30 de novembro de 2022

Marés agridoces

Chile, Brasil e o futuro da esquerda latino-americana

Claudia Heiss
André Singer

Phenomenal World


As recentes vitórias dos partidos de esquerda em toda a América Latina – mais recentemente a eleição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva no Brasil – levaram a comparações com a Maré Rosa do início dos anos 2000. Mas com margens estreitas de vitória contra oponentes de extrema direita, coalizões frágeis e os efeitos da ruptura econômica global alimentando o descontentamento, o momento atual parece muito diferente do anterior.

Em recente evento convocado pelo Ralph Miliband Program e pelo Latin America and Caribbean Center da London School of Economics, Claudia Heiss e André Vitor Singer refletem sobre as trajetórias de partidos de esquerda no Chile e no Brasil e discutem o futuro da esquerda latino-americana. O evento foi moderado por Robin Archer, e uma gravação pode ser vista aqui. Esta transcrição foi editada para maior clareza e tamanho.

Uma conversa com Claudia Heiss e André Singer

Robin Archer: Acabamos de ver a reeleição, ainda que por pouco, do presidente Lula no Brasil. Alguns meses antes, vimos a rejeição das reformas constitucionais que o novo governo progressista do Chile havia proposto apenas recentemente.

Para falar sobre esses e outros desenvolvimentos, estou acompanhado por um painel absolutamente de primeira linha. A professora Claudia Heiss é diretora de Ciência Política da Faculdade de Governo da Universidade do Chile. Ela é especialista na constituição chilena e na política das constituições de forma mais ampla - contei trinta e dois artigos sobre esses assuntos apenas na última década. Ela também fez parte da comissão técnica que assessorou a nova constituição, então ela tem uma visão privilegiada além da acadêmica.

Juntando-se a nós, vindo de São Paulo, está o professor André Singer, professor de Ciência Política da Universidade de São Paulo. Ele também escreveu um número significativo de livros importantes sobre mudanças políticas e sociais no Brasil, e sobre o fenômeno da presidência de Lula em particular. Ele também foi o editor-chefe do maior jornal do Brasil, Folha de S.Paulo. E não menos importante, foi porta-voz de Lula durante sua primeira presidência.

Claudia, gostaria de começar com algumas observações introdutórias?

Claudia Heiss: Eu gostaria de enfatizar dois grandes pontos e alguns pontos menores para começar. O primeiro grande ponto é que esta Maré Rosa carrega um sentimento agridoce - não é cheio de esperança como o que tínhamos no início dos anos 2000. Claro, estou feliz que Bolsonaro e José Antonio Kast perderam a eleição presidencial – não apenas porque eram de direita, mas também porque acho que representam ameaças aos direitos humanos, à preservação do planeta e ao pluralismo e à democracia.

No entanto, a Maré Rosa anterior coincidiu com um boom de commodities que permitiu a alguns governos de esquerda na América Latina mudar fundamentalmente a vida das pessoas por meio de políticas redistributivas. Esse foi claramente o caso do Brasil, enquanto o Chile foi um pouco diferente. Não construímos nada parecido com um estado de bem-estar, mas tivemos transferências diretas que melhoraram o padrão de vida das pessoas.

Hoje, algumas das maiores economias da América Latina são mais uma vez governadas pela esquerda – Argentina, Brasil, Chile, Colômbia e México têm governos de esquerda. Também temos governos de esquerda no Peru e em Honduras, embora nesses casos não haja um partido político de esquerda claro para sustentar os governos. Também temos governos de esquerda não pluralistas em Cuba, Nicarágua e Venezuela. As preocupações em torno dessa onda começam a surgir quando olhamos para os eleitores, e não para os partidos eleitos. É claro que há uma grande variação, mas, no geral, não estamos vendo muita mobilização cidadã ativa por trás desses partidos. Pelo contrário, a sua adesão está a desaparecer, ao mesmo tempo que os sindicatos estão a enfraquecer. Podemos analisar essa tendência de quatro maneiras. Primeiro, vemos um voto anti-incumbente muito forte. A eleição da esquerda, neste caso, foi em grande parte o resultado de um efeito oscilante – as pessoas simplesmente rejeitaram o que tinham antes. Nesse sentido, as eleições representam uma punição de todos os partidos no poder, ao invés de um movimento positivo em favor da alternativa de esquerda. A constituição chilena é um exemplo interessante disso: em outubro de 2020, 78% dos eleitores rejeitaram a constituição existente, mas no referendo recente 62% dos eleitores rejeitaram a proposta revisada. Em última análise, os eleitores estão apenas rejeitando o que consideram ser o establishment.

A segunda tendência que vemos é uma aceleração do tempo político. Vemos luas-de-mel cada vez mais curtas para os novos governantes; Boric, o atual presidente esquerdista do Chile, foi eleito com 56% dos votos e, em menos de um ano, seu apoio caiu para cerca de 30%. O mesmo aconteceu com Pedro Castillo, no Peru, e com o governo argentino, que teve um péssimo desempenho nas eleições legislativas de novembro de 2021.

O terceiro é o papel do mal menor na formação da coalizão. Lula e Boric não foram eleitos com apoio forte e estável, foram eleitos por quem não queria que a extrema-direita chegasse ao poder. É preciso se perguntar qual teria sido o resultado se o adversário fosse um centrista. Fundamentalmente, não devemos ler os resultados das eleições brasileiras como uma demonstração de amplo apoio a Lula, porque ele estava em uma coalizão com seus ex-rivais de centro.

Finalmente, acho que devemos ser um pouco cautelosos ao celebrar esta Maré Rosa por causa da tendência avassaladora de fragmentação e polarização política. No Chile tínhamos um sistema partidário muito estável, que hoje é composto por vinte partidos na Câmara dos Deputados e novos partidos se formando enquanto falamos - o antigo Partido Democrata Cristão, que quase não tinha eleitores, agora está dividido em três partes separadas. E as elites são mais polarizadas que o eleitorado.

Esta Maré Rosa agridoce significa que temos governos que carecem do apoio político e parlamentar necessário para produzir transformações estruturais. No Chile, por exemplo, vemos enormes entraves ao processo constitucional e enorme dificuldade legislativa para aprovar a reforma tributária porque a direita tem maioria no Congresso. Esse governo dividido e a impossibilidade de atuar provavelmente gerarão decepção, o que pode significar uma futura guinada à direita.

O segundo grande ponto que gostaria de destacar é sobre os problemas que vimos com os mecanismos de mediação política e a capacidade de representação pública em nossas instituições democráticas. Enfrentamos claramente profundos sentimentos antipolíticos e antipartidários. A ação coletiva que está ocorrendo é organizada em torno de questões específicas como educação e pensões, ao invés de uma ampla visão política ou plataforma programática.

No Chile, as explosões sociais de 2019 não surgiram do nada, elas começaram em 2006 com os protestos dos estudantes do ensino médio. Como a participação eleitoral diminuiu, vimos uma mobilização muito forte nas ruas. As pessoas pararam de votar e começaram a marchar. Esses movimentos sociais representaram em alguns casos uma reação ao neoliberalismo por motivos ideológicos, e em outros uma resistência contra o peso da dívida privada (no Chile temos uma dívida pública muito baixa, então quase toda a dívida é absorvida pelas famílias que pagam 75 por cento de seus salários em dívidas com educação, saúde, alimentação, vestuário e assim por diante). Em 2019, no Chile, a discussão girou em torno da dignidade. Mas o que significa dignidade? O problema da mediação é traduzir expressões de descontentamento em um programa político positivo. Podemos ter um porta-voz da raiva das pessoas que não têm capacidade de construir um futuro melhor. Isso é o que Pierre Rosanvallon chamou de "contra-democracia", as pessoas querem controlar o poder, mas não construir seu próprio destino. Então, novamente, temos 78% dos eleitores rejeitando a constituição existente, mas faltou a mesma força para recriar a constituição – o comparecimento dos eleitores passou de 51% para 43%.

Assim, as perguntas que nos restam são: Quem são as pessoas? Contra o que eles estão se rebelando? O que eles querem? Eu tenho algumas respostas possíveis. Em primeiro lugar, por mais difícil que seja dizer aos políticos, não existe uma voz única do povo. Algumas pessoas marcham porque querem o socialismo, outras marcham porque querem mais acesso ao consumo. Entre estes, há uma convergência de demanda em torno do bem-estar. A demanda por dignidade claramente tem algo a ver com uma demanda por redistribuição. Em segundo lugar, as pessoas estão se rebelando contra instituições e elites. Isso cria o terreno para respostas simples que podem ser prejudiciais à nossa cultura política. Em terceiro lugar, as pessoas claramente querem algumas limitações aos abusos do mercado. A desigualdade não é novidade no Chile – somos um dos países mais desiguais do mundo. Mas nos últimos anos, a desigualdade se politizou e as pessoas não querem mais tolerá-la. As pessoas também querem claramente um maior reconhecimento dos povos excluídos, incluindo povos indígenas e minorias de gênero. O Congresso chileno era composto por 13% de mulheres, então a paridade de gênero na Convenção Constitucional foi histórica para nós (só legalizamos o divórcio em 2004 e o aborto era ilegal em qualquer circunstância até 2017).

Mas a dificuldade de interpretação política continua apesar dessas intuições: a direita interpreta a rejeição da constituição como um sinal de que a população a apoia. A esquerda está citando os protestos sociais e a voz do povo nas ruas. Os cientistas políticos que analisam os resultados do plebiscito naturalmente tendem a se concentrar no mítico eleitor mediano. A verdade é que não podemos simplificar o que as pessoas querem, e decisões políticas legítimas só podem ser obtidas por meio da deliberação pluralista e democrática dos cidadãos. Infelizmente, acho que temos que nos ater à política como sempre e tentar ver o que podemos fazer para aumentar o envolvimento dos cidadãos no processo político.

Robin Archer: Você enfatizou que as forças eleitorais que trouxeram esses resultados presidenciais são compostas por coalizões democráticas extremamente amplas que se estenderam muito além do centro e de fato para a direita. Nem parecem a Frente Popular Francesa dos anos 1930. É claro que existe uma figura de proa de esquerda, mas os movimentos em si não parecem de esquerda em nenhum sentido claro. Até que ponto a "Maré Rosa" é uma descrição relevante do que estamos vendo?

André Singer: Acho que Claudia e eu concordamos no ponto mais importante dessa questão. Se você olhar os resultados do Chile, da Colômbia e do Brasil, há uma Maré Rosa: a esquerda venceu. Eles venceram por uma pequena margem, mas ainda assim venceram. Mas o contexto em que estamos hoje é totalmente diferente daquele da Maré Rosa anterior. Na Maré Rosa, estávamos muito otimistas. No Brasil, era a primeira vez que um partido de esquerda havoa sido eleito. Estávamos entusiasmados com todas as melhorias sociais que poderíamos fazer. Algumas delas foram alcançadas, outras não. Mas a pergunta era: como é um programa de esquerda (reformista)?

Hoje, estamos muito assustados com o que chamo de autoritarismo com viés fascista. Trata-se de uma situação defensiva em que a esquerda – tanto no Brasil quanto no Chile – foi colocada no olho do furacão. Claro, temos que nos perguntar o que esses governos são capazes de fazer. Mas precisamos reconhecer que este é principalmente um movimento defensivo.

Do lado econômico, temos desafios significativos. Há uma pressão global por austeridade, ao mesmo tempo em que a situação social deve ser melhorada. E essas melhorias demandam dinheiro. Estamos em uma situação difícil porque as pessoas esperam ver resultados, e a situação econômica do Brasil está ruim há pelo menos uma década.

Claudia Heiss: Boric não ganhou com o apoio de uma ampla coalizão, mas construiu uma ampla coalizão com o que hoje é chamado de Socialismo Democrático. Acho importante entender que a resistência que vemos agora é produto de muitos anos de governos de centro-esquerda. O primeiro presidente que tivemos após o retorno à democracia na década de 1990 foi um democrata-cristão aliado à esquerda, Patricio Aylwin. Depois tivemos Eduardo Frei Ruiz-Tagle, Ricardo Froilán Lagos e Michelle Bachelet. Tivemos quatro governos de esquerda que não fizeram reformas estruturais importantes no modelo econômico. Porque? Em parte porque eram uma coalizão ampla, mas também em parte por causa da Constituição.

A Constituição chilena foi construída de várias maneiras para preservar o que a ditadura chamava de “estado subsidiário”. Na Europa, esse termo é usado para descrever instituições destinadas a proteger a sociedade civil do Estado. No Chile, entende-se que essas instituições protegem o mercado do Estado. Nossa constituição enfatiza a primazia do mercado – canalizamos o financiamento público para setores lucrativos de saúde e educação, uma enorme transferência dos pobres para os ricos. Esse modelo é o que muitos alunos e professores têm resistido desde os protestos dos “pingüins” de 2006. Essas políticas estão todas associadas a governos de centro-esquerda e, como escreveu Jennifer Pribble, o fato de os governos de centro-esquerda não terem conseguido implementar políticas de centro-esquerda enfraqueceu a fé das pessoas na política e as mandou para as ruas.

E não se trata apenas da amplitude e fragilidade das coalizões políticas, trata-se de enclaves ditatoriais profundamente enraizados. Não terminamos de democratizar em 1990. Tínhamos nomeado senadores até 2005, tínhamos um sistema eleitoral que distorcia completamente as preferências até 2015. A direita concordou que esta era uma má constituição, mas também rejeitou a nova proposta. Agora que as negociações estão acontecendo, e os fundos de pensão e as empresas privadas de saúde estão fazendo campanhas políticas abertas, começamos a ver os reais interesses econômicos em jogo.

Robin Archer: A última pergunta que gostaria de fazer é sobre o papel da mudança geracional. Para as gerações mais velhas em cada um desses países, há uma memória viva da ditadura e do profundo regime autoritário. No entanto, muitos cidadãos mais jovens não devem ter nenhuma lembrança disso. Sabemos que a mudança geracional em muitos casos tem consequências políticas – como isso afeta a política atual no Brasil e no Chile?

André Singer: Acho que o Brasil é um país com uma memória muito curta de si mesmo. O que passou, passou, é muito diferente do Chile nesse aspecto. Então os problemas que vivemos no Brasil são entendidos como problemas mais iminentes, e o eleitorado vota com base no presente. Mas há um sintoma preocupante em relação a esse elemento da política geracional, que é que Bolsonaro pretende voltar à ditadura. Não se fala em termos explícitos, mas é fato: Bolsonaro é um ex-capitão militar formado pela ditadura. Ele fala bem da ditadura o tempo todo. Seu movimento tem aspectos novos que o aproximam do trumpismo, que nada tem a ver com os antigos movimentos militares. Mesmo assim, ele pretende reviver essa estrutura política anterior a 1964. A relação entre a nova direita e o antigo regime militar pode não ser diretamente relevante para as decisões do eleitorado, mas interessa aos estudiosos do momento político.

Claudia Heiss: Testemunhamos a importância da mudança geracional na onda de protestos das últimas duas décadas. A primeira grande onda foi, como mencionei, com estudantes do ensino médio em 2006. Esses alunos do ensino médio acabaram se tornando estudantes universitários e formaram a base para a onda de 2011. Alguns desses estudantes universitários então entraram no governo, alguns se tornaram membros do Congresso (um tornou-se presidente!).

Ao mesmo tempo, acho importante não exagerar essa memória geracional. Quando meus alunos foram protestar em 2019 e 2020, fiquei apavorado por eles terem violado o toque de recolher. Como alguém que viveu sob uma ditadura, quebrar o toque de recolher para mim significava que você poderia ser morto. Mas meus alunos não tiveram medo, eles saíram e marcharam enquanto eu ficava acordada ligando para o grêmio estudantil para saber se eles estavam bem. Muitos deles ficaram feridos, na verdade. A polícia cometeu violações gravíssimas dos direitos humanos em 2019 – mais de trinta pessoas morreram e mais de 400 perderam os olhos após serem baleadas pela tropa de choque. No entanto, esses alunos não ficaram tão assustados quanto a geração mais velha. E parte de seu apelo político é que eles são vistos como recém-chegados ao cenário político. Seus pontos de vista se assemelham a alguns dos programas políticos centralizados mais antigos, mas não são partidos tradicionais de trabalhadores. O jeito deles de fazer política é diferente, mas eles são mobilizados. Ainda assim, uma coisa que está clara no Chile é a noção de que os pobres, os jovens e os menos instruídos votam automaticamente na esquerda não é mais um dado adquirido.

29 de novembro de 2022

Lula articula base no Congresso com MDB, União Brasil e PSD

Presidente eleito tem reuniões com líderes dos três partidos em meio a negociações da PEC da Transição

Julia Chaib, Catia Seabra, Renato Machado, Marianna Holanda, Thaísa Oliveira

Folha de S.Paulo

O presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) entrou de vez em campo para articular a formação da base de partidos que dará sustentação ao seu governo na Câmara e no Senado.

Na noite de segunda-feira (28), o petista se reuniu com representantes do MDB e, nesta terça (29), com líderes da União Brasil. Nos encontros, Lula convidou ambas as siglas para fazerem parte de sua base no Congresso. Ele também acrescentou que quer que o PSD faça parte do grupo.

O presidente eleito deve se reunir com o PSD ainda nesta terça para tratar do tema. Se confirmada a aliança, esses partidos se somariam às principais legendas que integraram a coligação de Lula nas eleições: Rede, PV, PSB e PC do B.

Segundo aliados, a prioridade número um do presidente eleito é articular a formação de blocos no Congresso e garantir a aprovação da PEC da Transição em ambas as casas em dezembro. Em outra frente, o presidente eleito já arma o time que defenderá suas propostas no Parlamento.

O presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), e seu vice, Geraldo Alckmin (PSB), visitam o presidente da Câmara, Arthur Lira - Pedro Ladeira-9.nov.22/Folhapress

Senadores, sobretudo, esperavam esse gesto por parte do presidente eleito para destravar a negociação da PEC. Num analogia, diziam que era preciso que o dono da bola a colocasse em campo para conseguir negociar, numa referência à necessidade de Lula chamá-los a contribuir e fazer parte do governo.

Nas reuniões desta semana não foram discutidos espaços em ministérios, mas a expectativa de integrantes dos partidos cobiçados é que esse seja um dos temas dos próximos encontros.

Lula deverá ter ainda esta semana encontros com os presidentes da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG).

Pessoas próximas de Lula dizem que é importante para o governo eleito conseguir garantir a aprovação de uma proposta que abra espaço robusto para investimentos, além de assegurar a manutenção do pagamento de R$ 600 do Auxílio Brasil —que voltará a se chamar Bolsa Família— e outros programas.

Caso consiga a aprovação da PEC, o petista largaria numa situação orçamentária mais confortável, o que o tornaria menos refém do Congresso.

Do lado petista, têm participado dos encontros o senador Jaques Wagner (PT-BA), a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, o deputado José Guimarães (PT-CE), além do ex-prefeito Fernando Haddad (PT-SP), cotado para chefiar o Ministério da Fazenda.

Para formar a base, Lula quer que os partidos integrem blocos formais no Senado e na Câmara. No Senado, o cenário é mais fácil de se concretizar, já que Rodrigo Pacheco tem dialogado bem com o PT desde antes da eleição e não se opõe a essa configuração.

Além disso, o senador Davi Alcolumbre (União Brasil-AP), presidente da CCJ (Comissão de Constituição e Justiça), tem sinalizado querer ocupar a liderança do governo no Senado ou pavimentar o caminho para suceder Pacheco no comando da Casa legislativa.

Já o MDB tende a ser o partido mais próximo de Lula entre os três que estão sendo cobiçados. Terceira colocada na eleição presidencial, a senadora Simone Tebet (MDB-MS) teve papel central no segundo turno do pleito e é cotada para assumir um ministério.

Na Câmara, a perspectiva é mais nebulosa. PSD, União Brasil e MDB vão apoiar a reeleição de Arthur Lira (PP-AL) na presidência da Casa, assim como o PT. Os três partidos, no entanto, têm negociado ingressar no bloco de Lira para angariar espaços na mesa diretora.

Até agora, o MDB foi o único que sinalizou topar ingressar agora num bloco com o PT voltado a formar a base, mas também voltado a eleger Lira. As outras duas legendas têm resistências a se juntar ao PT neste momento.

De acordo com pessoas que acompanham as negociações, Gleisi convidou a União Brasil a integrar o bloco na Câmara durante uma reunião com Alcolumbre e o líder do partido na Casa, deputado Elmar Nascimento (União Brasil-BA) —mas abriu a possibilidade de isso ocorrer formalmente somente após a eleição de Lira.

A avaliação tanto de petistas como de integrantes de partidos aliados é que houve erros na condução da articulação da PEC da Transição, que acabaram por fortalecer Lira e Pacheco antes mesmo de Lula tomar posse.

A leitura é que houve uma antecipação no processo de escolha dos presidentes das Casas, algo que só deveria ocorrer após a formação do bloco da base do governo —que está sendo costurada agora.

Diego Maradona amava Nápoles - e ela o amava de volta

Nos bairros operários de Nápoles, Diego Maradona era mais do que a estrela do time local. Ele era um filho da favela que queria "colocar seis gols no chefe" - e defendia a dignidade de sua cidade.

Maurizio Coppola e Giuliano Granato

Jacobin

Diego Maradona em ação durante uma partida de eliminaórias para a Copa do Mundo da FIFA de 1986 contra o Peru em 23 de junho de 1985 em Lima. (David Cannon / Getty Images)

Tradução / 16 de setembro de 1984 foi o dia em que Diego Armando Maradona descobriu como algumas partes da população italiana se sentiam em relação a Nápoles. Neste primeiro dia de jogo da temporada 1984-85, seu novo clube Napoli jogava fora de casa em Verona – lar de Romeu e Julieta, mas também um centro do “milagre econômico” do pós-guerra da Itália.

Fazendo sua estreia na Série A, Diego imediatamente percebeu no que tinha se metido: “Eles nos saudaram com uma faixa que me ajudou a entender imediatamente que a batalha que o Napoli enfrentou não era apenas sobre futebol; ‘Bem-vindo à Itália’, dizia ele. Era Norte contra Sul – os racistas contra os pobres”.

A Lega Nord – o partido hoje liderado por Matteo Salvini, que fez seu nome com seu racismo contra o Sul – surgiria apenas alguns anos mais tarde. Mas nos estádios do Norte da Itália, era uma tradição estabelecida receber o maior clube do Sul com bandeiras elogiando o Monte Vesúvio – e cantos chamando Nápoles de cidade de “cólera” cujos moradores “precisavam de um banho”.

Nápoles, anos 1980

Na verdade, para muitos italianos, Nápoles era o lar de doenças e desastres naturais. A cidade ainda não havia se livrado da imagem que tinha vindo com um surto de cólera em 1973, e depois de um terremoto em 1980. Esta epidemia havia matado dezenas de pessoas – não exatamente um número catastrófico de mortos. No entanto, esta permaneceria uma página essencial tanto na história napolitana quanto na italiana.

O surto que atingiu a cidade foi um pesadelo impensável que havia se tornado realidade. Uma doença que a maioria imaginava ter sido relegada aos cantos mais pobres e atrasados da Terra estava se espalhando no coração do próspero Ocidente – de fato, em uma de suas cidades mais densamente povoadas. Isto mostrava as contradições do crescimento econômico italiano do pós-guerra, dificilmente uma única história nacional.

Mas também lançou luz sobre as vielas de Nápoles e seus vilarejos – as minúsculas habitações urbanas onde famílias inteiras estavam reunidas na mesma sala. Nos anos 2000, tudo isso seria vendido aos turistas como parte do charme da cidade; mas naquela época, simbolizava as condições pouco higiênicas em que vivia a maioria dos napolitanos. Estas ruas se assemelhavam menos a uma metrópole ocidental rica do que às misérias das favelas da Argentina – um pouco como a Villa Fiorita onde Diego havia nascido em 30 de outubro de 1960.

Nápoles tinha alguma indústria – mas quando Maradona chegou em 1984, estas também estavam mostrando sinais de crise. Era o caso da siderúrgica Italsider no distrito de Bagnoli, na periferia oeste da cidade. Esta grande fábrica estabelecida no início do século XX fecharia seus portões para sempre apenas alguns anos após a partida do número 10.

Em suma, Nápoles era uma cidade assolada pelo desemprego, pelo comércio ilícito de cigarros, mas também pela crescente disseminação de heroína e seringas espalhadas por suas calçadas. Uma cidade onde a maior parte dos jornalistas mortos pela camorra noticiaram as intrigas entre mafiosos, políticos e empresários; uma cidade de guerra de clãs e assassinatos nas ruas. Uma cidade que mais foi descrita como um inferno sem esperança; uma cidade que milhares de migrantes saem todos os anos, para procurar trabalho nas fábricas do norte da Itália, França ou Alemanha.

Diego, o redentor

AAlemanha também seria, como aconteceu, anfitriã do único triunfo internacional do Napoli. Em 17 de maio de 1989, o time estava em Stuttgart para a partida de volta da final da Copa da UEFA. O Azzurri havia vencido a partida em casa no Stadio San Paolo por 2×1, com gols de Maradona e Careca. O artilheiro adversário, Maurizio Gaudino, era natural de Brühl, na Alemanha Ocidental, mas também filho de dois imigrantes da Campânia (região em torno de Nápoles) que tinham ido para lá para trabalhar.

Cerca de 30.000 dos 67.000 presentes no Neckarstadion para a segunda etapa eram italianos. Trabalhadores de colarinho azul na Porsche, Daimler, Bosch ou IBM, eles também tinham deixado para trás a pobreza e a absoluta falta de futuro do sul da Itália – partido ao longo de um verdadeiro “caminho de esperança”, assim como os pais de Gaudino haviam feito.

Seus pais eram provavelmente os únicos dois italianos no estádio torcendo pela VfB Stuttgart naquela noite. Quando o apito final soou – encerrando em 3-3, e assim uma vitória agregada para Napoli – todos os outros estavam comemorando. Não se tratava apenas de um jogo. Era também orgulho – e a certeza que no dia seguinte eles podiam passar pelos portões da fábrica de cabeça erguida.

Este orgulho veio com o riscatto – redenção, mas também libertação. Se você perguntar à maioria dos sulistas de hoje o que o número 10 representou para eles, essa é a palavra que eles usariam. Os napolitanos diriam ci ha levato gli schiaffi da faccia – ao pé da letra, “ele tirou os tapas do nosso rosto”. Algo fisicamente impossível, mas que devemos levar em conta figurativamente: ele nos libertou dos insultos que enfrentamos, nos redimiu, conseguiu nossa vingança sobre aqueles que nos fizeram mal.

Um mural de Maradona em Nápoles. (Wikimedia Commons)

Colocando o chefe para trás

Se quiséssemos fazer isso, então não haveria rival maior que a Juventus – e não apenas porque é o clube italiano que possui mais dinheiro. Juve é propriedade dos Agnellis, a família mais importante do capitalismo do norte da Itália e os proprietários da FIAT de Turim (hoje, Fiat Chrysler Automobiles). A partir dos anos 1950, milhares e milhares de calabrianos, sicilianos e napolitanos trabalharam nas fábricas da FIAT em Mirafiori.

Em 3 de novembro de 1985, a Juve chegou a San Paolo, em Nápoles. Recebeu um pontapé livre na caixa, com a parede do clube de Turim a apenas cinco metros de distância. Os jogadores do Napoli protestaram contra o árbitro, mas ele não os fez recuar. Maradona disse a um colega do time: “Eu vou chutar de qualquer maneira, ainda vou marcar”. Ele fez.

No Napoli, Diego venceu muitas vezes a Juve. Ele mesmo disse ao cineasta Emir Kusturica o que isso significava para Nápoles: “Havia a sensação de que o Sul não conseguia vencer o Norte. Nós jogamos contra o Juventus em Turim e marcamos seis. Você sabe o que significa quando um clube do Sul põe seis para além de Agnelli!”

Para muitos napolitanos – e para muitos sulistas – vencer a Juventus significava vencer o Norte, que por sua vez significava vencer os ricos. Como quando o Napoli ganhou o título da Série A em 1989-1990, derrotando o AC Milan, o clube de propriedade de uma estrela em ascensão do capitalismo italiano chamado Silvio Berlusconi. Logo em seguida, uma bandeira muito significativa apareceu em Nápoles: “O rico Berlusconi agora chora também”.

Qualquer um que tente captar a reação dos últimos dias, totalizando metas e títulos como um contador, não entendeu nada sobre a relação de Diego com os napolitanos. A contabilidade foi, no entanto, o que inspirou Corrado Ferlaino, presidente do clube na era Maradona. Quando o jogador conhecido como o pibe de oro (“menino de ouro”) procurou organizar uma partida beneficente para apoiar um menino cuja família não podia pagar por uma operação médica, Ferlaino rejeitou a ideia com raiva.

Diego desafiou a oposição de Ferlaino – ele pagou do próprio bolso e convenceu seus companheiros de equipe a ajudarem. Isto fazia sentido: afinal, quando ele chegou ao clube em julho de 1984, Maradona havia dito: “Eu quero me tornar o ideal para as crianças pobres de Nápoles, porque elas são exatamente como eu era em Buenos Aires”. A partida foi jogada em um campo lamacento; Maradona e seus companheiros se aqueceram no estacionamento entre os carros e os ciclomotores. Vinte milhões de liras foram levantadas, permitindo que a partida fosse adiante.

Este é um episódio mínimo na carreira de um esportista – mas não na vida de um homem. E em Nápoles, o cebollita da Villa Fiorita não era apenas Maradona, o maior jogador de futebol da história. Ele também era Diego, o ser humano – frágil, sorridente, inconstante, um viciado em cocaína, um mulherengo, um altruísta.

Diego é o povo

Diego Armando Maradona, como atleta e como homem, era fundamentalmente de dois lados, uma contradição ambulante. E o povo de Nápoles se identificou com ele como nenhum outro na história recente. Nenhum atleta ou político foi capaz de construir tal conexão com o povo como Diego o fez.

O notável, no entanto, é que esta identificação não se baseia apenas em vê-lo em ação. Em 1991, os vestígios de cocaína encontrados em sua amostra de urina para um teste de drogas o forçaram a fugir do país. Mas a identificação com Diego se manteve firme, mesmo nos napolitanos nascidos após essa data.

Sem dúvida, alguns testemunharam mais tarde suas façanhas em vídeo ou, mais recentemente, online. Mas mesmo os napolitanos que nunca o viram jogar, seu “gol do século”, a bola sob seus pés ou a “mão de Deus” – na verdade, mesmo aqueles que não entendem ou gostam de futebol – reconhecem Diego como um dos seus, um símbolo.

Em sua pessoa viva, como um humano imperfeito, irregular e áspero, Diego encarnou seu povo sem nunca procurar “representá-lo”. Mas nisto, ele também se livrou de seu caráter estritamente “nacional”. Vimos isso durante a Copa do Mundo de 1990, realizada na Itália. Em uma ironia da história, a semifinal contra a Itália foi disputada no San Paolo – “sua” terra natal, diante da “sua” multidão.

Milhares de napolitanos ficaram arrasados – que país eles deveriam apoiar? A maioria escolheu a nacionalidade em seus passaportes. Mas muitos escolheram o outro lado e Diego – quer eles mantivessem o silêncio, quer se vangloriassem disso. Ele havia dito antes do jogo: “Acho de mau gosto exigir que os napolitanos sejam italianos por uma noite após 364 dias por ano são tratados como terroni” – a palavra desdenhosa para os sulistas atrasados e rústicos. Para muitos, seu amor pelo homem que tinha trazido dignidade, orgulho e vitória a Nápoles veio primeiro.

Não só Nápoles

Hoje, as pessoas em toda a Pátria Grande – uma América Latina que ele defendeu e ganhou respeito em campo – estão de luto por Maradona. 48 horas após sua morte, um mural retratando-o até mesmo apareceu em meio às ruínas do Idlib, em uma Síria devastada por anos de guerra. Ao redor do mundo, as pessoas podiam falar umas com as outras na língua franca de seu nome: uma língua que abraçava seu esporte, seu espírito de rebelião e, de fato, a aspereza com que ele falava aos jornalistas e aos poderosos – algo que grande parte da humanidade silenciosamente deseja que eles também pudessem fazer.

Mas a efusão de emoções nos últimos dias também provoca um grande perigo, justamente por ser tão unânime. Há sinais de uma espécie de “polimento” da imagem de Maradona, idolatrada até mesmo por aqueles que eram de fato seus inimigos constantes. O aparente “respeito” pelos recém falecidos também corre o risco de se esgueirar em uma tentativa de neutralizar, tirando dele os elementos que os círculos mais “íntegros” consideram prejudiciais. Ao marginalizar e estigmatizar essas partes da história, o que corre o risco de desaparecer é o Diego “do povo” com todas as contradições que ele encarna – ao invés disso, tornando-o uma espécie de figura santa, mais útil para a comercialização e venda de produtos.

Como disse ao jornalista Gianni Minà em uma maravilhosa entrevista de 1988, isto foi algo que ele lutou desde o início de sua carreira no futebol: abrir mão de seus elementos imperfeitos mataria sua alma. E sua alma era a de um homem do povo, poderoso mas falível, como os gregos. Transformá-lo em apenas mais uma estátua só o vai neutralizar o que ele representava. Mas o que devemos manter vivo é a dialética que se moveu nele – sua chama ardente de humanidade.

Colaboradores

Maurizio Coppola trabalha como jornalista freelancer, tradutor e intérprete. Ele é membro do Potere al Popolo e mora em Nápoles.

Giuliano Granato é um trabalhador de Nápoles, demitido por seu ativismo sindical. Ele é o coordenador nacional do Potere al Popolo.

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Igor Gielow

Folha de S.Paulo

A decisão conjunta dos comandantes das Forças Armadas de deixar o cargo antes do fim do ano obrigou o presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), a acelerar a indicação de um novo ministro da Defesa para driblar uma crise militar logo no começo de seu governo.

Nas avaliação de dois ex-ministros da pasta, o anúncio extraoficial de que Marco Antônio Freire Gomes (Exército), Carlos de Almeida Baptista Junior (Força Aérea) e Almir Garnier (Marinha) vão deixar seus comandos na última quinzena de dezembro equivale a uma declaração de insubordinação.

O comandante do Exército, Feire Gomes, presta continência a Bolsonaro em evento na Academia Militar das Agulhas Negras, no Rio - Tércio Teixeira - 26.nov.2022/AFP

A intenção foi revelada na semana passada pelo jornal O Estado de S. Paulo, e confirmada pela Folha. A decisão foi combinada com Jair Bolsonaro (PL), durante um dos encontros dos comandantes com o presidente, que só deixou a depressão pós-derrota para ir a um evento militar no qual entrou mudo e saiu calado, no sábado (26).

Para os dois ocupantes da Defesa, de governos diferentes, os chefes militares sinalizaram para a tropa que não aceitam integralmente a autoridade de Lula. Por óbvio, isso não é um golpe, mas abre um precedente perigoso nos escalões inferiores.

Um oficial-general da cúpula militar relativiza a situação, dizendo que na verdade o gesto dos comandantes visou facilitar a transição: os novos chefes seriam indicados por Lula, ainda que a caneta de sua nomeação fosse a de Bolsonaro.

É a essa visão que o time petista se agarrou. Não bastassem as dificuldades no relacionamento com o mercado, agitado pelas declarações pouco responsáveis do ponto de vista fiscal de Lula e a pela perspectiva de ver Fernando Haddad (PT) liderando a economia, o eleito se viu obrigado a manobrar no espinhoso campo fardado.

A indicação do ex-deputado e ex-ministro do Tribunal de Contas da União José Múcio Monteiro para a Defesa é dada como certa nos meios militares. O político foi incluído no time de transição e participou de uma primeira reunião nesta segunda (28).

Múcio é visto como habilidoso por oficiais-generais, ainda que sem experiência nas especificidades da pasta. O mais importante, na visão desses fardados, é que ele não é um petista raiz como Jaques Wagner, ex-titular da Defesa que era o preferido no PT para o posto.

Se ele for mesmo anunciado na semana que vem, deverá escolher os novos comandantes e trazer para si a paternidade da indicação. Os favoritos, na linha de evitar marola política, são os mais antigos oficiais-generais de cada Força: Julio César de Arruda no Exército, Marcelo Kanitz Damasceno na FAB e Aguiar Freire, na Marinha.

Ainda que a saída Múcio evite um agravamento do mal-estar entre militares e Lula, ele permanecerá. Como escreveu em livro-depoimento o mais influente comandante militar desde a redemocratização, o ex-chefe do Exército Eduardo Villas Bôas, o PT virou o alvo preferencial de boa parte do estamento fardado.

Contribuíram para isso tanto as revelações de corrupção da Operação Lava Jato quanto a insatisfação institucional com o governo Dilma Rousseff (PT), que promoveu a Comissão da Verdade para apurar os crimes da ditadura de 1964 sem incluir o que os militares chamam de "outro lado" —as ações da luta armada contra o regime.

Houve também a cooptação promovida por Bolsonaro, visto como um militar medíocre e manipulável por importantes generais da reserva que aderiram à sua candidatura.

No poder, o segundo aspecto mostrou-se um erro de avaliação, compensado por uma série de benesses: a integração de oficiais-generais à administração, a implantação de um protelado plano de carreira e a criação de uma reforma previdenciária favorável. A militarização da Esplanada está com os dias contados.

Há também o fator político puro, encarnado nos protestos de bolsonaristas pedindo um golpe militar para evitar a posse de Lula na frente de quartéis pelo Brasil. Se reclamar da derrota é do jogo, incitar crime tipificado não é, mas ainda assim os três comandantes militares divulgaram uma nota conjunta no dia 11 defendendo o que seria o caráter pacífico dos atos e criticando indiretamente o Judiciário.

Além do antipetismo, outro traço que a cúpula fardada compartilha com o bolsonarismo é a desconfiança das altas cortes, vistas como ativistas, Tribunal Superior Eleitoral à frente. A nota foi criticada pela presidente do PT, Gleisi Hoffmann, o que ajudou a azedar o clima.

Ele nunca foi bom nos anos recentes: desde que Villas Bôas, pai da doutrina que normalizou a volta dos militares à política, ameaçou o Supremo na véspera da votação de um habeas corpus que poderia ter evitado os 580 dias de prisão de Lula, em 2018, não há interlocução decente entre o petista e os militares.

No ano passado, quando recuperou seus direitos políticos, Lula até enviou emissários para tentar estabelecer um diálogo por meio de generais da reserva. Deu com a cara na porta, até porque Bolsonaro proibiu qualquer conversa de setores da ativa com o petista.

A cúpula atual, herdeira da crise militar em que o presidente demitiu ministro da Defesa e os três comandantes em 2021, até sinalizou a normalidade institucional para Lula no começo deste ano: o chefe da FAB, em entrevista à Folha, até reforçou a obviedade de que prestaria continência ao petista, se eleito.

Só que o acirramento dos ânimos, ampliado com o apoio da Defesa à campanha golpista contra as urnas eletrônicas de Bolsonaro, não abriu canais. Tanto é assim que não haverá grupo do setor de fato na transição de governo. Lula sacou dois ex-comandantes de sua gestão, Enzo Peri (Exército) e Juniti Saito (FAB), além do general Gonçalves Dias, que foi seu chefe de segurança no Planalto e segue na função fora dele, apenas para lustrar as conversas.

28 de novembro de 2022

PEC da Transição é protocolada com Bolsa Família fora do teto por 4 anos, mas PT admite negociar

Marcelo Castro disse que proposta inicial, que previa tempo indeterminado, foi revista devido a "muitas reações"

Idiana Tomazelli, Thaísa Oliveira, Danielle Brant e Marianna Holanda

Folha de S.Paulo

O senador Marcelo Castro (MDB-PI) protocolou nesta segunda-feira (28) o texto da PEC (proposta de Emenda à Constituição) da Transição, que autoriza o governo do presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), a excluir as despesas com o programa Bolsa Família do teto de gastos por um período de quatro anos.

O texto também prevê a realização de investimentos fora do limite em caso de arrecadação de receitas extraordinárias. Na prática, a proposta não tem um valor específico para essas despesas, mas estimativas do próprio PT apontam para um gasto extrateto de até R$ 198 bilhões com a PEC.

A medida é negociada pelo governo eleito para conseguir manter o benefício mínimo de R$ 600 do Bolsa Família a partir de 1º de janeiro, instituir o pagamento adicional de R$ 150 por criança de até seis anos e honrar outros compromissos de campanha do petista, como a valorização do salário mínimo e a retomada de investimentos.

Senador Marcelo Castro e vice-presidente eleito, Geraldo Alckmin, em reunião no Congresso - Adriano Machado - 16.nov.2022/Reuters

Apesar de o texto apresentado prever a retirada do Bolsa Família do teto de gastos por quatro anos, integrantes da equipe de transição já admitem negociar uma série de pontos para chegar a uma proposta de maior consenso no Parlamento.

Como mostrou a Folha, o PT discute fixar no texto da PEC da Transição o limite exato para gastos extras no ano de 2023 para ampliar o Bolsa Família e recompor o Orçamento do ano que vem. O formato é defendido por alguns parlamentares e também tem a simpatia do grupo de economia na transição.

A referência atual para esse valor é o cálculo de R$ 150 bilhões feito pelo time da transição como indicativo da margem de expansão das despesas para igualar o que deve ser gasto em 2022, último ano da administração de Jair Bolsonaro (PL).

Um gasto adicional de R$ 150 bilhões manteria constante a relação entre despesa e PIB (Produto Interno Bruto), medida usada para avaliar a dimensão das políticas públicas em comparação ao tamanho da economia. A conta atual é de que a relação despesa/PIB deve ficar em 19% neste ano, enquanto o Orçamento de 2023 foi enviado originalmente com 17,6%.

Outro ponto em negociação é o prazo de duração das medidas excepcionais. Como mostrou a Folha, a cúpula do Congresso indicou que a PEC só tem chances de ser aprovada com validade de dois anos, e interlocutores do governo eleito também admitem ceder nesse ponto.

Castro, que também é relator do Orçamento de 2023, afirmou nesta segunda que "tudo isso vai ser fruto de intensas negociações" e que a proposta inicial, que não estipulava prazo para a exclusão de despesas do teto, foi revista "devido a muitas reações" do Congresso.

"O que está sendo proposto é o prazo de quatro anos. Inicialmente havia a ideia de ser perene a excepcionalização do teto de gastos do Bolsa Família, mas, devido a muitas reações que houve, chegou-se à proposta de quatro anos", declarou na chegada ao CCBB (Centro Cultural Banco do Brasil), sede da transição.

"É claro que tudo isso vai ser fruto de intensas negociações, e quem cobre o Congresso Nacional sabe que dificilmente uma matéria entra no Congresso e sai da mesma maneira", disse. "Nós combinamos com líderes que nós daríamos entrada e, à medida que a PEC for tramitando na Comissão de Constituição e Justiça, nós vamos então buscando um texto comum."

O líder do PT no Senado, Paulo Rocha (PT-PA), também disse nesta segunda que o PT está "disposto a conversar". "A PEC vem com a proposta de quatro anos, e nós estamos dispostos a buscar a mediação. O Lula está tomando essas iniciativas, inclusive de vir conversar, para valorizar a boa política e o Parlamento brasileiro", afirmou.

"Fato é que nós dissemos com todas as letras que um ano não era possível, que isso inviabilizava o funcionamento. Porque, na prática, um ano é seis meses, já que o governo tem que mandar a nova LDO [Lei de Diretrizes Orçamentárias] em abril para o Congresso Nacional", afirmou.

A minuta inicial da PEC, apresentada pelo vice-presidente eleito Geraldo Alckmin (PSB) em 16 de novembro, previa a retirada do Auxílio Brasil —que voltará a ser chamado de Bolsa Família— da regra fiscal por tempo indeterminado. No texto protocolado nesta segunda, a lógica foi mantida, mas o prazo foi ajustado para quatro anos.

Outros pontos apresentados no dia 16 foram mantidos. O texto da PEC permite, por exemplo, a destinação de uma parcela das receitas extraordinárias (obtidas, por exemplo, com bônus de assinatura de leilões de petróleo) para custear investimentos públicos fora do teto de gastos. O argumento é que essa despesa teria uma espécie de lastro fiscal, ou seja, só seria realizada mediante o excesso de arrecadação.

A proposta, porém, estipula um limite para essa parcela, equivalente a 6,5% do excesso de arrecadação verificado em 2021 —o que resulta em um valor seja de até R$ 23 bilhões.

A PEC também inclui um dispositivo que permite ao governo usar recursos obtidos por meio de doações na execução de projetos ambientais. A articulação foi feita no dia em que Lula discursou na COP27, a conferência do clima das Nações Unidas, cobrando recursos dos países ricos e colocando o combate à crise climática como prioridade em seu novo governo.

A avaliação é que não faz sentido limitar essas despesas, uma vez que retirá-las do teto estimula parcerias e até mesmo viabiliza novas fontes de financiamento para gastos estratégicos. O Fundo Amazônia, por exemplo, hoje tem dificuldade para estabelecer parcerias com a União diante da falta de espaço no Orçamento.

A mesma lógica seria aplicada às universidades federais, que teriam autorização para executar despesas fora do teto caso elas sejam bancadas com receitas próprias, como doações ou captações. Hoje, esse tipo de gasto fica sujeito ao limite, o que gera reclamações das instituições e engessa projetos de pesquisa.

Sem compensação por elevação de receitas ou corte de outros gastos, a ampliação de despesas na magnitude pretendida pelo PT elevaria o déficit das contas em 2023. O Orçamento projeta oficialmente um rombo de R$ 63,5 bilhões, mas o governo atual atualizou essa estimativa para um número menor, embora ainda negativo em R$ 40,4 bilhões.

A existência de déficits públicos indica que o governo está financiando despesas por meio de emissão de um volume maior da dívida brasileira. O custo fica próximo da taxa básica de juros da economia, a Selic, hoje em 13,75% ao ano.

Com a PEC, o PT pretende resolver o imbróglio da falta de verbas em 2023 e ganhar tempo para discutir a nova regra fiscal que substituirá o teto de gastos. Como o debate sobre o tema é visto como complexo, pode não haver tempo suficiente para aprovar a nova legislação que limita despesas antes da discussão do Orçamento de 2024 –o projeto de lei de diretrizes orçamentárias de 2024, por exemplo, precisa ser entregue ao Congresso em abril de 2023 (em menos de cinco meses).

Uma PEC precisa da assinatura de 27 senadores, um terço da Casa, para começar a tramitar. Castro afirmou que as assinaturas serão apresentadas até esta terça (29).

Integrantes do governo eleito avaliam que é preciso iniciar as discussões na CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) do Senado até o final desta semana para haver tempo hábil para a votação. Castro ressaltou nesta segunda que a PEC deve ser aprovada no Senado e na Câmara até o dia 16 de dezembro, a tempo de fazer os ajustes no Orçamento de 2023.

Após a queda de Sam Bankman-Fried, toda a fantasia cripto está se desfazendo rapidamente

Da próxima vez que uma bolha especulativa estiver inflando massivamente em torno de um novo ativo sofisticado, como criptomoeda, e os anunciantes do carnaval financeiro gritarem que isso mudará tudo, lembre-se de Sam Bankman-Fried e da rapidez com que todas as suas promessas provaram ser besteiras.

Hadas Thier



Tradução / O CEO da FTX, Sam Bankman-Fried, participa de uma coletiva de imprensa na FTX Arena, no centro de Miami, em 4 de junho de 2021. (Matias J. Ocner / Miami Herald / Tribune News Service via Getty Images)

Que diferença faz um ano. Por esta altura no ano passado, as criptomoedas estavam na berra. Para onde quer que nos virássemos, as celebridades estavam a alardeá-las - desde Kim Kardashian(link is external) a Spike Lee,(link is external) passando por Matt Damon(link is external). NFTs, um desdobramento cripto que atribui certificados de propriedade blockchain a bens digitais, disparou para patamares bizarros(link is external) quando os cartoons de macacos se vendiam por milhões. E ser um agente imobiliário para terrenos virtuais tornou-se uma carreira real(link is external). Entretanto, a mais antiga e mais popular criptomoeda, Bitcoin, prosseguia a sua louca corrida de valorização de preço, atingindo um pico de 64.000 dólares em novembro passado.

Hoje, o valor da Bitcoin está a cair de volta à terra, agora á volta dos $16.000, dependendo do dia (ou hora). O comércio de NFT praticamente entrou em colapso(link is external). E várias celebridades estão a ser investigadas por promoverem a agora falida bolsa cripto FTX num processo judicial(link is external) de ação coletiva. Os últimos meses testemunharam uma série de dramas no universo cripto, derrubando os principais intervenientes - incluindo a Terra, uma "moeda estável"; a Celsius, uma empresa de empréstimos em cripto; e a Three Arrows Capital, um hedge fund cripto. Agora a FTX, anteriormente a terceira maior bolsa de criptomoeda, entrou em colapso a uma velocidade vertiginosa - e com ela as finanças e a reputação do menino de ouro da cripto, Sam Bankman-Fried, também conhecido por SBF.

Em poucos dias, no início de novembro, a FTX passou de uma empresa avaliada em 32 mil milhões de dólares, com investimentos de empresas como a BlackRock e a Sequoia, para a falência. E a SBF passou do convívio com Bill Clinton e Gisele Bündchen para "um destroço em queda", nas suas próprias palavras(link is external).

A 2 de novembro, um relatório(link is external) da CoinDesk descobriu que a FTX tinha utilizado os seus próprios tokens (FTT), uma espécie de moeda interna impressa pela própria FTX para ser utilizada no seu mercado, para inflacionar o seu balanço e o da sua empresa comercial associada, a Alameda Research. As revelações apontavam também para o provável cenário de que Bankman-Fried tinha utilizado milhares de milhões de dólares de ativos de clientes FTX para financiar as apostas financeiras da Alameda através de um mecanismo de contabilidade "furtivo" que canalizava milhares de milhões em fundos FTX para a Alameda sem alertar os auditores ou despoletar avisos da contabilidade.

FTX: o que aconteceu no mais recente colapso no mundo cripto?

Quatro dias após o relatório da CoinDesk, Changpeng Zhao, o CEO da Binance, a maior bolsa cripto (e ela própria sob investigação do Departamento de Justiça dos EUA por lavagem de dinheiro e violações de sanções) anunciou que iria vender o seu stock de tokens FTT. Seguiu-se o equivalente cripto de uma corrida aos bancos, com mais de 6 mil milhões de dólares de fundos levantados em setenta e duas horas. Zhao ofereceu-se então para comprar a FTX a 8 de novembro, mas no dia seguinte retirou-se do negócio, tweetando: "Um dia triste". Tentei, mas" com um emoji de cara chorosa.

A 11 de novembro, a FTX declarou falência, deixando para trás um buraco de 8 mil milhões de dólares nas contas dos seus clientes. Para acrescentar ao drama, logo após a falência, um hacker transferiu centenas de milhões de dólares para fora da empresa.

Como parte do processo de falência, John Ray III foi nomeado o novo CEO da FTX. Ray é um advogado de insolvência com uma fama que inclui a liquidação da Enron em 2001. Ele disse no processo de falência: "Nunca na minha carreira vi uma falha tão completa dos controlos empresariais e uma ausência tão completa de informação financeira de confiança como a que ocorreu aqui". A experiência de Ray é certamente relevante, uma vez que as operações da FTX - recorrendo a avaliações fictícias e manipulações contabilísticas para aumentar artificialmente os balanços - têm semelhanças evidentes(link is external) com as da Enron. Neste momento, os detalhes caóticos dos "balanços(link is external)" da FTX e a sua cultura empresarial tóxica estão à vista de todos - descritos pelos meios de comunicação social como por um lado um tribunal feudal(link is external), por outro um bando de miúdos à solta(link is external) nas Bahamas.

Mas não é preciso ter uma longa memória para nos lembrarmos da imprensa, dos políticos e das celebridades a bajularem SBF. Recuemos a... julho, por exemplo, quando a Economist publicou um artigo(link is external) chamado "O último homem de pé na cripto", e perguntou: "Será Sam Bankman-Fried o John Pierpont Morgan da cripto? A comparação com JP Morgan, concluíram eles, "é surpreendentemente instrutiva". Outros compararam SBF ao investidor bilionário Warren Buffett, e há dois meses(link is external) elogiaram a FTX por ter emergido como um suporte para a uma indústria em queda generalizada. O império cripto de SBF foi amplamente considerado como sendo o recanto mais legítimo da criptofinança.

Advogados da FTX procuram formas de pagar aos devedores depois da falência

Trinta anos de idade e encantadora ou irritantemente desgrenhado, dependendo da sua perspetiva, Sam Bankman-Fried era o rapaz maravilha(link is external) da cripto, um docinho liberal(link is external), e por acaso o segundo maior doador(link is external) do Partido Democrata para além de ser um grande financiador da moda filosófica do "altruísmo efetivo(link is external)". Este verão, ele esteve na conferência do FTX nas Bahamas, sentado num painel com os seus calções e t-shirt ao lado de Bill Clinton e Tony Blair. O impacto do fracasso cósmico de SBF vai para além do choque que proporciona aos seus fãs liberais de outrora e para além das consequências financeiras que impõe na paisagem cripto mais vasta. Ele afeta a credibilidade do próprio projeto blockchain.

A cripto está de saída? É demasiado cedo para dizer. Mas se a indústria consegue coxear até à próxima bolha especulativa lhe reinjetar vida, ou se rasteja de volta para as periferias da finança, lembre-se deste momento em que as afirmações absurdas da cripto sobre revolucionar a finança e o mundo foram desmascaradas como sendo pouco mais do que uma burla.

O Dia em que a Música Cripto Morreu

As criptomoedas ganharam, com razão, reputação como ferramentas para atividades criminosas, burlas e pirataria. Os primeiros dias da Bitcoin foram marcados por empreendimentos como a Silk Road, um mercado de bens ilícitos que utilizam bitcoins. A Silk Road foi encerrada pelo FBI, e mais de mil milhões de dólares de bitcoin foram apreendidos. O seu fundador, Ross Ulbricht, usando o pseudónimo "Dread Pirate Roberts", foi preso por, entre outras coisas, ter contratado os assassinatos de seis pessoas que ele acreditava terem roubado as suas bitcoins ou o terem traído de outro modo.

Mas há mais de uma década que a história de Bitcoin e outras criptomoedas tem sido repleta de outros esquemas(link is external) deste tipo, grandes e pequenos. A ascensão e queda de SBF e do seu criptoimpério são tão significativas porque ele era amplamente considerado como o tipo que ajudaria a cripto a tornar-se mainstream. Isto não se deve apenas às suas credenciais liberais e do "altruísmo efetivo", mas porque ele era um defensor de alguma regulamentação da indústria. O argumento de Bankman-Fried para um quadro regulamentar "leve(link is external)" tornou-o impopular entre os libertários mais duros da cripto. Mas, para que os principais investidores apostassem a fundo na cripto, o Faroeste na blockchain teria de ser pelo menos um pouco domado e protegido.

Criptocenas

Quaisquer que sejam as promessas antissistema de muitos dos proponentes da cripto, no fim das contas a viabilidade das criptomoedas depende do investimento em larga escala e da adoção generalizada. Para que as moedas Bitcoin e outras moedas digitais aumentem de valor - já para não falar de serem usadas como moeda real - os Estados e as instituições financeiras tão ridicularizadas pelos proponentes da cripto têm de ser envolvidos. É por isso que os promotores da cripto celebraram entusiasticamente a adoção da criptomoeda por El Salvador(link is external). É por isso que as "baleias" bitcoin, os maiores investidores na moeda, são tratados com tanta reverência.

O que é que SBF tinha em mente com uma regulação "leve"? Como outros assinalaram(link is external), ele queria antecipar-se a medidas regulamentares mais agressivas da Securities and Exchange Commission, posicionando a mais pequena Commodities Futures Trading Commission (CFTC) como regulador da cripto. A própria FTX estava registada e licenciada pela CFTC e tinha contratado muitos antigos funcionários da CFTC, segundo(link is external) o presidente da Better Markets, Dennis Kelleher. A relação acolhedora entre a FTX e a comissão ajudou a FTX a utilizar o "conhecimento, influência e acesso dos antigos funcionários da CFTC na agência e em Washington para mover a agenda da FTX". Também levou a comissão a agir, nas palavras de Kelleher, como "uma líder de claque para a cripto".

Nos seus momentos mais honestos (ou desesperados), SBF admitiu(link is external) que pedir mais regulamentação era pouco mais do que uma manobra de relações públicas. Mais espantosamente, ele quase admitiu que a cripto era, em grande parte, um esquema Ponzi. No podcast Odd Lots(link is external) da Bloomberg em abril, ele explicou como funciona a mineração de liquidez cripto [yield farming], numa versão em "brinquedo":

Começa-se com uma empresa que constrói uma caixa e, na prática, esta caixa, provavelmente enfeitam-na para parecer um protocolo que vai mudar o mundo, que vai substituir todos os grandes bancos em trinta e oito dias ou o que quer que seja. Talvez, por agora, ignoremos o que ela faz ou finjamos que não faz literalmente nada. É apenas uma caixa.

A partir daí, às pessoas que põem dinheiro na caixa é prometido um X token. E "no mundo em que estamos", continuou ele, "se fizerem isto, toda a gente vai ficar tipo, 'Ooh, um token da caixa'". Talvez seja fixe. Se comprares isso... isso vai chegar ao Twitter e terá um valor máximo de mercado de 20 milhões de dólares". As pessoas começam a ganhar dinheiro com o valor crescente dos seus X tokens, e empresas sofisticadas acabam por se juntar, acrescentando mais dinheiro à caixa.

Portanto, tens esta caixa e é um bocado parvo, pois, qual é o objetivo, certo? Esta caixa vale zero, obviamente. Nem se pode ficar com este boné ou assim. Mas por outro lado, se toda a gente pensa agora que esta caixa de tokens vale cerca de um mil milhões de dólares de valor de mercado, é isso que as pessoas a valorizam. [...] Todos vão apostar no mercado.

Durante o podcast, o colunista da Bloomberg Matt Levine foi apanhado de surpresa pelo cinismo da descrição de SBF. No entanto, a conversa prosseguiu com todos a concordarem que este tipo de cenário acontece, de facto, na prática. Ao longo do podcast, e nos meses seguintes, a Bloomberg e outros meios de comunicação social continuaram a recorrer a SBF como uma espécie de génio nerd. Entretanto, ele e o pessoal da FTX viam-se a si próprios, nas palavras de um funcionário de longa data(link is external), como "os bons da fita".

Agora o tom da conversa mudou, e mudou fortemente. SBF está a levar pancada de todos os lados. E os principais comentadores financeiros estão a referir-se(link is external) à cripto como apenas "dinheiro inflacionado a esvair-se na especulação". E é improvável que as bolsas rivais da FTX estejam numa situação financeira muito melhor ou mais legítima.

O colapso da FTX lançou ondas de choque para toda a indústria cripto, com o preço da Bitcoin e de outras moedas a cair rapidamente. Mas mais do que isso, pôs o último prego no caixão de uma ideia: a de que a cripto é o dinheiro do futuro. Se o recanto mais "legítimo" da cripto é também um esquema Ponzi, o que é que sobra a que possamos recorrer?

Colaborador

Hadas Thier é um ativista em Nova Iorque e autor de A People's Guide to Capitalism: An Introduction to Marxist Economics(link is external). Artigo publicado em Jacobin(link is external). Traduzido por Luís Branco para o Esquerda.net.

27 de novembro de 2022

Elon Musk está destruindo os mitos do Vale do Silício diante de nossos olhos

O mito do Vale do Silício enaltece a garra e o talento de seus campeões tecnológicos. Mas o caos da aquisição do Twitter por Elon Musk revelou que não há gênio ou elaborado jogo de xadrez multidimensional por trás da cortina: apenas capitalistas comuns.

Luke Savage


A conta do Twitter de Elon Musk exibida na tela de um telefone, com uma ilustração de Musk ao fundo. Bruxelas, Bélgica, 19 de novembro de 2022. (Jonathan Raa / NurPhoto via Getty Images)

Tradução / O mito do Silicon Valley Apregoa a determinação e o talento dos seus campeões tecnológicos. Mas o caos da tomada de controle do Twitter por Elon Musk revelou que não há nenhum génio ou jogo elaborado de xadrez multidimensional por detrás da cortina: apenas capitalistas da vida quotidiana.

Conta de Elon Musk no Twitter exibida num ecrã de telefone, com uma ilustração do Musk em segundo plano. Bruxelas, Bélgica, 19 de Novembro de 2022. (Jonathan Raa / NurPhoto via Getty Images)

A ideologia dirigida ao público do Silicon Valley é ao mesmo tempo potente e sedutora. Através da fusão da tecnologia e dos mercados sem restrições, ou pelo menos é o que conta a história, uma cultura de incessante agitação e radical tomada de riscos impulsiona a inovação sem fim. Tal inovação, por sua vez, traz consigo melhores produtos de consumo, novas comodidades quotidianas e, claro, novas oportunidades para criar riqueza. Na sua forma mais utópica, porém, a promessa final do Silicon Valley é mais revolucionária – oferecendo nada menos que uma espécie de transcendência secular que fará que a nossa espécie escape aos limites da sua existência planetária e, talvez, até aos limites dos nossos corpos mortais também.

Diz-se, tipicamente, que o principal ingrediente deste cocktail futurista é uma raça rara de indivíduos excepcionais que sobem ao topo através de uma combinação de génio excêntrico e de determinação pessoaal. A ascensão destes super-homens [übermenschen] contribui para a melhoria da humanidade, e a sua incomensurável riqueza representa uma recompensa proporcional ao valor social que eles criaram.

Numa era de política estagnada e de crescente ansiedade sobre o futuro, é uma história atractiva e até reconfortante. É também uma história que poucas figuras têm aproveitado com tanto sucesso como Elon Musk – que durante anos tem projectado uma imagem de génio prometeico que inúmeros milhões têm considerado singularmente convincente. Tendo em conta o comportamento atual de Musk, a sua constrangedora presença nos meios de comunicação social, as chamadas de revisão incessantes dos produtos da sua empresa (sendo o mais recente esta mesma semana com impacto em 322.000 viaturas), e a sua ladainha de declarações grandiosas que não têm dado em nada, podem ser por vezes difíceis de perceber. No entanto, o período de cerca de um mês que decorreu desde a sua aquisição do Twitter causou provavelmente mais danos à sua imagem – e aos mitos fraudulentos e interesseiros do Silicon Valley em que se inspira – do que qualquer uma destas coisas alguma vez poderia ter feito.

Segundo tudo aparenta, a estratégia empresarial do Musk para o Twitter tem sido até agora tão genérica e sem imaginação como se tem podido ver. Confrontado com o declínio das receitas de uma empresa que não tem tido lucros desde 2019, adoptou imediatamente uma estratégia de monetização e cortes em duas vertentes – aproximadamente o equivalente do primeiro ano da escola de negócios de “comprar barato, vender caro” no seu nível de sofisticação. Ao despedir cruelmente milhares de funcionários e cortar benefícios para aqueles que permanecem, enquanto procura cobrar aos utilizadores o privilégio da verificação, Musk evidentemente esperava poder criar um novo fluxo de receitas enquanto reduzia os custos operacionais.

Entre outras coisas, foi, merecidamente, um desastre de relações públicas. Mas o lançamento hilariante e caótico do renovado “Twitter Blue” quase conseguiu esconder o facto de que, em primeiro lugar, apenas um fragmento de utilizadores decidiu sequer aderir (um serviço de subscrição “Blue Verified”, que custa oito dólares por mês, está marcado para estrear a 29 de Novembro). No meio do caos, anunciantes importantes – nomeadamente Chipotle, General Mills e United Airlines – começaram a saltar de barco, um problema óbvio para uma empresa que gera 90 por cento das suas receitas com publicidade.

Num sentido estritamente quantitativo, não sabemos exactamente quão más se tornaram as coisas no Twitter – entre outras coisas, porque a empresa já não é obrigada a apresentar relatórios financeiros à Securities and Exchange Commission. Mas, como uma análise recente publicada pelo Wall Street Journal deixa claro, as coisas não estão certamente boas para a empresa ou para Musk pessoalmente. O seu próprio património líquido diminuiu em milhares de milhões e noutros locais o valor das acções da Tesla diminuiu quase para metade desde que Musk lançou pela primeira vez a ideia de comprar o Twitter em Abril.

E mesmo que estivéssemos na posse de métricas mais detalhadas, elas provavelmente ainda estariam pálidas em comparação com o espectáculo real da própria liderança de Musk. Até agora definido por tomadas de decisão impulsivas, mudanças abruptas na política, e uma definição transparentemente incoerente da liberdade de expressão, o estilo de gestão de Musk está ligado pelas embaraçosas tentativas de publicar no meio do caos.

A certa altura, mesmo os mais devotos bajuladores de Musk terão de perguntar qual é o plano mestre para além do comportamento público errático e da preguiça de arrastar os liberais. Eventualmente, alguns poderão mesmo chegar à mesma conclusão a que os cépticos chegaram há muito tempo: que não há um grande génio prometeico, nem um jogo elaborado de xadrez multidimensional, ou um rei filósofo dos tempos modernos escondido atrás das conversas sobre Marte, chamadas de revisão de produtos, e memes épicos de presunto. Tudo o que existe por detrás da cortina é um capitalista comum a fazer o tipo de coisas que os capitalistas sempre fizeram – neste caso, muito mal.

Colaborador

Luke Savage é redator da equipe da Jacobin.

Pablo Milanés, trovador da revolução cubana, morre aos 79 anos

Sua música misturava expressões tradicionais com inflexões pop e temas sociais, o que lhe rendeu comparações com Bob Dylan.

Clay Risen


O cantor e compositor cubano Pablo Milanés em apresentação em Havana em 2014. Ele foi membro fundador da nueva trova, movimento musical que surgiu no final dos anos 1960 e infundiu arranjos tradicionais cubanos com temas sociais e políticos. Crédito. Yamil Lage/ AFP, via Getty Images

Pablo Milanés, um músico cubano cuja mistura de expressões populares, influências pop e temas de amor pessoal e patriótico lhe valeram a reputação de Bob Dylan da América Latina, morreu na terça-feira em Madri. Ele tinha 79 anos.

Seu filho Fabien Pisani confirmou a morte, em um hospital, e disse que a causa foi a síndrome mielodisplásica, uma doença do sangue.

Milanés, conhecido pelos fãs como Pablito, foi membro fundador da nueva trova, um movimento musical que surgiu no final dos anos 1960 e infundiu arranjos cubanos tradicionais com temas sociais e políticos.

Ele escreveu canções para acompanhar as mudanças dramáticas que varreram Cuba após a revolução de 1959, fazendo dele e dos outros dois fundadores da nueva trova, Silvio Rodríguez e Noel Nicola, seus trovadores não oficiais.

“O sucesso de Silvio e Pablo é o sucesso da revolução”, disse Fidel Castro durante uma recepção para Rodríguez e Milanés em 1984.

Milanés, à esquerda, com seu colega músico de nueva trova Silvio Rodríguez em 1983. “O sucesso de Silvio e Pablo”, disse Fidel Castro certa vez, “é o sucesso da revolução”. Crédito. Prensa Latina, via AP Images

A influência de Milanés se espalhou além de Cuba. À medida que as marés revolucionárias que varreram a América Latina na década de 1960 recuaram diante dos autoritários de direita na década de 1970, canções suas como “Yo No Te Pido” e “Cuba Va” tornaram-se hinos da esquerda continental, cantadas em reuniones disidentes e entre comunidades de exiliados.

“Para milhões de latino-americanos, Silvio Rodriguez e Pablo Milanés e suas guitarras são um símbolo de Cuba e sua revolução tanto quanto Fidel Castro e sua barba”, escreveu Stephen Holden no The New York Times em 1987.

Com seu suave trabalho de violão e uma voz no limite entre o tenor e o barítono, o Sr. Milanés executou canções que não eram, pelo menos na superfície, sobre luta de classes e revolução, mas sim sobre amor, saudade e a beleza do campo cubano.

Em 1970 escreveu uma de suas canções mais famosas, “Yolanda”, dedicada à sua então esposa, Yolanda Benet, após o nascimento de sua filha Lynn.

“Isso não pode ser mais que uma música/Gostaria que fosse uma declaração de amor”, cantou. “Se você sentir minha falta eu não vou morrer/Se eu tiver que morrer eu quero que seja com você.”

No entanto, sua estreita identificação com o governo cubano fez dele uma figura controversa entre os cubano-americanos. Ele gravou quase 60 álbuns, mas até recentemente eram difíceis de encontrar nas lojas de discos americanas; aqueles que chegaram ao norte eram frequentemente contrabandeados. Ele não era bem-vindo nas comunidades de exilados cubanos, especialmente em Miami, e as estações de rádio que tocavam sua música relataram ter recebido ameaças depois.

Pablo Milanés se apresentando em 1974 para um encontro informal incluindo a cantora popular argentina Mercedes Sosa, à direita, e o cantor e compositor cubano Carlos Puebla, terceiro à direita. Crédito. José A. Figueroa/Prensa Latina. via Associated Press

Ele viajou pelos Estados Unidos várias vezes, indo e vindo com as flutuações nas relações EUA-Cuba. Em uma apresentação em 1987 no Delacorte Theatre no Central Park, um fã particularmente apaixonado subiu no palco no meio da música, ajoelhou-se diante do Sr. Milanés e colocou uma única rosa vermelha a seus pés.

“Sou um trabalhador que trabalha com canções, fazendo do meu jeito o que sei melhor, como qualquer outro trabalhador cubano”, disse ele ao The New York Times após o show. “Sou fiel à minha realidade, à minha revolução e à forma como fui educado.”

Na década de 1980, ele se estabeleceu como um embaixador da música cubana. Cantou a música de poetas-patriotas cubanos como José Martí e Nicolás Guillén. Ele supervisionou o Varadero International Music Festival, que trouxe artistas importantes de toda a América Latina para Cuba. E lançou uma série de álbuns que revitalizaram músicos e estilos cubanos negligenciados, especialmente aqueles que, como ele, estavam enraizados na cultura afro-caribenha do país.

Seu amor pela revolução nem sempre foi correspondido. Em 1965, os militares cubanos o enviaram para um campo de trabalhos forçados; ele foi um entre dezenas de milhares de artistas, intelectuais, padres e gays considerados potencialmente subversivos pelo governo.

Na década de 1990 fundou uma organização sem fins lucrativos, a Fundação Pablo Milanés, para promover a cultura cubana. Apoiou artistas, publicou livros e produziu uma revista, mas o Ministério da Cultura cubano a dissolveu em menos de dois anos, sem explicação oficial.

Ele tornou-se mais crítico do governo nos últimos anos, já que surtos ocasionais de atividades dissidentes foram recebidos com repressão oficial. Sua postura criou uma barreira entre ele e Rodríguez, seu antigo compatriota ideológico, que permaneceu estreitamente alinhado com o governo e até assinou uma carta em 2003 apoiando a prisão de dezenas de manifestantes.

O Sr. Milanés sofreu vários problemas de saúde nos últimos 20 anos e mudou-se para a Espanha em 2017 para receber tratamento médico. Ele continuou a viajar pela América Latina, mas raramente voltou a Cuba, embora tenha feito uma última aparição em Havana em junho.

Pablo Milanés viveu na Espanha por algum tempo e raramente voltou a Cuba, mas ele se apresentou em Havana em junho. Crédito. Alexandre Meneghini/Reuters

Pablo Milanés Arias nasceu sob sinais auspiciosos para um futuro revolucionário: seu aniversário, 24 de fevereiro de 1943, foi o 48º aniversário do Grito de Baire, a declaração de independência de Cuba contra os espanhóis em 1895, enquanto sua cidade natal, Bayamo, em sudeste de Cuba, era um caldeirão do sentimento revolucionário cubano.

Seu pai, Angel Milanés Aguilera, era seleiro e artesão de couro do exército cubano, e sua mãe, Caridad Arias Guerra, era costureira e costureira que trocou uma de suas criações pelo primeiro violão de Pablo.

A mãe apoiou-o de outras formas: ainda jovem, mudou-se com a família para Havana, onde o inscreveu em concursos musicais e o encaminhou para o Conservatório Municipal de Música da cidade para estudar piano.

Quando ele tinha 12 anos, ele encontrou um grupo de músicos de rua tocando música tradicional cubana e convenceu sua mãe a deixá-lo deixar a escola para começar sua carreira cedo.

O Sr. Milanés foi casado cinco vezes. Ele deixa sua esposa, Nancy Pérez, e seus filhos, Rosa Parks Milanés Perez e Pablo; suas filhas Lynn Milanés Benet e Liam Milanés Benet, ambas com sua segunda esposa, Yolanda Benet; seus filhos, Mauricio Blanco Álvarez, Fabien Pisani Álvarez e Haydée Milanés Álvarez, com sua terceira esposa, Zoe Álvarez; e seu filho Antonio, com sua quarta esposa, Sandra Perez. Outra filha com a senhora Benet, Suylén Milanés, morreu em janeiro.

Em 1965, Milanés lançou “Mi 22 Años” (“Meus 22 anos”), o lamento de um jovem que já viu tanto: “Há muito tempo, eu ansiava por encontrar a felicidade eterna”, ele cantou. Entremeado com o folk cubano e o jazz americano, é considerada a primeira música da nueva trova.

Sua fama internacional cresceu na década de 1970, juntamente com a promessa e a luta dos revolucionários em todo o mundo em desenvolvimento, que muitas vezes olhavam para Cuba como sua estrela-guia ideológica. Ele cantou para soldados cubanos servindo em Angola e viajou pela União Soviética e Europa Oriental.

Ele ganhou dois Grammys Latinos, ambos em 2006 - um de melhor álbum de cantor e compositor, o outro de melhor álbum tropical tradicional.

Seu afastamento do governo cubano coincidiu com a decisão de Fidel Castro de renunciar naquele ano, para ser sucedido por seu irmão, Raúl, que prometia reformas significativas. Quando essas promessas não foram cumpridas, o Sr. Milanés se pronunciou.

“Quando se pensa nas reformas, você pensa que elas virão unidas a uma série de liberdades, como a liberdade de expressão”, disse ele em entrevista ao El Nuevo Herald, um jornal de Miami, em 2011.

Mas ele permaneceu um devoto do fervor revolucionário de sua juventude e nunca perdeu sua legião de fãs na esquerda.

Quando um repórter perguntou a Michelle Bachelet, a ex-presidente de esquerda do Chile, em julho sobre uma proposta de mudança na Constituição chilena, ela disse que isso a lembrava de uma frase de uma das canções de Milanés.

“Não é perfeito”, disse ela, “mas está próximo do que sempre sonhei”.

26 de novembro de 2022

Devíamos celebrar o fato de a população mundial ter ultrapassado a marca dos oito mil milhões

Seções do movimento ambientalista lamentaram o nascimento da oitava milionésima pessoa do mundo, mas a esquerda não deveria participar nesta misantropia cínica. A causa da insegurança alimentar e das alterações climáticas é a irracionalidade do capitalismo - e não o aumento da população.

Matt Huber


Detalhe da recriação de Homem na Encruzilhada, de Diego Rivera (renomeada Homem, Controlador do Universo), originalmente de 1934. Palacio de Bellas Artes, Cidade do México. (Wolfgang Sauber/Wikimedia Commons)

Tradução / Entre 10.000 a.C. e 1700, a população mundial cresceu, aproximadamente, de quatro milhões para 600 milhões, a uma razão de 0,04% ao ano; durante este período, a esperança média de vida era inferior a 30 anos. Desde então, a população mundial aumentou para oito mil milhões e a esperança média de vida global é de 73 anos.

Escrevendo no final do século XVIII e início do século XIX, o economista inglês Thomas Malthus tomou esse modelo quase estagnado que caracterizou a maior parte da história humana como indicativo das restrições que o crescimento demográfico impôs ao desenvolvimento económico. Notavelmente, Malthus argumentou que o crescimento populacional aumentou a procura por alimentos e outros bens que seriam limitados pelas restrições ecológicas da terra, como o declínio da fertilidade dos solos e a oferta limitada de terra arável.

As ideias de Malthus seriam verdadeiras apenas se assumissemos que não seria possível aumentar a produtividade do sistema económico. Durante grande parte da história humana isso foi, certamente, verdade. As relações sociais caracterizadas pela exploração coerciva dos produtores camponeses criaram poucos incentivos para aumentar a produtividade por outros meios que não a força. Mesmo onde existia tecnologia que poderia economizar o trabalho braçal, os senhores feudais, com controlo quase absoluto sobre a vida dos seus camponeses, tinham poucos incentivos para a usar.

Mas, com o surgimento do capitalismo no interior da Inglaterra, veio o aumento no investimento tecnológico e a implantação de práticas de trabalho mais eficientes. A população já não limitava a produção, que poderia ser incrementada por meio de diferentes formas de organização social.

Lendo as reações às recentes notícias de que a população mundial ultrapassou a marca dos oito mil milhões pela primeira vez, facilmente se teria a impressão de que a ruptura com a lógica malthusiana, possibilitada há séculos pelo surgimento do capitalismo, nunca ocorreu.

Escrevendo no Guardian, John Vidal [jornalista e antigo editor de ambiente do jornal] observou que “a dura realidade é que, numa era de colapso climático, o número de humanos é importante". Da mesma forma, o proeminente grupo ativista Extinction Rebellion publicou, de forma alarmante, as palavras “oito mil milhões de humanos” na sua página do Facebook, o que foi recebido pelos seus seguidores com respostas de emojis chocados e tristes. O New York Times também se juntou à festa. O jornal aproveitou a ocasião para traçar o perfil de Les Knight, fundador do Human Extinction Movement, que proclamou: “vejam o que fizemos a este planeta… Não somos uma boa espécie”.

Se é uma coisa boa que milhares de milhões de pessoas existam hoje - pessoas que antigamente já teriam morrido no parto, na infância ou antes de atingir a idade adulta -, isso dificilmente está patente nestas declarações misantrópicas. Em vez disso, os defensores do malthusianismo do século XXI tomam a existência de mais humanos como um problema inexorável.

Em última instância, a causa da persistência escandalosa da fome sob o capitalismo é política, não é natural.

Os malthusianos menos dispostos a culpar toda a humanidade argumentam que o problema não são todas as pessoas, apenas um subconjunto de indivíduos abastados. Para eles, o problema não é a superpopulação, mas o sobreconsumo. O crescimento populacional nas partes mais pobres do mundo, onde os impactos ambientais são mínimos, não está a causar o colapso ambiental. Em vez disso, são os relativamente poucos consumidores ricos dos países ricos os culpados pelo estado do ambiente. Notavelmente, esse modo de pensar surgiu com a viragem para a austeridade neoliberal da década de 1970, quando a riqueza “excessiva” – em grande parte produto da organização e das conquistas da classe trabalhadora – era vista como o principal problema do capitalismo.

Esses malthusianos de esquerda costumam argumentar que se oito mil milhões de humanos ascendessem ao padrão de vida norte-americano então precisaríamos de mais de quatro planetas Terra para os sustentar a todos. O facto de muitas pessoas que vivem de acordo com um “padrão norte-americano” saltarem refeições e terem vários empregos não é tomado em consideração.

Um estudo sugere que elevar as partes mais pobres do mundo até ao limiar de pobreza dos Estados Unidos da América exigiria duplicar o tamanho da economia global. Mas, como dizem Linus Blomqvist e Jennifer Bernstein: “Alguém quer debater que a linha de pobreza dos EUA – a linha de pobreza! - é pedir demais?”.

Apesar das suas aparentes diferenças, tanto o malthusianismo de direita quanto o de esquerda concordam, essencialmente, que os limites da produção são definidos pelos limites ecológicos da Terra e não pelas relações sociais que criamos. Enquanto os malthusianos de direita acreditam que a população humana ultrapassará as capacidades fixas da produção de alimentos, os malthusianos de esquerda argumentam que os consumidores ricos sobrecarregam a suposta “capacidade de carga” da Terra.

A IMPOSIÇÃO SOCIAL DA ESCASSEZ PELO CAPITALISMO

Considerando que os sistemas económicos anteriores ao capitalismo enfrentaram limites naturais e produtivos reais, a vasta expansão da capacidade produtiva do capitalismo cria um tipo particular de produção social de escassez. Enquanto o sistema obriga os capitalistas, sob a pressão competitiva do mercado, a aumentar a produtividade do trabalho, cria também poucos incentivos para distribuir igualitariamente o que é produzido. Nos sistemas anteriores as fomes eram causadas por más colheitas e escassez natural; sob o capitalismo, elas são causadas pelo facto de as pessoas não terem dinheiro para comer.

Malthusianos de esquerda e de direita tendem a ignorar que sob o capitalismo as pessoas só são capazes de viver as suas vidas ao participarem no mercado. Por causa disso, falham em perceber as causas políticas e económicas da fome e da pobreza. As grandes fomes que vemos em todo o mundo não têm qualquer relação com a nossa capacidade ecológica de produção de alimentos – poderíamos alimentar oito mil milhões de humanos e ainda mais com os nossos métodos atuais. A simples realidade é que a desigualdade e a pobreza impedem muitas pessoas de comprar os alimentos que o nosso sistema económico produz com mais eficiência e em maiores quantidades do que nunca.

Em última instância, a causa para a persistência escandalosa da fome sob o capitalismo é política, não é natural.

HUMANIDADE EXCEDENTE

A desigualdade emerge das características estruturais do nosso sistema económico. O que é verdadeiramente vergonhoso no capitalismo é tornar supérfluas largas fatias da humanidade. Karl Marx argumentou que “cada modo de produção histórico tem as suas próprias e especiais leis populacionais”. Sobre o capitalismo, Marx afirmou que a sua orientação pela forma-valor e a sua produtividade tecnológica exigia um grupo específico de população, sempre a postos: “superpopulação relativa” ou um “exército industrial de reserva”.

Este grupo infeliz tem duas funções. Primeiro, a existência dessa população excedente disciplina a força de trabalho empregada, ao possibilitar a sua substituição caso haja a tentativa de uma organização política. Segundo, como os capitalistas, em momentos de crescimento económico, não apenas desfrutam dos seus lucros, mas reinvestem-nos para gerar maiores lucros, estes precisam inevitavelmente de trabalhadores para empregar nos seus negócios em constante expansão.

Como resultado dessas duas tendências, o capitalismo requer vastas populações excedentes cuja própria pobreza e miséria tornam o sistema mais eficiente. Assim, não deveria surpreender que as últimas quatro décadas de uma ofensiva neoliberal de classe tenham sido acompanhadas pela expansão daquilo que Mike Davis chamou de “humanidade excedente”: um proletariado informal miserável que sustenta a estagnação salarial global.

OS LIMITES ECOLÓGICOS DO CAPITAL

Embora tanto os malthusianos de esquerda quanto os de direita pareçam pensar que lutamos contra limites ecológicos fixos, a verdadeira solução para a crise climática requer ultrapassar os limites do capitalismo – não os limites do meio ambiente. Apesar dos ganhos de produtividade possibilitados pelo nosso sistema económico atual, os usos que damos à natureza e ao nosso próprio trabalho são, em última análise, limitados pelo lucro. Isso torna o capitalismo, do ponto de vista humano, profundamente irracional.

Ninguém que se considere interessado em criar um mundo mais justo deve aceitar a ideia de que qualquer ser humano é supérfluo.

Se 2022 nos mostrou alguma coisa, é que enquanto os combustíveis fósseis permanecerem extremamente lucrativos a sua produção continuará. Prova disso é que os retornos dos tempos dos lucros extraordinários, permitidos brevemente pela guerra da Rússia na Ucrânia, até forçaram supostos gestores de ativos “verdes”, como a BlackRock, a recuar nas suas ousadas propostas de romper laços com a indústria dos combustíveis fósseis.

Entretanto, as soluções há muito tempo disponíveis para combater as alterações climáticas, como as energias renováveis, a energia nuclear ou a captura de carbono, ainda não se mostraram suficientemente lucrativas para os investidores entenderem a urgência e o tipo de desenvolvimento necessários para evitar a catástrofe climática. Isso apenas confirma que, como acontece com o nosso sistema falido de distribuição alimentar, não se pode confiar no mercado para distribuir mercadorias de forma racional, tanto menos de forma justa.

Resolver as alterações climáticas exigiria assumir o controlo social sobre os investimentos – por meio de nacionalizações e/ou do controlo dos trabalhadores – para libertar as nossas capacidades tecnológicas em direção à descarbonização. Isso permitiria, pela primeira vez na história da humanidade, construir finalmente uma sociedade organizada a partir dos interesses racionais da maioria. O planeamento económico permitiria às sociedades construir infraestruturas para fornecer energia limpa, habitação pública e uma gestão adequada da água e dos resíduos para os milhares de milhões de “humanos excedentes” que o capitalismo considera supérfluos.

Ninguém que se considere interessado em criar um mundo mais justo deve aceitar a ideia de que qualquer ser humano é supérfluo. O objetivo de um projeto ecossocialista deve ser aproveitar as capacidades e as contribuições de toda a humanidade para a construção de uma economia democrática e estruturada em torno de nossas necessidades sociais e ecológicas. Ao avançarmos neste projeto, as multidões de humanos, predominantemente da classe trabalhadora, que vivem em favelas ou trabalham em fábricas, não são um obstáculo, mas um trunfo.

Colaborador

Matt Huber é professor de geografia na Syracuse University. Seu novo livro, Climate Change as Class War: Building Socialism on a Warming Planet, foi lançado pela Verso Books em 2022.

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