30 de março de 2014

Doutrina dos porões: a escola que disciplinou a tortura

Centro de Formação do Exército formou a elite da repressão aos inimigos do regime

Chico Otavio

O Globo

Agentes formados pelo CEP, no Forte Duque de Caxias, seguiam as instruções trazidas da Escola das Américas, no Panamá, base militar americana acusada de treinar quadros da repressão na América Latina Foto: Lucio Marreiro/19/4/1988

Um número enfeita a ficha resumida de oficiais que marcaram a história recente das Forças Armadas: "063". No Almanaque do Exército, o código identifica os militares graduados no curso de Informações do Centro de Estudos do Exército (CEP), no Forte do Leme. Suas bancas escolares forjaram uma geração de majores, capitães e tenentes que operou a máquina de torturar, matar e fazer desaparecer dos porões do regime.

Desde 1964, logo após a derrubada de Jango, os militares contavam com o Serviço Nacional de Informações (SNI) para coordenar as atividades de inteligência e perseguir os inimigos do regime que se estabelecia. Mas foi no Forte do Leme, pelas mãos do general Octavio Pereira da Costa, que jovens oficiais conheceram a doutrina de "operações de informações": o enfrentamento direto, no qual teriam de buscar a qualquer custo, sem os limites impostos por lei, aquilo que era negado pelo adversário.

Os cursos de Informações do CEP, categorias B (para oficiais de nível médio) e C (subtenentes e sargentos), começaram em 1966, motivados pelo crescimento das ações armadas de organizações de esquerda e pelo fantasma do comunismo. Enquanto as altas patentes aprendiam a teoria no curso de Informações oferecido pela Escola Superior de Guerra (ESG), o CEP ensinava os alunos a conduzir interrogatórios, a disfarçar-se, a penetrar em residências sem deixar vestígios e a pensar e agir como guerrilheiros, à paisana, além de estourar "aparelhos subversivos".

Os instrutores não tiveram o trabalho de elaborar as aulas. O projeto chegou pronto do Forte Gulick, no Canal do Panamá, onde funcionava a Escola das Américas, base militar americana acusada de treinar quadros da repressão política na América Latina. Na lista de graduados na escola, figuravam ditadores como o nicaraguense Anastácio Somoza, o argentino Jorge Videla e o paraguaio Alfredo Stroessner.

Execuções: um mal necessário

Era preciso aprender rápido. Baseados em manuais que desaconselhavam o uso de ameaças contra o inimigo, “"a menos que pudessem ser cumpridas", e que consideravam prisões e execuções um mal necessário, os instrutores preparavam os quadros da repressão em menos de seis meses. Até 1971, quando foi transferido para Brasília e assumido pelo SNI, o curso tornou-se o caminho mais curto para quem seguiu carreira nos porões.

Paulo Malhães, o coronel que confessou recentemente às comissões estadual e nacional da Verdade o envolvimento da morte e ocultação de corpos de guerrilheiros, cursou o CEP. Arrancava dedos, dentes e vísceras dos corpos dos militantes para evitar que fossem identificados. Freddie Perdigão Pereira, um dos mais violentos agentes do regime, responsabilizado pela bomba do Riocentro (abril de 1981), também. O então tenente Ailton Guimarães Jorge, que mais tarde seria o Capitão Guimarães do jogo do bicho, só ingressou nas operações repressivas da Polícia do Exército, na Vila Militar, depois de passar pelo Forte do Leme.

Perdigão esteve no curso de janeiro a julho de 1966, logo na primeira turma. Ao concluí-lo, foi elogiado pelo general Octavio Costa pelo "valor intelectual, pela marcante curiosidade intelectual, seu valor humano, pela lealdade e espírito de colaboração". Mas o comandante ressalvou que o jovem capitão poderia produzir mais se mostrasse amadurecimento emocional. Cinco anos depois, mais maduro, Perdigão seria um dos torturadores da Casa da Morte de Petrópolis, um dos mais bárbaros aparelhos clandestinos do Centro de Informações do Exército (CIE).

Violência, mas "aplicada com inteligência". Regras sujas, mas sem perder a hierarquia e a disciplina. Poderes ilimitados, mas sem ceder às tentações pessoais. Era essa a aposta dos comandantes. O próprio CIE, unidade vinculada diretamente ao gabinete do Ministro do Exército, foi ungido à luz dos ensinamentos do CEP, no mesmo momento em que Informações transformava-se praticamente em nova Arma do Exército, tão forte quanto a Artilharia, a Cavalaria, a Infantaria e a Intendência.

Até hoje, o Exército resiste a fornecer dados como ementa, disciplinas, carga horária e nomes de instrutores e de alunos do curso. Chegou mesmo a negar a sua existência. Porém, o número "063" aparece em praticamente todas as fichas resumidas de torturadores. Versados em "Fundamentos de Informações", "Produção de Conhecimento", “"Operações de Inteligência", "Operações de Contrainformações", entre outras matérias, eles operariam uma mudança no combate à luta armada.

Para oferecer a primeira resposta à escalada de ações da guerrilha, o Exército praticamente catou a laço os agentes necessários. Muitos deles foram arregimentados nos quadros das polícias Civil e Militar, trazendo das delegacias e quartéis o pau-de-arara e outras técnicas rudimentares e violentas de interrogatórios de criminosos comuns. Contaminou também as casernas com a expertise das ruas e seus vícios.

Soco na cara não ajudava

O curso de Informações do Leme mudou o cenário. Com as primeiras levas de diplomados, foi possível renovar os quadros e aumentar o grau de controle sobre as operações. A lógica do sopapo e do pau-de-arara não chegou a ser afastada, mas passou a coexistir com métodos de tortura mais técnicos, que envolviam o terror psicológico e a criação de uma rede clandestina de cárceres, onde os agentes passaram a agir com extrema liberdade, sem as restrições de uma unidade militar formal.

Paulo Malhães, em depoimento à Comissão Nacional da Verdade, relatou a experiência pessoal com o processo. Ele admitiu que, nos primeiros anos de interrogador, imitava a polícia na dose de violência contra os presos. Disse que, depois, adotou métodos mais científicos, convencido de que um sujeito que leva um soco da cara jamais teria disposição de colaborar com os seus torturadores.

28 de março de 2014

A esquerda trabalhista precisa recuperar o espírito insurgente que fez de Jeremy Corbyn o líder



A esquerda trabalhista precisa recuperar o espírito insurgente que fez de Jeremy Corbyn o líder
31 de julho de 2023





Um dos mentores intelectuais do corbynismo, o falecido Leo Panitch, concluiu seu último livro com a observação esperançosa de que a derrota nas eleições de 2019 ocultou um rejuvenescimento substancial do socialismo na Grã-Bretanha: fruto de uma colaboração geracional única entre a esquerda trabalhista formada na década de 1970 , e um novo que levaria o projeto adiante.

Como vai isso? Os obituários da esquerda trabalhista, sejam suas vertentes boomer ou milenar, são, infelizmente, frutas fáceis de alcançar neste momento. Sem páreo para o ex-diretor do Ministério Público Sir Keir Starmer e seu golpe de direita, as figuras de proa esquerdistas veteranas Jeremy Corbyn e Diane Abbott estão suspensas do partido, oficiais de esquerda em todos os níveis do governo são rotineiramente eliminados de suas candidaturas em qualquer pretexto formal, e a maquinaria do Partido Trabalhista foi reconfigurada para tornar impossível o crescimento da esquerda Trabalhista – quanto mais de um líder de esquerda.

Pior, como já reclamei antes em jacobino e além, quais proposições políticas o Trabalhismo deixou e o ecossistema “Corbyn” mais amplo ter conseguiram derrotar tenderam para a tecnocracia antipolítica e estão – para ser gentil – longe de estar à altura da época. As coisas parecem impossíveis. No entanto, os eventos recentes devem servir como um lembrete de que fizemos coisas impossíveis antes. Duas dessas impossibilidades ocorreram no primeiro ano do “corbynismo”, e proponho que retornar às suas lições seja uma saída para o atual impasse.

Os leitores mais jovens podem não se lembrar que o ponto de virada na eleição de liderança trabalhista de 2015 que permitiu a Corbyn se distinguir totalmente de seus rivais do Novo Trabalhismo foi o edital do partido de que os parlamentares trabalhistas mostrassem sua dureza ao se absterem (em vez de se oporem) ao Projeto de Lei do Bem-Estar proposto por governo conservador de David Cameron. Como John McDonnell observou na época, os cortes sádicos e arbitrários do projeto de lei na renda familiar dos mais pobres eram algo que alguém deveria “nadar no vômito” para se opor, mas Corbyn sozinho entre os candidatos à liderança o fez. Essa simples apresentação da diferença moral entre Corbyn e seus principais rivais trabalhistas foi uma virada importante na sorte da candidatura de Corbyn, que antes era considerada impossível.


Além de superar a impossibilidade de ser eleito pela esquerda, a segunda impossibilidade do projeto Corbyn foi sua sobrevivência ao “Golpe das Galinhas” de junho de 2016, quando quarenta e quatro ministros-sombra (entre eles Starmer) renunciaram em uma tentativa para forçar o fim da liderança de Corbyn. É difícil reconstruir mentalmente o quão extraordinária foi a recusa de Corbyn em renunciar naquela situação. Esse ato impossível provou a resiliência do pacto geracional na esquerda do Reino Unido que Panitch descreveu; deu o pretexto para Corbyn elevar jovens aliados de esquerda a altos cargos de gabinete secreto; e, crucialmente, contribuiu para a separação entre Corbyn pessoalmente e a marca trabalhista estabelecida: uma vantagem “populista” na rápida eleição geral que se seguiu um ano depois, em junho de 2017. Também foi um lembrete de que todo avanço do socialismo na Grã-Bretanha exige a humilhação do decoro ordinário do Partido Trabalhista.

São histórias que deveriam ficar na memória coletiva da esquerda, mas para que servem agora? Para o primeiro: o Projeto de Lei do Bem-Estar de 2015 que selou a vitória de Corbyn continha entre as primeiras referências formais a um limite de benefícios para dois filhos na Grã-Bretanha (ou seja, retenção de créditos fiscais e outros benefícios após os beneficiários serem pais de um terceiro filho), que os conservadores introduziram em efeito em 2017. Por alguma peculiaridade histórica, o limite de dois filhos está novamente dirigindo a conversa política na Grã-Bretanha este mês, depois que Starmer anunciou que um novo governo trabalhista não o aboliria, apesar de esta política manter diretamente centenas de milhares de crianças na pobreza. . Para aqueles que se lembram, a dinâmica é 2015 novamente, principalmente quando as atuais aparições de Corbyn na mídia condenando o boné coincidem com pesquisas surpresa que o colocam como o atual ou ex-líder trabalhista mais popularenquanto a mídia saliva com a perspectiva do circo dele concorrendo contra o Partido Trabalhista para prefeito de Londres ou para sua própria cadeira parlamentar atual de Islington North no próximo ano.

Para o segundo: a memória de Corbyn e a negociação da esquerda sobre o Chicken Coup de 2016 apresenta uma lição para responder ao caso em torno de Jamie Driscoll. O prefeito trabalhista do metrô do norte de Tyne é um dos promotores mais notáveis ​​das políticas industriais “corbynitas” no governo local e, no mês passado, foi impedido de concorrer como candidato trabalhista a prefeito nas próximas eleições. Ele foi alvo do tipo de acusações absurdas e sórdidas de proximidade com o anti-semitismo (simplesmente por falar ao lado do cineasta Ken Loach) que se tornaram rotina em Starmer’s Labour. Driscoll anunciou que concorrerá como independente e imediatamente atraiu mais de £ 100.000 em pequenas doações. Starmer se lembrará da humilhação do então primeiro-ministro Tony Blair em 2000, quando o esquerdista Ken Livingstone foi eleito prefeito de Londres como independente, depois que a máquina do Partido Trabalhista foi acionada para impedi-lo de concorrer sob sua bandeira.


Onde está o golpe de galinha nisso? Já faz muito tempo desde que um parlamentar de esquerda trabalhista estava em posição de renunciar a qualquer coisa em protesto, mesmo que quisesse. Mas o momento Driscoll apresenta uma alternativa muito melhor. Uma série combinada de aparições de parlamentares da esquerda trabalhista ao lado de seu camarada Driscoll forçaria a mão de Starmer em uma das duas direções. Ou ele ignora a contravenção e a esquerda recupera alguma autonomia pela primeira vez desde 2020. Ou – mais provavelmente – ele retira o chicote de todos eles, apresentando um momento de galvanização para a esquerda mais ampla estruturalmente semelhante a (mesmo que invertido de) o golpe de 2016. E mais, com corridas independentes de Driscoll e Corbyn como prêmio, essa energia estaria a serviço de um projeto livre – por enquanto – do albatroz do Partido Trabalhista.

Uma das coisas mais frustrantes sobre a timidez e a inércia da esquerda trabalhista desde 2020 é como isso tem sido desnecessário. Naquela época, como um dos poucos escritores da grande imprensa defendendo a candidatura à liderança de Rebecca Long-Bailey – ex-secretária de negócios de Corbyn e parlamentar de Salford North -, argumentei que as políticas industriais inovadoras de “construção de riqueza comunitária” esse foi o portfólio dela que foi subutilizado nas eleições de 2019 e ainda é a principal carta que a esquerda ainda tinha para jogar na Grã-Bretanha.

Isso significaria conceder contratos governamentais a pequenas e médias empresas locais, oferecendo ao mesmo tempo apoio estatal para ajudá-los a pagar um salário digno e garantir suas credenciais ecológicas; acabar com o vício da Grã-Bretanha em terceirizar para empresas globalizadas; e retroceder a revolução Thatcherita/Novo mercado de trabalho do nível local para cima. Este é um programa que pode ser perseguido tanto em nível nacional quanto – como mostra Driscoll – local, em tempos eleitorais bons e ruins, dentro e fora do Partido Trabalhista. É também um programa com algo a oferecer precisamente aos pequenos empresários e descontentes, apoiadores economicamente nacionalistas do Brexit que temiam Corbyn desnecessariamente, e que muitos de nós argumentamos que seriam parceiros de coalizão mais produtivos do que os profissionais liberais de bom tempo que o corbynismo priorizou pós -2017.


Esta plataforma política para uma redefinição política na esquerda está preservada em âmbar desde 2020. As estranhas repetições de hoje das oportunidades do Projeto de Lei do Bem-Estar Social e do Golpe de Galinha que lançaram o corbynismo em seu primeiro ano finalmente oferecem a chance de estourá-lo novamente, mesmo que apenas o que resta da esquerda trabalhista pode recuperar sua capacidade de arriscar.






Fonte: https://jacobin.com/2023/07/labour-party-left-jeremy-corbyn-insurgency-keir-starmer-strategy

26 de março de 2014

Importar-se demais. Essa é maldição das classes trabalhadoras


Por que a lógica básica da austeridade foi aceita por todo mundo? Porque a solidariedade passou a representar um flagelo?

David Graeber


"As pessoas da classe trabalhadora se preocupam mais com seus amigos, famílias e comunidades - elas são fundamentalmente mais legais." Ilustração de Matt Kenyon

Tradução / "O que eu não consigo entender é porque as pessoas não estão protestando nas ruas?" Eu ouço isso, de vez em quando, vindo de pessoas de boa condição e poderosos. Há uma espécie de incredulidade. “Afinal de contas”, o subtexto parece ser, “nós ficamos furiosos quando alguém ameaça nossos paraísos fiscais; se alguém ameaçasse o meu acesso a comida ou moradia, eu certamente estaria queimando bancos e/ou ocupando o parlamento. O que há de errado com as pessoas?”

É uma boa pergunta. Você imaginaria que um governo que provocou tanto sofrimento àqueles com menos condições de resistir, sem ao menos mudar os rumos da economia, correria risco de suicídio político. Em vez disso, a lógica básica da austeridade foi aceita por quase todo mundo. Por quê? Por que políticos que prometem sofrimento prolongado ganham qualquer condescendência da classe trabalhadora, pra não falar em apoio?

Acredito que a própria incredulidade com a qual comecei fornece uma resposta parcial. Os trabalhadores podem ser, como incessantemente nos lembram, menos meticulosos com assuntos de lei e propriedade que seus “superiores”, mas eles também são muito menos obcecados consigo mesmos. Eles se importam mais com seus amigos, famílias e comunidades. No conjunto, ao menos, são pessoas fundamentalmente melhores.

Em certa medida isso parece refletir uma lei sociológica universal. Há muito as feministas apontam que aqueles que estão na parte de baixo de qualquer arranjo social desigual tendem a pensar mais sobre, e portanto importar-se mais com, aqueles no topo do que os do topo em relação a eles. As mulheres em toda parte tendem a pensar e saber mais sobre as vidas dos homens do que os homens pensam sobre as mulheres, assim como os negros sabem mais sobre os brancos, os empregados sobre os empregadores e os pobres sobre os ricos.

E sendo os humanos as criaturas empáticas que são, o conhecimento leva à compaixão. Os ricos e poderosos, no entanto, podem permanecer alheios e indiferentes, porque podem se garantir. Vários estudos psicológicos recentes confirmam isso. Pessoas nascidas em famílias da classe trabalhadora invariavelmente se dão melhor em testes de percepção dos sentimentos alheios do que os filhos dos ricos ou das classes médias. De certa forma, o resultado não é exatamente inesperado. Afinal, isso é o que ser “poderoso” fundamentalmente significa: não ter de prestar muita atenção no que os outros ao redor estão pensando e sentindo. Os poderosos empregam outros para fazê-lo por eles.

E quem eles empregam? Principalmente filhos das classes trabalhadoras. Aqui, creio que tendemos a ser tão cegos por uma obsessão com o (ouso dizer, uma romantização do?) trabalho fabril como nosso paradigma de “trabalho de verdade” que nos esquecemos do que a maior parte do trabalho humano de fato consiste.

Mesmo na época de Karl Marx ou Charles Dickens, os bairros de trabalhadores abrigavam mais empregadas domésticas, engraxates, varredores, cozinheiros, enfermeiros, taxistas, professores, prostitutas e feirantes que empregados em minas de carvão, fábricas têxteis ou fundições. Hoje, isso é ainda mais verdadeiro. O que consideramos arquetipicamente como trabalho de mulheres – cuidar de pessoas, encarregar-se de suas vontades e necessidades, explicar, confortar, antever o que o patrão quer ou está pensando, para não mencionar cuidar, vigiar e conservar plantas, animais, máquinas e outros objetos – representa uma proporção muito maior daquilo que a classe trabalhadora faz quando está trabalhando do que martelar, talhar, carregar ou colher coisas.

Isso é verdade não apenas porque a maioria das pessoas da classe trabalhadora são mulheres (pois a maioria das pessoas em geral são mulheres), mas porque temos uma versão distorcida do que os homens fazem. Como os trabalhadores do metrô em greve recentemente tiveram de explicar a usuários indignados, os funcionários do metrô não passam a maior parte de seu tempo recolhendo bilhetes: eles passam a maior parte de seu tempo explicando coisas, consertando coisas, procurando crianças perdidas, e cuidando dos idosos, doentes e desorientados.

Se pensarmos bem, não é isso, basicamente, a vida? Os seres humanos são projetos de criação mútua. A maior parte do trabalho que fazemos é uns com os outros. As classes trabalhadoras apenas fazem uma parte desproporcional. Elas são as classes cuidadoras, e sempre foram. É apenas a incessante demonização dos pobres por aqueles que se beneficiam dos seus cuidados que torna difícil, num fórum público como este, reconhecê-lo.

Como filho de uma família de classe trabalhadora, posso atestar que é disso mesmo que nos orgulhamos. Constantemente nos disseram que o trabalho é uma virtude em si – que ele forma caráter ou coisa assim – mas ninguém acreditava nisso. A maioria de nós entendia que o melhor seria evitar o trabalho, a menos que ele beneficiasse outras pessoas. Mas do trabalho que você fizesse, fosse ele construir pontes ou esvaziar penicos, você poderia se orgulhar. E há outra coisa de que definitivamente nos orgulhávamos: que somos pessoas que cuidam umas das outras. Isso é o que nos distinguia dos ricos que, na nossa percepção, a metade do tempo sequer se dedicava a cuidar de seus próprios filhos.

Há uma razão pela qual a maior virtude burguesa é a austeridade, e a maior virtude na classe trabalhadora é a solidariedade. Porém essa é precisamente a corda na qual a classe hoje está pendurada. Houve um tempo em que se preocupar com sua comunidade podia significar lutar pela própria classe trabalhadora. Naqueles dias costumávamos falar de “progresso social”. Hoje vemos os efeitos de uma guerra sem trégua contra a própria noção de uma política da classe trabalhadora ou comunidade de classe trabalhadora. Isso deixou a maioria dos trabalhadores com poucos meios de expressar essa preocupação, senão dirigindo-a a noções artificiais: “nossos netos”; “a nação”; seja através de patriotismo chauvinista ou de apelos ao sacrifício coletivo.

Como resultado, tudo está posto ao revés. Gerações de manipulação política finalmente transformaram esse senso de solidariedade num flagelo. Nossa preocupação com o outro foi transformada em arma contra nós mesmos. E assim deve permanecer até que a esquerda, que pretende falar pelos trabalhadores, comece a pensar séria e estrategicamente sobre no que consiste a maior parte do trabalho, e o que aqueles que o realizam pensam ser a virtude contida nele.

David Graeber é um antropólogo, ativista político e autor norte-americano. He is currently reader in social anthropology at Goldsmiths College, University of London, and was formerly an associate professor of anthropology at Yale University. David is a member of the labour union Industrial Workers of the World, and has played a role in events such as the 2002 New York protests against the World Economic Forum. Seu livro mais recente é Dívida: os primeiros 5.000 anos (2011).

24 de março de 2014

Forças da divergência

Se as tendências actuais se mantiverem , as consequências serão potencialmente terríveis, diz-nos Thomas Piketty.

John Cassidy


Se as tendências atuais continuarem, Thomas Piketty vê consequências “potencialmente aterrorizantes”. Ilustração de Michel Gillette.

Tradução / No imponente mundo da imprensa académica, não é vulgar que as encomendas e a publicidade façam o editor antecipar a edição de um livro. Mas foi o que Belknap, uma chancela da Harvard University Press, fez ao editar “O Capital no século XXI”, do economista francês Thomas Piketty, uma análise arrebatadora sobre a desigualdade crescente. Revendo a edição francesa do livro do Piketty, que saiu no ano passado, Branko Milanovic, um ex-economista importante do Banco Mundial, chamou-lhe “um livro que marca definitivamente o pensamento económico”. O economista disse que isso pode mudar a maneira como pensamos sobre os últimos dois séculos de história económica. Certamente, nenhum livro de economia nos últimos anos recebeu esse tipo de atenção. Meses antes de sua data de publicação em edição americana, em que o editor antecipou a data da sua publicação de Abril para Março, era já objecto de discussão on-line animada entre economistas e outros comentadores.

Piketty, que ensina na Escola de Economia de Paris, passou quase duas décadas a estudar a desigualdade. Em 1993, com a idade de vinte e dois anos, foi para os Estados Unidos para ensinar no M.I.T. Formado por uma das escolas de elite francesas, École Normale Supérieure, tinha então acabado de obter o grau de doutorado, com uma tese que era uma densa exploração matemática sobre a teoria que serve de suporte às políticas fiscais. Muitos dos mais brilhantes talentos universitários europeus deslocam-se para os Estados Unidos, naturalmente, e muitos deles acabam por ficar na América. Piketty não foi um deles. “Foi a primeira vez que eu assentei o pé no Estados Unidos,” recorda na sua introdução ao livro, “e senti-me bem em ter o meu trabalho reconhecido tão rapidamente. Aqui está um país que sabe como atrair imigrantes quando o deseja! Contudo, senti igualmente e de modo muito rápido que queria regressar a França e à Europa, logo que fizesse os meus 25 anos. Desde então, não tenho saído de Paris, com excepção de algumas breves viagens.”

Parte da motivação de Piketty no seu regresso a casa era de natureza cultural. Os seus pais são parisienses politicamente activos que participaram nos acontecimentos de Maio de 1968. Quando ainda muito jovem e em plena formação os seus modelos intelectuais eram historiadores e filósofos franceses de esquerda, mais do que propriamente economistas. Nestes homens de cultura estavam incluídos membros da escola dos Annales, tais como Lucien Febvre e Fernand Braudel, que produziram análises exaustivas sobre a vida quotidiana. Quando comparados com estes intelectuais, muitos dos economistas que Piketty encontrava no M.I.T pareciam-lhe áridos e fúteis. “Eu nunca considerei o trabalho dos economistas americanos como sendo totalmente convincente,” escreveu Piketty. “Para ter certeza, todos eles eram muito inteligentes, e eu ainda tenho muitos amigos desse período de minha vida. Mas algo de estranho tinha acontecido: Eu estava somente demasiado consciente do facto de que eu não conhecia nada sobre os problemas económicos mundiais.

Em Paris, juntou-se ao Centre National de la Recherche Scientifique e, mais tarde, à École des Hautes Études en Sciences Sociales onde alguns dos seus autores de referência tinham ensinado. A tarefa principal que estabeleceu para si-mesmo foi a de estudar os altos e baixos da repartição do rendimento e da riqueza, um tema que a economia negligenciava na sua maior parte. No início, Piketty concentrou-se sobretudo em obter o registo dos factos mais do que estar preocupado em interpretá-los. Utilizando registos de imposto e outros dados, estudou a forma como a desigualdade do rendimento em França tinha evoluído durante o século XX, e publicou os seus resultados num livro em 2001. Em 2003 escreveu com Emmanuel Saez, um economista francês de origem a trabalhar em Berkeley, um texto em que se analisa a.desigualdade do rendimento nos Estados Unidos entre 1913 e 1998. Neste documento mostrava como a parte do rendimento nacional dos E.U., tomado pelos agregados familiares na parte superior da escala de distribuição, os mais ricos, tinha aumentado fortemente durante as primeiras décadas do século XX, a seguir, tinha descido durante e depois da segunda guerra mundial, simplesmente para voltar a disparar outra vez nos anos da década de 80 e de 90.

Com a ajuda de outros investigadores, incluindo Sáez e o economista britânico Anthony Atkinson, Piketty expandiu este seu trabalho sobre a desigualdade a outros países, incluindo a Grã Bretanha, China, Índia, e Japão. Os pesquisadores criaram World Top Incomes Database uma base de dados sobre os rendimentos dos mais ricos do mundo, que cobre agora uns trinta países, entre eles a Malásia, África do Sul, e Uruguai. Piketty e Sáez igualmente actualizaram os seus dados para os Estados Unidos mostrando como a parte do rendimento dos agregados familiares mais ricos continua a subir fortemente durante e depois da Grande Recessão ( 2008...) e como, em 2012, os um por cento dos agregados familiares mais ricos obtiveram 22,5 por cento do rendimento total, a posição relativa mais elevada desde 1928. O trabalho empírico feito por Piketty e pelos seus colegas influenciou debates em toda parte desde Zuccotti Park, o ponto central de permanência dos Occupy Wall Street, até ao Fundo Monetário Internacional e à Casa Branca; O presidente Obama disse mesmo que enfrentar o problema da desigualdade e da estagnação dos salários é o nosso principal desafio.

A pergunta é o que está a gerar esta tendência ascendente. Piketty não considera que as explicações habituais dos economistas sejam convincentes, principalmente porque não deram bastante atenção à acumulação de capital- ao processo de poupar, de investir e de acumulação de riqueza como o fizeram os economistas clássicos, tais como David Ricardo, Karl Marx, e John Stuart Mill o tinham já sublinhado. Piketty define o capital como todo o activo que gera um retorno monetário. Esta definição abrange o capital físico, tal como os bens imobiliários e as fábricas; capital intangível, tal como marcas e patentes e activos financeiros, tais como acções e obrigações.

Na economia moderna, o termo “capital” foi expurgado do seu fogo ideológico e é tratado como sendo apenas um outro “factor de produção,” de tal modo que, como o trabalho e a terra, dá direito a ter uma competitiva taxa de rentabilidade baseada na sua produtividade. Um modelo popular do crescimento económico desenvolvido por Robert Solow, um dos anteriores colegas de Piketty no M.I.T., pretendeu mostrar como é que a economia progride ao longo “de um trajecto do crescimento equilibrado,” com as proporções do rendimento nacional recebidas pelos proprietários do capital e do trabalho a permanecerem constantes ao longo do tempo. Isso não combina com a realidade dos tempos de hoje. No Estados Unidos, por exemplo, a proporção do rendimento que vai para salários e outras formas de compensação salarial tem estado a cair desde sessenta e oito por cento em 1970 a sessenta e dois por cento em 2010, uma descida de perto de um milhão de milhões de dólares.

Piketty acredita que o aumento na desigualdade não pode ser compreendida independentemente da política. Para este seu novo livro, escolheu um título a evocar claramente Marx, mas não pensa que o capitalismo está condenado, ou que a desigualdade crescente seja uma inevitabilidade. Há circunstâncias, admite Piketty, em que os rendimentos podem convergir e as condições de vida das massas podem aumentar de forma sustentada, como acontece com a chamada Idade de Ouro que vai desde 1945 até 1973. Mas Piketty discute que esta situação, que muitos de nós consideramos como o que é normal, pode bem ter sido uma excepção histórica. As “forças da divergência podem em qualquer momento recuperar as vantagens, como parece estar a acontecer agora, no início do século XXI,” escreve Piketty. E, se as tendências actuais continuam, “as consequências para a dinâmica a longo prazo da distribuição da riqueza são potencialmente terríveis.”

Até por volta dos anos 50, o director-executivo americano médio era pago aproximadamente como vinte vezes o salário do empregado típico da sua empresa. Actualmente, nas empresas do índice Fortune 500, a relação dos salários entre os directores e os empregados de uma qualquer estabelecimento da mesma empresa é de duzentos para um, e muitos C.E.O.s têm mesmo rácios de remunerações mais elevados ainda. Em 2011, Tim Cook, director da Apple recebeu 378 milhões de dólares como salário, acções e outros benefícios, o que significa seis mil duzentas e cinquenta oito vezes ( 6258) o salário de um empregado médio de Apple. Um trabalhador típico a trabalhar na Walmart ganha menos de 25 mil dólares por ano; Michael Duke, director-executivo anterior de Walmart teve como remunerações globais vinte e três milhões de dólares em 2012. Esta tendência é evidente em toda parte. De acordo com um relatório recente publicado por Oxfam, as oitenta e cinco pessoas mais ricas no mundo- como Bill Gates, Warren Buffett e Carlos Slim —possuem mais riqueza do que os aproximadamente 3,5 mil milhões de pessoas que compõem a metade mais pobre da população do mundo.

Eventualmente, diz Piketty, nós poderíamos ver o reaparecimento de um mundo familiar aos europeus do século XIX; ele cita os romances de Austen e de Balzac. Nesta “sociedade patrimonial,” um pequeno grupo de rentiers ricos vive prodigamente dos frutos da sua riqueza herdada, enquanto a restante população luta para sobreviver. Para os Estados Unidos, em particular, este seria um cruel e irónico destino. “O pioneiro ideal igualitário desvaneceu-se no esquecimento,” escreve Piketty, “e o Novo Mundo pode estar à beira de se transformar na velha Europa da economia globalizada do século XXI.”


O que são estas “forças da divergência” que produzem riquezas enormes para alguns e deixam a maioria a esgaravatar para conseguir ter uma vida aceitável? Piketty é claro dizendo-nos que há diferentes factores por detrás da estagnação no meio e com ricos, muito ricos mesmo, no topo da escala de rendimentos. Mas, durante períodos de crescimento económico modesto, tais como aquele que muitas das economias avançadas experimentaram nas últimas décadas, o rendimento tende a deslocar do trabalho para o capital. Devido à complexa combinação das pressões económicas, sociais, e políticas, Piketty receia os “níveis de desigualdade como nunca foram antes vistos.”

Mas voltemos aos seus argumentos, uma vez que nos apresenta um tesouro de dados. Piketty e Saez foram pioneiros na construção de gráficos simples, mostrando a proporção do rendimento total recebido pelos dez por cento mais ricos, pelos um por cento mais ricos e até pelos 0,1 por cento mais ricos. Quando os dados são apresentados desta forma, sublinha Piketty, é fácil para as pessoas “verem a sua posição na hierarquia contemporânea (é sempre um exercício útil, particularmente quando se pertence a centis superiores da distribuição e se tende a esquecê-lo, como é frequentemente o caso com os economistas).” Qualquer um que leia o jornal estará ciente de que, nos Estados Unidos, os “um por cento” estão a obter uma proporção cada vez maior do bolo económico, que é o rendimento do país. Mas será que se sabe, hoje, que a proporção do rendimento obtida pelo percentil mais rico é superior ao que era na África do Sul na década de sessenta- princípio de 70 e acontecendo o mesmo relativamente à Colômbia, outra sociedade profundamente dividida, hoje? Em termos de rendimento gerado pelo trabalho, o nível de desigualdade nos Estados Unidos é “provavelmente maior do que em qualquer outra sociedade no mundo em todo e qualquer momento no passado, escreve Piketty.

Algumas pessoas afirmam que a decolagem no percentil de topo,os um por cento, reflecte o aparecimento de uma nova classe de “super-estrelas” — empresários, artistas, desportistas, autores e afins — que exploraram novas tecnologias, como a Internet, para ampliar os seus lucros à custa de outros, concorrentes nos mesmos campos. Se isto é verdade, as altas taxas de desigualdade podem reflectir uma realidade dura e inalterável: ganhos descomunais estão a ser obtidos por Roger Federer, James Patterson e outros. Piketty rejeita esta leitura. O principal factor, insiste ele, é que as grandes empresas estão a dar aos seus principais executivos, esquemas de remunerações bem bizarras e astronómicas. A sua investigação mostra que “os super-gestores”, mais do que as “super-estrelas”, representam para cima de setenta por cento dos 0.1 por cento dos rendimentos mais altos na escala da distribuição do rendimento. (Em 2010, era necessário ganhar pelo menos US $1,5 milhões para ser considerado estar a pertencer a este grupo de elite.). O aumento da desigualdade de rendimentos é em grande parte um fenómeno empresarial.

Os defensores dos altos valores auferidos como remunerações globais gostam de reivindicar que os altos dirigentes empresariais ganham os seus elevados salários com o aumento dos lucros e com a subida do valor das acções das suas empresas.. Mas Piketty aponta e responde contra esta argumentação afirmando que é muito difícil medir a contribuição (a “produtividade marginal”) de qualquer um destes indivíduos numa grande empresa. A remuneração dos gestores de topo normalmente é definida pelas comissões de remunerações, geralmente compostas por outros altos executivos que ganham remunerações comparáveis. “Só é razoável supor que as pessoas em condições de estabelecerem os seus próprios salários tenham um incentivo natural para se tratarem generosamente, ou pelo menos, para serem sobretudo muito optimistas na determinação da sua produtividade marginal” escreve Piketty.

Muitos executivos recebem um enorme volume de acções e de opções de compra de acções. Ao longo do tempo, eles e outras pessoas ricas ganham muita dinheiro a partir do capital que eles acumularam: estes rendimentos são obtidos sob a forma de dividendos, de ganhos em capital, juros, lucros das empresas privadas e de rendas. Os rendimentos de capital sempre desempenharam um papel fundamental no capitalismo. Piketty afirma que este papel está a crescer e é pois cada vez maior sendo isto que isto que nos ajuda a explicar porque é que a desigualdade está tão rapidamente a aumentar . Na verdade, argumenta Piketty, o capitalismo moderno tem uma lei interna do movimento que leva, não inexoravelmente, mas geralmente, em direcção a resultados menos iguais. A lei é simples. Quando a taxa de rentabilidade do capital — ou seja esta expressa os ganhos anuais que com ele se obtêm dividido pelo valor de mercado do mesmo capital — é maior do que a taxa de crescimento da economia, os rendimentos de capital tenderão a aumentar mais rapidamente do que os salários e os vencimentos, que raramente crescem mais rápido do que o PIB.


Se a propriedade do capital fosse distribuída igualmente, nada disto seria relevante. Todos nós partilharíamos igualmente o aumento dos lucros, dos dividendos e das rendas . Mas no Estados Unidos em 2010, por exemplo, os dez por cento mais ricos dos agregados familiares possuíram cerca de setenta por cento da riqueza de todo o país (um bom substituto para o “capital “), e os um por cento mais ricos da escala dos rendimentos dos agregados familiares possuíam trinta e cinco por cento de toda a riqueza. Em contraste com estes valores, a metade dos agregados familiares com menos rendimentos possuíam apenas cinco por cento da riqueza global. Quando o rendimento gerado pelo capital cresce rapidamente, as famílias mais ricas beneficiam desse aumento de forma desproporcionada . Desde 2009, os lucros das grandes empresas, os pagamentos de dividendos e o mercado de acções aumentaram desmesuradamente mas os salários evoluíram muito mal. Em consequência, e de acordo com os cálculos feitos por Piketty e por Sáez, quase todo o crescimento do rendimento na economia entre 2010 e 2012- cerca de noventa e cinco por cento desse crescimento – foi apropriado pelos um por cento da escala de rendimentos.

É uma imagem bastante chocante. Piketty chama a esta situação e a esta tendência, a tendência para a desigualdade aumentar durante os períodos em que a taxa de rentabilidade sobre o capital é maior do que taxa de crescimento da economia, “a contradição central do capitalismo”. Claro, a lógica também pode actuar em sentido inverso. Se a taxa de crescimento for superior à taxa de rentabilidade do capital, ordenados e salários crescerão mais rapidamente do que os rendimentos de capitais, e desigualdade irá cair. Foi isso que aconteceu em grande parte do século XX, afirma Piketty. O problema, argumenta Piketty, é que este estado de coisas é improvável ser mantido. “Uma combinação de circunstâncias… criou uma situação historicamente sem precedentes, que durou durante grande parte do século que durou quase um século,” afirma ele. “Todos os sinais apontam, no entanto, que isto está a acabar.”


Como é que isto é convincente? A análise de referência do desenvolvimento económico-frequentemente atribuída a Simon Kuznets, um economista de Harvard que a popularizasse durante a década de sessenta – é a de que a desigualdade na repartição aumenta durante as fases iniciais da industrialização mas que, por outro lado, esta desigualdade cai de forma sustentada com os rendimentos a convergirem e as condições gerais de vida a melhorarem para todos . Piketty estará certamente correcto ao sublinhar que não havia nada de natural ou de inevitável sobre a compressão do rendimento que ocorreu em meados do século XX. Isto é o produto do conflito mundial e das lutas políticas internas. Na Europa, as duas guerras mundiais e as políticas fiscais progressivas que eram necessárias para as financiar fizeram um enorme dano nas velhas e às grandes fortunas: muitas pessoas ricas, depois de terem pago as suas taxas sobre os rendimentos assim como os seus impostos sucessórios, não tinham bastante dinheiro para refazer a sua fortuna . Durante o período do pós-guerra, a inflação corroeu as suas poupanças. Entretanto, as leis favoráveis ao trabalho permitiram aos trabalhadores negociarem salários mais altos, o que levou a que tenha aumentado a proporção do rendimento recebido pelo trabalho. E a tarefa da reconstrução depois da destruição dos tempo de guerra levou à expansão rápida do PIB. Isto ajudou a manter a taxa de crescimento acima da taxa de rentabilidade do capital, reduzindo as forças de divergência.

No Estados Unidos, a história foi menos dramática mas largamente similar. A Grande Depressão pela desvalorização dos activos eliminou uma grande parte da riqueza dinástica e conduziu, igualmente, a uma revolução política. Durante os anos 30-40, lembra-nos Piketty, Roosevelt aumentou a taxa máxima de tributação do rendimento para mais de noventa por cento e o imposto sobre as grandes propriedades para mais de setenta por cento. Os salários mínimos foram determinados pelo governo federal para muitas indústrias assim como se incentivou o crescimento dos sindicatos. Nas décadas a seguir à guerra , gastou-se fortemente em infra-estruturas, tal como as auto-estradas nacionais, que impulsionaram o crescimento do PIB. Temendo incentivar a indignação pública, as grandes empresas mantiveram sob controlo o pagamento aos seus altos quadros . A desigualdade começou somente a aumentar outra vez quando Margaret Thatcher e Ronald Reagan conduziram uma contra-revolução conservadora que reduziu as taxas de imposto sobre os mais ricos, que dizimou os sindicatos e que procurou conter o crescimento das despesas públicas. A política e a distribuição do rendimento são os dois lados da mesma moeda.

Piketty atira alguns tiros bem apontados aos economistas que tentam ofuscar esta realidade. “No estudo dos séculos XVIII e XIX, é possível pensar que a evolução dos preços e salários, ou dos rendimentos e da riqueza, obedece a uma lógica económica autónoma tendo pouco ou nada a ver com a lógica da política ou da cultura,” escreve Piketty. “Quando se estuda o século XX, no entanto, tal ilusão cai por terra imediatamente. Um rápido olhar sobre as curvas que descrevem a evolução da desigualdade na distribuição do rendimento e da riqueza ou o rácio capital/rendimento é suficiente para mostrar que a política está omnipresente e que as mudanças económicas e políticas estão inextricavelmente entrelaçadas e devem ser estudadas em conjunto.”

Isso é mais do que simples retórica. Insistindo que as leis económicas tomam sempre forma através de normas sociais, dos valores e das escolhas políticas, Piketty salvaria a sua disciplina da aridez de abstracção e recolocá-la-ia no quadro de um modelo mais rico de economia política que foi o que as seus melhores referências como economistas do século XIX fizeram. Certamente, é difícil não ficar impressionado pela sua história e pelo seu assalto metodológico sobre os teóricos que acreditam que a economia pode ser reduzida a uma ciência pura. Mas não é sua visão do futuro demasiado pessimista? A curva de Kuznets, a sua descrição da desigualdade ao longo do tempo, é uma curva em forma de sino: a desigualdade cresce, atinge um valor de pico e depois decresce. Piketty quer substituí-la por uma curva em U. Estamos realmente condenados a retornar para a estrutura social de “Mansfield Park” e do “Le Père Goriot”?

Uma possibilidade mais optimista é que a taxa de crescimento do PIB se aproximará, ou mesmo ultrapassará a taxa de rentabilidade do capital. Se assim acontece, as próximas décadas poderiam ficarem mais próximas do que aconteceu em meados do século XX do que do que se verificou no século XIX. Para estarmos mais seguros disso mesmo com muitos países avançados envolvidos em situação de grande e difícil recessão , não augura nada de bom quando à possibilidade de um longo período de elevado crescimento. Mas as recessões são cíclicas. A longo prazo, são a inovação e a produtividade crescente que estão na base do crescimento. Com o desenvolvimento da Internet, da biotecnologia, dos robôs e de outros avanços científicos, é pelo menos concebível que o crescimento de produtividade cresça a uma taxa permanentemente mais alta e com ela crescerá igualmente o PIB.


Uma segunda via de fuga possível é a de que a taxa de rentabilidade do capital caia, reduzindo ou eliminando a diferença face à taxa de crescimento. Isto é o que a teoria económica tradicional estaria a prever. Enquanto o stock do capital físico e financeiro é cada vez mais elevado, o princípio de rendimentos decrescentes sugere que a taxa de lucro e de juros diminua. Adam Smith e outros economistas clássicos disseram que isto poderia acontecer; Marx referiu-se-lhe como “a lei mais importante da economia política.” Alguns economistas acreditam que é isso mesmo que já está a ocorrer. Relativamente às décadas passadas e assim sucessivamente as taxas de juro a longo prazo têm sido excepcionalmente baixas, o que levou Ben Bernanke, presidente anterior de FED, a lamentar “uma sobre-abundância global de poupanças. ” Um futuro de baixo crescimento lento e de ultra-baixas taxas de juro não seria um lugar particularmente dinâmico, mas não envolveria necessariamente a qualquer aumento ulterior na desigualdade.

Uma outra coisa que Piketty não considere adequadamente é a possibilidade de que a desigualdade, em algumas das suas dimensões, não esteja realmente a subir. O seu livro focaliza-se na sua maior parte na Europa e nos Estados Unidos. A nível global, um substancial progresso foi feito retirando as pessoas da zona de precariedade total e aumentando a sua esperança de vida. Em 1981, de acordo com os dados do Banco Mundial, aproximadamente dois em cinco membros da humanidade foram forçados a subsistir aproximadamente com um dólar por dia. Hoje, estamos com um em cada sete nestas mesmas circunstâncias. Nos anos 50 e 60 do século XX , a esperança de vida média em países em vias de desenvolvimento era de quarenta e dois anos. Em 2010, este indicador é de sessenta e oito anos. A “vida é melhor agora do que em quase qualquer altura na história,” escreveu Angus Deaton, um economista de Princeton, no seu livro de 2013, “The Great Escape: Health, Wealth, and the Origins of Inequality.” “Há mais pessoas a serem mais ricas e há menos pessoas a viverem na pobreza extrema. As pessoas vivem mais anos e os pais já não vêem habitualmente um quarto dos seus filhos morrer.”

Isto é uma grande notícia, mas não significa necessariamente que nós estamos a obter ganhos sobre a desigualdade na repartição dos rendimentos. Deaton ele mesmo indica que, para todo o progresso que foi feito na redução da pobreza e na saúde, a diferença entre países ricos e pobres permanece imensa. “Apesar das realizações quanto ao rápido crescimento das culturas, não houve quase nenhum redução da desigualdade de rendimento entre países,” escreveu ele. “Para cada país com uma história de convergência há sempre um outro país com uma história de que ficou para trás. .”

Ainda, algumas pessoas poderão argumentar que a desigualdade dos salários e a crescente desigualdade no mundo desenvolvido é um preço aceitável a pagar pelos benefícios experimentados relativamente aos piores resultados. Piketty não trata realmente desta questão. Piketty regista o sucesso de China ao longo das três décadas passadas, e o facto de ter deslocado centenas de milhões de pessoas da situação de pobreza extrema. Piketty gasta mais tempo detalhando o facto de que, durante esse intervalo, a desigualdade da rendimento tem aumentado extraordinariamente na China, e noutros países em vias de desenvolvimento, igualmente. Contudo a imagem global pode complicar a sua própria visão da desigualdade no Ocidente desenvolvido. Não considera seriamente o argumento de que a globalização – e o levantamento de nações como a China e a Índia-imediatamente está a manter os salários baixos e a aumentar a rentabilidade do capital, dinamizando a desigualdade em ambos os extremos da escala da repartição de rendimentos.


Dado que a desigualdade é um fenómeno mundial, Piketty tem uma solução adequada à escala planetária como resposta : um imposto global sobre a riqueza combinada com as taxas de tributação mais altas sobre os rendimentos mais elevados. De quanto mais elevados? Tomando como base os trabalhos que fez com Sáez e Stefanie Stantcheva, do M.I.T., relata-nos Piketty: “de acordo com as nossas estimativas, a taxa de tributação superior óptima nos países desenvolvidos está provavelmente acima dos oitenta por cento.” Tal taxa aplicada aos rendimentos acima de quinhentos mil ou de um milhão de dólares ao ano “não somente não reduziria o crescimento da economia dos E.U. mas distribuiria de facto os frutos do crescimento mais extensa e profundamente enquanto imporia limites razoáveis no comportamento economicamente inútil (ou mesmo nefasto) ”.

Piketty está-se a referir aqui às actividades ocasionalmente destrutivas dos especuladores de Wall Street e de bancos de investimento. O seu novo imposto sobre a riqueza seria como um imposto anual sobre os bens imóveis, mas aplicar-se-ia a todos as formas de riqueza. Os agregados familiares seriam obrigados a declarar o seu valor líquido às autoridades tributárias e seriam taxados a partir deste. Piketty sugere provisoriamente um imposto de uma só vez de um por cento para agregados familiares com um valor líquido entre um milhão e cinco milhões de dólares; e de dois por cento para aqueles com valor acima dos cinco milhões. “Ou pode-se preferir um imposto ainda mais fortemente progressivo a ser aplicado sobre as grandes fortunas (por exemplo uma taxa de 5 a 10 por cento em activos acima de um milhar de milhões de euros),” diz-nos ele. Um imposto sobre a riqueza forçaria os indivíduos que frequentemente gerem a sua carga fiscal para evitar outros impostos a pagarem a sua parte e geraria a informação sobre a distribuição da riqueza, que é actualmente opaca. “Algumas pessoas pensam que os multimilionário à escala mundial têm tanto dinheiro que seria bastante taxa-los a uma baixa taxa de tributação para resolver os problemas de todo o mundo”, diz-nos Piketty. “Outros acreditam que há tão poucos multimilionários que não valeria de nada estar a taxa-los mais pesadamente… em todo caso, o debate verdadeiramente democrático não pode continuar sem que haja estatísticas seguras.”

Os economistas podem debater se um tal imposto sobre a riqueza reduziria ou não os incentivos para investir e inovar, ou se seria necessário ser suficientemente penalizante para melhorar a situação no que se refere à desigualdade. Um problema mais imediato é que isto não está a acontecer: as nações do mundo não são capazes de chegar a um acordo em taxar as emissões de carbono prejudiciais, muito menos serão capazes de tributar o capital dos seus cidadãos mais ricos e mais poderosos. . Piketty concede aqui muito. Ainda, diz-nos ele, a sua proposta fornece aqui uma referência contra a qual podem ser julgadas outras propostas; Piketty aponta a necessidade para outras reformas úteis, tais como o melhoramento da transparência das operações bancárias internacionais; e poderia ser introduzida por fases. Um bom ponto de partida para começar, pensa, seria um imposto europeu sobre a riqueza que substitua os impostos sobre os bens imóveis, que “na maioria de países é equivalente a um imposto sobre a riqueza na classe média.” Mas isso pode ser visionário, também. Se a União Europeia avançasse com a proposta de Piketty, geraria uma precipitação para as zonas abrigadas de impostos, os paraísos fiscais, uma fuga dos capitais para a Suíça e para o Luxemburgo. Os esforços precedentes para introduzir os impostos sobre a riqueza ao nível nacional debateram-se com fortes problemas. A Espanha, por exemplo, adoptou um imposto sobre a riqueza em 2012 e aboliu-o no início deste ano. Em Itália, um imposto sobre a riqueza foi proposto em 2011 e nunca foi aplicado . Tais dificuldades explicam porque é que os governos ainda confiam noutras, evidentemente imperfeitas, ferramentas para taxar o capital, tal como impostos sobre a propriedade, as casas e sobre as mais-valias.

Nos Estados Unidos, a própria ideia de um novo imposto sobre a riqueza é olhada politicamente como uma impossibilidade tal como a ideia de levantar a taxa superior de imposto sobre os rendimentos mais elevados para oitenta por cento. Isto não é uma crítica a Piketty. O papel apropriado dos intelectuais é o de publicamente questionarem os dogmas aceites, conceber novos métodos de análise e de alargar os termos do debate político. O livro “Capital in the Twenty-first Century” faz todas estas coisas. Assim, como com uma tão grande previsão alguma parte deste não poderá suportar o teste da passagem do tempo. Mas Piketty escreveu um livro que ninguém interessado em compreender as grandes questões que se levantam da nossa época se pode dar ao luxo de ignorar.

Publicado na edição impressa da edição de 31 de março de 2014, com o título “Forces of Divergence”.

John Cassidy é redator da equipe do The New Yorker desde 1995. Ele também escreve uma coluna sobre política, economia e mais para o newyorker.com.

23 de março de 2014

Que juventude é essa?

Marcelo Ridenti


De modo inesperado, tomaram as ruas os netos da Marcha da Família com Deus pela Liberdade de 1964 e da Passeata dos Cem Mil de 1968. Os filhos dos que apoiaram a eleição de Collor em 1989 e dos que se manifestaram por seu impeachment em 1992. Todos contraditoriamente juntos.

Claro, em outro contexto. Diversidade de insatisfações com sinais ideológicos misturados, que se expressam também nas várias interpretações, cada qual identificando no movimento a realização dos próprios desejos e tentando influenciá-lo.

Setores de esquerda encantaram-se com o que lhes pareceu o início de uma revolução espontânea, mas ficaram embasbacados com as hostilidades sofridas, não por parte da polícia, mas de alguns anticomunistas. Adeptos do PT, percebendo que o movimento redunda em questionamentos variados a seus governos, tendem a reduzi-lo ao caráter fascista de certos manifestantes.

Os conservadores -inclusive na imprensa, sobretudo televisiva- ressaltam os protestos ordeiros contra a corrupção, tentando restringir o movimento a um aspecto pontual, como se todas as mazelas da ordem constituída se devessem à malversação das verbas públicas pelo PT.

Por sua vez, os defensores de causas como a tarifa zero sonham que a multidão está envolvida numa nova democracia horizontal e plebiscitária, pacificamente movida a internet, mas também se assustaram com a ferocidade de alguns grupos.

Em todos os pontos de vista, há algo de verdade e mistificação. O enigma começa a ser resolvido com a pergunta: quem se lança às ruas? Ao que tudo indica até o momento, são principalmente setores da juventude, até há pouco tida como despolitizada, e que não deixa de expressar as contradições da sociedade.

Parece tratar-se de uma juventude sobretudo das camadas médias, beneficiadas por mudanças nos níveis de escolaridade, mas inseguras diante de suas consequências e com pouca formação política.

Dados do MEC apontam que há hoje cerca de 7 milhões de universitários. O acesso ao ensino superior praticamente dobrou em uma década. Em 2000, eram admitidos anualmente 900 mil calouros. Em 2011, quase 1,7 milhão. Dois terços no ensino privado.

A título de comparação, tome-se a década das manifestações estudantis. Em 1960, havia 35.909 vagas disponíveis no ensino superior, número que saltou para 57.342 em 1964, ano do golpe de Estado, chegando a 89.582 no tempo das revoltas de 1968, a maioria no ensino público. Em termos absolutos, a evolução foi enorme. Não obstante, apenas 15% dos brasileiros com idade para estar na faculdade cursam o ensino superior.

Quanto à origem dos universitários, muitos compõem a primeira geração familiar com acesso ao ensino superior. Outros são de famílias com capital cultural e/ou econômico elevado, atônitos com a ampliação do meio universitário.

Marcelo Cipis

No que se refere às expectativas, parece haver o temor de alguns de não poder manter o padrão de vida da família e de outros de não ver realizada sua esperada ascensão social.

Produziu-se uma massa de jovens escolarizados, com expectativas elevadas e incertezas quanto ao futuro, sem encontrar pleno reconhecimento no mercado de trabalho nem tampouco na política. Ademais, detecta-se insatisfação com o individualismo exacerbado.

Em suma, um meio social efervescente em busca de causas na era da i(nc)lusão pelo consumo, em meio à degradação da vida urbana.

E por onde andam os 70% de jovens de 18 a 24 anos que não estão na escola? Alguns, no mercado de trabalho precarizado. Outros compõem o chamado "nem nem", nem escola nem trabalho. Massa ressentida que em parte também integra as manifestações.

No ano que vem, completam-se os 50 anos do golpe de 1964, cuja bandeira ideológica era o combate aos políticos e à corrupção. O risco está dado novamente? Por sorte, as manifestações trazem também reivindicações por liberdades democráticas, busca de reconhecimento e respeito, tocando num aspecto central: a luta pelo investimento em transporte, saúde e educação, contra a apropriação privada do fundo público.

Chegaram ao limite as possibilidades de mudança dentro das estruturas sociais consolidadas no tempo da ditadura e que não foram tocadas após a redemocratização? Será possível aperfeiçoar a democracia política, também num sentido social? Abre-se um tempo de incertezas.

Marcelo Ridenti, 54, é professor titular de sociologia na Universidade Estadual de Campinas e autor de "O Fantasma da Revolução Brasileira"

8 de março de 2014

Lembrem-se da Rumélia Oriental

Glen Newey


Em 1878, a guerra russo-turca estava no auge, os britânicos temiam a expansão russa, e G.H. MacDermott, astro do music-hall, cantava seu número que deu à língua inglesa (e outras) a palavra “ufanismo”. Como McDermott dizia, “nós combatemos esse Urso antes” e “temos os navios, os homens, e também o dinheiro”.

Agora, temos poucos homens, não temos porta-aviões e estamos quebrados. Só restou, como guincho repetido, o tom moralista altissonante. Um governo democraticamente eleito, embora com mãos sujas de muito sangue, é deposto por uma oposição que inclui fascistas dos partidos Setor Direita (Pravy Sektor) e Svoboda (Liberdade). A nova junta, embora não eleita, é saudada pelas potências ocidentais como “o governo da Ucrânia”, seu ministro das Relações Exteriores é festejado no Europolo. A Rússia age para proteger seus ativos estratégicos na região, sobretudo os portos no Mar Negro que alugou de Kiev; os interesses russos incluem também os gasodutos que cortam o território da Ucrânia e os muitos falantes de russófonos e cidadãos russos que vivem dentro das fronteiras ucranianas.

Tudo isso é ferozmente condenado pelo Executivo e pelo Legislativo dos EUA; um pouco menos pela União Europeia. A União Europeia há muito tempo cortejava a Ucrânia prometendo-lhe acesso, para grande temor dos russófonos no leste do país. Entrementes, um plebiscito rapidamente organizado sobre a soberania da Crimeia é condenado pelo “governo” em Kiev e por euro-líderes.

A reunião da União Europeia na quinta-feira sobre a crise ofereceu o mínimo imaginável. A Polônia e os estados do Báltico, por razões óbvias, favorecem uma linha dura. O Comunicado soou como brandir uma escova de dentes. Não há surpresas. Nós na União Europeia, precisamos do gás russo. O comércio entre União Europeia e Rússia equivale a 15 vezes o dos EUA. Sem exército europeu e sem canhões, ameaçar cortar o comércio é como ameaçar jogar um pudim de passas na cara de alguém. Eurotolos juram que cancelarão a próxima reunião de cúpula UE-Rússia; essa, deve ter feito o Kremlin engasgar de rir.

Sem os meios para projetar força, a UE pode pelo menos indulgenciar nas fantasias morais dos impotentes. E os EUA, herdeiros das ambições imperiais britânicas na Ásia Central, permanecem no Afeganistão. E condenam reduntantemente a assertividade russa. Sebastopol oferece interessante comparação com Guantánamo, outra base naval também alugada em país hospedeiro (embora Havana jamais veja a cor do dinheiro). Isso, claro, no “quintal dos EUA”, que agora parece estender-se já até o Mar de Aral e além dele: os EUA, diretamente ou mediante procuradores, estão no Afeganistão já há trinta e tantos anos. A Rússia, ao invadir o próprio quintal para proteger seus ativos estratégicos violou tanto a soberania ucraniana, quanto John Kennedy fez na Baía dos Porcos em 1961; a Crimeia, ao contrário de Cuba, abriga número considerável de cidadãos do país invasor.

Com a displicente falta de perspectiva histórica que marca a atual geração de políticos, o vice-primeiro-ministro disse na televisão nessa semana que a Rússia agia como se a Guerra Fria ainda estivesse em curso. Mas Putin tem mais de czar que de comissário, e suas ambições são imperiais. No florescente verão Vitoriano, preocupações com o expansionismo russo significaram apoio vital aos otomanos (conhecidos, um pouco incongruente, como "o homem doente da Europa"), querelas na Crimeia, o “Grande Jogo” no Afeganistão, e tentativas no Congresso de Berlin em 1878 para conter a maré do pan-eslavismo o qual, como então se temia, daria ao “Urso” um habitat na Europa continental. Em Berlim, a Grã-Bretanha insistiu em criar o pseudo-estado da “Rumélia Oriental” no norte da Trácia, como contrapeso multiétnico ao irredentismo eslavo. Durou sete anos inteiros.

O que quer o jogo em que se meteram EUA−UE? Que os russos saiam da Crimeia? Mas não há meio confiável de conseguir que façam tal coisa. Criar um falso estado amigo da UE no oeste da Ucrânia? Ou meter tudo, Carcóvia e Donetsk, junto com Kiev, numa grande barraca, em mais um exercício de construção-de-estado do tipo que o ocidente tem promovido com tanto sucesso nos últimos anos? Como a Spectator disse alguns anos depois de Berlim: "o experimento de Lord Beaconsfield já dura cinco anos, e o resultado anunciado pelo povo da 'Rumélia Oriental' é desastroso fracasso".

Sobre o autor

Glen Newey é um filósofo político inglês, professor de Teoria Política na Université Libre de Bruxelles, na Bélgica. Até 2011 foi professor na School of Politics, International Relations & Philosophyna Keele University, Staffordshire, England. Membro proeminente da escola “realista” de filósofos políticos que também inclui figuras como Bernard Williams, John N. Gray, e Raymond Geuss.

7 de março de 2014

Turquia sai do controle

Christopher de Bellaigue

The New York Review of Books

The Rise of Turkey: The Twenty-First Century’s First Muslim Power, Soner Cagaptay, Potomac, 168 pp., $25.95

Gülen: The Ambiguous Politics of Market Islam in Turkey and the World, Joshua D. Hendrick, New York University Press, 276 pp., $49.00

I’mamin Ordusu [The Imam’s Army], Ahmet Şık, 298 pp., disponível em The Opinions

Dois pilotos que pilotam juntos um avião começam a esmurrar-se na cabine. Um deles ejeta membros da tripulação, que ele suspeita que apoiem seu rival; o outro berra que seu copiloto nem é piloto, é ladrão. Nesse momento o avião começa a girar descontrolado e perde altura rapidamente, enquanto os passageiros olham em pânico.

Essas linhas apareceram publicadas em recente coluna de jornal, assinada por Can Dündar, jornalista turco, e não consigo pensar em melhor fórmula para apresentar a confrontação pervertida, evitável, quase de história em quadrinhos, que tomou conta da Turquia desde dezembro passado, e que ameaça desfazer todos os ganhos políticos e econômicos de uma década.

As partes em confronto são o primeiro-ministro Recep Tayyip Erdoğan, 60 anos, e um clérigo turco, Fethullah Gülen, 73 anos. Erdoğan lidera o partido que está no governo, “Partido Justiça e Desenvolvimento” (AKP), e trabalha na agitação de Ankara, capital do país. Gülen é o pregador e didata moral mais conhecido da Turquia. Vive em reclusão na Pennsylvania, ao que se sabe em estado precário de saúde (sofre do coração). Gülen preside de modo pouco formal, mas sem dúvida preside, um império de escolas, negócios e uma rede de simpatizantes.

Esse império é que Erdoğan agora chama de “um estado paralelo” ao que ele foi eleito para governar; e está decidido a eliminá-lo. A disputa começou para valer em dezembro passado e tem tido efeito extraordinariamente destrutivo. Muito dos seguidores de Gülen trabalham dentro do governo e têm muito poder. Agora, vastas partes do funcionalismo público foram evisceradas, grande parte da mídia foi reduzida a porta-vozes de uma espécie de revelação politicamente motivada e insinuações, e a economia está parando, depois de uma década de forte crescimento. O milagre turco é passado.

O governo do AKP de Erdoğan e o movimento de Gülen partilham uma ideologia de islamismo modernizante, e embora as relações entre os dois já viessem se deteriorando há algum tempo, antes da atual crise ainda era possível ser associado aos dois grupos. A coexistência acabou repentinamente em 17 de dezembro, quando mais de 50 figuras pró-AKP, entre as quais o presidente do banco estatal Halkbank; um magnata da construção; e os filhos de três ministros do Gabinete foram detidos para interrogatório por procuradores de justiça considerados homens de Gülen.

As prisões foram executadas, ao que se sabe, por policiais gülenistas, e receberam muita atenção dos jornais e redes de televisão, esses, também, com tendência semelhante pro-Gülen. Denúncias de que os bem relacionados prisioneiros seriam culpados de suborno, contrabando e outros malfeitos foram tuitadas e retuitadas num frenesi condenatório-executório; o ataque pelos gülenistas, de dentro do governo e também de fora dele, foi bem planejado. Descobriram-se provas, entre as quais cerca de $4,5 milhões escondidos em caixas de sapatos na casa do principal executivo do banco Halkbank, além de indicações de pagamentos feitos a ministros. Rapidamente se divulgou que uma segunda fase da mesma investigação atingiria também o filho do primeiro-ministro.

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A velocidade e o vigor da reação de Erdoğan a esses eventos indicam que ele os considerou como precursores de sua própria destruição. Imediatamente, começou a varrer de sua própria entourage traidores potenciais ou nomes que lhe parecessem comprometidos; em poucos dias substituiu metade do próprio Gabinete, inclusive os ministros cujos filhos haviam sido presos para interrogatório. O expurgo alcançou pontos longínquos do funcionalismo civil. Como parte da campanha de Erdoğan contra a influência de Gülen, milhares de policiais foram tirados dos respectivos postos, além de altos procuradores de justiça, envolvidos no caso de corrupção e burocratas associados aos ministros demitidos.

No início de fevereiro, o governo começou a investigar oficiais de polícia gülenistas, acusados de formarem “uma organização ilegal dentro do estado”. Erdoğan suspendeu as investigações judiciais e partiu para a ação direta. A dois meses de eleições municipais e a seis meses de uma eleição presidencial à qual espera concorrer, Erdoğan ainda sobrevive. Mas a tradição política que ele representa, uma síntese de islamismo e livre-mercado, essa, foi gravemente ferida; o primeiro-ministro está também muito gravemente abalado; e há mais abalos por vir.

Antes de o confronto Erdoğan-Gülen começar a ser visto, no início de 2013, e com certeza antes dos protestos nacionais do verão passado, quando liberais turcos tomaram as ruas contra seu autoritário primeiro-ministro, a corrente turca do islamismo modernizante gozava de muitas simpatias. E estava personificada em Erdoğan – que chegou ao poder em 2003, depois de décadas de lutas, pelos islamistas, contra as táticas opressivas de instituições seculares há muito tempo entrincheiradas, sobretudo no Exército e no Judiciário. Nos seus primeiros anos no cargo de primeiro-ministro, Erdoğan pareceu estar conseguindo encaminhar soluções para muitos dos problemas do país. Explorando a forte maioria que tinha o partido AKP no Parlamento, ele conseguiu estabilizar e liberalizar a economia errática, semiplanejada, tornando os turcos mais ricos do que jamais antes; e introduziu várias reformas liberais (o fim da tortura e maiores direitos para os curdos). Talvez mais importante que tudo, pôs as Forças Armadas sob controle das autoridades civis eleitas, as mesma forças armadas que, desde 1960, haviam conseguido derrubar nada menos que quatro governos eleitos.

Em todo esse processo, o partido AKP esteve em uma coalizão não oficial com islamistas menos visíveis; e seu mais poderoso parceiro de coalizão era o movimento de Fethullah Gülen. Suas escolas formavam turcos bem comportados, patriotas e piedosos, e o governo os acolhia bem nas elites burocráticas e de negócios que, aos poucos iam deslocando a velha guarda secular. Erdoğan e Gülen pareciam encarnar a ânsia de muitos turcos por um Islã em harmonia com uma democracia eleitoral, com empreendedorismo e consumismo. E o elemento islamista na fórmula deveria assegurar altos padrões de ética e bom comportamento. Durante anos, a vida pública fora venal, movida a ganância, ambições e apetites; os islamistas prometiam fazer as coisas de outro modo.

Mas há ganância e apetites também entre os islamistas. Pouco depois das primeiras prisões de aliados de Gülen na polícia, em dezembro, um vídeo distribuído por internet mostrava um alto dirigente do partido AKP em flagrante delito. (Abdurrahman Dilipak, colunista conhecido e pró-governo, alegou que haveria mais de 40 outros vídeos em circulação, todos “forjados”). Conversas gravadas envolvendo Gülen também foram vazadas e ouvidas por milhões de turcos. Numa delas, Gülen é ouvido em uma conversa em que se decidia que empresa turca receberia um contrato oferecido por governo estrangeiro. Em outra fita, Gülen e um de seus assessores discutem a probabilidade de três “amigos” (i.e., seus seguidores) em posições chaves na entidade do estado turco que controla os bancos, garantirem proteção a um banco ligado ao grupo de Gülen, o Bank Asya, contra investigações a serem conduzidas pelo governo. (Pouco depois do vazamento, os três funcionários em questão foram demitidos.) Tudo isso mostrava imagem muito diferente de um santo, que vivia vida frugal, de estudos e caminhadas pelas colinas da Pennsylvania, que Gülen cultivara.

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O conflito assume agora tons absolutamente desbragados, e já é visível nos postos mais altos. Erdoğan recusa-se a pronunciar o nome de Gülen em público, mas quando fala de “falsos profetas, videntes e pseudos sábios vazios”, seu alvo é claro. Em um dos frequentes sermões que Gülen pronuncia de sua própria casa, e alcança vastas audiências na Turquia graças a redes de televisão que o apoiam e à Internet, o pregador exilado lançou uma maldição contra seus inimigos: “que Deus consuma em fogo as casas deles, destrua os ninhos deles, quebre os acordos entre eles.” Denúncias de vasta corrupção dentro do governo, muitas das quais envolvendo contratos viciados para projetos de construção e violação de áreas reservadas de zoneamento, são insistentemente repetidas pelos veículos de imprensa gülenistas, tão insistentemente repetidas que acabam por já serem vistas como verdade comprovada. Em 24 de fevereiro, gravações de conversas telefônicas entre o primeiro-ministro e seu filho Bilal, nas quais pai e filho estariam combinando o modo de esconder dezenas de milhões de euros, foram distribuídas pelo YouTube. O primeiro-ministro declarou que as gravações eram forjadas, mas elas foram ouvidas dois milhões de vezes em 24 horas imediatamente depois de postadas. Ainda que os expurgos que Erdoğan promoveu no judiciário e na polícia impliquem que não haverá processos nem, portanto, condenações (e a imunidade parlamentar na Turquia proteja alguns dos aliados de Erdoğan), é difícil imaginar o governo recuperar a sua antiga reputação de probidade.

O terreno da disputa é tanto comercial quanto político. O governo acusou o Bank Asya de afiliados de Gülen de ter comprado 2 bilhões em moeda estrangeira pouco antes das operações policiais de dezembro passado – o que implica dizer que os funcionários do banco teriam sido avisados com antecedência sobre o que viria e da consequente queda do valor da lira turca. O banco luta agora para deter uma corrida de saques, que fez o preço das ações cair cerca de 46% entre 16 de dezembro e 5 de fevereiro. Até especialistas não gülenistas entendem que o governo orquestrou a corrida ao banco, tentando arruinar o Bank Asya, sem se preocupar com danos colaterais, tanto contra os pequenos correntistas como contra todo o sistema bancário que a corrida fatalmente causaria. O capitalismo turco é só muito tenuemente controlado pelo Estado de direito.

A imagem de Erdoğan também está abalada. No verão passado, as manifestações mostraram ao público turco um primeiro-ministro enfurecido, tomado de ira e de medo, como quando reagiu contra a insatisfação de uma minoria predominantemente secular, não com gestos magnânimos, que teriam satisfeito muitos dos manifestantes, mas com cassetetes, porretes, bombas de gás e denúncias de um complô sinistro orquestrado do exterior, mantido por um sinistro “lobby das taxas de juros”, para negar aos turcos o seu bem merecido lugar ao sol.

Quando diz “lobby das taxas de juros”, Erdoğan fala de especuladores ocidentais inescrupulosos – judeus, por implicação –, e os discursos dele despertam antigas lembranças; dentre outras, de uma Turquia terrivelmente endividada nos bancos europeus, nos tempos otomanos, o que enfraqueceu mortalmente o império antes do colapso, na I Guerra Mundial. Mas Erdogan invoca também os sombrios anos 1990, quando uma economia inflacionada, corroída de dívidas e improdutiva foi usada como playground por investidores sanguinários, realizavam seus lucros quando o mercado inchava e só reapareciam depois do crash inevitável, beneficiando-se de juros reais de, em média, 32%.

Esses traumas marcaram a abordagem que Erdoğan deu aos aspectos monetários da crise. Mesmo antes de 17 de dezembro, uma combinação de compras de bônus do Federal Reserve; a ameaça de subida nas taxas globais de juros; sinais de que a economia turca começava a esfriar, e tumultos políticos causados pelos protestos do verão passado derrubaram a lira, que caiu cerca de 9%. A queda acentuou-se depois das prisões em dezembro, mas o primeiro-ministro só autorizou ligeira alteração na taxa de juros depois que a moeda já caíra mais 13%, e as empresas turcas, fortemente expostas no curto prazo, com dívidas em dólares, lutavam para cumprir suas obrigações financeiras. Finalmente, dia 28 de janeiro, o Banco Central aumentou as taxas, e a queda da lira foi afinal contida.

A resistência ideológica de Erdoğan, contra o aumento dos juros, custou muito caro a empresas turcas. Nas palavras de Inan Demir, economista do Finansbank, em Istanbul: “Não havia outra saída, além de aumentar os juros, ou haveria pânico em grande escala, mas deveriam ter sido aumentados muito antes. Agora, as empresas turcas estão no pior dos mundos, com dificuldades sempre crescentes para pagar, por causa da lira fraca; e com custos financeiros sempre mais altos, por causa dos juros altos.”

Em apenas quatro meses, o Finansbank revisou a previsão de crescimento para 2014, de 3,7% para 1,7% – depois de uma década de crescimento médio de mais de 5%.

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For all its troubles, Turkey’s economy is still big, its citizens 43 percent better off than they were when Erdoğan came to power. Este país mais bem sucedido é o tema de The Rise of Turkey: The Twenty-First Century’s First Muslim Power, novo livro de Soner Cagaptay, um especialista em Turquia do Washington Institute for Near East Policy. One sympathizes with Cagaptay, who finished his book long before the present crisis, but even then his tone might have struck one as triumphal—a reminder of the tendency of many observers, captivated by the spectacle of Turkey shedding the complexes of the past, to downplay the perils of the future. Cagaptay dwells at length on the political and economic advances of the Erdoğan years, but he does not go into the tensions within Turkish Islamism, which are likely to define the country’s politics for some time, or the corruption that underlies the country’s capitalist successes.

The Rise of Turkey não diz nada sobre o movimento Gülen, exceto que organizou reluzente conferência internacional, da qual o autor do livro participou, sobre “o papel de liderança da Turquia na Primavera Árabe”. Essa conferência seria impensável agora, porque os Irmãos da Fraternidade Muçulmana aliados de Erdoğan foram já expulsos do poder no Egito, e toda a política deles para a Síria (que previa, erradamente, que seria fácil derrubar o governo de Bashar al-Assad) já fracassou completamente. Cagaptay não é, absolutamente, o único acadêmico que aceitou a hospitalidade do movimento Gülen, que ele classifica como movimento “de prestígio”. O problema é que Fethullah Gülen além de ser feito de “prestígio”, também é feito de muito dinheiro.

Gülen: The Ambiguous Politics of Market Islam in Turkey and the World foi escrito por um sociólogo norte-americano, Joshua Hendrick, que trabalhou durante sete meses como editor voluntário numa editora afiliada ao movimento gülenista em Istanbul. Eu, que passei recentemente alguns dias com gülenistas, que me pareceram entusiasmados, radiantes, extremamente solícitos e surpreendentes, de início, e, logo depois, cansativos e tediosos, só posso admirar o tempo que Hendrick sobreviveu entre eles. Afinal, valeu a pena, porque nos oferece um estudo detalhado de um movimento que se define, se tal coisa é possível, pela ofuscação.

Fethullah Gülen nega que comande qualquer tipo de movimento ou que mantenha qualquer vínculo institucional com organizações que o reverenciam. Seus seguidores – já estimados em cerca de 5 milhões – dizem que não formam rede; que são unidos exclusivamente pelo respeito pelo Hocaefendi, o “estimado professor”, movidos por sua visão de um Islã moderno e tolerante, que valoriza o conhecimento e o progresso material, tanto quando a piedade e a caridade. Empresas que pertençam ou sejam apoiadas por gülenistas não se identificam como tais, embora haja uma associação, a Confederação Turca de Empresários e Industriais, cujos membros não ocultam a admiração pelo líder. Por tudo isso, é difícil saber quantos bilhões de dólares circulam nessa comunidade. O retrato de Gülen nunca desaparece das paredes das mais de mil escolas privadas, em mais de 120 países, organizadas por seus aderentes, ou das manchetes do jornal Zaman, também de seguidores de Gülen – e o maior jornal da Turquia.

Como observa Hendrick, muita gente sequer se dá conta de que vive na órbita de Gülen – um pai que envie a filha para uma escolha de gülenistas na África do Sul, por exemplo; ou um empregado de serviço terceirizado de uma empresa de construção, mandado trabalhar na Rússia. A negabilidade e a ambiguidade sempre foram e continuam a ser “cruciais para o crescimento ininterrupto [do movimento] por três décadas.”

O outro fator é o próprio Gülen. O magnetismo pessoal sempre o ajudou a conquistar seguidores desde os anos 1960, quando, ainda jovem imã de mesquita, já era conhecido pelo estilo emocional de pregar, frequentemente explodindo em lágrimas e, mesmo, atirando-se e rolando pelo chão. Um seguidor que acabava de voltar de uma visita ao Hocaefendi nos EUA, descreveu-o para Hendricks como “dono de poderes que uma pessoa medianamente culta e educada nem consegue imaginar. É um presente de Deus.” Em alguns sentidos, Gülen é reverenciado como se reverenciam os “pole” sufis, seres humanos eleitos por Deus para difundir a verdade divina; mas o movimento Gülen é mundano demais para ser incluído entre movimentos sufis. “Agir” é o princípio orientador declarado dos gülenistas, não qualquer distanciamento ou introspecção.

Baseando-se no ensino de uma divindade turca do século XX, Bediüzzaman Said Nursi, Gülen acredita que a humanidade tenha de ser salva do pecado e aprender o caminho da revelação e o exemplo profético do Corão. A partir do mesmo ponto, outros revivalistas muçulmanos no século XIX, sobretudo Sayyid Qutb, do Egito, justificaram a violência e a aplicação à força da lei sagrada. Gülen tende na direção inversa. Prega “abraçar as pessoas, sem considerar diferenças de opinião, visão de mundo, ideologia, etnia ou crença” e com vistas à “democracia, aos direitos humanos e às liberdades” – o que para Qutb é anátema.

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A visão de mundo de Gülen ajuda a entender, em certa medida, o internacionalismo do movimento, a ênfase no ensino de idiomas nas suas escolas, e a busca do diálogo entre várias fés, em encontros, conferências e projetos universitários. Diferente de outras organizações islâmicas, o movimento Gülen não recolhe dinheiro exclusivamente para muçulmanos, mas também para não muçulmanos (para as vítimas do terremoto no Haiti, por exemplo). Gülen e seus principais assessores dedicam muito trabalho no esforço de se afastarem de qualquer antissemitismo, e, até, de qualquer crítica contra Israel. Assim, os esforços do movimento para fixar-se nos EUA foram muito facilitados; há ali cerca de 140 escolas especiais gülenistas, e Gülen cultivou boas relações com aliados poderosos na política, na educação e nas artes. Ainda assim, os gülenistas estão sendo examinados de perto por pais e mães norte-americanos que enviam seus filhos para aquelas escolas, e que se preocupam com a opacidade de seus objetivos e métodos; e, em termos mais gerais, também por observadores que não veem com clareza o que, exatamente, Gülen prega ou representa.

Desde o início do século XIX, a educação é preocupação central dos reformadores muçulmanos – com ênfase nas ciências –, e o movimento de Gülen não é diferente. Na Turquia, o movimento já controla oito universidades, dúzias de escolas secundárias privadas e cerca de 350 outras instituições que preparam os alunos para os exames vestibulares, de acesso às universidades. O sistema público de educação na Turquia não tem boa reputação; assim, os pais economizam para conseguir mandar os filhos para essas instituições pré-vestibulares.

Em uma dessas instituições, imaculadamente limpa e muito bem equipada, um gülenista, professor graduado, disse-me que os cursos preparatórios gülenistas põem alunos nas melhores universidades da Turquia, e que reservam 15% dos lugares para alunos pobres, que recebem bolsas de estudo. O professor interrompeu nossa conversa para ir à mesquita, do outro lado da rua, fazer suas preces; e voltou depois, acompanhado de dois alunos agradáveis, de boas maneiras (as moças estudam em ala separada dos rapazes). Contaram-me sobre o sistema “grande irmão”, pelo qual se assegura apoio moral e material aos alunos que vivem longe de casa e que se distribuem pelos dormitórios da escola preparatória. Um dos rapazes observou que os professores o tratavam “como seu próprio filho.” O movimento gülenista é dado a analogias familiares. Não aprecia trabalhadores que só se dedicam “das nove às cinco”; e a dedicação é apreciada igualmente nos alunos e nos professores.

Riqueza, sucesso, a excitação de participar de uma verdade sublime – o movimento Gülen difunde-se com muita energia, empurrado por esses estímulos. É fácil imaginar o senso de dever que toma os gülenistas mais pobres depois que são elevados àquele mundo de brilhos, cosmopolita e, sobretudo, muito firmemente entretecido. Tanto quanto mediante os livros e discursos do Hocaefendi, eles são também promovidos por laços de amizade; no caso de as famílias originais não quererem trilhar os novos caminhos, então os gülenistas têm de escolher entre a família velha e a nova família.

Cultos e organizações fechadas em todo o mundo se têm servido de métodos semelhantes, e os resultados nem sempre são felizes. Uma psicóloga em Istanbul contou-me sobre um menino muito pobre, filho de um porteiro no distrito mais caro da cidade, que a procurou depois de ter tido contato com um grupo de gülenistas. Eles o acolheram, convidaram-no a visitar a casa onde viviam juntos, o apresentaram às ideias do Hocaefendi, e o fizeram sentir-se vivo, realizado e acolhido. Até que um dia, sozinho em casa, mexendo numa pilha de DVDs, pôs no aparelho um dos discos. Era um guia para atrair novos recrutas, com táticas que o rapaz reconheceu que haviam sido usadas para atraí-lo. Pouco adiante, o rapaz procurou minha amiga psicóloga.

No início de seu livro, Hendrick reproduz parte da transcrição de um vídeo vazado e que foi item da acusação em processo movido contra Gülen em 2000, no qual foi julgado in absentia (Gülen já havia fugido da Turquia para os EUA) por conspiração contra o estado secular. Nesse já famoso excerto, Gülen diz aos seus apoiadores: “Vocês devem mover-se nas artérias do sistema, sem que ninguém perceba a presença de vocês, até alcançarem os centros de poder (...) Vocês têm de esperar até terem tomado todo o poder do estado.”

Mas Hendrick não avança muito profundamente na discussão das várias denúncias que se fizeram contra Gülen ao longo dos anos; como sociólogo, talvez entenda que não é trabalho que lhe caiba.

Alegações de que Gülen estaria tentando tomar o controle de órgãos do estado, particularmente o Judiciário e a Política, datam, pelo menos, de 1971, quando Gülen cumpriu pena de sete meses de prisão por trabalhar para minar o secularismo. Essas acusações têm a ver com uma importante diferença entre o movimento de Gülen e outras tradições islamistas turcas. Enquanto outras tradições reagiram de modo ortodoxo contra os obstáculos legais e políticos que lhes foram impostos, concorrendo em eleições e disputando postos de poder, os gülenistas tentaram permanecer corretamente alinhados às instituições seculares (nem sempre com sucesso, como o comprovam a condenação e a prisão de Gülen), ao mesmo tempo em que, gradualmente, se infiltravam dentro delas.

Em 2011, um jornalista, Ahmet Şık, lançou um livro The Imam’s Army [O Exército do Imã], no qual expôs o modo como os gülenistas assumiram o controle da força policial turca, ao longo de vinte anos.

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The Imam’s Army é livro rico de detalhes fascinantes. Fala de uma diretiva que teria sido lançada para os policiais gülenistas no final dos anos 1990, no auge de uma campanha, pelas autoridades seculares, contra os islamistas turcos. Por essa diretiva, os seguidores de Gülen na Polícia receberam ordens para retirar de suas casas todos os livros, espalhar latas vazias de cerveja pela casa, não usar turbantes para, assim, exibir imagem “secular”. Şık também escreve sobre transferências e demissões que são rotina para todos os policiais veteranos ou procuradores que tentam atacar gülenistas, e as campanhas de vilificação movidas contra eles pelas imprensa ligadas aos gülenistas, em especial pelo jornal Zaman.

Şık recuperou parte de seu material de livro publicado antes, escrito por um ex-chefe de polícia, Hanefi Avcı. Em setembro de 2010, dois dias antes da data em que teria de comprovar suas denúncias em uma conferência de imprensa, e apesar de sua manifesta tendência de direita, Avcı foi preso e acusado de pertencer a uma organização de esquerda. Şık foi preso no ano seguinte, pouco antes da data prevista para o lançamento de The Imam’s Army. (Apesar dos esforços da polícia para destruir todas as cópias digitais do livro, o texto foi postado na Internet, e foi baixado 100 mil vezes em dois dias.) Mais jornalistas foram presos em seguida, sob pretextos variados, e todos os casos foram reunidos em uma só grande investigação sobre um alegado complô contra o governo, pelo antigo establishment secular. A conspiração recebeu o nome de Ergenekon, da pátria mítica da nação turca na Ásia Central.

Quando foi iniciada em 2007, a investigação Ergenekon foi bem recebida por muitos turcos, como oportunidade para o país pôr ponto final aos abusos cometidos pelas forças armadas e seus aliados. Mas muito antes de a investigação chegar ao clímax, em agosto do ano passado, com a prisão de 242 pessoas, incluído um ex-chefe do Estado-maior, acusado de pertencer à “organização terrorista Ergenekon”, já muitos haviam mudado de opinião sobre todo o processo, dadas as flagrantes irregularidades no inquérito e no julgamento. Houve condenações sem outras provas além de gravações ilegalmente obtidas; vários casos visíveis de provas plantadas contra um ou outro acusado. A maior irregularidade de todas, provavelmente, se verificou em um processo relacionado a esse, em que 330 membros, entre aposentados e do serviço ativo das Forças Armadas foram encarcerados, condenados por planejarem um golpe, em 2003, embora não houvesse qualquer prova contra eles além de um único CD cujo exame mostrou que, um dia, ali estivera gravada a versão 2007 do Microsoft Office.

O julgamento “Ergenekon” deveria ter sido a vingança final colhida pelos longamente reprimidos islamistas turcos e Erdoğan como seu líder. Mas há boas razões para afirmar que jamais existiu algo semelhante à tal organização Ergenekon e que todo o processo foi motivado por desejo de vingança. Segundo Gareth Jenkins, acadêmico britânico que analisou a fundo todo o caso, a operação foi montada e executada não por Erdoğan mas por “uma gangue de seguidores de Gülen na polícia e nos baixos escalões do Judiciário.” Na opinião de Jenkins, os gülenistas usaram a operação para castigar seus inimigos. Jenkins acredita que Ahmet Şık, Hanefi Avcı e os demais jornalistas presos – alguns dos quais ainda esperam pela sentença –, foram punidos por serem “críticos, opositores ou rivais do movimento Gülen.”

Ainda em 2006, Fethullah Gülen foi absolvido da acusação de tentar tomar o estado turco, mas Erdoğan, seu ex-aliado, deu nova vida à mesma ideia. Tendo apoiado aquela investigação Ergenekon, Erdoğan dedica-se agora a reabrir o mesmo caso, sem dúvidas para usar como publicidade e propaganda os abusos judiciários cometidos pelos gülenistas. Mês passado, Erdoğan reagiu com abuso de sua própria autoria: fez aprovar uma lei, pelo Parlamento, que dá maior poder ao governo para controlar juízes e procuradores. A disputa entre Gülen e Erdoğan marca o fim de uma parceria que levou o islamismo ao poder na Turquia, e põe por terra a crença, cara até a alguns liberais, de que, se a Turquia deixasse falar sua maioria religiosa e pia, seria também país mais justo.

4 de março de 2014

Trotsky em Cuba

Como seu narrador em O Homem que Amava os Cachorros, Leonardo Padura foi feito para importar menos do que deveria.

Samuel Farber

Jacobin

Trotsky, a esposa Natalya e filho Sedov em Alma Ata (1928). Wikimedia.

Tradução / Há algum tempo, o escritor cubano Leonardo Padura explora seu desencanto com algumas das realidades de sua amada cidade por meio de seus romances sobre o detetive Mario Conde. Mas é em seu O Homem que Amava os Cachorros, que suas reflexões sociais e políticas sobre o socialismo e a liberdade – em Cuba e fora dela – alcançam sua maior profundidade.

Padura entrelaça as histórias do revolucionário russo Leon Trotsky e de seu assassino, o comunista catalão Ramón Mercader, que ele traz pelas lentes de um narrador cubano, um jornalista despedido do cargo por motivos políticos e forçado a trabalhar como revisor para um diário veterinário.

O fato histórico de que Mercader viveu em Cuba por cerca de quatro anos no final dos anos setenta, trabalhando como assessor do repressivo Ministério do Interior (e que sua mãe Caridad trabalhou durante sete anos como funcionária encarregada de relações públicas na embaixada cubana em Paris nos anos 60), dá a Padura os meios para conectar o assassino com o jornalista. Eles se encontram um dia quando Mercader, acompanhado por um guarda-costas, está passeando com seus amados cachorros na praia de Santa María del Mar onde o jornalista tinha ido ver o pôr do sol.

Sem expor sua identidade, Mercader revela muito de sua vida ao jornalista cubano, fingindo que está falando de uma terceira pessoa e não de si mesmo. E é por meio dessa convenção artística que Padura articula suas idéias sobre o stalinismo, sua psicologia e seus horrores, tanto na esfera da alta política quanto no plano individual. Ao contrário do estereótipo de comunistas semelhantes a robôs, Padura apresenta uma visão diferenciada de uma série de personalidades comunistas. Apesar do peso esmagador da ortodoxia ideológica e do terror, a individualidade de Mercader permanece.

Mercader é inicialmente um comprometido revolucionário lutando do lado republicano na Guerra Civil Espanhola, uma pessoa pensante com uma mente independente. Essa independência começa a ruir sob a pressão de seus camaradas comunistas, que continuamente o lembram de que “o partido está sempre certo e se você não entende, não importa: você tem que obedecer”.

Isso é minado ainda mais quando, depois de ter sido recrutado por oficiais da inteligência soviética, seu superior o informa no meio da Guerra Civil que o próprio Stalin ordenou o expurgo do comando republicano leal ao presidente socialista Largo Caballero. Com isso, Padura também desafia um dos muitos mitos sobre o papel do Partido Comunista e da URSS como salvadores da República Espanhola que ainda prevalecem em grande parte da esquerda internacional.

O golpe final na capacidade já decadente de Mercader de raciocinar de forma independente ocorre quando, em uma das cenas mais assustadoras do livro, o ativista comunista é transformado, em um campo de treinamento na URSS, no soldado anônimo número treze e é compelido a matar um homem desamparado e esfarrapado por ser um “cachorro trotskista, inimigo do povo”.


O outro comunista no romance de Padura é Trotsky, um homem que também amava cães. Com profundo conhecimento e compreensão da obra do líder bolchevique, o escritor cubano o descreve com genuína simpatia: perdido no exílio, privado da cidadania soviética e incapaz de encontrar asilo em qualquer país até que o presidente mexicano Lázaro Cárdenas lhe dá abrigo no México.

O Trotsky de Padura é um homem perseguido – muitos de seus parentes e seguidores foram assassinados por ordem de Stalin. Mas existem diferentes tipos de pessoas perseguidas. Existem aqueles como Nelson Mandela que, durante suas décadas sombrias na prisão, foi apoiado por um grande movimento social e político. E há quem, como Trotsky, perceba, como Padura o fez dizer: “Estou cada vez mais só, sem amigos, sem camaradas, sem família… Stalin levou todos eles. ”

Compreender essa solidão permite a Padura descrever um Trotsky que não se surpreende com as confissões absurdas extraídas das vítimas dos grandes expurgos dos anos 30 na URSS, mas que se entristece muito com a confissão auto-incriminatória de Christian Rakovsky, seu antigo camarada na luta contra Stalin, no terceiro julgamento de Moscou em 1938.

Instigado pela simpatia ao líder russo, Padura mostra Trotsky censurando-se internamente por não ter reconhecido os excessos que ele mesmo cometeu ao tentar defender a sobrevivência da revolução, “embora nunca o admitisse publicamente”, afirma o autor. O Trotsky imaginado por Padura lamenta as ações que tomou para militarizar os sindicatos ferroviários e as políticas coercitivas aplicadas durante a reconstrução pós-Guerra Civil, a substituição de dirigentes sindicais e até mesmo seu papel no esmagamento sangrento da revolta de Kronstadt.

Estas são especulações plausíveis, embora excessivas, de Padura à luz das revisões que Trotsky fez durante os anos 30 sobre muitas das idéias políticas que ele havia adotado particularmente durante a Guerra Civil de 1918-20 – revisões que o fizeram rejeitar, por exemplo, o princípio do partido único como pedra angular do socialismo no poder. Ao mesmo tempo, essas podem muito bem ser as projeções de Padura refletindo retrospectivamente sobre como um sistema semelhante foi implantado em seu próprio país.

Padura, vivendo sob uma espécie de comunismo em Cuba, também destaca Trotsky como um crítico literário que afirma, sem hesitar, que “tudo é permitido na arte”. Não por acaso, o escritor cubano destaca a ocasião em que André Breton, em sua visita ao México, diz a Trotsky que tudo é permitido na arte exceto ataques à revolução proletária. Trotsky responde que na arte nenhuma restrição pode ser permitida – que não há nada que uma ditadura deva impor ao criador sob a desculpa de necessidade histórica e política, e que a arte deve obedecer apenas às suas próprias exigências.


Com tanta simpatia e respeito pela verdade histórica como pela forma que trata Trotsky, seria um grande erro ver Padura como simpatizante do trotskismo. Sem diminuir a notável realização de Padura em retratar não apenas Trotsky, o homem, mas também Trotsky, o pensador político, ele falha em compreender, talvez por causa de sua própria formação política, certos conceitos estratégicos do pensamento trotskysta.

Padura apresenta com precisão a dura crítica de Trotsky ao comunismo alemão e sua política suicida em relação ao nazismo que tratava a social-democracia (“social fascismo”, de acordo com a linguagem dos stalinistas) como equivalente ao nazismo. Mas ele erroneamente deixa implícito que Trotsky defendeu uma espécie de Frente Popular de todas as forças de “centro e esquerda” para combater o nazismo e o fascismo. Em vez disso, ecoando o Comintern do início dos anos 20, Trotsky propôs uma política da Frente Unida que reuniria todas as forças da classe trabalhadora, que incluía a social-democracia, mas excluía os partidos burgueses, independentemente de quão liberais e democráticos eles fossem.

Em outras palavras, Trotsky apoiava uma política de classe, não uma política “popular”. Ele supôs, como no caso da Espanha, que a oposição ao fascismo só poderia ter sucesso se fosse baseada na mobilização dos interesses de classe, o que acabaria por levar à revolução socialista – a única alternativa real ao fascismo para Trotsky, dada a decadência da sociedade capitalista, mesmo em suas versões democráticas.

Qualquer dúvida que possa ter permanecido sobre as possíveis inclinações trotskistas de Padura foi removida por sua recente entrevista ao Espacio Laical, a publicação liberal católica cubana, onde ele disse que Trotsky tinha sido tão “fanático” quanto Mercader – uma declaração que parece completamente em desacordo com o espírito e a letra de O Homem que Amava os Cachorros.


Ainda assim, o personagem principal de O Homem que Amava os Cachorros não é Leon Trotsky nem Ramón Mercader. É a única figura da trama totalmente fictícia, a única das três que é cubana: o próprio narrador. Iván é um jovem jornalista que já foi punido duas vezes pelo sistema por ser muito independente na época que conhece Mercader.

Pouco depois de se formar na universidade, as autoridades o enviaram para a longínqua cidade de Baracoa para trabalhar como chefe da estação de rádio local – uma ação destinada a servir como um “corretivo” do governo cubano para “me derrubar e me impor este mundo”. Na segunda vez, ele foi enviado para trabalhar para uma revista veterinária como revisor. Então, para aumentar seus infortúnios profissionais, seu irmão é excluído da universidade por ser gay e desaparece ao tentar fugir para os EUA.

A história pessoal de Iván começa a se desenrolar na década de setenta, período que marca os quatro anos em que Mercader residiu em Cuba como assessor do Ministério do Interior e também o ponto alto da repressão política e cultural do stalinismo na ilha.

Foi durante esses anos “amargos” que Iván foi marginalizado e reprimido pelas autoridades cubanas – justamente quando começava a se revelar como escritor sério. Iván esclarece que a vida de escritores como ele não corria perigo naquela época. Em vez disso, o sistema os transformou em nada. Ou seja, conta Iván, quando soube o que era o medo:

Acho que naqueles anos devemos ter sido os únicos membros de nossa geração em toda a civilização estudantil ocidental que, por exemplo, nunca colocaram um baseado entre os lábios e que, apesar do calor correndo em nossas veias, nos libertaríamos tardiamente do atavismo sexual, liderado pelo maldito tabu da virgindade (não há nada mais próximo da moralidade comunista do que os preceitos católicos); no Caribe espanhol éramos os únicos que vivíamos sem saber que estava nascendo a salsa ou que os Beatles (os Rolling Stones e Mamas and the Papas também) eram os símbolos da rebelião e não da cultura imperialista, como nos diziam muitas vezes; e além disso, éramos, na época, os menos informados sobre a extensão das feridas físicas e filosóficas produzidas em Praga por tanques que funcionavam como mais do que ameaças, sobre o massacre de estudantes em uma praça mexicana chamada Tlatelolco, sobre a devastação histórica e humana desencadeada pela Revolução Cultural do nosso querido camarada Mao, e sobre o nascimento, para as pessoas da nossa idade, de outro tipo de sonho, morto nas ruas de Paris e nos concertos de rock da Califórnia.

Em seguida, situando-se nos anos 90, Iván revisita o nascimento e a morte das esperanças suscitadas pela Perestroika, a descoberta da verdade sobre o ditador romeno Nicolae Ceaucescu, os horrores da Revolução Cultural na China e a decepção por ter descoberto que o grande sonho de emancipação humana e igualdade estava mortalmente doente, e que genocídios como o cometido no Camboja pelo regime do Khmer Vermelho de Pol Pot foram cometidos em seu nome. O que parecia indestrutível havia se rasgado nas costuras.


Leonardo Padura, é um dos principais representantes de um novo ambiente intelectual e cultural da ilha que apoia a liberalização e democratização da sociedade cubana. Mas ele está em uma posição única no sistema cubano: embora tolerado e até festejado, sua obra mais crítica não foi divulgada ao grande público. Ele parece ter alcançado um grau muito maior de independência das autoridades do que outros artistas e intelectuais conhecidos na ilha.

Assim, ele tem apoiado criticamente o programa de reforma do governo, mas tem agido com muito mais independência do regime do que outros artistas e intelectuais cubanos de renome – por exemplo, abstendo-se de endossar muitas das declarações denunciando dissidentes patrocinados pelo aparato cultural do Estado cubano. Como o próprio Padura sugeriu em várias ocasiões, isso foi possível em parte devido à sua independência econômica do governo, que foi conquistada com a publicação de suas obras no exterior.

Nos agradecimentos ao final de O Homem que Amava os Cachorros, Padura escreve que a “semente” do livro começou a germinar em sua mente durante uma visita que fez, pouco tempo antes do colapso do bloco soviético, a casa de Trotsky no bairro de Coyoacán na Cidade do México, um museu que para ele era “um verdadeiro monumento à ansiedade, ao medo e ao triunfo do ódio durante a época em que os Trotsky moravam lá”.

Quinze anos depois, com a URSS morta e enterrada, diz o romancista cubano, ele contou a história do assassinato de Trotsky “para refletir sobre como a grande utopia do século XX foi corrompida”. Vergonhosamente, após ter sido publicado e comentado favoravelmente pela imprensa oficial da ilha, e mesmo tendo recebido o Prêmio Nacional de Literatura em 2012, a tiragem da edição cubana de seu livro foi tão pequena que ficou indisponível logo após sua apresentação pública.

O governo cubano quer matar dois coelhos com uma cajadada só: relaxar alguns controles políticos e ao mesmo tempo impedir a difusão de idéias que podem subverter seu monopólio de poder. Padura não foi censurado ou reprimido pelo governo cubano. Mas, semelhante a seu narrador Iván, ele foi modulado para ter menos importância do que deveria.

Colaborador

Samuel Farber nasceu e foi criado em Cuba e é autor de vários livros e artigos que tratam desse país. Ele é membro do Jewish Voice for Peace e apoia o BDS.

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