Marcio Pochmann
Folha de S.Paulo
Uma das peculiaridades históricas percebidas na transição de uma sociedade para outra no Brasil tem sido a reprodução do passado sobre o presente. Sinal disso parece ser a convivência do arcaico com o moderno neste início do século 21, quando emerge inédita sociedade de serviços aprisionada pelo atraso e pelo regressivo projeto neoliberal conduzido por Temer e apoiado por consultores como S. Pessôa.
Para eles, a presença do povo no orçamento público, especialmente daquela parte pertencente à base da pirâmide social, seria responsável pela desordem nas finanças do Estado.
Por isso, o desembarque do segmento empobrecido dos programas governamentais promovido desde a arbitrária ascensão do governo Temer se mostra fundamental para a contenção do gasto social e reorganização, cada vez mais enxuta, do Estado, deixando-o livre para as próximas décadas continuar o financiamento do rentismo para o enriquecimento dos já privilegiados no país.
Os cortes orçamentários nos dois últimos anos, por exemplo, apontam para o desmonte do Estado de bem-estar social ainda em fase inicial, desorganizando políticas públicas e inviabilizando o papel das empresas estatais, cada vez mais submetidas à lógica privada.
Mesmo assim, a economia não retomou o crescimento, bem como o endividamento público seguiu aumentando continuamente em face do desordenamento fiscal.
O recente problema do desabastecimento de combustível gerado pelo protesto do setor de transporte apresenta-se emblemático da lógica privatista e entreguista que predomina e acoberta a regressão de duas décadas transcorrida em somente dois anos do governo Temer.
Com isso, a volta da mortalidade infantil, da fome em grande escala, do desemprego sem paralelo histórico, do abandono de massas de estudantes dos ensinos médio e superior, da presença generalizada nas cidades dos moradores de rua e de mendigos nos cruzamentos em vias públicas, entre outros sinais de manifestação do caos.
Não bastasse isso, a sagrada defesa do receituário neoliberal parece seguir imutável, assim como o inabalável ataque às ideias e às personalidades que defendem visões distintas. A prevalência do passado sobre o presente durante a transição para uma nova sociedade foi percebida por Walter Benjamin (1892-1940) em sua obra "Projeto das Passagens" para algumas realidades nacionais.
No Brasil, a passagem da antiga sociedade escravista para a capitalista ao final do século 19 foi acompanhada pelo projeto de branqueamento populacional. Defendido por influentes políticos do antigo Império (1822-1889) como o conselheiro Antônio Prado ou por intelectuais da estirpe de João B. de Lacerda na República Velha (1889-1930), a tese do atraso brasileiro devido à população negra viabilizou a imigração branca e a sua ocupação nos principais postos de trabalho, após a escravidão.
Com isso, o passado, que era representado por cerca de 2/3 do total da população brasileira à época, foi excluído das possibilidades de ingresso na nova sociedade capitalista, que seguiu reproduzindo uma profunda desigualdade. Somente a partir da década de 1930 que uma lenta e gradual inclusão dos empobrecidos passou a ocorrer, todavia marcada até os dias de hoje pelo processo de exclusão.
Pelo andamento do projeto em curso do governo Temer denominado “Ponte para o Futuro”, o neoliberalismo associa justamente o atraso do país ao recente processo de inclusão social conduzido pelos governos do PT. Por conta disso, os pobres —razão alardeada da crise fiscal pelo governo Temer— e seus defensores são atacados pela generalização de políticas de exclusão social promovidas pelo desmonte do Estado brasileiro.
Sobre o autor
Professor do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas e ex-presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) entre 2007 e 2012 (governos Lula e Dilma).
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