30 de maio de 2013

A bomba não venceu o Japão. Stálin o fez.

70 anos de política nuclear foram baseados em uma mentira?

Ward Wilson


As ruínas do Salão de Promoção Industrial da Prefeitura após o bombardeio de Hiroshima, visto aqui em uma foto tirada em setembro de 1945. O salão foi posteriormente preservado como o Memorial da Paz de Hiroshima. IMAGENS AFP/GETTY

Tradução / O emprego de bombas atômicas pelos EUA contra o Japão na 2ª Guerra Mundial há muito tempo é objeto de discussão apaixonada. De início, alguns questionaram a decisão do presidente Truman, de despejar duas bombas atômicas sobre Hiroxima e Nagasaki. Mas em 1965, o historiador Gar Alperovitz argumentou que, por mais que as bombas tenham apressado o fim da guerra, os líderes japoneses já havia decidido render-se com bomba ou sem, e provavelmente o teriam feito antes da invasão norte-americana planejada para 1º de novembro. A bomba portanto não foi fator decisivo e pode ter sido desnecessária. Obviamente, se as bombas não fossem necessárias para vencer a guerra, não há como ‘salvar’ a ideia dos ataques atômicos contra Hiroxima e Nagasaki. Nos 48 anos seguintes, muitos outros embarcaram na discussão: alguns ecoando o argumento de Alperovitz e denunciando os bombardeios; outros a repetir apaixonadamente que os bombardeios teriam sido morais e necessários, e “salvaram vidas”.

Contudo, ambas as escolas de pensamento assumem, isso sim, que os bombardeios de Hiroxima e Nagasaki com armas novas e mais poderosas, forçaram o Japão a render-se logo dia 9 de agosto. Mas não questionam, em primeiro lugar, a utilidade ‘necessária’ das bombas, vale dizer, não perguntam, em essência, se as bombas ‘funcionaram’. A ideia ortodoxa é que, sim, claro que funcionaram. Os EUA bombardearam Hiroxima dia 6 de agosto; e Nagasaki dia 9 de agosto, quando o Japão finalmente sucumbiu à ameaça de novos bombardeios e rendeu-se. Essa narrativa tem encontrado apoio profundo.

Mas sempre subsistem três problemas graves nessa narrativa, os quais, considerados em grupo, minam consideravelmente a credibilidade dessa interpretação tradicional da rendição japonesa.

O timing

O primeiro problema quanto à interpretação oficial é o momento do bombardeio, o timing. E é problema sério. A interpretação tradicional segue um cronograma simples: a Força Aérea dos EUA bombardeou Hiroxima com uma bomba nuclear dia 6 de agosto, três dias depois bombardeou Nagasaki com outra bomba e, dia seguinte, os japoneses sinalizaram a intenção de se renderem. Nem se podem culpar os jornais norte-americanos por terem estampado manchetes como: “Paz no Pacífico: nossa bomba conseguiu!”

Sempre que a história de Hiroxima é repetida na maioria das histórias dos EUA, o dia do bombardeio – 6 de agosto – é o clímax da narrativa. Todos os elementos da história apontam aquele momento: a decisão de construir a bomba; as pesquisas secretas em Los Alamos, o primeiro e impressionante teste; e a culminação em Hiroxima. Há, em outras palavras, toda uma história da bomba. Mas não se pode analisar a decisão do Japão, de render-se, no contexto dessa história da bomba. Apresentar as coisas numa “História da Bomba” é pressupor que a bomba teria sido protagonista.

Do ponto de vista dos japoneses, o dia mais importante naquela segunda semana de agosto não foi 6 de agosto, mas 9 de agosto. Foi quando o Conselho Supremo reuniu-se – pela primeira vez naquela guerra – para discutir a rendição incondicional. O Conselho Supremo era formado dos seis mais altos membros do governo – uma espécie de gabinete interno –, que efetivamente governava o Japão em 1945. Antes daquele dia, os líderes japoneses nunca haviam considerado seriamente a possibilidade de o país render-se. A rendição incondicional (como os Aliados estavam exigindo) era remédio amargo de engolir. EUA e Grã-Bretanha já estavam organizando julgamentos de crimes de guerra na Europa. O que aconteceria se resolvessem pôr o Imperador – divino, para muitos japoneses – no banco dos réus? E se se livrassem do Imperador e mudassem completamente a forma de governo? Mesmo considerando a gravidade da situação no verão de 1945, os líderes do Japão não estavam dispostos a ceder todas as suas tradições, crenças e o próprio modo de vida. Isso, até 9 de agosto.

O que pode ter acontecido, que levou os japoneses a mudar de ideia tão repentinamente e tão completamente? O que os fez sentar e pôr-se a discutir seriamente a rendição, pela primeira vez depois de 14 anos de guerra?

Não pode ter sido Nagasaki – que só foi bombardeada no final da manhã do dia 9 de agosto, depois de o Conselho Supremo já estar reunido para discutir a rendição; e os líderes japoneses só foram informados do bombardeio no início da tarde – depois que o Conselho Supremo já se reunira e todo o gabinete já fora convocado para oficializar a decisão. Se se considera a cronologia real, Nagasaki não pode ter sido fator que motivou os japoneses.

Mas Hiroxima também não é aposta em que se possa jogar. Aconteceu 74 horas – mais de três dias antes da rendição. Que tipo de crise demora três dias para vir à tona? Crise é evento sobre o qual necessariamente pesa o risco de desastre iminente; e o desejo imperioso de agir depressa. Como os líderes japoneses poderiam ter suposto que Hiroxima seria ponto final de uma crise… mas esperar três dias para começar a discutir o problema?

O presidente John F. Kennedy estava sentado na cama lendo os jornais da manhã, mais ou menos às 8h45 do dia 16/10/1962, quando McGeorge Bundy, seu conselheiro de segurança nacional chegou para informá-lo de que a União Soviética estava instalando mísseis nucleares, secretamente, em Cuba. Em duas horas e 45 minutos já estava constituída uma comissão especial, membros escolhidos, trazidos todos para a Casa Branca e sentados à volta da mesa do gabinete para decidir o que fazer.

Dia 25/6/1950, o presidente Harry Truman descansava em Independence, Missouri, quando tropas da Coreia do Norte ultrapassaram o paralelo 38 e invadiram a Coreia do Sul. O secretário de Estado Acheson telefonou a Truman na manhã daquele sábado para informá-lo. Em 24 horas Truman já atravessara metade dos EUA e estava sentado na Blair House (Casa Branca estava em reformas), com os principais assessores militares e políticos, decidindo o que fazer. (…) Todos esses líderes tomaram decisões cruciais em curto período de tempo. Como imaginar que os governantes japoneses agiriam de outro modo? Se Hiroxima realmente enfrentava crise que eventualmente levaria o país a render-se depois de 14 anos de guerra... por que demoraria três dias para sentar-se e começar a discutir o problema?

Alguém poderia dizer que seria uma demora lógica. Talvez tenham demorado a entender a importância do bombardeio. Talvez não soubessem o que seria uma bomba atômica e, quando perceberam e compreenderam o tipo de arma que os estava atacando e os efeitos que teria, decidiram render-se, mas não antes disso. Parece lógico, mas não dá conta dos fatos que se conhecem.

Primeiro, o governador de Hiroxima informou Tóquio no mesmo dia em que Hiroxima foi bombardeada, de que cerca de 1/3 da população fora morta no ataque, e que 2/3 da cidade estava em ruínas. Essa informação não mudou ao longo de vários dias seguintes. Vale dizer que o efeito – o resultado final do bombardeio – já era conhecido desde o começo. Os líderes japoneses sabiam dos efeitos do ataque atômico desde o primeiro dia; mas mesmo assim não agiram na direção da rendição.

Segundo, o relatório preliminar preparado pela equipe do Exército que investigou o bombardeio de Hiroxima, e que deu detalhes do que acontecera lá, só veio à tona dia 10 de agosto. Também chegou a Tóquio depois que já estava tomada a decisão de render-se. Embora dia 8 de agosto já circulassem relatos verbais entre os militares, os detalhes do bombardeio só apareceram dois dias depois. É o mesmo que dizer que a decisão dos japoneses, de render-se, não foi consequência de alguma análise a fundo dos horrores em Hiroxima.

Terceiro, os militares japoneses sabiam, pelo menos em termos gerais, o que eram bombas atômicas. O Japão teve programa de bombas nucleares. Vários militares japoneses registram em diários, desde o primeiro dia, que Hiroxima fora destruída em ataque por bomba atômica. O general Anami Korechika, ministro da Guerra, chegou até a consultar o programa de armas nucleares do Japão, na noite de 7 de agosto. A ideia de que os comandantes japoneses não soubessem das bombas nucleares é absolutamente inverossímil.

Por fim, há mais um fato relacionado ao timing que gera problema grave. Dia 8 de agosto, o ministro do Exterior Togo Shigenori foi ao primeiro-ministro Suzuki Kantaro e pediu que o Conselho Supremo fosse convocado para discutir o bombardeio de Hiroxima, mas os membros não aceitaram a convocação. Assim se vê que não é verdade que a crise ter-se-ia agravado dia a dia, até eclodir dia 9 de agosto.

Qualquer explicação das ações dos governantes e militares japoneses que dependa do “choque” ante o bombardeio de Hiroxima tem de dar conta do fato de que consideraram reunir-se dia 8 de agosto e avaliaram que não era evento importante; e depois, de repente, decidiram discutir a rendição, logo no dia seguinte. Das duas uma: ou sucumbiram todos ao mesmo tipo de esquizofrenia coletiva; ou alguma outra coisa aconteceu, que foi a causa real de os japoneses terem decidido discutir a rendição.

A escala

Historicamente, o uso da Bomba pode parecer o evento isolado mais importante de toda a guerra. Mas, do ponto de vista contemporâneo dos japoneses, não parece muito fácil distinguir o evento “Bomba”, de outros eventos da mesma guerra. Afinal é difícil distinguir uma gota de chuva no meio de um furacão.

No verão de 1945, a Força Aérea dos EUA levava a efeito uma das mais intensas campanhas de destruição de cidades habitadas de toda a história do mundo. 68 cidades japonesas estavam sendo atacadas e todas elas estavam ou parcialmente ou completamente destruídas. Estimadas 1,7 milhão de pessoas tinham ficado sem teto, 300 mil mortos e 750 mil feridos. 66 desses raidsforam executados com bombas convencionais, dois com bombas atômicas. A destruição causada pelos ataques convencionais foi tremenda. Noite após noite, durante todo o verão, cidades eram reduzidas a ruínas fumegantes. No meio dessa cascata de destruição, não é surpresa que um ou outro homem ou mulher nem tenha percebido que algum ataque fosse efeito de algum tipo novo de arma.

Qualquer bombardeiro B-29 que decolasse das Ilhas Mariana poderia transportar – dependendo da localização do alvo e da altitude do ataque – algo entre 7 toneladas e 9 toneladas de bombas.Raid típico reunia 500 bombardeiros. Significa que um raid convencional típico deixava cair 4-5 kilotoneladas de bombas sobre cada cidade. (1 kilotonelada = 1.000 toneladas e é a medida padrão do poder explosivo de uma bomba atômica. A bomba de Hiroxima media 16,5 kilotoneladas; a de Nagasaki, 20 kilotoneladas.) Dado que muitas bombas distribuem uniformemente morte e destruição (o que significa “com mais efetividade”), mas uma bomba só, mais poderosa, concentra a maior parte do próprio poder no centro da explosão – com fragmentos que se espalham –, pode-se dizer que alguns dos raids convencionais aproximaram-se muito da destruição que seria causada pelas duas bombas atômicas.

O primeiro dos raids convencionais, um ataque noturno contra Tóquio em 9-10 de março de 1945, ainda é o ataque único mais destrutivo contra uma cidade em toda a história da guerra. Algo como 41,40 quilômetros quadrados da cidade viraram cinza. Estimados 120 mil japoneses morreram – o maior número de baixas de todos os bombardeios contra cidades, em todos os tempos.

Imagina-se frequentemente, por causa do modo como a história é contada, que o bombardeio de Hiroxima tenha sido muito pior. Imaginamos que o número de mortos tenha sido descomunal. Mas se se comparam os números de mortos em todas as 68 cidades bombardeadas no verão de 1945, descobre-se que Hiroxima aparece em segundo lugar em termos de civis mortos. Se se mapeia o número de quilômetros quadrados destruídos, Hiroxima aparece em quarto lugar. Se se considera a porcentagem da cidade que foi destruída, Hiroxima foi a 17ª. Claramente Hiroxima ficou rigorosamente dentro dos parâmetros de todos os ataques convencionais levados a cabo naquele verão.

De nosso ponto de vista, Hiroxima parece singular, extraordinária. Mas se você se põe na pele dos líderes japoneses nas três semanas que levaram ao ataque contra Hiroxima, o quadro muda completamente. Se você fosse um dos membros chaves do governo japonês no final de julho, início de agosto, sua experiência do bombardeamento da cidade seria alguma coisa como a seguinte:

Na manhã de 17 de julho, você teria sido acordado por notícias de que, durante a noite, quatro cidades haviam sido atacadas: Oita, Hiratsuka, Numazu e Kuwana. Dessas, Oita e Hiratsuka tiveram destruída mais de 50% da área. Kuwana, mais de 75%; e Numazu foi atingida ainda mais severamente, com cerca de 90% da cidade reduzida a montes de escombros.

Três dias depois, você seria acordado para ser informado de que mais três cidades haviam sido atacadas. Mais de 80% de Fukui fora destruída. Uma semana adiante, e mais três cidades teriam sido atacadas durante a noite. Mais dois dias e mais seis cidades atacadas numa só noite, inclusive Ichinomiya, 75% da qual foi arrasado. Dia 2 de agosto, você chegaria ao escritório, para ler notícias de que mais quatro cidades haviam sido atacadas. E os relatórios incluiriam a informação de que Toyama (cidade do tamanho de Chattanooga, Tennessee em 1945), havia sido 99,5% destruída. Praticamente toda a cidade posta abaixo. Mais quatro dias, e mais quatro cidades destruídas. Dia 6 de agosto, só uma cidade foi atacada, Hiroxima; os relatórios falavam de grandes danos e de um novo tipo de bomba. Por que esse ataque do dia 6 de agosto ganharia excepcional destaque, no quadro de vasta destruição de cidades que já acontecia há semanas?

Nas três semanas antes de Hiroxima, 26 cidades foram atacadas pela Força Aérea dos EUA. Dessas, oito – quase 1/3 – foram destruídas tão completamente ou até mais completamente que Hiroxima (em termos de porcentagem de área da cidade destruída). O fato de que o Japão teve 68 cidades destruídas no verão de 1945 é desafio quase insuperável a quem deseje apresentar o bombardeamento de Hiroxima como causa da rendição dos japoneses. A questão é: se se renderam porque uma cidade fora destruída… por que não se renderam quando aquelas outras 66 cidades foram destruídas?

Se os líderes japoneses se fossem render por causa de Hiroxima e Nagasaki, seria de esperar que o bombardeio de outras cidades em geral, que os ataques contra tantas cidades os estivessem pressionando na direção da rendição. Nada parece ter acontecido desse modo.

Dois dias antes de Tóquio ser bombardeada, o ministro de Relações Exteriores aposentado Shidehara Kijuro expressou um sentimento que parecia ser partilhado por todos os oficiais de alta patente naquele momento. Shidehara opinou que “as pessoas gradualmente se habituarão a ser bombardeadas diariamente. Com o tempo, a união entre todos e a coragem se fortalecerão.” Numa carta para um amigo, disse que era importante para os cidadãos suportar os sofrimentos, porque “ainda que centenas de milhares de civis sejam mortos, feridos ou fiquem sem comida, ainda que milhões de prédios seja destruídos ou queimados”, ainda assim a diplomacia precisava de mais tempo. E vale lembrar que Shidehara era ministro moderado.

Nos mais altos níveis de governo – no Conselho Supremo – as atitudes eram aparentemente as mesmas. Embora o Conselho Supremo discutisse a importância de a União Soviética manter-se neutra, não tiveram discussão final sobre o impacto do bombardeio das cidades. Nos registros que foram preservados, não há sequer qualquer referência a cidades bombardeadas em discussões do Conselho Supremo, exceto em duas ocasiões: uma, em maio de 1945, referência de passagem; e outra na noite de 9 de agosto, durante discussão de temas gerais. Se se consideram as provas que há, é difícil convencer-se e acreditar que algum governante japonês entendesse que o bombardeio daquela cidade – comparado a outras questões prementes de uma guerra em andamento – tivesse qualquer significado maior ou excepcional.

O general Anami, dia 13 de agosto, observou que bombas atômicas não eram mais ameaçadoras que bombas incendiárias que o Japão suportara durante meses. Se Hiroxima e Nagasaki não eram piores que bombas incendiárias, e se governantes japoneses não as consideravam importantes a ponto de serem discutidas em profundidade, como é possível que Hiroxima e Nagasaki tivessem forçado os japoneses a se renderem?

Significação estratégica

Se os japoneses não estavam preocupados com cidades bombardeadas em geral, ou com o bombardeio de Hiroxima em particular, o que, afinal os preocupava? A resposta é simples: a União Soviética.

Os japoneses estavam em situação estratégica relativamente difícil. O fim da guerra se aproximava, e estavam perdendo a guerra. As condições eram péssimas. Mas o Exército ainda permanecia forte e bem suprido. Havia cerca de 4 milhões de japoneses em armas, e 1,2 milhão deles protgiam as ilhas japonesas.

Até os governantes mais linha dura no Japão sabiam que a guerra não podia prosseguir. A questão não era continuar ou não, mas como levar a guerra a uma conclusão sob as melhores condições possíveis. Os aliados (EUA, Grã-Bretanha e outros) – a União Soviética, lembrem, ainda estava neutra) exigiam “rendição incondicional”. Os líderes japoneses tinham esperança de que conseguiriam encontrar um modo de evitar tribunais de crimes de guerra, de manter a própria forma de governo e de preservar alguns dos territórios que haviam conquistado: Coreia, Vietnã, Burma, partes da Malásia e Indonésia, grande porção da China oriental e numerosas ilhas no Pacífico.

Os japoneses tinham dois planos para conseguir melhores condições para a rendição; tinham, em outras palavras, duas opções estratégicas. A primeira era diplomática. O Japão havia assinado um pacto de neutralidade por cinco anos com os soviéticos, em abril de 1941, que expiraria em 1946. Um grupo de líderes, a maioria civis, e liderados pelo ministro de Relações Exteriores Togo Shigenori tinha esperanças de convencer Stálin a mediar um acordo entre, por um lado os EUA e seus aliados, e, por outro, o Japão. Ainda que esse plano fosse coisa de longo prazo, refletia pensamento estratégico consistente e sólido. Afinal, interessava à União Soviética garantir que os termos desse eventual acordo não fossem excessivamente favoráveis aos EUA: qualquer ampliação na influência e poder dos EUA na Ásia significaria diminuição na influência e no poder dos soviéticos.

O segundo plano era militar, e a maioria dos proponentes eram também militares, liderados pelo ministro do Exército Anami Korechika. Esses contavam com as forças terrestres do Exército Imperial para infligir baixas pesadas nas forças norte-americanas quando invadissem. Se fossem bem-sucedidas, sentiam os japoneses, talvez conseguissem que os EUA oferecessem melhores termos. Essa estratégia também era movimento de longo prazo. Os EUA pareciam profundamente empenhados em obter rendição incondicional. Mas, dado que, sim, havia preocupação nos círculos militares dos EUA, para os quais as baixas em grandes números seriam fator impeditivo de qualquer invasão, a estratégia do alto comando japonês não era completamente sem sentido.

Um modo de aferir se foi o bombardeio de Hiroxima ou a invasão e declaração de guerra pelos soviéticos, que levou o Japão a render-se, é comparar o modo como esses eventos afetaram a situação estratégica. Depois que Hiroxima foi bombardeada dia 8 de agosto, as duas possibilidades continuavam abertas. Ainda seria possível pedir que Stálin fizesse alguma mediação (e as entradas do dia 8 de agosto no diário de Takagi mostram que pelo menos alguns líderes japoneses ainda cogitavam de tentar envolver Stálin). Também permanecia possível tentar combater uma última e decisiva batalha, para infligir aos EUA número pesado de baixas. A destruição de Hiroxima em nada reduziu a prontidão dos soldados japoneses entrincheirados nas praias das ilhas japonesas. Havia, sim, uma cidade a menos na retaguarda, mas os soldados continuavam em suas trincheiras, ainda tinham munição e aquela força militar não sofrera qualquer redução relevante. O bombardeio e a destruição de Hiroxima em nada alterou as opções estratégicas com as quais o Japão trabalhava.

Muito diferente disso, contudo, foi o impacto da declaração de guerra e a invasão, pelos soviéticos, da Mandchúria e da Ilha Sakhalin. Tão logo a União Soviética declarasse guerra, Stálin deixaria de poder atuar como mediador – passava a ser força beligerante. Equivale dizer que a opção diplomática foi varrida do mapa pelo movimento dos soviéticos. O efeito sobre a situação militar foi igualmente dramático. Muitas das melhores tropas do Japão haviam sido deslocadas para a parte sul das ilhas japonesas. Os militares haviam estimado corretamente que o primeiro alvo de uma invasão norte-americana seria a ilha de Kyushu, no extremo sul. O orgulhoso exército Kwangtung na Mandchúria, por exemplo, não passava de uma sombra do que fora, porque suas melhores unidades haviam sido deslocadas para defender o próprio Japão.

Quando os russos invadiram a Mandchúria, cortaram como manteiga o que um dia fora um exército de elite e muitas unidades russas só pararam de avançar quando ficaram sem combustível. O 16º Exército Soviético – 100 mil soldados – invadiu pela metade sul da Ilha Sakhalin. Tinham ordens para destruir a resistência japonesa ali e depois – dentro de 10 a 14 dias – estar preparados para invadir Hokkaido, a mais setentrional das ilhas japonesas. A força japonesa encarregada de defender Hokkaido, o Exército da 5ª Área, fora reduzida para duas divisões e duas brigadas, e ocupava posições fortificadas no lado leste da ilha. O plano de ataque dos soviéticos mandava invadir Hokkaido pelo oeste.

Não é preciso ser gênio militar para compreender que, por mais que fosse possível combater batalha decisiva com uma grande potência que invadisse de um lado, jamais seria possível combater duas grandes potências que invadissem de duas diferentes direções. A invasão soviética invalidou a estratégia da batalha decisiva dos militares, tão completamente como invalidou também a estratégia diplomática. Num só golpe, evaporaram-se todas as opções com que o Japão vinha trabalhando.

A invasão soviética foi estrategicamente decisiva – derrubou as duas opções do Japão. O ataque a Hiroxima nem tangenciou as estratégias japonesas, que permaneceram, depois do ataque, exatamente como estavam antes dele.

A declaração de guerra pelos soviéticos também alterou o cálculo de quanto tempo ainda havia para manobrar. A inteligência japonesa previa que as forças dos EUA dificilmente invadiriam nos meses seguintes. As forças soviéticas, por sua vez, podiam estar dentro do Japão em coisa de dez dias. A invasão soviética, sim, tornou extremamente urgente a necessidade de decidir sobre o fim da guerra.

E os líderes japoneses já sabiam bem disso já alguns meses. Numa reunião do Conselho Supremo, em junho de 1945, já haviam dito que “a entrada dos soviéticos nessa guerra determinará o destino do Império”. Kawabe, vice-comandante geral do Exército, disse, naquela mesma reunião, que “para a continuação da guerra, é absolutamente imperativo manter a paz nas relações entre O Império e a União Soviética.”

Os líderes do Japão, mostraram consistentemente absoluto desinteresse pelo bombardeio que estava destruindo suas cidades. Ainda que isso possa não ter sido bem verdade quando o bombardeio começou em março de 1945, certamente já era plena verdade quando Hiroxima foi atacada: os estrategistas japoneses viam o bombardeio de cidades como um show colateral sem importância, em termos de impacto estratégico.

Quando Truman, em frase que ganhou fama, ameaçou lançar “uma chuva de ruína” sobre cidades japonesas que não se rendessem, poucos, nos EUA, deram-se conta de que, na verdade, restava praticamente nada por destruir. Dia 7 de agosto, quando Truman lançou sua ameaça, restavam ao Japão apenas 10 cidades com mais de 100 mil habitantes que ainda não haviam sido bombardeadas. Depois que Nagasaki foi atacada dia 9 de agosto, restaram só nove. Quatro delas localizavam-se na ilha de Hokkaido, no extremo norte, difícil de bombardear por causa da distância em relação à Ilha Tinian, onde estava a base dos aviões dos EUA. Kioto, a antiga capital do Japão já havia sido retirada da lista de alvos por Henry Stimson, secretário da Guerra, por sua importância religiosa e simbólica. Assim, apesar do rugir da ameaça de Truman, depois que Nagasaki foi bombardeada só restavam quatro cidades importantes que ainda poderiam servir como alvo de bombas atômicas.

A amplidão da campanha da Força Aérea dos EUA no quesito bombardear cidades pode ser aferida pelo fato de que já haviam bombardeado tantas cidades japonesas, que só restavam ‘cidades’ com 30 mil habitantes, ou menos. No mundo moderno, 30 mil habitantes é população de vilarejo.

Claro que sempre seria possível rebombardear cidades já bombardeadas com bombas incendiárias. Mas essas cidades já estavam 50% destruídas, em média. Ou os EUA poderiam ter usado armas atômicas contra cidades menores. Mas só havia seis dessas (com população entre 30 mil e 100 mil habitantes), que ainda não haviam sido bombardeadas. Dado que o Japão já sofrera danos graves causados por bombas em 68 cidades e não se deixara abater, não surpreende que os líderes japoneses tampouco se tenham deixado impressionar muito pela ameaça de mais bombardeios. E não era ameaça estrategicamente crível.

Uma história conveniente

Apesar de haver essas três objeçõe poderosas, a interpretação tradicional ainda domina o pensamento da maioria das pessoas, principalmente nos EUA. Há forte resistência contra considerar os fatos. Mas, afinal, não se pode dizer que essa resistência seja surpreendente. É preciso não esquecermos o quanto é emocionalmente conveniente a versão tradicional para o ataque a Hiroxima – e para os dois lado, para o Japão, como para os EUA. Há ideias que persistem por serem verdadeiras, mas infelizmente também há ideias que persistem porque são emocionalmente confortadoras, vale dizer, porque suprem alguma carência psicológica importante. Por exemplo, ao final da guerra a interpretação tradicional de Hiroxima ajudou os líderes japoneses a alcançar vários importantes objetivos políticos, tanto no cenário doméstico como no cenário internacional.

Ponham-se no lugar do imperador. Você acaba de conduzir o país através de guerra desastrosa. A economia está em frangalhos. 80% das cidades foram bombardeadas e incendiadas. O Exército sofreu uma cadeia de derrotas terrívies. A Marinha foi dizimada e encurralada nos próprios portos. Há fome generalizada. Em resumo, a guerra foi total catástrofe e, pior que tudo, você vem mentindo ao seu povo, já há tempos, e escondeu a real gravidade da situação. O povo ficará chocado com a notícia de que o país rendeu-se. O que você pode ainda tentar? Admitir que fracassou miseravelmente? Emitir uma declaração de que você erros espetacularmente nas suas previsões, repetiu incontáveis vezes os próprios erros e causou dano monstruoso ao país? Ou você escolhe ‘transferir’ as culpas para um terrível novidade científica, uma bomba que ninguém jamais vira e não poderia prever? Num único passo, a possibilidade de transferir a derrota para o ‘evento’ bomba atômica ‘cancelou’ todos os erros de cálculo e de comando dos japoneses durante a guerra e varreu-os todos para baixo do tapete. A Bomba foi a desculpa perfeita por ter perdido a guerra. Além do mais, cancelava todos os tribunais de guerra e correspondentes investigações. Líderes japoneses encontravam na bomba um modo de afastar deles mesmos todas as culpas e responsabilidades.

Mas atribuir à bomba a derrota do Japão também serviu a três outros específicos objetivos políticos. Primeiro, ajudou a preservar a legitimidade do Imperador. Se a guerra fora perdida, não por erros cometidos, mas por ação de uma arma inimiga milagrosa invencível inesperada, nesse caso o povo japonês poderia continuar a apoiar o imperador-instituição.

Segundo, a tragédia gerada pela bomba atômica mobilizou a simpatia internacional. O Japão fizera guerra de agressão, com brutalidade terrível contra povos conquistados – comportamento que as nações com certeza condenariam. Mas poder apresentar o Japão como nação vítima – nação injustamente bombardeada por aquele terrível, horrível, jamais antes visto instrumento de guerra – ajudaria a apagar alguns dos feitos moralmente repugnantes dos militares japoneses. Desviar todas as atenções para as bombas atômicas ajudou a apresentar o Japão sob luz mais simpática e a esvaziar movimentos que pregassem outras punições por crimes de guerra.

E por fim, a versão de que a Bomba vencera a guerra também servia bem a interesses dos vencedores. A ocupação norte-americana só terminou oficialmente em 1952; nesse período, os EUA puderam mudar, ou reconstruir a sociedade japonesa, na direção que mais lhes interessava. Durante os primeiros dias da ocupação, muitos funcionários japoneses preocupavam-se com a ideia de que os norte-americanos estivessem decididos a abolir a instituição do imperador. E preocupavam-se também com o alto risco de serem acusados de terem cometido crimes de guerra e julgados em tribunais especiais (os tribunais para crimes de guerra que julgavam os governantes alemães já estavam em curso na Europa, quando o Japão rendeu-se). Asada Sadao, historiador japonês disse exatamente isso em várias entrevistas que deu depois da guerra, que “os oficiais japoneses (...) estavam obviamente ansiosos, querendo agradar os interrogadores norte-americanos.” Se os norte-americanos tanto queriam crer que a Bomba venceu a guerra, por que desapontá-los?

Atribuir o fim da guerra à bomba atômica serviu em vários sentidos a interesses do Japão. Mas também serviu a interesses dos EUA. Se a Bomba vencesse a guerra, a percepção do poderio militar dos EUA só aumentaria, a influência diplomática dos EUA na Ásia e em todo o mundo também cresceria, e a segurança dos EUA também sairia fortalecida.

Mas se os japoneses só se tivessem rendido quando os soviéticos declararam guerra e invadiram o país, nesse caso os soviéticos diriam que fizeram em quatro dias o que os EUA não conseguiram fazer em quatro anos; e cresceria a percepção do poder militar soviético; e cresceria a influência militar e a influência diplomática dos soviéticos. Com a Guerra Fria já em curso, declarar que o exército soviético fora o fator decisivo seria garantir ajuda e condições de avançar, ao inimigo.

É estranho, dada a discussão que desenvolvemos aqui, perceber o quanto os ‘fatos’ de Hiroxima e Nagasaki estão no cerne de tudo que pensamos sobre armas nucleares. Os eventos de que aquelas duas cidades foram palco são as pedras basilares de tudo que dizemos sobre a importância de armas nucleares. É crucial, para que as bombas atômicas preservem o status especialíssimo que ainda têm, que não se apliquem a elas as regras normais da guerra e das ameaças de guerra: a ameaça feita por Truman, de que faria chover “uma chuva de ruína” sobre o Japão, foi a primeira ameaça nuclear explícita que a história registrou. E é chave para a aura de ‘poder invencível’ que cerca as bombas atômicas e as torna tão importantes nas relações internacionais.

Mas o que fazer dessas conclusões, se a história oficial de Hiroxima está posta em dúvida? Hiroxima sempre foi o centro, o ponto a partir do qual irradiam todos os demais argumentos e conclusões. A história que nos contamos a nós mesmos, contudo, parece muito apartada dos fatos. O que pensar das armas atômicas, se esse descomunal primeiro ‘feito’ – o milagre da repentina rendição do Japão – é desmascarado e exposto como mito?

29 de maio de 2013

O que se disputa em território sírio neste momento?

Salem Nasser

Folha de S.Paulo

Que a União Europeia tenha levantado o embargo às armas para a Síria é apenas um dos tantos lances que agitaram nos últimos dias um cenário já difícil de entender.

A justificativa, o reconhecimento de uma necessidade de armar os rebeldes, está montada na premissa de que ainda o que acontece na Síria seria a revolta de um povo contra seu governo.

É verdade que grande parcela da população ainda quer a mudança do regime em quem enxerga o grande responsável por seus males, históricos e presentes. Mas também é verdade que há muito o embate na Síria é outro.

Com milhares de estrangeiros financiados, armados e treinados por tantas partes interessadas, travando uma guerra feroz contra o Exército sírio, muitos em nome de um sectarismo perigoso, o fim do embargo talvez não passe de oficialização daquilo que até aqui era oficioso.

Mais importante é outro fato recente: o reconhecimento oficial pelo Hizbullah libanês de sua participação, ao lado do Exército sírio, nas intensas batalhas pelo controle da região de Quseir.

A intensidade da luta, com os dois lados empenhando o que têm de melhor em suas forças, é indicativo da importância da região, entre outras coisas, por servir de principal caminho de passagem de armamento para o Hizbullah ­­que justifica sua participação como necessidade vital, uma luta em que está em jogo sua existência como movimento de resistência a Israel.

E essa percepção, verdadeira, é parte de um cenário em que muitos estão enxergando a oportunidade de, derrubando o regime sírio, ou neutralizando­o, enfraquecer mortalmente o inimigo militar mais imediato de Israel e de colocar em xeque a influência iraniana na região.

As vitórias militares da aliança Síria/Hizbullah, obtidas nos últimos dias, parecem ter afastado deles esses riscos, por enquanto. Elas se deram num momento em que, enquanto se prepara o encontro de Genebra orquestrado por EUA e Rússia, muitos relatos apontam para a existência de um acordo entre as duas potências, do qual apenas a implementação resta a acertar. E esse acordo abarcaria a permanência do presidente Bashar al­Assad, também por enquanto.

Como quer que seja, ainda que equivocados os relatos, parece evidente que os esforços militares e as decisões políticas, tais como a do embargo, são gestos de fortalecimento das posições respectivas às vésperas de uma negociação determinante. Resta saber se se pode apagar o fogo sectário que o fim do embargo ameaça alimentar.

SALEM H. NASSER é professor de direito internacional da Direito GV

19 de maio de 2013

Os motivos do fascínio de Michel Foucault pela doutrina neoliberal

Geoffroy de Lagasnerie
tradução André Telles

Folha de São Paulo

RESUMO A série em que a "Ilustríssima" adianta os principais lançamentos do ano traz capítulo de "A Última Lição de Michel Foucault", em que o sociólogo Geoffroy de Lagasnerie explica o interesse do filósofo francês (1926-84) pela corrente, considerada conservadora. O livro sai em junho pela Três Estrelas.

*

Só é possível compreender o interesse, que às vezes beira o fascínio, de Foucault pelo neoliberalismo com uma condição: romper com o hábito que consiste em vê-lo como uma ideologia conservadora ou reacionária. Com efeito, existe uma tendência mais do que notória na literatura midiática, política ou intelectual a descrever o neoliberalismo sob os traços de uma doutrina que tem como uma de suas características essenciais estar associada à perpetuação da ordem. Tratar-se-ia de uma concepção que se oporia permanentemente à mudança. Que trabalharia, fundamentalmente, para preservar a situação vigente.

Essa posição conservadora do neoliberalismo estaria presente em sua crítica às utopias que clamam pela criação de organizações alternativas à economia de mercado. Ao denunciar o socialismo, o comunismo etc., os adeptos do neoliberalismo anulariam a possibilidade de imaginar outros modelos de sociedade. Eles não incitariam à rebelião, e sim à resignação, à aceitação da situação vigente.

Mais grave, os dogmas neoliberais constituiriam um obstáculo a tudo que pudesse subverter o funcionamento estabelecido da economia de mercado; colocariam em xeque a validade de qualquer medida suscetível de ir, por exemplo, no sentido de uma maior redistribuição.

Em outros termos, o neoliberalismo se colocaria resolutamente do lado do status quo. Encarnaria uma das principais forças de resistência à mudança. Representaria a ideologia da classe dominante, isto é, da classe dos indivíduos que têm interesse na perpetuação da situação tal como vigora.

Essa percepção do neoliberalismo como conservadorismo encontra-se fortemente enraizada nos cérebros. Ela estrutura boa parte da retórica utilizada para desqualificá-lo. E, no entanto, funda-se num desconhecimento profundo dessa tradição. Além disso, mascara amplamente uma compreensão real desta última, neutralizando-a, reduzindo-a ao já conhecido, ao nível da evidência, ao que é fácil combater e denunciar, em vez de enfrentar sua especificidade.

Com efeito, a partir da Segunda Guerra Mundial, e manifestamente ao longo dos anos 1960, uma das preocupações básicas dos neoliberais foi distinguir-se do conservadorismo. Decerto liberais e conservadores armaram alianças no passado, podendo eventualmente defender posições idênticas. Mas seria unicamente porque compartilham inimigos comuns (os socialistas, os adeptos do Estado social). Como escreve Friedrich Hayek, em célebre artigo intitulado "Por que não sou conservador":

"Em uma época em que quase todos os movimentos reputados 'progressistas' recomendam coerções suplementares à liberdade individual, os que prezam a liberdade consagram logicamente suas energias à oposição. Dessa forma, veem-se a maior parte do tempo no mesmo lado daqueles que costumam resistir às mudanças. Hoje, no que se refere à política cotidiana, eles não têm outra escolha senão apoiar os partidos conservadores."

Porém, segundo Hayek (e muitos outros autores defenderão a mesma ideia), a proximidade entre liberais e conservadores para aí. Ela é puramente política --ou melhor, estratégica, conjuntural. Ela se enraíza numa intenção compartilhada de obstruir os movimentos que se definem como progressistas. Trata-se de uma aliança negativa, a qual não deve mascarar as oposições profundas que separam neoliberalismo e conservadorismo.

Essa tomada de posição é de grande importância na história das ideias, pois talvez constitua o elemento essencial da ruptura entre o neoliberalismo e o liberalismo clássico. Ela é a certidão de nascimento do neoliberalismo como doutrina autônoma, singular, irredutível ao que a precedeu.

RADICAL

De fato, os neoliberais não se cansarão de afirmar e denunciar: seus predecessores deixaram-se corromper pelo conservadorismo, aproximando-se demais da direita conservadora, até mesmo da direita reacionária, a ponto de só marginalmente diferenciar-se dela. Satisfeitos porque alguns de seus ideais triunfaram a partir de meados do século 19, eles retraíram-se pouco a pouco. E, por conseguinte, limitaram-se a defender a ordem vigente.

Dessa forma, o liberalismo deixou progressivamente de ser um movimento radical. Transformou-se numa máquina de preservar o status quo. Colocou-se do lado da ordem, do poder estabelecido. Em oposição às doutrinas revolucionárias, às aspirações à mudança, posicionou-se como avalista do realismo, do "racional em política".

Contudo, ao adotar tal postura, os liberais traíram a si próprios. E, sobretudo, enfraqueceram consideravelmente sua posição, deixando escancaradas as portas para o sucesso de seus inimigos socialistas: ao abandonar o terreno da especulação intelectual e da imaginação política, o liberalismo clássico deixou de suscitar entusiasmo, de atuar como proponente dos ideais pelos quais valia a pena lutar.

Justamente por isso, os socialistas tiveram a oportunidade de figurar como os únicos rebeldes, os únicos contestadores autênticos: "Durante aproximadamente meio século, apenas os socialistas propuseram um programa explícito de evolução social, uma certa imagem da sociedade futura pela qual eles trabalhavam e um conjunto de princípios gerais para guiar a reflexão sobre pontos precisos".

Os pensadores neoliberais, portanto, pretendem desfazer essa divisão, esse abismo aberto entre o liberalismo conservador de um lado e o socialismo renovador do outro, o partido do imobilismo e o partido do movimento.

Ao contrário dos liberais clássicos, eles contestam ao socialismo o seu monopólio sobre a produção das utopias políticas e filosóficas. Querem fazer de sua doutrina uma doutrina radical --revolucionária. Nesse sentido, não é fortuito um dos livros mais importantes da tradição neoliberal em sua versão mais extrema, publicado por Robert Nozick em 1974 e que pretendia restituir ao liberalismo seu poder de desestabilização original, intitular-se "Anarquia, Estado e Utopia".

Analogamente, já em 1949 Hayek evocava a necessidade de construir o que ele denominava uma "utopia liberal", ou seja, "um programa que não fosse nem uma simples defesa da ordem estabelecida, nem uma espécie de socialismo diluído, mas um verdadeiro radicalismo liberal que não poupasse as suscetibilidades dos poderosos (inclusive sindicatos), não fosse demasiadamente prático e não se confinasse no que parecesse politicamente possível hoje".

Compreender o neoliberalismo, portanto, não é compreender uma realidade econômica e social que seria dotada de uma materialidade e uma objetividade. É apreender um projeto, uma ambição jamais consumada e que exige ser perpetuamente reativada. É apreender algo da ordem da "aspiração".

Foucault vai inclusive mais longe, definindo o liberalismo como uma espécie de ética, de "reivindicação global, multiforme, ambígua, com enraizamentos à direita e à esquerda". Não é alguma coisa de constituído, que funcionaria como uma alternativa política à qual poderíamos pespegar um programa bem definido ou determinado plano. É algo mais difuso: é um humor, um "lar utópico", um "estilo geral de pensamento, análise e imaginação".

Nota
As notas bibliográficas foram suprimidas.

9 de maio de 2013

Sapo na garganta? Como Purgar um Demônio

A Europa moderna inicial estava inundada de casos de possessão demoníaca. Milhares de homens, mulheres e crianças conversavam em línguas das quais não tinham conhecimento, rasgavam a própria carne e proferiam...

Terry Eagleton


Vol. 35 No. 9 · 9 May 2013

The Devil Within: Possession and Exorcism in the Christian West 
por Brian Levack.
Yale, 346 pp., £25, março 2013, 978 0 300 11472 0

Tradução / A Europa moderna dos primeiros tempos foi farta de casos de possessão demoníaca. Milhares de homens, mulheres e crianças falavam línguas que jamais tinham ouvido, fatiavam a própria carne e berravam blasfêmias e palavrões. Vomitaram vastas quantidades de pregos, parafusos, alfinetes, sangue, penas, pedras, moedas, carvão, excrementos, retalhos de pano, cabelos, e grunhiam e zurravam como animais. Alguns se dobravam em convulsões, flutuavam pela sala ou manifestavam força física sobre-humana. Os olhos arregalavam-se, pernas e braços ficavam rígidos, os rostos torcidos e gargantas e estômagos inchavam monstruosamente. Havia os que entravam em transe, adivinhavam o futuro, revelavam segredos que não se podia entender como chegaram a eles.

No final do século 17, um frade franciscano tirou um enorme sapo da boca de uma mulher endemoniada, e a cabeça de um jovem escocês virou para as costas, circuito bem menos impressionante que aquele, de Linda Blair, em O Exorcista. Uma mulher vomitou uma enguia viva, seguida de quase 11 kg de substâncias variadas, duas vezes por dia, por duas semanas. (Admiravelmente ponderado, Brian Levack, autor de The Devil Within, avisa que “a veracidade desses depoimentos pode ser questionada sob vários aspectos”.) As pernas de algumas mulheres jovens ficaram tão rígidas, que nem o esforço de vários homens fortes conseguiu dobrá-las; outras arqueavam a coluna para trás, como contorcionistas, e ocasionalmente também lambiam o chão, quando arqueadas. Alguns homens e mulheres levitaram (os católicos comprovadamente melhores levitadores que os protestantes); outros invertiam o processo, tornando-se tão pesados que nada conseguia movê-los.

Um endemoniado alemão, no final do século 17 ganhou fama por ter tossido 400 potes de sangue. Dizia-se que alguns dos possuídos passavam meses, até anos, sem comer nem beber. Outros se punham a falar latim, grego ou hebraico, e uma mulher italiana e analfabeta declamou versos da Eneida no original. Dado que eram tidos como anjos caídos, os demônios manifestavam a mais alta inteligência com que Deus adornara os espíritos angélicos e tinham, presumivelmente, boa base dos clássicos. Em países católicos, os caídos nas garras de Satã cuspiam em crucifixos, vomitavam sobre a hóstia da comunhão, perseguiam padres e insultavam a Virgem Maria. Como em A Profecia, reagiam com terror e nojo a objetos sacros. 

Freiras possuídas faziam obscenos gestos sexuais, levantavam as saias e adotavam comportamento que, segundo um comentarista, “teriam deixado atônitos até os frequentadores do mais imundo bordel do país”. Bem menos lascivamente, as endemoniadas jovens da Salem do século 17 faziam discursos tresloucados, metiam-se debaixo das cadeiras e enfiavam-se em tocas.

Acreditava-se que o corpo humano fosse poroso, e que os espíritos maléficos que conseguiam entrar vagavam por ali, à vontade entre as cavidades internas, atacando órgãos indiscriminadamente. O maior número de demônios que jamais invadiram corpo humano, dizia-se, foi 12.652, todos os quais tomaram posse do corpo de uma única jovem alemã de 16 anos, em 1584. Mais frequentemente, o Diabo instalava-se ele mesmo, sem admitir co-habitação com subordinados. Mas só podia fazê-lo com permissão de Deus, o que então levantava a questão, teologicamente embaraçadora, de por que o Altíssimo permitiria que a língua de mulheres jovens e puras inchasse a ponto de tocar o queixo.

Quando múltiplos demônios eram exorcizados, os endemoniados às vezes inventavam nomes para todos eles, em resposta ao questionário do exorcista. Vários endemoniados ingleses no século 16 apresentaram seus ocupantes demoníacos como Pippin, Maho, Philpot, Modu e Soforce, que bem passaria como cartão de visita de empresa de advocacia. Muitos casos de possessão eram fraudes flagrantes. As pessoas fingiam estar tomadas pelo Diabo, para atrair atenção, violar impunemente normas sociais ou morais, receber esmolas de vizinhos solidários ou (porque se acreditava que as bruxas podiam ordenar a possessão de outros) incriminar um inimigo. Mas a fraude não explica todos os casos.

Até o final do século 19, epilepsia, histeria e melancolia (ou depressão clínica) também eram consideradas causas primárias. De fato, a histeria ainda era usada para explicar acordos com Belzebu, no início do século 17. Nossos ancestrais não eram, de modo algum, tão crédulos quanto às vezes imaginamos: inúmeros cristãos devotos duvidavam de tudo aquilo. Thomas Hobbes foi um dos muitos que viram a possessão demoníaca como metáfora de doença mental. E esse parece ter sido também o pensamento de Spinoza. Desde os primeiros anos do Renascimento, inúmeros médicos diziam que havia causas naturais para a possessão demoníaca. Como também alguns de seus predecessores gregos e helênicos.

A crença no poder de espíritos maléficos para infestar o corpo humano nunca foi questão de fé para os católicos, e nenhum católico foi processado por heresia por negar esse poder. Houve os que acreditavam que todas as doenças, físicas ou mentais, eram trabalho do Demo, convicção da qual Jesus pode ter partilhado. Chama a atenção que Jesus jamais tenha instado os doentes a reconciliarem-se com as próprias doenças. Ao contrário: Jesus parece considerar as doenças dos doentes como frutos do mal; e curar os doentes, como parte de sua missão contra os poderes das trevas.

Nas décadas recentes, os (ex-)endemoniados têm sido diagnosticados como portadores de desordem bipolar, esquizofrenia catatônica, epilepsia, atonias musculares, síndrome de Tourette, envenenamento por fungos diversos, anorexia, desordens de personalidade e inúmeras outras moléstias. Levack não se deixa convencer por essas especulações. Em parte, porque nenhuma dessas síndromes dão conta dos sintomas padrão da possessão demoníaca. Epiléticos normalmente não vomitam sapos, e os tomados pela melancolia nem sempre se põem a falar línguas estrangeiras. Mas Levack não se deixa persuadir, também, porque suspeita que os diagnósticos psiquiátricos sejam a-históricos. No seu modo de ver, tornar-se presa do Demônio sempre tem especificidades culturais. Não se pode, diz ele, usar modelos da psicologia contemporânea, para explicar a mentalidade de gente que viveu há vários séculos. Não há dúvidas de que é implausível. Os sofrimentos psicológicos, como os físicos, manifestam um grau de continuidade ao longo das eras. Sadismo, ansiedade e paranoia assumem formas diferentes em diferentes tempos, mas há semelhanças de família suficientes que nos permitem falar de, em linhas gerais, uma mesma condição psicológica.

Todas as doenças, escreve Levack, “são socialmente construídas e não podem ser compreendidas se não são estudadas no contexto cultural em que emergem”. O câncer não é constructo social, no sentido em que o é a melancolia; e um médico alemão pode tratar de um camponês peruano com artrite, mesmo sem saber grande coisa sobre o seu contexto cultural.

Porque capitula ante um culturalismo “de moda”, Levack não esclarece que papel, se houver algum, ele entende que a doença mental desempenhe no comportamento demoníaco. Por outro lado, desconfia muito profundamente das respostas universalistas; considera a definição moderna de histeria jurássica demais para ser útil; e descarta rapidamente demais a noção de histeria de massa – que seria explicação razoável para as várias epidemias de invasão e ocupação diabólica que irrompem de tempos em tempos. Por outro lado, concede que o distúrbio psicológico possa dar conta do negócio em tela.

Seu livro, pois, combina o ceticismo contra as explicações médicas, com a concessão de que a histeria e a possessão demoníaca possam estar intimamente relacionadas.

Mesmo assim, a atenção que Levack dá às diferenças culturais abre caminho para alguns insights fascinantes. Mostra que no Novo Testamento os escravizados pelos demônios só manifestam alguns dos sintomas de seus primeiros sucessores modernos: ali, não alucinam, não falam línguas estrangeiras, nem têm comportamento obsceno. Sitiados pelos espíritos perversos, os católicos tendem a ter comportamento diferente dos protestantes.

Para o protestantismo, credo menos materialista, o Diabo traz ameaça menos física que espiritual. Católicos apanhados nas garras de Satã mostravam horror ante relíquias sagradas e crucifixos; protestantes, podiam ser contidos e controlados com uma única Bíblia. A possessão coletiva era fenômeno predominantemente católico – porque o catolicismo era negócio menos individualista que o protestantismo. O aspecto sexual da possessão – contorcimentos e gemidos durante a penetração – era muito mais pronunciado entre católicos, que entre protestantes. Católicos cuspiam objetos estranhos com muito mais alta frequência. Judeus endemoniados, nos primeiros tempos da Europa moderna, tendiam a ser tomados, mas não por demônios: pelos espíritos dos ancestrais desencarnados.

O tipo de força que assaltava os corpos dependia muito do sistema de crenças: muçulmanos que tivessem experiências de quase-morte dificilmente veriam uma imagem de Cristo caminhando em direção a eles. Os calvinistas, esses, eram quase impenetráveis à penetração demoníaca: apenas 11 miseráveis casos foram registrados na Escócia moderna, e só 25 em círculos britânicos puritanos ou Dissidentes [orig. Dissenting]. Se, como Levack acredita, as bruxas de Salem não foram caso de possessão demoníaca, e nem elas, nem nenhum observador jamais disse que tivessem sido, ficamos só com sete endemoniados na Inglaterra no final do século 17.

Na opinião de Levack, os endemoniados têm de ser compreendidos como atores que atuavam conforme um roteiro codificado em suas culturas religiosas, numa performance teatral que envolvia eles mesmos, o exorcista e, como público, a comunidade. Embora a performance fosse predeterminada, admitia-se o improviso ocasional. As pessoas inflavam seus personagens lendo relatos de possessões alheias – o que implica que a disseminação de textos impressos teve papel vital no negócio todo. Atores e especialistas em treinar atores várias vezes apareceram envolvidos em casos de falsa possessão. Os exorcismos podiam acontecer em plataformas, ante vários milhares de espectadores. Eram exercícios de propaganda, para disseminar a fé, demonstrando o poder da Igreja Católica. (O protestantismo, credo muito menos teatral, rejeitava esses rituais, que considerava supersticiosos.) Os exorcistas seguiam o papel que lhes era prescrito, estimulando o desempenho teatral dos possuídos mediante insistente implantação de sugestões, que acrescentavam, pela repetição, novas linhas no roteiro dos infelizes. Ao fazê-lo, o exorcismo sempre agravava os sintomas que deveria aliviar – o que bem se pode entender como uma espécie de homeopatia espiritual. Só levando a aflição a ponto de crise, espancando a cabeça dos endemoniados indefesos, cuspindo-lhes na cara, apertando os seios da endemoniada ou prendendo-a ao chão, pelo pescoço, com o pé, o exorcista conseguia expelir as potências ocupantes. As quais emergiam do corpo endemoniado sob a forma de sapos ou ouriços, que às vezes conseguiam escapar pelo Portal do Diabo, os genitais femininos. São Martinho de Tours, certa vez, para conseguir exorcizar um homem, passou-lhe o braço pelo pescoço e apertou, obrigando o demônio, assim, a sair pelo ânus. Os exorcismos católicos eram questão de oferta e demanda: o sucesso aumentava a popularidade, o que ajuda a explicar por que havia tantos casos de possessão católica. A cura, em resumo, ajudava a propagar a doença. Houve muitos exorcistas viajantes que cobravam por seus serviços, como, hoje, há espiritualistas itinerantes.

***

Levack estima que pelo menos ¾ dos endemoniados nos primeiros tempos da Europa moderna eram mulheres. A piedade entre as mulheres ganhava nova ênfase, além do culto à santidade da mulher; e a busca de perfeição moral poder ter alimentado a culpa e a ansiedade entre mulheres conscientes de suas fragilidades de espírito. Levack afirma que bom número de freiras no período cultivavam fantasias sexuais que envolviam seus confessores ou, então, tinham casos com eles. Assumia-se, em geral, que o Diabo assaltava com mais veemência os aspirantes à santidade, que os preferia aos moralmente medíocres; portanto, a linha a separar santidade e danação era perigosamente tênue. Pode-se chamar de Síndrome de Graham Greene. Dizia-se que Satã tinha mais poder nos monastérios, onde muitos homens santos e mulheres santas tinham desmaios e transes, visões e alucinações, jejuavam por longos períodos e demonstravam habilidades para falar línguas que não se tinha notícias de que tivessem estudado.

Que pecadores e santos são íntimos é uma venerável crença religiosa. O próprio Diabo, afinal, foi, antes, anjo. Ninguém pode ser condenado ao inferno, se não compreender alguma coisa, pouco, que seja, do divino amor ao qual está dando as costas. Por isso William Golding faz seu malfadado personagem Pincher Martin berrar: “Cago para esse seu paraíso”, enquanto os relâmpagos negros da divindade, com as pinças fechadas de lagosta, operam pacientemente para derrubar as autodefesas da vítima. Adrian Leverkühn, malfadado personagem de Thomas Mann, herói de Doctor Faustus, escolhe estudar teologia na universidade, decidido a conhecer mais de perto a oposição.

Como os santos, os endemoniados pervertidos constituem uma aristocracia espiritual, uma elite privilegiada, tão entendida e au fait, nas questões metafísicas, quanto o mais desapegado dos mártires; por isso, para os Greene e Mauriac e assemelhados, são incomparavelmente superiores às classes médias morais. O Príncipe das Trevas é um gentleman. A equipe do Diabo negocia em termos de Bem e Mal, não se envolve em negócios suburbanos de Certo e Errado.

O pico das possessões demoníacas parece ter acontecido no século 17, mas persistiu ao longo da Idade da Razão. Muita gente ainda acreditava que acontecessem, em lugares onde se acreditava que o Iluminismo já avançara consideravelmente.

Houve outra avançada das incursões diabólicas nos anos 1960s e 1970s, gerada em parte por O Exorcista. Segundo Levack, o interesse pelo fenômeno cresceu muitíssimo nas últimas duas décadas, nas costas das igrejas pentecostais e do pentecostalismo. Num exorcismo pentecostal em Kansas City, um jovem, dado a masturbação compulsiva, autossodomia e bestialismo, com registro de tentativas mal sucedidas de autofelação aceitou renovar seu compromisso com Jesus Cristo. Levack não explica como alguém suficientemente pouco alongado e fora de forma para fracassar na autofelação teria conseguido sucesso na autossodomia. Em 1973, dois padres alemães foram julgados pelo assassinato de uma mulher jovem, que tentaram exorcizar 67 vezes. Em 1999, a Igreja Católica publicou um novo ritual de exorcismo, postulando a necessidade de assistência médica e pastoral à vítima, antes de o divino maquinário ser posto em movimento. Apesar disso, há provas de que alguns raros exorcistas católicos manifestaram desejo de mandar os endemoniados para o psiquiatra. Em 2004, uma universidade romana, com íntimos laços com o Vaticano, começou a oferecer aos sacerdotes um curso de quatro meses de exorcismo; e dioceses católicas em todo o mundo foram convocadas para indicar um exorcista oficial.

Em 2010, aconteceu em Varsóvia o Congresso Nacional de Exorcistas Poloneses, em parte com o objetivo de reagir à imagem hollywoodiana de exorcistas que brandem crucifixos, em batalha contra um Satã monstruosamente priápico, pelo corpo de uma menina da qual jorram obcenidades e vômito colorido. Mas a modernização da indústria da possessão ainda parece ter de andar mais: um dos padres poloneses que participava do Congresso, identificou como endemoniados e possuídos alguns que mostraram dificuldade para entrar numa igreja, que sentiram falta de ar ou desmaiaram, quando afinal conseguiram entrar, ou que, depois de entrarem, jogaram-se dramaticamente ao chão. O fato de que há muitos católicos, hoje, que não conseguem entrar em igrejas, ou que se sentem mal lá dentro, parece ter escapado à sua atenção. Muitos dos casos de possessão nos tempos modernos, como em tempos anteriores, aconteceram em comunidades católicas.

Sabe-se que cerca de meio milhão de pessoas na Itália, hoje, visitam anualmente um exorcista, como outros visitam o dentista ou o oftalmologista. Não se sabe se essa preponderância de papistas explica-se pela superioridade espiritual dos católicos em relação a outras fés, o que seria o maior prêmio que o Diabo poderia desejar, ou se se explica pela inferioridade espiritual dos mesmos, o que os deixa ainda mais expostos ao assalto.

O estudo erudito de Levack, de leitura absorvente, se beneficiaria com um toque de teologia. Ele lembra que o nome “Satã”, em hebreu, significa “adversário” ou “acusador”; e que a Bíblia algumas vezes o vê como o instrumento de um Deus irado. Mas são pontos que exigem alguma elaboração. Satã é a imagem de Yahweh como juiz e patriarca – como um Deus dado a xiliques de prima Donna irascível, que se tem de manter sempre de bom humor. Jesus, ao contrário, é a imagem de Deus como amante, camarada e conselheiro do setor de Defesa. Dado o masoquismo crônico de que padecem, muitos tendem a preferir o Deus prima donna, ao Deus camarada.

Há algo de profundamente gratificante num Deus safado, que aliviará você, com castigos, de sua culpa; e há algo de enervante num Deus que perdoa por definição, porque ele também é carne e sangue. A possessão demoníaca é uma manifestação extrema daquela culpa e ansiedade, ponto no qual, como acontece com o sintoma neurótico, ambas são manifestas e renegadas. Se a culpa brota de dentro, ela também flui de uma força de alienação que também fez ninho ali, e de tal modo que o crime nem é, de fato, culpa sua.

A ideia de que se pode ser tomado por potências de alienação muda o conceito moderno de autonomia. A seu modo, ela reconhece que há um nível no qual homens e mulheres não se pertencem a eles mesmos. Nossa relação conosco mesmos não é nossa relação com uma propriedade. Como o conceito de inconsciente sugere, há forças destrutivas sobre as quais só temos controle precário, e que podem ganhar poder mortal, por elas mesmas. Mas há modos mais produtivos de reconhecer que, num certo nível, não pertencemos a nós mesmos. Mais produtivos que cuspir sapos.  

1 de maio de 2013

Como o subalterno fala?

Teoria pós-colonial desconsidera o valor duradouro do universalismo iluminista por sua própria conta e risco.

Joan Birch


Ilustração original por Auguste Raffet, gravura por Hébert.

Nas décadas recentes, a teoria pós-colonial amplamente substituiu o marxismo como perspectiva dominante entre intelectuais engajados no projeto de examinar criticamente a relação entre o mundo ocidental e o mundo não-ocidental. Originada nas ciências humanas, a teoria pós-colonial subsequentemente se tornou crescentemente influente na história, antropologia e ciências sociais. Sua rejeição do universalismo e meta-narrativas associadas com o pensamento Iluminista se concatenou com uma virada mais ampla da esquerda intelectual durante os anos de 1980 e 1990.

O novo livro de Vivek Chibber, A Teoria Pós-Colonial e o Espectro do Capital, representa um desafio de grande alcance aos princípios centrais da teoria pós-colonial. Focando particularmente na vertente da teoria pós-colonial conhecido como estudos subalternos, Chibber advoga vigorosamente que podemos – devemos – conceituar o mundo não-ocidental através das mesmas lentes analíticas que usamos para entender o desenrolar no ocidente. Ele oferece uma defesa sustentada de abordagens teóricas que enfatizam categorias universais como capitalismo e classe. Seu trabalho constitui uma argumentação da continuidade da relevância do marxismo em face de alguns de seus mais severos críticos.

Chibber foi entrevistado pela Jacobin por Jonah Birch, um estudante de pós-graduação em sociologia pela Universidade de Nova York.

Na base da teoria pós-colonial está a noção que as categorias ocidentais não podem ser aplicadas a sociedade pós-coloniais como a Índia. No que se baseia tal alegação?

Esse é provavelmente o argumento isolado mais importante dos estudos pós-coloniais, e é inclusive o que torna tão importante se defrontar com eles. Não houve nenhum conjunto realmente proeminente de ideias associadas à esquerda nos últimos 150 anos que tenha insistido em negar o ethos científico e a aplicabilidade de categorias provenientes do iluminismo liberal e do iluminismo radical – categorias como capital, democracia, liberalismo, racionalidade e objetividade. Houve filósofos que criticaram tais orientações, mas eles raramente conquistaram qualquer atração relevante sobre a esquerda. Os teóricos pós-coloniais são os primeiros a fazê-lo.

Tal discurso vem, na verdade, sobre uma premissa sociológica de fundo: para que as categorias da economia política e do iluminismo tenham qualquer utilidade, o capitalismo deve se espalhar pelo mundo todo. Isso é chamado de “universalização do capital”.

O argumento segue assim: as categorias universalizantes associadas com o pensamento iluminista são apenas tão legítimas quanto as tendências universalizantes do capital. E os teóricos pós-coloniais negam que o capital tenha de fato se universalizado – ou, mais importante, que sequer fosse possível sua universalização ao redor do globo. Uma vez que o capitalismo não se universalizou e nem pode fazê-lo, as categorias que pessoas como Marx desenvolveram para entender o capitalismo também não podem ser universalizadas.

O que isso significa para a teoria pós-colonial é que as partes do globo onde a universalização do capital falhou precisam geral suas próprias categorias locais. E mais importante, significa que teorias como o marxismo, que tenta utilizar as categorias da economia política, não estão apenas erradas, mas são eurocêntricas, e não apenas eurocêntricas, mas são parte do impulso colonial e imperial do ocidente. Estão, portanto, implicadas no imperialismo. Novamente, esse é um argumento bastante inovador para a esquerda.

O que te fez decidir focar nos estudos subalternos como um caminho para a crítica da teoria pós-colonial de maneira mais geral?

A teoria pós-colonial é um conjunto de ideias bem difuso. Na verdade, provém dos estudos literários e culturais, e teve neles sua influência inicial. Então se espalhou para outras áreas de estudo, a história e a antropologia. Espalhou-se para tais campos por causa da influência da cultura e da teoria cultural de 1980 em diante. Então, ao fim de 1980 e no começo de 1990, disciplinas tais como a história, a antropologia, os estudos do oriente médio e os estudos do sul asiático foram infundidos com um giro brusco em direção ao que agora conhecemos como teoria pós-colonial.

Para atingir a teoria se enfrentam alguns problemas básicos: porque é tão difusa, é difícil definir quais são suas proposições centrais, então antes de tudo é difícil saber exatamente o que criticar. Inclusive, seus defensores são capazes de facilmente refutar qualquer crítica apontando outros aspectos que você pode ter deixado passar na teoria, dizendo que você focou nos aspectos errados. Por conta disso, eu tive que encontrar alguns componentes centrais da teoria – algum fluxo de teorização no interior dos estudos pós-coloniais – que fossem consistentes, coerentes e altamente influentes.

Eu também queria focar naquelas dimensões da teoria centradas na história, desenvolvimento histórico e estruturas sociais, e não na crítica literária. Os estudos subalternos encaixaram em todos esses três moldes: têm sido extremamente influentes nos estudos da área; é, sendo justo, consistente internamente e se foca sobre a história e a estrutura social. Como uma vertente da teoria, têm sido bastante influente em parte por conta de sua consistência interna, mas também parcialmente por seus maiores proponentes virem de uma base marxista e estarem todos baseados na Índia ou em partes do Terceiro Mundo. Isso os deu uma grande legitimidade e credibilidade, tanto como críticos do marxismo como expoente de um novo modo de entender o Sul Global. É através dos estudos dos subalternistas que essas noções sobre a falha na universalização do capital e a necessidade de categorias nativas tornaram-se respeitáveis.

De acordo com os teóricos dos estudos subalternos, porque a tendência universalizante do capitalismo se rompeu no mundo pós-colonial? O que há nessas sociedades que impediu o progresso do capitalismo?

Os estudos subalternos oferecem dois argumentos distintos para como e quando a universalização impulsionada pelo capital foi bloqueada. Um argumento vem de Ranajit Guha. Guha localiza o impulso universalizante do capital na habilidade de um agente particular – nomeadamente, a burguesia, a classe capitalista – de derrubar a ordem feudal e construir uma coalização de classes que inclui não apenas capitalistas e comerciantes, mas inclusive trabalhadores e camponeses. A através da aliança pavimentada, o capital deveria erigir uma nova ordem política, que não é apenas pró-capitalista nos termos da defesa dos direitos de propriedade dos capitalistas, mas é também uma ordem liberal, abrangente e consensual.

Então, para que o impulso universalizante do capital seja real, diz Guha, ele deve se expressar na emergência de uma classe capitalista que construa uma ordem consensual e liberal. Essa ordem substituiu o antigo regime, e em tal universalização ela expressa os interesses dos capitalistas como interesses universais. O capital, como diz Guha, obtém a habilidade de falar por toda a sociedade: não apenas como classe dominante, mas também hegemônica que não precisa da coerção para manter seu poder.

Então Guha localiza esse impulso universalizante na construção de uma cultura política abrangente. O ponto fulcral para Guha é que a burguesia no Ocidente foi capaz de atingir tal ordem enquanto a burguesia no Oriente falhou em fazê-lo. Ao invés de derrubar o feudalismo, realizou algum tipo de acordo com as classes feudais; ao invés de tornar-se a força hegemônica com uma coalização ampla de diversas classes, tentou ao máximo evitar o envolvimento dos camponeses e da classe trabalhadora. Ao invés de erigir uma ordem política consensual e abrangente, pôs em pé ordens políticas altamente instáveis e francamente autoritárias. Manteve o fosso entre a cultura das classes subalternas e a das elites.

Então, para Guha, enquanto no Ocidente a burguesia foi capaz de falar por todas as diversas classes, no Oriente ela falhou em tal objetivo, fazendo-se dominante, mas não hegemônica. Isso faz com que a modernidade nas duas partes do mundo seja fundamentalmente diferente, gerando dinâmicas políticas distintas no Oriente e no Ocidente, e isso significa que o impulso universalizante do capital falhou.

Então o argumento consiste em uma alegação sobre o papel da burguesia no Oriente, e a falha de sua contraparte nas sociedades pós-coloniais?

Para Guha, absolutamente, e os grupos de estudos subalternos aceitam esses argumentos, em grande parte sem maiores debates. Eles descrevem a situação – a condição do Oriente – como uma condição na qual a burguesia domina, mas carece de hegemonia, enquanto no Ocidente há tanto domínio como hegemonia.

Agora, o problema com isso é, como você disse, que o cerne do argumento é uma determinada descrição das conquistas da burguesia Ocidental. O argumento, infelizmente, tem pouca base histórica. Houve um tempo, no século XIX, no começo do século XX, mesmo até os anos 50 em que muitos historiadores aceitaram esse quadro da ascensão da burguesia no Ocidente. Nos últimos 30 ou 40 anos, porém, ele foi amplamente rejeitado, mesmo entre marxistas.

O que é estranho é que o livro de Guha e seu artigo foram escritos como se a crítica dessa abordagem nunca tivesse sido feita. E o que é ainda mais estranho é que a profissão da história – na qual os estudos subalternos têm sido tão influentes – nunca questionou esse fundamento do projeto dos estudos subalternos, ainda que todos eles anunciem que esse é o fundamento. A burguesia no Ocidente nunca aspirou aos objetivos que Guha lhe atribui: nunca tentou trazer à tona uma cultura política consensual ou representar os interesses da classe trabalhadora. Em verdade, lutou com unhas e dentes contra ela por séculos após as chamadas revoluções burguesas. Quando essas liberdades foram finalmente atingidas, foi através de uma luta bastante intensa dos despossuídos assalariados contra os heróis da narrativa de Guha, a burguesia. Então a ironia é que Guha realmente trabalha com uma noção incrivelmente ingênua, mesmo ideológica da experiência Ocidental. Ele não vê que os capitalistas foram, em todos os lugares e sempre, hostis à extensão dos direitos políticos ao povo trabalhador.

Então esse é um dos argumentos sobre a especificidade radical do mundo colonial e pós-colonial. Mas você disse antes que há um outro?

Sim, o segundo argumento vem principalmente do trabalho de Dipesh Chakrabarty. Suas dúvidas sobre a universalização do capital são distintas das de Guha. Guha localiza a tendência à universaliação do capital em um agente particular: a burguesia. Chakrabarty a localiza na habilidade do capitalismo de transformar todas as relações sociais aonde quer que ele vá. E ele conclui que ele falhou em tal prova, porque lhe parece que há várias práticas culturais, sociais e políticas no Oriente que não se conformam ao seu modelo de como a cultura e sistema político capitalista deveriam parecer.

Então, em sua visão, o teste para uma universalização bem-sucedida do capital é que todas as práticas sociais devem ser imersas na lógica do capital. Ele nunca especifica claramente o que é a lógica do capital, mas há alguns parâmetros amplos que ele tem em mente.

Parece uma meta bastante alta.

Sim, esse é o ponto: é uma meta impossível. Então se você descobre que na Índia práticas matrimoniais ainda usam antigos rituais; se você descobre que na África as pessoas ainda tendem a rezar enquanto estão trabalhando – esse tipo de prática representa uma falha da universalização do capital.

O que eu digo em meu livro é que isso é meio bizarro: tudo o que a universalização do capital requer é que a lógica econômica do capitalismo seja implantada em várias partes do mundo e que ele se reproduza com sucesso ao longo do tempo. Isso irá, é claro, gerar certas mudança culturais e política também. De qualquer modo, não se requer que tudo, ou quase tudo, das práticas culturais de uma região sejam transformadas de acordo com algum tipo de linha capitalista identificável.

Esse é o argumento teórico que você defende em seu livro quanto à universalização capitalista não requerer que se apague toda divisão social.

Certo.Uma manobra típica dos teóricos pós-coloniais é dizer algo como: o marxismo se baseia em categorias abstratas, universalizantes. Mas para essas categorias terem aplicação, a realidade deveria parecer exatamente com as descrições abstratas do capital, dos trabalhadores, do estado, etc. Mas, dizem os teóricos pós-coloniais, a realidade é muito mais diversa. Trabalhadores vestem roupas tão coloridas: rezam enquanto trabalham, capitalistas consultam astrólogos – isso não parece nada com o que Marx descreve no Capital. Então isso deve significar que as categorias do capital não são realmente aplicáveis aqui. O argumento acaba sendo que qualquer desvio da realidade concreta das descrições abstratas da teoria é um problema da teoria. Mas isso é tolo, indo além das palavras: isso significa que você não pode ter uma teoria. Porque deveria importar se os capitalistas consultam astrólogos contanto que eles são movidos a acumular lucros? Similarmente, não importa se os trabalhadores rezam no chão de fábrica contanto que eles trabalhem. Isso é tudo o que a teoria requer. Isso não é dizer que diferenças culturais desaparecerão; é dizer que essas diferenças não importam para a disseminação do capitalismo, contanto que os agentes obedeçam a compulsão que lhe inscreve sua posição nas estruturas capitalistas. Eu vou a distâncias consideráveis para explicar isso no livro.

Muito do apelo da teoria pós-colonial reflete o desejo disseminado de evitar o eurocentrismo e entender a importância das especificidades locais e culturais quanto às categorias, formas, identidades, e que é preciso entender as pessoas como elas eram, ou são, não apenas como abstrações. Mas eu pondero se não há inclusive um perigo nesse raciocínio sobre a especificidade cultural das culturas não-Ocidentais, e se isso não é uma forma de essencialismo cultural.

Absolutamente, esse é o perigo. E não é apenas um perigo; é algo em que os estudos subalternos e a teoria pós-colonial constantemente incorrem. Você vê isso mais frequentemente em seus argumentos sobre ação social e resistência. Está perfeitamente bem que as pessoas carreguem suas culturas e práticas locais quando elas estão resistindo ao capitalismo, ou quando elas resistem a vários agentes do capital. Mas é uma coisa bastante distinta dizer que não há aí nenhuma aspiração universal, ou nenhum interesse universal, que as pessoas devam ter.

Em verdade, uma das coisas que eu mostro em meu livro é que quando os historiadores dos estudos subalternos fazem trabalhos empíricos sobre a resistência camponesa, eles exibem nitidamente que os camponeses [na Índia], quando sem engajam em ações coletivas, estão mais ou menos agindo sob as mesmas aspirações e os mesmos impulsos que moviam os camponeses ocidentais. O que os separava do Ocidente eram formas culturais nas quais essas aspirações eram expressas, mas as aspirações tendem elas próprias a ser bastante consistentes.

E quando pensamos sobre isso, é realmente estranho dizer que camponeses indianos estavam dispostos a defender seu bem-estar; que eles não gostam de ser passados para trás; que eles gostariam de ser capazes de encontrar-se em certas condições nutricionais básicas; que quando eles entregavam rendas para os donos de terras eles tentavam manter o quanto pudessem para si próprios porque não gostavam de dar suas colheitas? Através de todos os séculos XIV e XX, esse foi na verdade o motivo das lutas dos camponeses.

Quando os teóricos subalternos erguem esse gigantesco muro separando o Oriente do Ocidente, e quando insistem que os agentes Orientais não são movidos pelo mesmo tipo de preocupações que os agentes Ocidentais, o que eles estão fazendo é endossar o tipo de essencialismo que as autoridades coloniais usavam para justificar sua depredação no século XIX. É o mesmo tipo de essencialismo que os chauvinistas dos EUA utilizaram quando bombardearam o Vietnã ou quando eles atacam o Oriente Médio. Ninguém na Esquerda pode estar tranquilo com esse tipo de argumentos.

Mas não seria possível responder dizendo que você está endossando algum tipo de essencialismo ao atribuir uma racionalidade comum a atores em contextos bastante diferentes?

Bom, isso não é exatamente essencialismo, mas eu endosso essa visão de que há alguns interesses em comum e necessidades que as pessoas têm através das culturas. Há alguns aspectos da nossa natureza humana que não são culturalmente construídos: assumem uma forma culturalmente, mas não são criados por ela. Minha visão é de que mesmo que haja enormes diferenças entre as pessoas no Oriente e no Ocidente, também há um núcleo de preocupações que as pessoas têm em comum, quer tenham nascido no Egito, na Índia, em Manchester ou em Nova York. Não são muitas, mas podemos enumerar ao menos duas ou três delas: dizem respeito ao bem-estar físico; há provavelmente uma preocupação com o grau de autonomia e auto-determinação; há uma preocupação com aquelas práticas que diretamente pertencem ao seu bem-estar. Isso não é muito, mas vocês ficaria surpreso com o quão longe isso o leva na explicação de transformações históricas realmente importantes.

Por dois séculos, qualquer um que se chamasse progressista abraçava esse tipo de universalismo. Era simplesmente entendido que a razão pela qual os trabalhadores ou camponeses poderiam se unir através dos limites nacionais é porque eles compartilham certos interesses materiais. Isso está sendo posto em questão agora pelos estudos subalternos, e é realmente marcante que tantas pessoas na Esquerda tenham aceitado isso. É ainda mais marcante que é que isso seja ainda aceito depois dos últimos 15 ou 20 anos em que vimos movimentos globais através das culturas e fronteiras nacionais contra o neoliberalismo, contra o capitalismo. Ainda assim, na universidade, ousar dizer que as pessoas compartilham, preocupações comuns em todas as culturas é de alguma forma visto como ser eurocêntrico. Isso demonstra o quão longe a cultura política e intelectual caiu nos últimos vinte anos.

Se você argumenta que o capitalismo não requer liberalismo burguês, e que a burguesia não desempenhou um papel histórico na liderança dessa luta popular pela democracia no Ocidente, como você explica o fato de que foi atingido o liberalismo e a democracia no Ocidente, e não se atingiram tais desfechos da mesma forma em boa parte do mundo pós-colonial?

Essa é a grande questão. A coisa interessante é que quando Guha escreveu seu ensaio original anunciando a agenda dos estudos subalternos, ele atribuiu a falha do liberalismo no Oriente à falha da sua burguesia. Mas ele também sugere que havia outra possibilidade histórica, nomeadamente que o movimento independentista na Índia e em outros países coloniais pudesse ter sido liderado por classes populares, as quais poderiam ter empurrado as coisas em direção diferente e, talvez, criar uma tipo diferente e ordem política. Ele traz isso à tona e depois ele esquece, e isso nunca mais aparece em qualquer trabalho seu.

Se ele tivesse tomado esse caminho, e se ele tivesse tomado-o com mais seriedade, poderia tê-lo levado a um entendimento mais preciso do que aconteceu no Ocidente não apenas no Oriente. O fato é que no Ocidente, quando uma ordem consensual, democrática e abrangente finalmente emergiu lentamente no século XIX e no começo do XX, não foi presente oferecido pelos capitalistas. Foi de fato um produto de lutas muito longas e concentradas da parte dos trabalhadores, agricultores e camponeses. Em outras palavras, foi trazido à tona por lutas de baixo.

Guha e os subalternistas ignoram isso inteiramente, porque insistem que a ascensão da ordem liberal foi um feito dos capitalistas. Porque descrevem mal isso no Ocidente, diagnosticam equivocadamente a falha de tal ordem no Oriente. No Oriente eles erroneamente atribuem essa falha aos atalho da burguesia.

Agora, se você quer um projeto de pesquisa histórico de precisão, explicando a fragilidade das instituições democráticas no Oriente e sua guinada rumo ao autoritarismo, a resposta não tem a ver com os atalhos da burguesia, mas com a fraqueza do movimento operário das organizações camponesas, e com os partidos representantes dessas classes. A fraqueza dessas forças políticas na tentativa de trazer algum tipo de disciplina à classe capitalista é a resposta à questão colocado pelos estudos subalternos. Essa questão é: “Por que a cultura política do Sul Global é tão diferente daquela do Norte Global?”. É para isso que deviam olhar: para as dinâmicas das organizações populares e os partidos das organizações populares; não para alguma falha putativa da classe capitalista, que no Oriente não era nada mais oligárquica e autoritária do que já foi no Ocidente.

Você é obviamente muito crítico da teoria pós-colonial. Mas não há algo válido ou valioso nessa acusação da ordem pós-colonial?

É, há algumas coisas valiosas, especialmente se você olhar para o trabalho de Guha. Em todo o seu trabalho, especialmente em “Domínio sem hegemonia“, eu penso que há um criticismo bastante saudável e um desprezo geral voltados aos poderes estabelecidos em um país como a Índia. E essa é uma alternativa tremendamente positiva ao tipo de historiografia nacionalista que tem sido posta de pé por décadas em países como a Índia, nos quais os líderes do movimento independentista eram vistos como algo próximo a salvadores. A insistência de Guha não apenas no fato de tal liderança não ser salvadora, mas que ela é de fato responsável por muitos dos atalhos da ordem pós-colonial deve ser louvada e endossada.

O problema não é sua descrição da ordem pós-colonial: o problema é seu diagnóstico sobre o responsável por tais falhas e como devem ser consertadas. Eu estou totalmente a bordo da atitude geral de Guha quanto à elite indiana e seus capangas. O problema é que sua análise das causas disso vai tanto na direção errada que se põe no caminho de uma resposta e uma crítica apropriada dessa ordem.

E Partha Chatterjee? Seu trabalho não oferece uma crítica séria do estado pós-colonial na Índia?

Em alguns aspectos, sim. Em um nível puramente descritivo, o trabalho de Chatterjee sobre o nacionalismo, como o de Guha, demonstra a estreiteza das preocupações da liderança nacionalista, sua fidelidade aos interesses das elites e suas ressalvas quanto à mobilização popular. E isso deve ser elogiado.

O problema, novamente, é o diagnóstico. No caso de Chatterjee, a falha do movimento nacionalista indiano é imputada à sua liderança ter internalizado um ethos particular, e esse é o ethos é a orientação que vem da modernização e do modernismo. Então, para Chatterjee, o problema com Nehru é que ele adotou rapidamente um posicionamento modernizante quanto à economia política. Em outras palavras, ele deu grande valor a uma abordagem científica quanto à industrialização, o planejamento racional e organização – e esse é o cerne do porque, para Chatterjee, a Índia está presa em uma posição de “sujeição continuada” na ordem global.

É justo dizer que Nehru é sustentado por um estreito rol de interesses, mas localizar as fontes profundas de seu conservadorismo em sua adoção de uma visão de mundo modernizante e científica confunde seriamente qual seja o problema. Se o problema com a elite pós-colonial é que ela adotou uma visão de mundo científica e racional, a questão emerge: como os teóricos pós-coloniais pretendem se livrar da presente crise – não apenas econômica e política, mas inclusive ambiental – se eles estão dizendo que ciência, objetividade, evidência, preocupações com o desenvolvimento, devem ser descartados?

Chatterjee não tem uma saída para isso. Em minha visão, o problema com a liderança de Nehru, e com a liderança do Congresso Nacional Indiano, não é que eles eram científicos e modernizantes, mas que eles ligaram seu programa ao interesse das elites indianas – da classe capitalista indiana, e dos latifundiários indianos – e que abandonaram seu compromisso com a mobilização popular e tentaram manter as classes populares sob um controle bastante rígido.

A abordagem de Chatterjee, ainda que tenha o apelo de uma crítica radical, é na verdade bastante conservadora, porque localiza a ciência e a racionalidade no Ocidente, e ao fazê-lo descreve o Oriente mais ou menos como faziam as ideologias coloniais. É também conservadora porque nos deixa sem qualquer meio pelo qual deveríamos construir uma ordem mais humana e mais racional, porque não importa em que caminho você tente se mover – quer você tente se mover do capitalismo em direção ao socialismo, quer você tente humanizar o capitalismo através de algum tipo de social-democracia, quer você tente mitigar os desastres ambientais mediante um uso racional nos recursos – tudo isso vai requerer uma daquelas coisas que Chaterjee impugna: ciência, racionalidade e planejamento de algum tipo. Localizar essas como as fontes da marginalização do Oriente não é apenas equivocado, mas penso que essa crítica é bastante conservadora.

Mas não há qualquer fundamento na crítica que os teóricos pós-coloniais fazem ao marxismo, bem como a outras formas de pensamento Ocidental enraizadas no Iluminismo; que elas sejam eurocêntricas?

Bem, temos que distinguir entre duas formas de eurocentrismo: uma é neutra e benigna, que diz que uma teoria é eurocêntrica na medida em que sua base evidencial tenha vindo majoritariamente do estudo da Europa. Nesse sentido, é claro, todas as teorias Ocidentais que conhecemos desde meados do fim do século XIX amplamente extraíram suas evidências e informações da Europa, porque a escolaridade e a literatura histórica e antropológica no Oriente era bastante subdesenvolvida. Nesse sentido, elas eram eurocêntricas.

Eu penso que esse tipo de eurocentrismo é natural, ainda que carregue toda uma série de problemas, mas isso não pode realmente ser indicado. A forma mais perniciosa de eurocentrismo – a que os teóricos pós-coloniais perseguem – se dá quando o conhecimento baseado em fato particulares sobre o Ocidente é projetado sobre o Oriente e pode induzir ao erro. De fato, os teóricos pós-coloniais têm acusado os teóricos Ocidentais porque eles não apenas ilicitamente projetam sobre o Oriente conceitos e categorias que podem ser inaplicáveis; eles sistematicamente ignoram evidências que estão à disposição e podem gerar teorias melhores.

Se é esse segundo tipo de eurocentrismo do qual estamos falando, então há elementos na história do pensamento marxista que caem como uma luva nesse tipo de eurocentrismo. De todo modo, se você olha para a história atual do desenvolvimento desta teoria, esses casos têm sido bastante raros.

Desde o começo do século XX, eu acredito é que exato dizer que o marxismo é talvez a única teoria da mudança histórica vinda da Europa que sistematicamente se bateu com a especificidade do Oriente. Um dos fatos mais curiosos dos estudos subalternos e da teoria pós-colonial é que eles ignoram isso. A começar pela Revolução Russa de 1905 e a Revolução de 1917, depois a Revolução Chinesa, depois os movimentos africanos pela descolonização, depois os movimentos guerrilheiros na América Latina – toda essas efervescências sociais geraram tentativas de lidar com a especificidade do capitalismo em países fora da Europa.

Você pode encontrar diversas teorias específicas que se desdobraram do marxismo que não apenas se voltaram para as especificidades do Oriente, mas explicitamente negaram a teleologia e o determinismo que os estudos subalternos dizem ser centrais no marxismo: a teoria trotskista do desenvolvimento desigual e combinado, a teoria de Lenin sobre o imperialismo, a articulação de modos de produção, etc. Cada uma dessas teorias foi um reconhecimento de que as sociedades em desenvolvimento não parecem completamente com as sociedades europeias.

Então se você quer marcar pontos, é possível trazer à tona exemplos aqui e ali de algum tipo de reminiscência eurocêntrica no marxismo. Mas se você olhar para o balanço geral, não apenas o resultado do placar é, no fim das contas, bastante positivo, mas se você o compara com o orientalismo que os estudos subalternos reviveram, me parece que o enquadramento mais natural para entender a especificidade do Oriente vêm do marxismo e da tradição iluminista, não da teoria pós-colonial.

A contribuição duradoura da teoria pós-colonial – o que será conhecido dela, a meu ver, se ela ainda for lembrada daqui a 50 anos – será que ela reviveu o essencialismo cultural e agiu como um endosso do orientalismo, mais do que foi um antídoto para ele.

Tudo isso impõe a pergunta: por que a teoria pós-colonial ganhou tal proeminência nas últimas décadas? Na verdade, por que ela foi capaz de suplantar ideias como as que você defende em seu livro? Claramente, a teoria pós-colonial veio ocupar um espaço antes preenchido por várias formas de pensamento marxista e derivados, e influenciou especialmente amplas faixas da esquerda intelectual anglófona.

Na minha visão, essa proeminência se deve estritamente a razões sociais e históricas; não expressa o valor ou a utilidade da teoria, e é por isso que decidi escrever o livro. Eu penso que a teoria pós-colonial veio se tornou proeminente por dois motivos. Um é que após o declínio do movimento operário e o esmagamento da Esquerda nos anos 70, não haveria qualquer tipo de teoria proeminente na academia que focasse no capitalismo, na classe trabalhadora, ou na luta de classes. Muitas pessoas apontaram isso: nos quadros universitários, é irreal imaginar que qualquer crítica do capitalismo de uma perspectiva de classe vá ter muito lastro exceto em período de massiva turbulência ou convulsão social.

Então a questão interessante é porque há qualquer tipo de teoria que sequer se autodenomine radical, uma vez que não seja a teoria anticapitalista clássica. Creio que isso tem a ver com duas coisas: primeiro, com as mudanças nas universidades nos últimos 30 anos, após as quais elas não são mais as torres de marfim que já costumaram ser. São instituições de massas, e essas instituições se abriram a grupos que, historicamente, eram mantidos fora: minorias raciais, mulheres, imigrantes de países em desenvolvimento. Todas as pessoas experimentam diversos tipos de opressão, mas não necessariamente exploração de classe. Surge, então, uma base de massas para o que chamamos de estudos das opressões, os quais são um tipo de radicalismo – e isso é importante, e é real. De todo modo, não é uma base muito interessada em questões sobre a luta de classes ou formações de classe, e coisas como as que o marxismo costuma tratar.

Complementarmente, houve a trajetória da intelligentsia. A geração de 68 não se tornou convencional conforme envelheceu. Alguns queriam manter seus compromissos morais e éticos com o radicalismo. Mas, como todos os demais, também se afastaram do radicalismo classista. Então você teve um movimento de baixo, que foi como um tipo de demanda por teorias focando nas opressões, e um movimento de cima, entre professores que se ofereciam para suprir teorias focando nas opressões. O que os fez convergir não foi apenas um foco nas opressões, mas a remoção da opressão e da exploração de classe da história. E a teoria pós-colonial, por conta de sua própria remoção do capitalismo e das classes – porque ela minimiza e subestima a dinâmica da exploração – acaba estando na medida perfeita.

Qual sua previsão para a teoria pós-colonial? Você espera que ela seja eclipsada, no interior da academia e da esquerda, em breve?

Não, eu não espero. Eu não acho que a teoria pós-colonial está sob nenhum risco de ser substituída, não tão cedo, ao menos. Tendências acadêmicas vêem e vão, não baseadas na validade de suas teses ou no valor de suas proposições, mas por causa da sua relação com um ambiente político e social mais amplo. A desorganização geral do trabalho e da esquerda, que criou as condições para o florescimento da teoria pós-colonial, ainda está muito colocado. Além disso, a teoria pós-colonial tem agora pelo menos duas gerações de acadêmicos que empenharam todas suas carreiras nisso; eles tem meia dúzia de jornais dedicados a isso; há um exército de estudantes de pós-graduação desenvolvendo agendas de pesquisa que vão ao encontro disso. Seus interesses materiais estão atado diretamente com o sucesso da teoria.

Você pode criticar o quanto quiser, mas até que tenhamos movimentos do tipo que o marxismo pôs em movimento nos anos logo após a I Guerra Mundial, ou no augo dos anos 60 e no começo dos 70, você não verá uma mudança. Na verdade, o que você verá é uma reposta ágil e perniciosa a qualquer crítica que possa emergir. Meu triste, mas – eu acho – realista prognóstico é que isso vai estar por aí por um bom tempo.

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