de curta duração ministrados por intelectuais de todo o mundo. Como não era administrado por iugoslavos, o centro estava relativamente livre da interferência do governo. Mais uma vez, proeminentes membros ocidentais da esquerda cruzaram o Adriático. Um dos praxistas abordou Jürgen Habermas sobre dar um curso em Dubrovnik como uma forma de reviver o espírito de Korcula. O venerado filósofo alemão e herdeiro da Escola de Frankfurt retornou à Iugoslávia com Richard Bernstein para co-ministrar um curso em 1979. O grupo Praxis, embora abatido, se reuniu novamente em Dubrovnik, onde encontrou um novo conjunto de esquerdistas ocidentais simpáticos ao grupo. Seyla Benhabib lembra que foi a Dubrovnik em 1979 para conhecer Bernstein e Habermas. O fato dela também ter encontrado o grupo Praxis foi apenas um feliz acidente. Tudo o que ela sabia sobre as atividades dos Praxistas naquela época era que “eles foram expulsos e foram para a oposição”.

Foi em Dubrovnik que Habermas, Bernstein e o filósofo alemão Albrecht Wellmer traçaram um plano para reviver o jornal Praxis que tanto despertou o seu interesse durante a década de 1960. Fornecer aos dissidentes privados de seus direitos um novo fórum internacional para seu trabalho só poderia fazer bem à causa do socialismo democrático, pensaram os filósofos ocidentais. Junto com Markovic e Stojanovic, eles lançaram a revista Praxis International em 1981.

A nova revista tentou retomar de onde a antigo havia parado, mas com um enfoque menos iugoslavo: incluía muitos ensaios teóricos sobre o marxismo no estilo da Praxis e, à medida que os anos 80 avançavam, cobria os países do Leste Europeu em transição. Produzida principalmente nos Estados Unidos e publicada pela editora Blackwell, a revista era muito mais eclética do que a primeira Praxis: as contribuições no final dos anos 1980 e do início dos anos 1990 abordaram o pensamento político de Cornel West, a relação entre feminismo e socialismo e outros tópicos de interesse geral para intelectuais de esquerda.

A essa altura, Mihailo Markovic era claramente o líder do grupo iugoslavo e passou a desempenhar um papel crucial na revista revivida. Fluente em inglês, ele era gregário, cosmopolita e urbano. Tanto suas credenciais anti-stalinistas quanto antifascistas eram impecáveis: ele havia lutado no exército partisano de Tito durante a Segunda Guerra Mundial e se orgulhava de ter levado ajuda aos judeus iugoslavos. Em seu trabalho filosófico, Markovic enfatizava o compromisso de Marx com a dignidade humana, a liberdade e a autorrealização.

Bernstein e Markovic tornaram-se amigos íntimos durante a direção conjunta da revista. David Crocker, filósofo na Universidade de Maryland e autor de Praxis and Democratic Socialism: The Critical Social Theory of Markovic and Stojanovic (“Práxis e Socialismo Democrático: A Teoria Crítica Social de Markovic e Stojanovic”, de 1983), também passou a considerar Markovic um amigo pessoal. Apenas Andrew Arato, professor de sociologia da New School, tinha uma aversão instintiva pelo velho sérvio. Markovic o lembrava de um apparatchik: “Ele claramente tinha uma personalidade autoritária. Lembro-me de uma vez que ele me manteve do lado de fora durante uma tempestade de neve por quarenta minutos, tentando me convencer de que os partidos políticos eram uma coisa ruim”, diz Arato, rindo. “Ele não me deixava entrar no restaurante – como se só pela força de sua personalidade, ele iria me persuadir de que a democracia não precisava funcionar por meio de partidos.” Outros praxistas de Belgrado, diz ele, eram muito avassalados por Markovic. “Mas quando não estavam com Mihailo, era possível conversar com eles sobre qualquer coisa. Eles eram mais flexíveis e mais ocidentais”.

Dos praxistas de Zagreb, bem poucos dos veteranos eram entusiastas da nova empreitada editorial do grupo de Belgrado. Os membros mais velhos e respeitados de Zagreb, Rudi Supek e Gajo Petrovic, participaram da primeira reunião. Supek foi receptivo à nova revista; mas Petrovic sentia fortemente que o nome Praxis não deveria ser usado. A Praxis, Petrovic argumentou, conotava uma publicação conjunta de Belgrado-Zagreb, cujos componentes internacionais vinham à convite dos iugoslavos. Essa nova revista, entretanto, seria publicada em inglês e dominada pelo pessoal de Belgrado e por estadunidenses. Ela era internacional antes de ser iugoslava e, por isso, insistia ele, deveria ter um novo nome e uma nova identidade. Talvez Petrovic também tenha percebido que seus colegas de Belgrado haviam mudado e que o consenso político era coisa do passado. Se ele havia percebido isso, não comentou.

Os editores americanos da Praxis International não ficaram muito preocupados com o fato de, com exceção de Supek, terem perdido o contingente de Zagreb. Conta Seyla Benhabib: “A questão da etnia era irrelevante. Eles eram todos iugoslavos. Para nós, estrangeiros, não era nem como perguntar: ‘Você é ítalo-americano ou irlandês-americano?’ Era mais como perguntar: ‘Você é bávaro ou de Berlim?’”

As seis repúblicas e as duas províncias autônomas da Iugoslávia já estavam em rota de colisão em meados da década de 1980, mas mesmo os observadores ocidentais mais astutos não perceberam o que estava por vir. O sinal mais visível de problemas estava em Kosovo, onde a lei marcial apenas alimentou as chamas das lutas étnicas. A minoria sérvia clamava pela atenção de Belgrado: em 1985, os sérvios de Kosovo enviaram uma petição ao governo central, alegando que sérvios haviam sido estuprados, assassinados e expulsos de suas casas por grupos étnicos albaneses da província. Será que Belgrado não poderia fazer nada sobre isso?

Até que ponto os sérvios de Kosovo foram perseguidos permanece uma questão discutível. Certamente eles estavam em menor número, e não há razão para duvidar que enfrentaram ameaças, vandalismo, assédio e até mesmo atos ocasionais de violência criminosa de uma maioria albanesa que se ressentia profundamente do regime eslavo. Mas para os iugoslavos fora da Sérvia, as reclamações sobre discriminação anti-sérvios em Kosovo eram incompreensíveis. Afinal, os sérvios passavam longe de ser um grupo oprimido no país como um todo, enquanto os albaneses formavam uma espécie de subclasse.

Portanto, foi uma surpresa para muitos dos admiradores dos praxistas de Belgrado quando três membros-chave do grupo – Markovic, Tadic e Zagorka Golubovic – assinaram uma petição em 1986 em apoio aos sérvios de Kosovo. Cosic também assinou. Não se tratava apenas do fato da petição pintar um quadro floreado do sofrimento sérvio na província do sul; mas também que os signatários incitavam obliquamente que o governo revogasse o status autônomo de Kosovo – algo que os nacionalistas sérvios vinham pressionando o parlamento a fazer. Afinal, raciocinavam os signatários da petição, com sua ajuda “altruísta” à empobrecida província, a Sérvia havia demonstrado amplamente que levava os interesses dos albaneses muito a sério. De maneira agourenta, os autores da petição entoavam: “O genocídio [contra os sérvios de Kosovo] não pode ser evitado pela […] política de entrega gradual de Kosovo […] à Albânia: a capitulação não assinada que leva a uma política de traição nacional.”

Quando Branka Magas, uma historiadora que emigrou da Iugoslávia em 1961, viu a petição, ficou alarmada. Ela a republicou, junto de sua própria crítica devastadora, na revista britânica Labor Focus on Eastern Europe (“Foco Trabalhista no Leste Europeu”). O ensaio de Magas se chamava “O Fim de uma Era” e ela o assinou com um nome falso que disfarçava sua origem croata. “Este alinhamento inesperado, na verdade surpreendente, dos editores da Praxis com o nacionalismo”, escreveu ela, “despertou considerável consternação entre seus amigos e simpatizantes, pois delineia uma ruptura completa com a tradição política e filosófica representada pela revista”.

Segundo Magas, os editores da Labor Focus estavam céticos. A reputação de Mihailo Markovic como humanista o precedia. Será que não havia algum engano? Os editores enviaram o artigo de Magas aos praxistas para que eles escrevessem uma resposta. Markovic, Tadic e Golubovic ficaram indignados. Eles não haviam abandonado seus ideais, escreveram. Eles ressaltaram o fato de que continuaram a publicar a Praxis International, uma revista dedicado ao socialismo democrático, e que faziam parte do comitê de Cosic para a liberdade de expressão. Eles insistiram que se manifestavam contra a repressão, independentemente da origem étnica das vítimas: “Somos nacionalistas porque também escrevemos sobre questões nacionais (que no momento são muito graves na Iugoslávia), ou porque nós, sendo sérvios, também defendemos as vítimas sérvias de repressão? ”

Para Magas, esse intercâmbio despertou um alerta vermelho. A retórica de vitimização sérvia, observou ela, era perturbadoramente semelhante à retórica de um documento que vazara recentemente para a imprensa iugoslava: o rascunho de um Memorando da influente Academia Sérvia de Artes e Ciências. O Memorando era o que o repórter do New York Times Roger Cohen chamou de “um catálogo incendiário de ressentimentos e ambições sérvios”. Seus autores alegavam que os sérvios fora da Sérvia corriam grave perigo, que a Iugoslávia estava se desintegrando e que, apesar da contribuição superior da Sérvia para o lado vencedor na Segunda Guerra Mundial, seu povo estava dividido e sub-representado na Iugoslávia pós-1974. Muitos analistas descreveram o documento de 74 páginas como o catalisador para a ascensão de Milosevic ao poder: Ele fornecia o projeto conceitual para uma “Grande Sérvia”.

Magas later discovered that one of its authors was Mihailo Markovic.

Em 1989, Seyla Benhabib assumiu a editoria estadunidense da Praxis International. Na época, ela sabia que o conflito estava se formando em Kosovo, mas ela ainda não compreendia sua história ou suas dimensões. Seus colegas do Praxis não ajudaram muito. Era curioso, pensou ela, que Svetozar Stojanovic, seu co-editor iugoslavo, nunca escreveu nada sobre os recentes acontecimentos em seu próprio país.

Praticamente todos os colaboradores ocidentais da Praxis se lembram de Stojanovic como o membro mais ideologicamente flexível do grupo de Belgrado. Enquanto Markovic se apegava aos Manuscritos de Marx de 1844, Stojanovic explorava a possibilidade de um livre-mercado limitado. Ele foi o único praxista a investigar seriamente o liberalismo e, em um ensaio da Praxis de 1971, ousou criticar Tito como um “líder carismático”. Arato relembra, “Stojanovic era mais talentoso do que Markovic, e Markovic era o chefe”.

Mas quando Benhabib mencionou Kosovo em 1989, Stojanovic pareceu irritado e surpreso. “Por que você quer saber sobre Kosovo?” ele perguntou. Benhabib respondeu: “há um conflito lá, e não entendemos do que se trata.” Disse Stojanovic: “Alguma vez escrevemos sobre o conflito palestino na Praxis?” Foi a vez de Benhabib ficar desconfortável. “Sveta”, ela se lembra de ter dito, “do que você está falando?”

“Bem, você sabe”, ele argumentou, “muitos dos membros do nosso conselho editorial são judeus. Existem algumas questões que simplesmente não abordamos.”

No entanto, protestou Benhabib, a Praxis International não evitava o conflito palestino porque alguns de seus editores eram judeus. Fazia isso porque o Oriente Médio estava fora de seu escopo. As questões sobre nacionalidade em países marxistas, por outro lado, eram obviamente pertinentes. Stojanovic cedeu. No entanto, Benhabib observa: “Quando o artigo sobre Kosovo foi escrito, Sveta, que era um homem moderado, não o escreveu ele mesmo. Foi Mihailo.”

Publicar o artigo de Markovic sobre Kosovo, diz Benhabib hoje, é a única decisão editorial da qual ela realmente se arrepende. O texto, que saiu em 1990, começa em um tom eminentemente razoável. Os nacionalistas de ambos os lados desse debate, declarava Markovic, haviam falhado em ouvir os argumentos uns dos outros. Era hora de avaliar os fatos.

Os albaneses, explicava Markovic calmamente, são um povo retrógrado, organizado em clãs, que se mostrara incapaz de vencer a pobreza por si mesmos. As outras repúblicas iugoslavas despejaram recursos intermináveis em Kosovo, mas sem resultados. A razão para isso seria simples e sinistra: os nacionalistas albaneses teriam adotado uma taxa de natalidade rápida como arma demográfica contra os sérvios. Como resultado desse estratagema e da má administração fiscal dos corruptos líderes albaneses, simplesmente haveria bocas kosovares demais para alimentar. Combinado com esses problemas econômicos, existiria uma fenda ideológica. Os albaneses étnicos não lutaram ao lado dos guerrilheiros iugoslavos na Segunda Guerra Mundial; por essa razão, lamentou Markovic, a população nunca aceitara a revolução socialista e, pior, alimentava tendências fascistas que sobraram como resquícios da ocupação pelo Eixo.

Mas a parte mais incrível da argumentação de Markovic ainda estava por vir. Pode parecer, refletia Markovic, que os albaneses seriam apenas uma pequena minoria pobre e oprimida. Mas a verdade seria que ao longo da História os albaneses tiveram grandes poderes ao seu lado, enquanto a Sérvia tivera de se virar com seus próprios pés. E quem foram os poderosos protetores dos albaneses de Kosovo? O Império Otomano, a Áustria-Hungria, a Itália, o Vaticano, a Grã-Bretanha, o Comintern, os Estados Unidos, o fundamentalismo pan-islâmico, a Albânia e uma conspiração de burocratas no governo iugoslavo.

Algumas soluções extremas podem ser sugeridas, observava Markovic: a repressão policial violenta e o planejamento familiar obrigatório, por exemplo, ou uma divisão e “intercâmbio de população”, deixando para a Sérvia o norte de Kosovo, rico em minerais, e o resto para a Albânia. Mas Markovic recuava dessas possibilidades. Ele propôs, em vez disso, que a autonomia fosse mantida, que o investimento na província fosse reduzido e que o planejamento familiar fosse instituído “de uma forma gentil e psicologicamente aceitável, instuída pelos próprios albaneses, usando principalmente meios educacionais”.

À luz de hoje, o artigo é assustador. O que mais impressiono Benhabib hoje é a passagem sobre a taxa de natalidade dos albaneses e sua subsequente pobreza abjeta. “Este é o pensamento neofascista clichê, o pensamento racista sobre um grupo oprimido. Você encontrará racistas dizendo a mesma coisa em todos os lugares.” Em 1990, contudo, os sinos de alarme de alguma forma não soaram. Benhabib sabia muito pouco sobre Kosovo e, para saber mais, pediu que Stojanovic comicionasse um artigo.

“Às vezes eu sentia que teias estavam sendo urdidas ao meu redor”, diz Benhabib hoje. Pouco depois do artigo de Markovic ser lançado, a Iugoslávia começou sua sangrenta desintegração. Em 1991, primeiro a Eslovênia e depois a Croácia declararam independência, dando início à guerra servo-croata. Benhabib estava em Frankfurt naquele momento, e as pessoas começaram a abordá-la sobre seu colega Markovic, que nessa época era vice-presidente e o principal ideólogo do partido socialista de Milosevic. “A gente encontrava com indivíduos que diziam: ‘Você está ciente do que está fazendo?’”, lembra ela. Mas foi depois depois que a Bósnia se incendiou, em 1992, que Benhabib ficou realmente desconfortável. “Estávamos sendo instrumentalizados para obter prestígio e crédito”, acredita ela agora. A gota d’água foi uma entrevista que Markovic deu ao New York Times em agosto de 1992: “Não entendo por que há tanta oposição à cantonização”, disse ele ao repórter, sobre a divisão da Bósnia. “A alternativa seria a criação de um estado muçulmano no coração da Europa. Talvez os estadunidenses queiram apoiar isso […] Mas nó achamos isso muito perturbador.”

Em 1993, diz Benhabib, “descobrimos que a situação havia ficado muito suja, moral e politicamente”. A única saída era parar de publicar a revista e cortar relações com Stojanovic e Markovic. A Praxis International publicou sua última edição, “A Ascensão e a Queda da Iugoslávia: Estações de uma Tragédia Europeia,” em janeiro de 1994; incluindo perspectivas eslovenas, croatas e sérvias sobre a desintegração da Iugoslávia. A amizade de Richard Bernstein com Markovic foi destruída pela guerra da Bósnia. Quanto a Benhabib, ela não manteve contato com Markovic ou Stojanovic: Desde a separação, ela diz: “Tenho aversão a acompanhar a carreira deles”.

Se Mihailo Markovic não era quem seus amigos e colaboradores ocidentais pensavam que ele fosse, então quem era ele? Será que ele simplesmente descartou suas crenças humanistas para se acomodar a um novo regime? Ou será que ele havia sido um lobo em pele de cordeiro o tempo todo?

“Muitas pessoas têm lido Markovic como um cínico e um traidor do Praxis”, diz Bernstein. Mas na visão distorcida de Markovic, Bernstein suspeita, “a Sérvia representava o elemento progressista da sociedade iugoslava” – o elemento empenhado em manter a Iugoslávia unida e em preservar sua estrutura socialista. Com o tempo, ele perdeu toda a perspectiva. “Essa é a tragédia de Mihailo Markovic”, diz Bernstein. “Em vez de ver o lado sombrio e feio do nacionalismo sérvio, ele se comprometeu com ele.”

A medida plena desse compromisso ficou evidente quando Markovic se tornou o vice-presidente do partido de Milosevic em 1991. David Crocker encontrou seu velho amigo em uma conferência na África naquele ano. Por que, perguntou Crocker, ele se juntou ao governo sérvio? A resposta do filósofo foi simples: “Me envolvi na política para salvar os sérvios no leste da Croácia”. Caso contrário, afirmou Markovic, “eles teriam sido massacrados”.

O que diabos o fez pensar isso? Mas ele não estava sozinho. Em 1992, os termos do debate político na Iugoslávia haviam sofrido uma mudança dramática. Não era mais uma questão de quão estreitamente as seis repúblicas e as duas províncias autônomas deveriam estar submetidas à autoridade central de Belgrado. À medida que o comunismo desmoronava no antigo bloco oriental, os iugoslavos começaram a reviver seus próprios paradigmas pré-comunistas. Mas na Iugoslávia, esses paradigmas eram extremos e impraticáveis, baseando-se nas memórias mais feias e nos piores temores do país: um Estado unitário dominado pelos sérvios, que os não-sérvios lembravam amargamente da primeira Iugoslávia; e os campos de extermínio fratricidas da Segunda Guerra Mundial, nos quais os sérvios foram esmagadoramente vitimados. Parecia cada vez mais impossível para o país permanecer unido em uma forma multinacional ou se separar sem uma destruição apocalíptica.

Olhando para trás agora, para a edição de Praxis sobre o nacionalismo lançada em 1968, o que parecia ser um consenso antinacionalista começa a tomar uma forma mais ambígua. Tanto os sérvios quanto os croatas repudiavam o então ascendente movimento nacionalista croata e davam apoio à continuação de uma Iugoslávia unida. Para os croatas, essa postura era explicitamente oposta à do nacionalismo croata. Mas para os sérvios, a posição era compatível tanto com um antinacionalismo baseado em princípios quanto com seu próprio interesse nacional: afinal de contas, a Iugoslávia era de fato a única opção viável para manter os sérvios em um único Estado. Isso não quer dizer que Markovic, Tadic e os outros almejavam criar uma Grande Sérvia em 1968 – e sim que eles não precisavam dessa esperança. A Iugoslávia estava perfeitamente confortável. Os croatas podem ter enfrentado seriamente as questões de etnia e nação na Iugoslávia em 1968; mas os sérvios que alegremente apoiavam o iugoslavismo o faziam com toda a arrogância de qualquer maioria, por mais bem intencionada que fosse.

Além disso, o que quer que os praxistas fossem para além disso, eles continuavam sendo marxistas. Na Croácia, continuar a ser marxista – ou iugoslavista – colocava alguém na oposição ao regime nacionalista de direita de Franjo Tudjman. E, de fato, muitos dos praxistas croatas continuaram fortes defensores dos direitos humanos: Zarko Puhovski, que depois foi vice-presidente do Comitê de Direitos Humanos de Helsinque da Croácia, levantou sua voz corajosamente contra as campanhas de limpeza étnica perpetradas pelo exército croata. E o economista Branko Horvat concorreu à presidência em 1992 com uma plataforma anti-guerra e antiautoritária.

Já para os praxistas sérvios, a situação era diferente: continuar a apoiar as forças socialistas do país era aliar-se ao governo de Milosevic – e se opor a Milosevic, ao que parecia, era se opor ao que restava do comunismo iugoslavo. “Seu mundo desmoronou”, diz Benhabib sobre Markovic. “O liberalismo era inaceitável. Ele não queria o capitalismo de livre-mercado. ” Certamente, os novos partidos de oposição, a maioria dos quais não eram apenas nacionalistas, mas também de direita ou mesmo monarquistas, não seriam aceitáveis ​​para um comunista da geração de Markovic. Aparentemente ele decidiu que Milosevic representava o futuro do socialismo iugoslavo. Afinal, Milosevic havia herdado o aparato do Partido Comunista, e seu partido socialista no governo estava entre os últimos a resistir na Europa Oriental. Claro, Milosevic havia preparado aquele coquetel mortal, misturando socialismo e nacionalismo. Markovic se tornou um dos apologistas mais francos e implacáveis ​​do regime. E então, em 1995, ele foi expulso do poder – o governo, ao que parece, passou a considerar as suas visões nacionalistas como extremistas demais.

Dos 8 de Belgrado, ninguém se desgraçou tão completamente quanto Markovic, mas não deve haver dúvidas de que o nacionalismo conquistou os corações e mentes de vários outros praxistas. Considere o caso de Svetozar Stojanovic e seu aliado, Dobrica Cosic.

Em seu livro de 1997, The Fall of Yugoslavia: Why Communism Failed (“A Queda da Iugoslávia: Porque o Comunismo Fracassou”), Stojanovic escreveu que a revolução em seu pensamento ocorreu em 1990, quando foram abertas as valas comuns de Jasenovac, o campo de concentração croata durante a Segunda Guerra Mundial, para dar um novo enterro aos corpos. Stojanovic se viu confrontado com a raiva de seus filhos: ele nunca havia falado com eles sobre Jasenovac antes. Afinal, essas memórias foram suprimidas durante os anos de Tito. A partir desse momento, declarou Stojanovic, ele decidiu que seu trabalho político deveria ser dedicado à memória de Jasenovac.

A carreira política de Stojanovic cresceria junto com a de seu amigo próximo, Cosic. Em 1992, Milosevic nomeou Cosic para a presidência dos restos da Iugoslávia, e Cosic trouxe Stojanovic como seu principal conselheiro. Muitos observadores dentro e fora da Iugoslávia esperavam que a presença de figuras tão respeitáveis, embora abertamente nacionalistas, marcasse uma mudança de curso político. Em vez disso, apenas comprou a Milosevic um ano de melhores relações públicas no exterior, enquanto dentro do governo as mãos dos moderados estavam atadas.

Em seu livro, Stojanovic condena as atividades criminosas do regime de Milosevic por motivos nacionalistas: Se alguém compartilha do orgulho coletivo, argumentou ele, também deveria compartilhar da vergonha coletiva. E ele afirma que Cosic protestou contra a uso de formações paramilitares brutais por Milosevic na Croácia e na Bósnia. Ao mesmo tempo, no entanto, Stojanovic e Cosic apoiavam os objetivos territoriais de Milosevic. A Iugoslávia não poderia ser desmembrada ao longo das fronteiras de suas antigas repúblicas, argumentavam Stojanovic e Cosic. Um “mapa mais profundo”, eles acreditavam, estava submerso sob o mapa da Iugoslávia de Tito; e esse mapa verdadeiro deveria levar em conta as faixas de terras croatas e bósnias que haviam sido povoadas pelos sérvios por centenas de anos.

Cosic e Stojanovic estavam abertos a várias soluções: a independência croata poderia ter sido aceitável, sugere Stojanovic, se a Croácia estivesse disposta a garantir autonomia substancial aos seus territórios povoados pelos sérvios. Na prática, os críticos objetariam, tais soluções eram insustentáveis. Digamos que houvesse autonomia para os sérvios na Croácia; e dentro dessa autonomia, deveria haver autonomia para os croatas na Croácia sérvia? E quanto aos sérvios na Croácia sérvia croata? É tentador enxergar essa linha de raciocínio, que leva inelutavelmente a uma reductio ad infinitum, como um dispositivo sofisticado cujo verdadeiro propósito era forçar a reintegração iugoslava nos termos sérvios.

A presidência de Cosic durou apenas um ano e, quando foi deposto em 1993, Stojanovic também deixou a política. Seis anos depois, no silêncio assustador que se seguiu à guerra de Kosovo, a Academia Sérvia de Artes e Ciências se reuniu novamente para avaliar a questão nacional sérvia. Na reunião de junho de 1999, Cosic falou longamente sobre a ruína sofrida pela nação sérvia. “Apelo à consciência patriótica e à responsabilidade cívica de Slobodan Milosevic para que renuncie a fim de que as mudanças indispensáveis na Sérvia e no Estado Federal possam começar”, concluiu.

Markovic adotou uma linha mais dura: “Nossa tragédia não está no fato de que esta ou aquela pessoa era o chefe de Estado. Nossa tragédia está no fato de que as grandes potências decidiram destruir nosso país.”

Embora apenas Stojanovic e Markovic tenham feito parte do governo, a maior parte dos 8 de Belgrado foram ativos politicamente durante a década de 1990 e apenas alguns se opuseram explicitamente à política do nacionalismo sérvio. Ljubomir Tadic e Dragoljub Micunovic formaram o primeiro partido de oposição democrática da Sérvia, o DS, em 1990. Embora os laços de seus fundadores com o Praxis lhe desse a reputação de ser a ala esquerda do movimento sérvio pela democracia liberal, o DS estabeleceu alianças estratégicas com partidos à direita, incluindo monarquistas e nacionalistas linha-dura. Os líderes do partido explicaram que estes compromissos lhes permitiram ter resultados críveis nas eleições parlamentares. Mas pelo menos a conversão de Tadic ao nacionalismo pareceu completa. Ele deu seu apoio acrítico ao movimento Sérvios da Bósnia, chegando a se encontrar pessoalmente com seu líder, Radovan Karadzic. Juntamente de Markovic, Tadic assinou uma petição em 1996 instando o Tribunal de Haia a retirar suas acusações contra Karadzic, “o verdadeiro líder de todos os sérvios”. Foi um ato notável para um homem que havia escrito de forma tão eloquente em 1968 sobre os nacionalismos como “ideologias militantes e despóticas”. Gerson Sher, que relembra do livro de Tadic de 1967, Ordem e Liberdade, como uma “obra-prima” do pensamento humanista, diz com tristeza: “Tadic é o maior mistério de todos eles.”

O colega de Tadic no DS, Micunovic, manteve uma reputação mais moderada. Ele permaneceu visível na vida pública até que seu ex-aluno Zoran Djindjic o demitiu da liderança do DS em 1994. Djindjic, que também estudou com Habermas e contribuiu com a Praxis International, se tornou um favorito do Ocidente que teve um papel fundamental para levar Milosevic ao Tribunal de Haia, mas suas políticas de reformas chegaram a elevar o desemprego acima de 30% e acabou assassinado em 2003. Micunovic dirigiu uma organização não governamental pró-democracia e depois chegou a ser presidente do parlamento unificado da Sérvia e Montenegro, antes da separação de ambos os países.

É típico da política sérvia que os praxistas que se aproximaram do poder fossem os que menos diferiam do regime dominante. Outros praxistas de Belgrado mantiveram uma distância maior da política, mas mantiveram atividades de agitação por um futuro genuinamente democrático. Foi membro dos 8 de Belgrado – Nebojsa Popov – que participou da fundação de um dos partidos mais baseados em princípios e menos populares da Sérvia, a Aliança Cívica da Sérvia, em 1991. Entre seus objetivos declarados estava “superar o coletivismo nacionalista e de classe”. Como o irmão menor dos dois maiores partidos de oposição, a Aliança Cívica juntou-se à coalizão Zajedno que liderou protestos na Universidade de Belgrado em 1996 e 1997. Em uma das cenas mais surreais que vieram de Belgrado durante os anos 1990, Popov apareceu na Praça Nikola Pasic com uma panela de feijão em fevereiro de 1997. Ele e seus colegas estavam cozinhando feijão para “todos aqueles famintos por liberdade, verdade e democracia”. Eles se comprometeram a continuar cozinhando por 330 dias ou até que Milosevic fosse deposto.

Entre os aliados de Popov estiveram membros de outro rebento do Grupo Praxis: o Círculo de Belgrado, uma pequena organização não-governamental. Seu presidente, Obrad Savic, foi um dos estudantes que os praxistas lideraram nos protestos de 1968. Savic foi implacável em suas críticas à virada de Markovic e Tadic para o nacionalismo; em troca, Tadic o denunciou como o fundador de um “globalismo anti-sérvio”. Algumas das mesmas pessoas que antes eram atraídas pela Praxis e pela Praxis International – Habermas, Richard Rorty, Chomsky – publicaram depois na revista do Círculo de Belgrado.

Em última análise, é a história do fundador do Círculo de Belgrado, o filósofo do Grupo Praxis Miladin Zivotic, que lança a luz mais nítida sobre a tragédia iugoslava. Os intelectuais estrangeiros que naqueles dias mais felizes se sentiam atraídos pela visão do Grupo Praxis de socialismo autogerido não deram muita atenção ao jovem Zivotic, cujas atenções eram devotadas principalmente à cultura. Na década de 1980, Zivotic e seus alunos formaram uma vanguarda pesquisa em estudos pós-estruturalista em Belgrado, abandonando a fascinação do Praxis pelo marxismo em favor de Foucault e Derrida. Juntamente com o velho dissidente Milovan Djilas, que em certo momento aparentara ser o futuro herdeiro político de Tito, ele fundou o Círculo de Belgrado em 1992. De acordo com Richard Bernstein, “chegou um ponto em que o marxismo, até mesmo o humanismo marxista, era coisa ultrapassada. Já não se comunicava com as questões certas. O Círculo de Belgrado permitiu que a geração mais jovem se rebelasse contra os clichês obsoletos da geração mais velha.”

Mas Zivotic e seus seguidores construíram sua verdadeira reputação como ativistas pela paz. Durante os anos de guerra, o Círculo de Belgrado se expandiu para incluir uma variedade heterogênea de trabalhadores, cineastas, intelectuais e artistas. No seu auge, chegou a ter quinhentos seguidores, que se reuniam todos os sábados para eventos públicos voltados para o diálogo interétnico e a paz.

Em 1993, Zivotic viajou para a sitiada Sarajevo, deslizando por entre as as linhas dos Sérvios Bósnios para se encontrar com a liderança muçulmana da cidade. De volta a Belgrado, ele recebeu uma série de telefonemas anônimos de estranhos que ameaçavam cortar sua garganta. Ele falava abertamente em solidariedade aos albaneses do Kosovo, e quando os muçulmanos na região de Sandjak na Sérvia foram ameaçados, ele foi morar com eles em protesto. Contra as investidas de limpeza étnica, ele proclamou: “se vivermos juntos é impossível, então a própria vida também é impossível”.

Embora tivesse recebido permissão para retornar à Universidade de Belgrado em 198, Zivotic já não sentia feliz por lá em 1994. Ele disse ao New York Times: “eu não agüentava mais ir trabalhar. Tinha de ouvir professores e alunos expressando apoio e solidariedade a esses fascistas bósnios, Radovan Karadzic e Ratko Mladic, na chamada “República de Srpska. Hoje está pior do que no comunismo. A corrupção intelectual é mais generalizada e mais profunda.” Um amigo relembra como Zivotic “foi fisicamente destruído pelo tempo e pelo mal em meio ao qual viveu”.

Em 1997, Zivotic deu uma palestra em Londres sobre as manifestações anti-Milosevic que estavam ocorrendo na Universidade de Belgrado. Ele sabia que o Ocidente tinha grandes esperanças naqueles manifestantes, mas também sabia que seus líderes eram nacionalistas. Branka Magas estava nesta palestra. “Ele estava muito desapontado com o pessoal do Grupo Praxis”, diz ela. “Ele era um humanista.”

Duas semanas depois, Zivotic estava morto. “Ele estava extremamente atormentado com o que havia acontecido”, diz Magas. “Eu acho que foi o coração partido que o matou”.

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Adaptado de “Testamentos Traídos”. (Lingua Franca)

Colaborador

Laura Secor era uma editora sênior na revista Lingua Franca.

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