30 de março de 2014

Doutrina dos porões: a escola que disciplinou a tortura

Centro de Formação do Exército formou a elite da repressão aos inimigos do regime

Chico Otavio

O Globo

Agentes formados pelo CEP, no Forte Duque de Caxias, seguiam as instruções trazidas da Escola das Américas, no Panamá, base militar americana acusada de treinar quadros da repressão na América Latina Foto: Lucio Marreiro/19/4/1988

Um número enfeita a ficha resumida de oficiais que marcaram a história recente das Forças Armadas: "063". No Almanaque do Exército, o código identifica os militares graduados no curso de Informações do Centro de Estudos do Exército (CEP), no Forte do Leme. Suas bancas escolares forjaram uma geração de majores, capitães e tenentes que operou a máquina de torturar, matar e fazer desaparecer dos porões do regime.

Desde 1964, logo após a derrubada de Jango, os militares contavam com o Serviço Nacional de Informações (SNI) para coordenar as atividades de inteligência e perseguir os inimigos do regime que se estabelecia. Mas foi no Forte do Leme, pelas mãos do general Octavio Pereira da Costa, que jovens oficiais conheceram a doutrina de "operações de informações": o enfrentamento direto, no qual teriam de buscar a qualquer custo, sem os limites impostos por lei, aquilo que era negado pelo adversário.

Os cursos de Informações do CEP, categorias B (para oficiais de nível médio) e C (subtenentes e sargentos), começaram em 1966, motivados pelo crescimento das ações armadas de organizações de esquerda e pelo fantasma do comunismo. Enquanto as altas patentes aprendiam a teoria no curso de Informações oferecido pela Escola Superior de Guerra (ESG), o CEP ensinava os alunos a conduzir interrogatórios, a disfarçar-se, a penetrar em residências sem deixar vestígios e a pensar e agir como guerrilheiros, à paisana, além de estourar "aparelhos subversivos".

Os instrutores não tiveram o trabalho de elaborar as aulas. O projeto chegou pronto do Forte Gulick, no Canal do Panamá, onde funcionava a Escola das Américas, base militar americana acusada de treinar quadros da repressão política na América Latina. Na lista de graduados na escola, figuravam ditadores como o nicaraguense Anastácio Somoza, o argentino Jorge Videla e o paraguaio Alfredo Stroessner.

Execuções: um mal necessário

Era preciso aprender rápido. Baseados em manuais que desaconselhavam o uso de ameaças contra o inimigo, “"a menos que pudessem ser cumpridas", e que consideravam prisões e execuções um mal necessário, os instrutores preparavam os quadros da repressão em menos de seis meses. Até 1971, quando foi transferido para Brasília e assumido pelo SNI, o curso tornou-se o caminho mais curto para quem seguiu carreira nos porões.

Paulo Malhães, o coronel que confessou recentemente às comissões estadual e nacional da Verdade o envolvimento da morte e ocultação de corpos de guerrilheiros, cursou o CEP. Arrancava dedos, dentes e vísceras dos corpos dos militantes para evitar que fossem identificados. Freddie Perdigão Pereira, um dos mais violentos agentes do regime, responsabilizado pela bomba do Riocentro (abril de 1981), também. O então tenente Ailton Guimarães Jorge, que mais tarde seria o Capitão Guimarães do jogo do bicho, só ingressou nas operações repressivas da Polícia do Exército, na Vila Militar, depois de passar pelo Forte do Leme.

Perdigão esteve no curso de janeiro a julho de 1966, logo na primeira turma. Ao concluí-lo, foi elogiado pelo general Octavio Costa pelo "valor intelectual, pela marcante curiosidade intelectual, seu valor humano, pela lealdade e espírito de colaboração". Mas o comandante ressalvou que o jovem capitão poderia produzir mais se mostrasse amadurecimento emocional. Cinco anos depois, mais maduro, Perdigão seria um dos torturadores da Casa da Morte de Petrópolis, um dos mais bárbaros aparelhos clandestinos do Centro de Informações do Exército (CIE).

Violência, mas "aplicada com inteligência". Regras sujas, mas sem perder a hierarquia e a disciplina. Poderes ilimitados, mas sem ceder às tentações pessoais. Era essa a aposta dos comandantes. O próprio CIE, unidade vinculada diretamente ao gabinete do Ministro do Exército, foi ungido à luz dos ensinamentos do CEP, no mesmo momento em que Informações transformava-se praticamente em nova Arma do Exército, tão forte quanto a Artilharia, a Cavalaria, a Infantaria e a Intendência.

Até hoje, o Exército resiste a fornecer dados como ementa, disciplinas, carga horária e nomes de instrutores e de alunos do curso. Chegou mesmo a negar a sua existência. Porém, o número "063" aparece em praticamente todas as fichas resumidas de torturadores. Versados em "Fundamentos de Informações", "Produção de Conhecimento", “"Operações de Inteligência", "Operações de Contrainformações", entre outras matérias, eles operariam uma mudança no combate à luta armada.

Para oferecer a primeira resposta à escalada de ações da guerrilha, o Exército praticamente catou a laço os agentes necessários. Muitos deles foram arregimentados nos quadros das polícias Civil e Militar, trazendo das delegacias e quartéis o pau-de-arara e outras técnicas rudimentares e violentas de interrogatórios de criminosos comuns. Contaminou também as casernas com a expertise das ruas e seus vícios.

Soco na cara não ajudava

O curso de Informações do Leme mudou o cenário. Com as primeiras levas de diplomados, foi possível renovar os quadros e aumentar o grau de controle sobre as operações. A lógica do sopapo e do pau-de-arara não chegou a ser afastada, mas passou a coexistir com métodos de tortura mais técnicos, que envolviam o terror psicológico e a criação de uma rede clandestina de cárceres, onde os agentes passaram a agir com extrema liberdade, sem as restrições de uma unidade militar formal.

Paulo Malhães, em depoimento à Comissão Nacional da Verdade, relatou a experiência pessoal com o processo. Ele admitiu que, nos primeiros anos de interrogador, imitava a polícia na dose de violência contra os presos. Disse que, depois, adotou métodos mais científicos, convencido de que um sujeito que leva um soco da cara jamais teria disposição de colaborar com os seus torturadores.

28 de março de 2014

A esquerda trabalhista precisa recuperar o espírito insurgente que fez de Jeremy Corbyn o líder



A esquerda trabalhista precisa recuperar o espírito insurgente que fez de Jeremy Corbyn o líder
31 de julho de 2023





Um dos mentores intelectuais do corbynismo, o falecido Leo Panitch, concluiu seu último livro com a observação esperançosa de que a derrota nas eleições de 2019 ocultou um rejuvenescimento substancial do socialismo na Grã-Bretanha: fruto de uma colaboração geracional única entre a esquerda trabalhista formada na década de 1970 , e um novo que levaria o projeto adiante.

Como vai isso? Os obituários da esquerda trabalhista, sejam suas vertentes boomer ou milenar, são, infelizmente, frutas fáceis de alcançar neste momento. Sem páreo para o ex-diretor do Ministério Público Sir Keir Starmer e seu golpe de direita, as figuras de proa esquerdistas veteranas Jeremy Corbyn e Diane Abbott estão suspensas do partido, oficiais de esquerda em todos os níveis do governo são rotineiramente eliminados de suas candidaturas em qualquer pretexto formal, e a maquinaria do Partido Trabalhista foi reconfigurada para tornar impossível o crescimento da esquerda Trabalhista – quanto mais de um líder de esquerda.

Pior, como já reclamei antes em jacobino e além, quais proposições políticas o Trabalhismo deixou e o ecossistema “Corbyn” mais amplo ter conseguiram derrotar tenderam para a tecnocracia antipolítica e estão – para ser gentil – longe de estar à altura da época. As coisas parecem impossíveis. No entanto, os eventos recentes devem servir como um lembrete de que fizemos coisas impossíveis antes. Duas dessas impossibilidades ocorreram no primeiro ano do “corbynismo”, e proponho que retornar às suas lições seja uma saída para o atual impasse.

Os leitores mais jovens podem não se lembrar que o ponto de virada na eleição de liderança trabalhista de 2015 que permitiu a Corbyn se distinguir totalmente de seus rivais do Novo Trabalhismo foi o edital do partido de que os parlamentares trabalhistas mostrassem sua dureza ao se absterem (em vez de se oporem) ao Projeto de Lei do Bem-Estar proposto por governo conservador de David Cameron. Como John McDonnell observou na época, os cortes sádicos e arbitrários do projeto de lei na renda familiar dos mais pobres eram algo que alguém deveria “nadar no vômito” para se opor, mas Corbyn sozinho entre os candidatos à liderança o fez. Essa simples apresentação da diferença moral entre Corbyn e seus principais rivais trabalhistas foi uma virada importante na sorte da candidatura de Corbyn, que antes era considerada impossível.


Além de superar a impossibilidade de ser eleito pela esquerda, a segunda impossibilidade do projeto Corbyn foi sua sobrevivência ao “Golpe das Galinhas” de junho de 2016, quando quarenta e quatro ministros-sombra (entre eles Starmer) renunciaram em uma tentativa para forçar o fim da liderança de Corbyn. É difícil reconstruir mentalmente o quão extraordinária foi a recusa de Corbyn em renunciar naquela situação. Esse ato impossível provou a resiliência do pacto geracional na esquerda do Reino Unido que Panitch descreveu; deu o pretexto para Corbyn elevar jovens aliados de esquerda a altos cargos de gabinete secreto; e, crucialmente, contribuiu para a separação entre Corbyn pessoalmente e a marca trabalhista estabelecida: uma vantagem “populista” na rápida eleição geral que se seguiu um ano depois, em junho de 2017. Também foi um lembrete de que todo avanço do socialismo na Grã-Bretanha exige a humilhação do decoro ordinário do Partido Trabalhista.

São histórias que deveriam ficar na memória coletiva da esquerda, mas para que servem agora? Para o primeiro: o Projeto de Lei do Bem-Estar de 2015 que selou a vitória de Corbyn continha entre as primeiras referências formais a um limite de benefícios para dois filhos na Grã-Bretanha (ou seja, retenção de créditos fiscais e outros benefícios após os beneficiários serem pais de um terceiro filho), que os conservadores introduziram em efeito em 2017. Por alguma peculiaridade histórica, o limite de dois filhos está novamente dirigindo a conversa política na Grã-Bretanha este mês, depois que Starmer anunciou que um novo governo trabalhista não o aboliria, apesar de esta política manter diretamente centenas de milhares de crianças na pobreza. . Para aqueles que se lembram, a dinâmica é 2015 novamente, principalmente quando as atuais aparições de Corbyn na mídia condenando o boné coincidem com pesquisas surpresa que o colocam como o atual ou ex-líder trabalhista mais popularenquanto a mídia saliva com a perspectiva do circo dele concorrendo contra o Partido Trabalhista para prefeito de Londres ou para sua própria cadeira parlamentar atual de Islington North no próximo ano.

Para o segundo: a memória de Corbyn e a negociação da esquerda sobre o Chicken Coup de 2016 apresenta uma lição para responder ao caso em torno de Jamie Driscoll. O prefeito trabalhista do metrô do norte de Tyne é um dos promotores mais notáveis ​​das políticas industriais “corbynitas” no governo local e, no mês passado, foi impedido de concorrer como candidato trabalhista a prefeito nas próximas eleições. Ele foi alvo do tipo de acusações absurdas e sórdidas de proximidade com o anti-semitismo (simplesmente por falar ao lado do cineasta Ken Loach) que se tornaram rotina em Starmer’s Labour. Driscoll anunciou que concorrerá como independente e imediatamente atraiu mais de £ 100.000 em pequenas doações. Starmer se lembrará da humilhação do então primeiro-ministro Tony Blair em 2000, quando o esquerdista Ken Livingstone foi eleito prefeito de Londres como independente, depois que a máquina do Partido Trabalhista foi acionada para impedi-lo de concorrer sob sua bandeira.


Onde está o golpe de galinha nisso? Já faz muito tempo desde que um parlamentar de esquerda trabalhista estava em posição de renunciar a qualquer coisa em protesto, mesmo que quisesse. Mas o momento Driscoll apresenta uma alternativa muito melhor. Uma série combinada de aparições de parlamentares da esquerda trabalhista ao lado de seu camarada Driscoll forçaria a mão de Starmer em uma das duas direções. Ou ele ignora a contravenção e a esquerda recupera alguma autonomia pela primeira vez desde 2020. Ou – mais provavelmente – ele retira o chicote de todos eles, apresentando um momento de galvanização para a esquerda mais ampla estruturalmente semelhante a (mesmo que invertido de) o golpe de 2016. E mais, com corridas independentes de Driscoll e Corbyn como prêmio, essa energia estaria a serviço de um projeto livre – por enquanto – do albatroz do Partido Trabalhista.

Uma das coisas mais frustrantes sobre a timidez e a inércia da esquerda trabalhista desde 2020 é como isso tem sido desnecessário. Naquela época, como um dos poucos escritores da grande imprensa defendendo a candidatura à liderança de Rebecca Long-Bailey – ex-secretária de negócios de Corbyn e parlamentar de Salford North -, argumentei que as políticas industriais inovadoras de “construção de riqueza comunitária” esse foi o portfólio dela que foi subutilizado nas eleições de 2019 e ainda é a principal carta que a esquerda ainda tinha para jogar na Grã-Bretanha.

Isso significaria conceder contratos governamentais a pequenas e médias empresas locais, oferecendo ao mesmo tempo apoio estatal para ajudá-los a pagar um salário digno e garantir suas credenciais ecológicas; acabar com o vício da Grã-Bretanha em terceirizar para empresas globalizadas; e retroceder a revolução Thatcherita/Novo mercado de trabalho do nível local para cima. Este é um programa que pode ser perseguido tanto em nível nacional quanto – como mostra Driscoll – local, em tempos eleitorais bons e ruins, dentro e fora do Partido Trabalhista. É também um programa com algo a oferecer precisamente aos pequenos empresários e descontentes, apoiadores economicamente nacionalistas do Brexit que temiam Corbyn desnecessariamente, e que muitos de nós argumentamos que seriam parceiros de coalizão mais produtivos do que os profissionais liberais de bom tempo que o corbynismo priorizou pós -2017.


Esta plataforma política para uma redefinição política na esquerda está preservada em âmbar desde 2020. As estranhas repetições de hoje das oportunidades do Projeto de Lei do Bem-Estar Social e do Golpe de Galinha que lançaram o corbynismo em seu primeiro ano finalmente oferecem a chance de estourá-lo novamente, mesmo que apenas o que resta da esquerda trabalhista pode recuperar sua capacidade de arriscar.






Fonte: https://jacobin.com/2023/07/labour-party-left-jeremy-corbyn-insurgency-keir-starmer-strategy

26 de março de 2014

Importar-se demais. Essa é maldição das classes trabalhadoras


Por que a lógica básica da austeridade foi aceita por todo mundo? Porque a solidariedade passou a representar um flagelo?

David Graeber


"As pessoas da classe trabalhadora se preocupam mais com seus amigos, famílias e comunidades - elas são fundamentalmente mais legais." Ilustração de Matt Kenyon

Tradução / "O que eu não consigo entender é porque as pessoas não estão protestando nas ruas?" Eu ouço isso, de vez em quando, vindo de pessoas de boa condição e poderosos. Há uma espécie de incredulidade. “Afinal de contas”, o subtexto parece ser, “nós ficamos furiosos quando alguém ameaça nossos paraísos fiscais; se alguém ameaçasse o meu acesso a comida ou moradia, eu certamente estaria queimando bancos e/ou ocupando o parlamento. O que há de errado com as pessoas?”

É uma boa pergunta. Você imaginaria que um governo que provocou tanto sofrimento àqueles com menos condições de resistir, sem ao menos mudar os rumos da economia, correria risco de suicídio político. Em vez disso, a lógica básica da austeridade foi aceita por quase todo mundo. Por quê? Por que políticos que prometem sofrimento prolongado ganham qualquer condescendência da classe trabalhadora, pra não falar em apoio?

Acredito que a própria incredulidade com a qual comecei fornece uma resposta parcial. Os trabalhadores podem ser, como incessantemente nos lembram, menos meticulosos com assuntos de lei e propriedade que seus “superiores”, mas eles também são muito menos obcecados consigo mesmos. Eles se importam mais com seus amigos, famílias e comunidades. No conjunto, ao menos, são pessoas fundamentalmente melhores.

Em certa medida isso parece refletir uma lei sociológica universal. Há muito as feministas apontam que aqueles que estão na parte de baixo de qualquer arranjo social desigual tendem a pensar mais sobre, e portanto importar-se mais com, aqueles no topo do que os do topo em relação a eles. As mulheres em toda parte tendem a pensar e saber mais sobre as vidas dos homens do que os homens pensam sobre as mulheres, assim como os negros sabem mais sobre os brancos, os empregados sobre os empregadores e os pobres sobre os ricos.

E sendo os humanos as criaturas empáticas que são, o conhecimento leva à compaixão. Os ricos e poderosos, no entanto, podem permanecer alheios e indiferentes, porque podem se garantir. Vários estudos psicológicos recentes confirmam isso. Pessoas nascidas em famílias da classe trabalhadora invariavelmente se dão melhor em testes de percepção dos sentimentos alheios do que os filhos dos ricos ou das classes médias. De certa forma, o resultado não é exatamente inesperado. Afinal, isso é o que ser “poderoso” fundamentalmente significa: não ter de prestar muita atenção no que os outros ao redor estão pensando e sentindo. Os poderosos empregam outros para fazê-lo por eles.

E quem eles empregam? Principalmente filhos das classes trabalhadoras. Aqui, creio que tendemos a ser tão cegos por uma obsessão com o (ouso dizer, uma romantização do?) trabalho fabril como nosso paradigma de “trabalho de verdade” que nos esquecemos do que a maior parte do trabalho humano de fato consiste.

Mesmo na época de Karl Marx ou Charles Dickens, os bairros de trabalhadores abrigavam mais empregadas domésticas, engraxates, varredores, cozinheiros, enfermeiros, taxistas, professores, prostitutas e feirantes que empregados em minas de carvão, fábricas têxteis ou fundições. Hoje, isso é ainda mais verdadeiro. O que consideramos arquetipicamente como trabalho de mulheres – cuidar de pessoas, encarregar-se de suas vontades e necessidades, explicar, confortar, antever o que o patrão quer ou está pensando, para não mencionar cuidar, vigiar e conservar plantas, animais, máquinas e outros objetos – representa uma proporção muito maior daquilo que a classe trabalhadora faz quando está trabalhando do que martelar, talhar, carregar ou colher coisas.

Isso é verdade não apenas porque a maioria das pessoas da classe trabalhadora são mulheres (pois a maioria das pessoas em geral são mulheres), mas porque temos uma versão distorcida do que os homens fazem. Como os trabalhadores do metrô em greve recentemente tiveram de explicar a usuários indignados, os funcionários do metrô não passam a maior parte de seu tempo recolhendo bilhetes: eles passam a maior parte de seu tempo explicando coisas, consertando coisas, procurando crianças perdidas, e cuidando dos idosos, doentes e desorientados.

Se pensarmos bem, não é isso, basicamente, a vida? Os seres humanos são projetos de criação mútua. A maior parte do trabalho que fazemos é uns com os outros. As classes trabalhadoras apenas fazem uma parte desproporcional. Elas são as classes cuidadoras, e sempre foram. É apenas a incessante demonização dos pobres por aqueles que se beneficiam dos seus cuidados que torna difícil, num fórum público como este, reconhecê-lo.

Como filho de uma família de classe trabalhadora, posso atestar que é disso mesmo que nos orgulhamos. Constantemente nos disseram que o trabalho é uma virtude em si – que ele forma caráter ou coisa assim – mas ninguém acreditava nisso. A maioria de nós entendia que o melhor seria evitar o trabalho, a menos que ele beneficiasse outras pessoas. Mas do trabalho que você fizesse, fosse ele construir pontes ou esvaziar penicos, você poderia se orgulhar. E há outra coisa de que definitivamente nos orgulhávamos: que somos pessoas que cuidam umas das outras. Isso é o que nos distinguia dos ricos que, na nossa percepção, a metade do tempo sequer se dedicava a cuidar de seus próprios filhos.

Há uma razão pela qual a maior virtude burguesa é a austeridade, e a maior virtude na classe trabalhadora é a solidariedade. Porém essa é precisamente a corda na qual a classe hoje está pendurada. Houve um tempo em que se preocupar com sua comunidade podia significar lutar pela própria classe trabalhadora. Naqueles dias costumávamos falar de “progresso social”. Hoje vemos os efeitos de uma guerra sem trégua contra a própria noção de uma política da classe trabalhadora ou comunidade de classe trabalhadora. Isso deixou a maioria dos trabalhadores com poucos meios de expressar essa preocupação, senão dirigindo-a a noções artificiais: “nossos netos”; “a nação”; seja através de patriotismo chauvinista ou de apelos ao sacrifício coletivo.

Como resultado, tudo está posto ao revés. Gerações de manipulação política finalmente transformaram esse senso de solidariedade num flagelo. Nossa preocupação com o outro foi transformada em arma contra nós mesmos. E assim deve permanecer até que a esquerda, que pretende falar pelos trabalhadores, comece a pensar séria e estrategicamente sobre no que consiste a maior parte do trabalho, e o que aqueles que o realizam pensam ser a virtude contida nele.

David Graeber é um antropólogo, ativista político e autor norte-americano. He is currently reader in social anthropology at Goldsmiths College, University of London, and was formerly an associate professor of anthropology at Yale University. David is a member of the labour union Industrial Workers of the World, and has played a role in events such as the 2002 New York protests against the World Economic Forum. Seu livro mais recente é Dívida: os primeiros 5.000 anos (2011).

24 de março de 2014

Forças da divergência

Se as tendências actuais se mantiverem , as consequências serão potencialmente terríveis, diz-nos Thomas Piketty.

John Cassidy


Se as tendências atuais continuarem, Thomas Piketty vê consequências “potencialmente aterrorizantes”. Ilustração de Michel Gillette.

Tradução / No imponente mundo da imprensa académica, não é vulgar que as encomendas e a publicidade façam o editor antecipar a edição de um livro. Mas foi o que Belknap, uma chancela da Harvard University Press, fez ao editar “O Capital no século XXI”, do economista francês Thomas Piketty, uma análise arrebatadora sobre a desigualdade crescente. Revendo a edição francesa do livro do Piketty, que saiu no ano passado, Branko Milanovic, um ex-economista importante do Banco Mundial, chamou-lhe “um livro que marca definitivamente o pensamento económico”. O economista disse que isso pode mudar a maneira como pensamos sobre os últimos dois séculos de história económica. Certamente, nenhum livro de economia nos últimos anos recebeu esse tipo de atenção. Meses antes de sua data de publicação em edição americana, em que o editor antecipou a data da sua publicação de Abril para Março, era já objecto de discussão on-line animada entre economistas e outros comentadores.

Piketty, que ensina na Escola de Economia de Paris, passou quase duas décadas a estudar a desigualdade. Em 1993, com a idade de vinte e dois anos, foi para os Estados Unidos para ensinar no M.I.T. Formado por uma das escolas de elite francesas, École Normale Supérieure, tinha então acabado de obter o grau de doutorado, com uma tese que era uma densa exploração matemática sobre a teoria que serve de suporte às políticas fiscais. Muitos dos mais brilhantes talentos universitários europeus deslocam-se para os Estados Unidos, naturalmente, e muitos deles acabam por ficar na América. Piketty não foi um deles. “Foi a primeira vez que eu assentei o pé no Estados Unidos,” recorda na sua introdução ao livro, “e senti-me bem em ter o meu trabalho reconhecido tão rapidamente. Aqui está um país que sabe como atrair imigrantes quando o deseja! Contudo, senti igualmente e de modo muito rápido que queria regressar a França e à Europa, logo que fizesse os meus 25 anos. Desde então, não tenho saído de Paris, com excepção de algumas breves viagens.”

Parte da motivação de Piketty no seu regresso a casa era de natureza cultural. Os seus pais são parisienses politicamente activos que participaram nos acontecimentos de Maio de 1968. Quando ainda muito jovem e em plena formação os seus modelos intelectuais eram historiadores e filósofos franceses de esquerda, mais do que propriamente economistas. Nestes homens de cultura estavam incluídos membros da escola dos Annales, tais como Lucien Febvre e Fernand Braudel, que produziram análises exaustivas sobre a vida quotidiana. Quando comparados com estes intelectuais, muitos dos economistas que Piketty encontrava no M.I.T pareciam-lhe áridos e fúteis. “Eu nunca considerei o trabalho dos economistas americanos como sendo totalmente convincente,” escreveu Piketty. “Para ter certeza, todos eles eram muito inteligentes, e eu ainda tenho muitos amigos desse período de minha vida. Mas algo de estranho tinha acontecido: Eu estava somente demasiado consciente do facto de que eu não conhecia nada sobre os problemas económicos mundiais.

Em Paris, juntou-se ao Centre National de la Recherche Scientifique e, mais tarde, à École des Hautes Études en Sciences Sociales onde alguns dos seus autores de referência tinham ensinado. A tarefa principal que estabeleceu para si-mesmo foi a de estudar os altos e baixos da repartição do rendimento e da riqueza, um tema que a economia negligenciava na sua maior parte. No início, Piketty concentrou-se sobretudo em obter o registo dos factos mais do que estar preocupado em interpretá-los. Utilizando registos de imposto e outros dados, estudou a forma como a desigualdade do rendimento em França tinha evoluído durante o século XX, e publicou os seus resultados num livro em 2001. Em 2003 escreveu com Emmanuel Saez, um economista francês de origem a trabalhar em Berkeley, um texto em que se analisa a.desigualdade do rendimento nos Estados Unidos entre 1913 e 1998. Neste documento mostrava como a parte do rendimento nacional dos E.U., tomado pelos agregados familiares na parte superior da escala de distribuição, os mais ricos, tinha aumentado fortemente durante as primeiras décadas do século XX, a seguir, tinha descido durante e depois da segunda guerra mundial, simplesmente para voltar a disparar outra vez nos anos da década de 80 e de 90.

Com a ajuda de outros investigadores, incluindo Sáez e o economista britânico Anthony Atkinson, Piketty expandiu este seu trabalho sobre a desigualdade a outros países, incluindo a Grã Bretanha, China, Índia, e Japão. Os pesquisadores criaram World Top Incomes Database uma base de dados sobre os rendimentos dos mais ricos do mundo, que cobre agora uns trinta países, entre eles a Malásia, África do Sul, e Uruguai. Piketty e Sáez igualmente actualizaram os seus dados para os Estados Unidos mostrando como a parte do rendimento dos agregados familiares mais ricos continua a subir fortemente durante e depois da Grande Recessão ( 2008...) e como, em 2012, os um por cento dos agregados familiares mais ricos obtiveram 22,5 por cento do rendimento total, a posição relativa mais elevada desde 1928. O trabalho empírico feito por Piketty e pelos seus colegas influenciou debates em toda parte desde Zuccotti Park, o ponto central de permanência dos Occupy Wall Street, até ao Fundo Monetário Internacional e à Casa Branca; O presidente Obama disse mesmo que enfrentar o problema da desigualdade e da estagnação dos salários é o nosso principal desafio.

A pergunta é o que está a gerar esta tendência ascendente. Piketty não considera que as explicações habituais dos economistas sejam convincentes, principalmente porque não deram bastante atenção à acumulação de capital- ao processo de poupar, de investir e de acumulação de riqueza como o fizeram os economistas clássicos, tais como David Ricardo, Karl Marx, e John Stuart Mill o tinham já sublinhado. Piketty define o capital como todo o activo que gera um retorno monetário. Esta definição abrange o capital físico, tal como os bens imobiliários e as fábricas; capital intangível, tal como marcas e patentes e activos financeiros, tais como acções e obrigações.

Na economia moderna, o termo “capital” foi expurgado do seu fogo ideológico e é tratado como sendo apenas um outro “factor de produção,” de tal modo que, como o trabalho e a terra, dá direito a ter uma competitiva taxa de rentabilidade baseada na sua produtividade. Um modelo popular do crescimento económico desenvolvido por Robert Solow, um dos anteriores colegas de Piketty no M.I.T., pretendeu mostrar como é que a economia progride ao longo “de um trajecto do crescimento equilibrado,” com as proporções do rendimento nacional recebidas pelos proprietários do capital e do trabalho a permanecerem constantes ao longo do tempo. Isso não combina com a realidade dos tempos de hoje. No Estados Unidos, por exemplo, a proporção do rendimento que vai para salários e outras formas de compensação salarial tem estado a cair desde sessenta e oito por cento em 1970 a sessenta e dois por cento em 2010, uma descida de perto de um milhão de milhões de dólares.

Piketty acredita que o aumento na desigualdade não pode ser compreendida independentemente da política. Para este seu novo livro, escolheu um título a evocar claramente Marx, mas não pensa que o capitalismo está condenado, ou que a desigualdade crescente seja uma inevitabilidade. Há circunstâncias, admite Piketty, em que os rendimentos podem convergir e as condições de vida das massas podem aumentar de forma sustentada, como acontece com a chamada Idade de Ouro que vai desde 1945 até 1973. Mas Piketty discute que esta situação, que muitos de nós consideramos como o que é normal, pode bem ter sido uma excepção histórica. As “forças da divergência podem em qualquer momento recuperar as vantagens, como parece estar a acontecer agora, no início do século XXI,” escreve Piketty. E, se as tendências actuais continuam, “as consequências para a dinâmica a longo prazo da distribuição da riqueza são potencialmente terríveis.”

Até por volta dos anos 50, o director-executivo americano médio era pago aproximadamente como vinte vezes o salário do empregado típico da sua empresa. Actualmente, nas empresas do índice Fortune 500, a relação dos salários entre os directores e os empregados de uma qualquer estabelecimento da mesma empresa é de duzentos para um, e muitos C.E.O.s têm mesmo rácios de remunerações mais elevados ainda. Em 2011, Tim Cook, director da Apple recebeu 378 milhões de dólares como salário, acções e outros benefícios, o que significa seis mil duzentas e cinquenta oito vezes ( 6258) o salário de um empregado médio de Apple. Um trabalhador típico a trabalhar na Walmart ganha menos de 25 mil dólares por ano; Michael Duke, director-executivo anterior de Walmart teve como remunerações globais vinte e três milhões de dólares em 2012. Esta tendência é evidente em toda parte. De acordo com um relatório recente publicado por Oxfam, as oitenta e cinco pessoas mais ricas no mundo- como Bill Gates, Warren Buffett e Carlos Slim —possuem mais riqueza do que os aproximadamente 3,5 mil milhões de pessoas que compõem a metade mais pobre da população do mundo.

Eventualmente, diz Piketty, nós poderíamos ver o reaparecimento de um mundo familiar aos europeus do século XIX; ele cita os romances de Austen e de Balzac. Nesta “sociedade patrimonial,” um pequeno grupo de rentiers ricos vive prodigamente dos frutos da sua riqueza herdada, enquanto a restante população luta para sobreviver. Para os Estados Unidos, em particular, este seria um cruel e irónico destino. “O pioneiro ideal igualitário desvaneceu-se no esquecimento,” escreve Piketty, “e o Novo Mundo pode estar à beira de se transformar na velha Europa da economia globalizada do século XXI.”


O que são estas “forças da divergência” que produzem riquezas enormes para alguns e deixam a maioria a esgaravatar para conseguir ter uma vida aceitável? Piketty é claro dizendo-nos que há diferentes factores por detrás da estagnação no meio e com ricos, muito ricos mesmo, no topo da escala de rendimentos. Mas, durante períodos de crescimento económico modesto, tais como aquele que muitas das economias avançadas experimentaram nas últimas décadas, o rendimento tende a deslocar do trabalho para o capital. Devido à complexa combinação das pressões económicas, sociais, e políticas, Piketty receia os “níveis de desigualdade como nunca foram antes vistos.”

Mas voltemos aos seus argumentos, uma vez que nos apresenta um tesouro de dados. Piketty e Saez foram pioneiros na construção de gráficos simples, mostrando a proporção do rendimento total recebido pelos dez por cento mais ricos, pelos um por cento mais ricos e até pelos 0,1 por cento mais ricos. Quando os dados são apresentados desta forma, sublinha Piketty, é fácil para as pessoas “verem a sua posição na hierarquia contemporânea (é sempre um exercício útil, particularmente quando se pertence a centis superiores da distribuição e se tende a esquecê-lo, como é frequentemente o caso com os economistas).” Qualquer um que leia o jornal estará ciente de que, nos Estados Unidos, os “um por cento” estão a obter uma proporção cada vez maior do bolo económico, que é o rendimento do país. Mas será que se sabe, hoje, que a proporção do rendimento obtida pelo percentil mais rico é superior ao que era na África do Sul na década de sessenta- princípio de 70 e acontecendo o mesmo relativamente à Colômbia, outra sociedade profundamente dividida, hoje? Em termos de rendimento gerado pelo trabalho, o nível de desigualdade nos Estados Unidos é “provavelmente maior do que em qualquer outra sociedade no mundo em todo e qualquer momento no passado, escreve Piketty.

Algumas pessoas afirmam que a decolagem no percentil de topo,os um por cento, reflecte o aparecimento de uma nova classe de “super-estrelas” — empresários, artistas, desportistas, autores e afins — que exploraram novas tecnologias, como a Internet, para ampliar os seus lucros à custa de outros, concorrentes nos mesmos campos. Se isto é verdade, as altas taxas de desigualdade podem reflectir uma realidade dura e inalterável: ganhos descomunais estão a ser obtidos por Roger Federer, James Patterson e outros. Piketty rejeita esta leitura. O principal factor, insiste ele, é que as grandes empresas estão a dar aos seus principais executivos, esquemas de remunerações bem bizarras e astronómicas. A sua investigação mostra que “os super-gestores”, mais do que as “super-estrelas”, representam para cima de setenta por cento dos 0.1 por cento dos rendimentos mais altos na escala da distribuição do rendimento. (Em 2010, era necessário ganhar pelo menos US $1,5 milhões para ser considerado estar a pertencer a este grupo de elite.). O aumento da desigualdade de rendimentos é em grande parte um fenómeno empresarial.

Os defensores dos altos valores auferidos como remunerações globais gostam de reivindicar que os altos dirigentes empresariais ganham os seus elevados salários com o aumento dos lucros e com a subida do valor das acções das suas empresas.. Mas Piketty aponta e responde contra esta argumentação afirmando que é muito difícil medir a contribuição (a “produtividade marginal”) de qualquer um destes indivíduos numa grande empresa. A remuneração dos gestores de topo normalmente é definida pelas comissões de remunerações, geralmente compostas por outros altos executivos que ganham remunerações comparáveis. “Só é razoável supor que as pessoas em condições de estabelecerem os seus próprios salários tenham um incentivo natural para se tratarem generosamente, ou pelo menos, para serem sobretudo muito optimistas na determinação da sua produtividade marginal” escreve Piketty.

Muitos executivos recebem um enorme volume de acções e de opções de compra de acções. Ao longo do tempo, eles e outras pessoas ricas ganham muita dinheiro a partir do capital que eles acumularam: estes rendimentos são obtidos sob a forma de dividendos, de ganhos em capital, juros, lucros das empresas privadas e de rendas. Os rendimentos de capital sempre desempenharam um papel fundamental no capitalismo. Piketty afirma que este papel está a crescer e é pois cada vez maior sendo isto que isto que nos ajuda a explicar porque é que a desigualdade está tão rapidamente a aumentar . Na verdade, argumenta Piketty, o capitalismo moderno tem uma lei interna do movimento que leva, não inexoravelmente, mas geralmente, em direcção a resultados menos iguais. A lei é simples. Quando a taxa de rentabilidade do capital — ou seja esta expressa os ganhos anuais que com ele se obtêm dividido pelo valor de mercado do mesmo capital — é maior do que a taxa de crescimento da economia, os rendimentos de capital tenderão a aumentar mais rapidamente do que os salários e os vencimentos, que raramente crescem mais rápido do que o PIB.


Se a propriedade do capital fosse distribuída igualmente, nada disto seria relevante. Todos nós partilharíamos igualmente o aumento dos lucros, dos dividendos e das rendas . Mas no Estados Unidos em 2010, por exemplo, os dez por cento mais ricos dos agregados familiares possuíram cerca de setenta por cento da riqueza de todo o país (um bom substituto para o “capital “), e os um por cento mais ricos da escala dos rendimentos dos agregados familiares possuíam trinta e cinco por cento de toda a riqueza. Em contraste com estes valores, a metade dos agregados familiares com menos rendimentos possuíam apenas cinco por cento da riqueza global. Quando o rendimento gerado pelo capital cresce rapidamente, as famílias mais ricas beneficiam desse aumento de forma desproporcionada . Desde 2009, os lucros das grandes empresas, os pagamentos de dividendos e o mercado de acções aumentaram desmesuradamente mas os salários evoluíram muito mal. Em consequência, e de acordo com os cálculos feitos por Piketty e por Sáez, quase todo o crescimento do rendimento na economia entre 2010 e 2012- cerca de noventa e cinco por cento desse crescimento – foi apropriado pelos um por cento da escala de rendimentos.

É uma imagem bastante chocante. Piketty chama a esta situação e a esta tendência, a tendência para a desigualdade aumentar durante os períodos em que a taxa de rentabilidade sobre o capital é maior do que taxa de crescimento da economia, “a contradição central do capitalismo”. Claro, a lógica também pode actuar em sentido inverso. Se a taxa de crescimento for superior à taxa de rentabilidade do capital, ordenados e salários crescerão mais rapidamente do que os rendimentos de capitais, e desigualdade irá cair. Foi isso que aconteceu em grande parte do século XX, afirma Piketty. O problema, argumenta Piketty, é que este estado de coisas é improvável ser mantido. “Uma combinação de circunstâncias… criou uma situação historicamente sem precedentes, que durou durante grande parte do século que durou quase um século,” afirma ele. “Todos os sinais apontam, no entanto, que isto está a acabar.”


Como é que isto é convincente? A análise de referência do desenvolvimento económico-frequentemente atribuída a Simon Kuznets, um economista de Harvard que a popularizasse durante a década de sessenta – é a de que a desigualdade na repartição aumenta durante as fases iniciais da industrialização mas que, por outro lado, esta desigualdade cai de forma sustentada com os rendimentos a convergirem e as condições gerais de vida a melhorarem para todos . Piketty estará certamente correcto ao sublinhar que não havia nada de natural ou de inevitável sobre a compressão do rendimento que ocorreu em meados do século XX. Isto é o produto do conflito mundial e das lutas políticas internas. Na Europa, as duas guerras mundiais e as políticas fiscais progressivas que eram necessárias para as financiar fizeram um enorme dano nas velhas e às grandes fortunas: muitas pessoas ricas, depois de terem pago as suas taxas sobre os rendimentos assim como os seus impostos sucessórios, não tinham bastante dinheiro para refazer a sua fortuna . Durante o período do pós-guerra, a inflação corroeu as suas poupanças. Entretanto, as leis favoráveis ao trabalho permitiram aos trabalhadores negociarem salários mais altos, o que levou a que tenha aumentado a proporção do rendimento recebido pelo trabalho. E a tarefa da reconstrução depois da destruição dos tempo de guerra levou à expansão rápida do PIB. Isto ajudou a manter a taxa de crescimento acima da taxa de rentabilidade do capital, reduzindo as forças de divergência.

No Estados Unidos, a história foi menos dramática mas largamente similar. A Grande Depressão pela desvalorização dos activos eliminou uma grande parte da riqueza dinástica e conduziu, igualmente, a uma revolução política. Durante os anos 30-40, lembra-nos Piketty, Roosevelt aumentou a taxa máxima de tributação do rendimento para mais de noventa por cento e o imposto sobre as grandes propriedades para mais de setenta por cento. Os salários mínimos foram determinados pelo governo federal para muitas indústrias assim como se incentivou o crescimento dos sindicatos. Nas décadas a seguir à guerra , gastou-se fortemente em infra-estruturas, tal como as auto-estradas nacionais, que impulsionaram o crescimento do PIB. Temendo incentivar a indignação pública, as grandes empresas mantiveram sob controlo o pagamento aos seus altos quadros . A desigualdade começou somente a aumentar outra vez quando Margaret Thatcher e Ronald Reagan conduziram uma contra-revolução conservadora que reduziu as taxas de imposto sobre os mais ricos, que dizimou os sindicatos e que procurou conter o crescimento das despesas públicas. A política e a distribuição do rendimento são os dois lados da mesma moeda.

Piketty atira alguns tiros bem apontados aos economistas que tentam ofuscar esta realidade. “No estudo dos séculos XVIII e XIX, é possível pensar que a evolução dos preços e salários, ou dos rendimentos e da riqueza, obedece a uma lógica económica autónoma tendo pouco ou nada a ver com a lógica da política ou da cultura,” escreve Piketty. “Quando se estuda o século XX, no entanto, tal ilusão cai por terra imediatamente. Um rápido olhar sobre as curvas que descrevem a evolução da desigualdade na distribuição do rendimento e da riqueza ou o rácio capital/rendimento é suficiente para mostrar que a política está omnipresente e que as mudanças económicas e políticas estão inextricavelmente entrelaçadas e devem ser estudadas em conjunto.”

Isso é mais do que simples retórica. Insistindo que as leis económicas tomam sempre forma através de normas sociais, dos valores e das escolhas políticas, Piketty salvaria a sua disciplina da aridez de abstracção e recolocá-la-ia no quadro de um modelo mais rico de economia política que foi o que as seus melhores referências como economistas do século XIX fizeram. Certamente, é difícil não ficar impressionado pela sua história e pelo seu assalto metodológico sobre os teóricos que acreditam que a economia pode ser reduzida a uma ciência pura. Mas não é sua visão do futuro demasiado pessimista? A curva de Kuznets, a sua descrição da desigualdade ao longo do tempo, é uma curva em forma de sino: a desigualdade cresce, atinge um valor de pico e depois decresce. Piketty quer substituí-la por uma curva em U. Estamos realmente condenados a retornar para a estrutura social de “Mansfield Park” e do “Le Père Goriot”?

Uma possibilidade mais optimista é que a taxa de crescimento do PIB se aproximará, ou mesmo ultrapassará a taxa de rentabilidade do capital. Se assim acontece, as próximas décadas poderiam ficarem mais próximas do que aconteceu em meados do século XX do que do que se verificou no século XIX. Para estarmos mais seguros disso mesmo com muitos países avançados envolvidos em situação de grande e difícil recessão , não augura nada de bom quando à possibilidade de um longo período de elevado crescimento. Mas as recessões são cíclicas. A longo prazo, são a inovação e a produtividade crescente que estão na base do crescimento. Com o desenvolvimento da Internet, da biotecnologia, dos robôs e de outros avanços científicos, é pelo menos concebível que o crescimento de produtividade cresça a uma taxa permanentemente mais alta e com ela crescerá igualmente o PIB.


Uma segunda via de fuga possível é a de que a taxa de rentabilidade do capital caia, reduzindo ou eliminando a diferença face à taxa de crescimento. Isto é o que a teoria económica tradicional estaria a prever. Enquanto o stock do capital físico e financeiro é cada vez mais elevado, o princípio de rendimentos decrescentes sugere que a taxa de lucro e de juros diminua. Adam Smith e outros economistas clássicos disseram que isto poderia acontecer; Marx referiu-se-lhe como “a lei mais importante da economia política.” Alguns economistas acreditam que é isso mesmo que já está a ocorrer. Relativamente às décadas passadas e assim sucessivamente as taxas de juro a longo prazo têm sido excepcionalmente baixas, o que levou Ben Bernanke, presidente anterior de FED, a lamentar “uma sobre-abundância global de poupanças. ” Um futuro de baixo crescimento lento e de ultra-baixas taxas de juro não seria um lugar particularmente dinâmico, mas não envolveria necessariamente a qualquer aumento ulterior na desigualdade.

Uma outra coisa que Piketty não considere adequadamente é a possibilidade de que a desigualdade, em algumas das suas dimensões, não esteja realmente a subir. O seu livro focaliza-se na sua maior parte na Europa e nos Estados Unidos. A nível global, um substancial progresso foi feito retirando as pessoas da zona de precariedade total e aumentando a sua esperança de vida. Em 1981, de acordo com os dados do Banco Mundial, aproximadamente dois em cinco membros da humanidade foram forçados a subsistir aproximadamente com um dólar por dia. Hoje, estamos com um em cada sete nestas mesmas circunstâncias. Nos anos 50 e 60 do século XX , a esperança de vida média em países em vias de desenvolvimento era de quarenta e dois anos. Em 2010, este indicador é de sessenta e oito anos. A “vida é melhor agora do que em quase qualquer altura na história,” escreveu Angus Deaton, um economista de Princeton, no seu livro de 2013, “The Great Escape: Health, Wealth, and the Origins of Inequality.” “Há mais pessoas a serem mais ricas e há menos pessoas a viverem na pobreza extrema. As pessoas vivem mais anos e os pais já não vêem habitualmente um quarto dos seus filhos morrer.”

Isto é uma grande notícia, mas não significa necessariamente que nós estamos a obter ganhos sobre a desigualdade na repartição dos rendimentos. Deaton ele mesmo indica que, para todo o progresso que foi feito na redução da pobreza e na saúde, a diferença entre países ricos e pobres permanece imensa. “Apesar das realizações quanto ao rápido crescimento das culturas, não houve quase nenhum redução da desigualdade de rendimento entre países,” escreveu ele. “Para cada país com uma história de convergência há sempre um outro país com uma história de que ficou para trás. .”

Ainda, algumas pessoas poderão argumentar que a desigualdade dos salários e a crescente desigualdade no mundo desenvolvido é um preço aceitável a pagar pelos benefícios experimentados relativamente aos piores resultados. Piketty não trata realmente desta questão. Piketty regista o sucesso de China ao longo das três décadas passadas, e o facto de ter deslocado centenas de milhões de pessoas da situação de pobreza extrema. Piketty gasta mais tempo detalhando o facto de que, durante esse intervalo, a desigualdade da rendimento tem aumentado extraordinariamente na China, e noutros países em vias de desenvolvimento, igualmente. Contudo a imagem global pode complicar a sua própria visão da desigualdade no Ocidente desenvolvido. Não considera seriamente o argumento de que a globalização – e o levantamento de nações como a China e a Índia-imediatamente está a manter os salários baixos e a aumentar a rentabilidade do capital, dinamizando a desigualdade em ambos os extremos da escala da repartição de rendimentos.


Dado que a desigualdade é um fenómeno mundial, Piketty tem uma solução adequada à escala planetária como resposta : um imposto global sobre a riqueza combinada com as taxas de tributação mais altas sobre os rendimentos mais elevados. De quanto mais elevados? Tomando como base os trabalhos que fez com Sáez e Stefanie Stantcheva, do M.I.T., relata-nos Piketty: “de acordo com as nossas estimativas, a taxa de tributação superior óptima nos países desenvolvidos está provavelmente acima dos oitenta por cento.” Tal taxa aplicada aos rendimentos acima de quinhentos mil ou de um milhão de dólares ao ano “não somente não reduziria o crescimento da economia dos E.U. mas distribuiria de facto os frutos do crescimento mais extensa e profundamente enquanto imporia limites razoáveis no comportamento economicamente inútil (ou mesmo nefasto) ”.

Piketty está-se a referir aqui às actividades ocasionalmente destrutivas dos especuladores de Wall Street e de bancos de investimento. O seu novo imposto sobre a riqueza seria como um imposto anual sobre os bens imóveis, mas aplicar-se-ia a todos as formas de riqueza. Os agregados familiares seriam obrigados a declarar o seu valor líquido às autoridades tributárias e seriam taxados a partir deste. Piketty sugere provisoriamente um imposto de uma só vez de um por cento para agregados familiares com um valor líquido entre um milhão e cinco milhões de dólares; e de dois por cento para aqueles com valor acima dos cinco milhões. “Ou pode-se preferir um imposto ainda mais fortemente progressivo a ser aplicado sobre as grandes fortunas (por exemplo uma taxa de 5 a 10 por cento em activos acima de um milhar de milhões de euros),” diz-nos ele. Um imposto sobre a riqueza forçaria os indivíduos que frequentemente gerem a sua carga fiscal para evitar outros impostos a pagarem a sua parte e geraria a informação sobre a distribuição da riqueza, que é actualmente opaca. “Algumas pessoas pensam que os multimilionário à escala mundial têm tanto dinheiro que seria bastante taxa-los a uma baixa taxa de tributação para resolver os problemas de todo o mundo”, diz-nos Piketty. “Outros acreditam que há tão poucos multimilionários que não valeria de nada estar a taxa-los mais pesadamente… em todo caso, o debate verdadeiramente democrático não pode continuar sem que haja estatísticas seguras.”

Os economistas podem debater se um tal imposto sobre a riqueza reduziria ou não os incentivos para investir e inovar, ou se seria necessário ser suficientemente penalizante para melhorar a situação no que se refere à desigualdade. Um problema mais imediato é que isto não está a acontecer: as nações do mundo não são capazes de chegar a um acordo em taxar as emissões de carbono prejudiciais, muito menos serão capazes de tributar o capital dos seus cidadãos mais ricos e mais poderosos. . Piketty concede aqui muito. Ainda, diz-nos ele, a sua proposta fornece aqui uma referência contra a qual podem ser julgadas outras propostas; Piketty aponta a necessidade para outras reformas úteis, tais como o melhoramento da transparência das operações bancárias internacionais; e poderia ser introduzida por fases. Um bom ponto de partida para começar, pensa, seria um imposto europeu sobre a riqueza que substitua os impostos sobre os bens imóveis, que “na maioria de países é equivalente a um imposto sobre a riqueza na classe média.” Mas isso pode ser visionário, também. Se a União Europeia avançasse com a proposta de Piketty, geraria uma precipitação para as zonas abrigadas de impostos, os paraísos fiscais, uma fuga dos capitais para a Suíça e para o Luxemburgo. Os esforços precedentes para introduzir os impostos sobre a riqueza ao nível nacional debateram-se com fortes problemas. A Espanha, por exemplo, adoptou um imposto sobre a riqueza em 2012 e aboliu-o no início deste ano. Em Itália, um imposto sobre a riqueza foi proposto em 2011 e nunca foi aplicado . Tais dificuldades explicam porque é que os governos ainda confiam noutras, evidentemente imperfeitas, ferramentas para taxar o capital, tal como impostos sobre a propriedade, as casas e sobre as mais-valias.

Nos Estados Unidos, a própria ideia de um novo imposto sobre a riqueza é olhada politicamente como uma impossibilidade tal como a ideia de levantar a taxa superior de imposto sobre os rendimentos mais elevados para oitenta por cento. Isto não é uma crítica a Piketty. O papel apropriado dos intelectuais é o de publicamente questionarem os dogmas aceites, conceber novos métodos de análise e de alargar os termos do debate político. O livro “Capital in the Twenty-first Century” faz todas estas coisas. Assim, como com uma tão grande previsão alguma parte deste não poderá suportar o teste da passagem do tempo. Mas Piketty escreveu um livro que ninguém interessado em compreender as grandes questões que se levantam da nossa época se pode dar ao luxo de ignorar.

Publicado na edição impressa da edição de 31 de março de 2014, com o título “Forces of Divergence”.

John Cassidy é redator da equipe do The New Yorker desde 1995. Ele também escreve uma coluna sobre política, economia e mais para o newyorker.com.

23 de março de 2014

Que juventude é essa?

Marcelo Ridenti


De modo inesperado, tomaram as ruas os netos da Marcha da Família com Deus pela Liberdade de 1964 e da Passeata dos Cem Mil de 1968. Os filhos dos que apoiaram a eleição de Collor em 1989 e dos que se manifestaram por seu impeachment em 1992. Todos contraditoriamente juntos.

Claro, em outro contexto. Diversidade de insatisfações com sinais ideológicos misturados, que se expressam também nas várias interpretações, cada qual identificando no movimento a realização dos próprios desejos e tentando influenciá-lo.

Setores de esquerda encantaram-se com o que lhes pareceu o início de uma revolução espontânea, mas ficaram embasbacados com as hostilidades sofridas, não por parte da polícia, mas de alguns anticomunistas. Adeptos do PT, percebendo que o movimento redunda em questionamentos variados a seus governos, tendem a reduzi-lo ao caráter fascista de certos manifestantes.

Os conservadores -inclusive na imprensa, sobretudo televisiva- ressaltam os protestos ordeiros contra a corrupção, tentando restringir o movimento a um aspecto pontual, como se todas as mazelas da ordem constituída se devessem à malversação das verbas públicas pelo PT.

Por sua vez, os defensores de causas como a tarifa zero sonham que a multidão está envolvida numa nova democracia horizontal e plebiscitária, pacificamente movida a internet, mas também se assustaram com a ferocidade de alguns grupos.

Em todos os pontos de vista, há algo de verdade e mistificação. O enigma começa a ser resolvido com a pergunta: quem se lança às ruas? Ao que tudo indica até o momento, são principalmente setores da juventude, até há pouco tida como despolitizada, e que não deixa de expressar as contradições da sociedade.

Parece tratar-se de uma juventude sobretudo das camadas médias, beneficiadas por mudanças nos níveis de escolaridade, mas inseguras diante de suas consequências e com pouca formação política.

Dados do MEC apontam que há hoje cerca de 7 milhões de universitários. O acesso ao ensino superior praticamente dobrou em uma década. Em 2000, eram admitidos anualmente 900 mil calouros. Em 2011, quase 1,7 milhão. Dois terços no ensino privado.

A título de comparação, tome-se a década das manifestações estudantis. Em 1960, havia 35.909 vagas disponíveis no ensino superior, número que saltou para 57.342 em 1964, ano do golpe de Estado, chegando a 89.582 no tempo das revoltas de 1968, a maioria no ensino público. Em termos absolutos, a evolução foi enorme. Não obstante, apenas 15% dos brasileiros com idade para estar na faculdade cursam o ensino superior.

Quanto à origem dos universitários, muitos compõem a primeira geração familiar com acesso ao ensino superior. Outros são de famílias com capital cultural e/ou econômico elevado, atônitos com a ampliação do meio universitário.

Marcelo Cipis

No que se refere às expectativas, parece haver o temor de alguns de não poder manter o padrão de vida da família e de outros de não ver realizada sua esperada ascensão social.

Produziu-se uma massa de jovens escolarizados, com expectativas elevadas e incertezas quanto ao futuro, sem encontrar pleno reconhecimento no mercado de trabalho nem tampouco na política. Ademais, detecta-se insatisfação com o individualismo exacerbado.

Em suma, um meio social efervescente em busca de causas na era da i(nc)lusão pelo consumo, em meio à degradação da vida urbana.

E por onde andam os 70% de jovens de 18 a 24 anos que não estão na escola? Alguns, no mercado de trabalho precarizado. Outros compõem o chamado "nem nem", nem escola nem trabalho. Massa ressentida que em parte também integra as manifestações.

No ano que vem, completam-se os 50 anos do golpe de 1964, cuja bandeira ideológica era o combate aos políticos e à corrupção. O risco está dado novamente? Por sorte, as manifestações trazem também reivindicações por liberdades democráticas, busca de reconhecimento e respeito, tocando num aspecto central: a luta pelo investimento em transporte, saúde e educação, contra a apropriação privada do fundo público.

Chegaram ao limite as possibilidades de mudança dentro das estruturas sociais consolidadas no tempo da ditadura e que não foram tocadas após a redemocratização? Será possível aperfeiçoar a democracia política, também num sentido social? Abre-se um tempo de incertezas.

Marcelo Ridenti, 54, é professor titular de sociologia na Universidade Estadual de Campinas e autor de "O Fantasma da Revolução Brasileira"

11 de março de 2014

Morto ou vivo?

É hora de acabar com a ideia do "Gene Egoísta"? Pedimos a quatro especialistas para responder ao nosso ensaio mais controverso

Editado por Brigid Hains

Aeon

Foto de Nik Taylor/Getty

Eu me lembro vividamente de ler The Selfish Gene na minha biblioteca local quando era adolescente: era ao mesmo tempo uma leitura viciante e uma experiência de conversão. A explicação de Richard Dawkins sobre a realidade implacável da evolução soprou como um vento frio e refrescante por tudo que eu pensava que sabia sobre a natureza humana, e é uma das grandes peças de escrita científica do século passado. Não fiquei surpreso então que o ensaio de David Dobbs "Die Selfish Gene" tenha provocado um debate feroz e prolongado quando o publicamos na Aeon em dezembro passado. Mas agora é hora de fazer um balanço: a ideia do "gene egoísta" ainda é uma maneira útil de explicar a evolução? Convidamos quatro especialistas, e o próprio escritor, para responder a esta pergunta. E convidamos você a participar da conversa respondendo à nossa pesquisa rápida na parte inferior da página. O que você acha: é hora de se livrar do "gene egoísta" ou ele veio para ficar?

Brigid Hains, editora

Não faz sentido perguntar o que um gene em particular faz

Robert Sapolsky, neurocientista

Este é um momento de crença febril na importância dos genes, à medida que um número cada vez maior de genomas é sequenciado em taxas cada vez mais rápidas. A premissa dessa excitação é que o DNA é o centro do universo da vida, o Código dos Códigos, o Santo Graal, a fonte de informações e comandos que executam cada célula.

O artigo provocativo e oportuno de David Dobbs argumenta contra a importância das engrenagens da evolução trabalhando por meio da seleção de genes. Em vez disso, ele enfatiza o papel crítico da regulação genética. Quando, onde e quanto um gene é expresso — o ponto crucial da regulação genética — pode ser mais importante do que o próprio gene. As diferenças na regulação genética explicam por que seus neurônios e suas células do dedão do pé podem conter os mesmos genes, mas serem tão diferentes. Explica como as lagartas se transformam em borboletas. E, às vezes, como uma espécie pode se dividir em duas. Portanto, Dobbs conclui que a tradicional obsessão "centrada no gene" com a seleção de genes e a hegemonia do gene egoísta devem ser descartadas.

Naturalmente, Dobbs está certo e errado. Para entender o porquê, ajuda traduzir esse nível de descrição para um mais molecular. Como, em um nível simplificado de porcas e parafusos, a regulação genética realmente funciona?

Cada um dos nossos 20.000 genes especifica a construção de uma proteína específica; as proteínas moldam a estrutura e a função das células, a comunicação entre elas e sua coletividade como organismos. Os cientistas pensavam que, começando no início de um cromossomo, haveria um trecho de DNA codificando o gene A, que direcionava a construção da proteína A. Imediatamente depois disso, haveria o DNA codificando o gene B, especificando a proteína B, seguido pelo gene C, e assim por diante.

Mas isso acabou se revelando errado. Entre os trechos de DNA codificando dois genes, veio um trecho de DNA "não codificante", outrora chamado pejorativamente de "DNA lixo", sem uso óbvio. Então veio a descoberta surpreendente de que aproximadamente 95% do DNA não é codificante. Não pode ser que quase todo o DNA seja lixo; em vez disso, grande parte desses 95 por cento é o manual de instruções para usar genes. Mais especificamente, esses "elementos reguladores" são os interruptores liga-desliga que determinam quando e quanto um gene em particular é transcrito (ou seja, estimulado a instigar a construção de sua proteína). Pouco antes do início da codificação do DNA para um gene, há um trecho de DNA regulador que constitui o "promotor" desse gene. Se um "fator de transcrição" específico vem flutuando de algum lugar na célula e se liga a esse promotor, isso desencadeia a transcrição desse gene.

Assim, os genes codificam qual proteína é feita; elementos reguladores codificam quando/onde/quanto. Muitos genes podem ter o mesmo promotor e ser regulados como uma rede coordenada; um gene pode ter vários promotores e ser regulado como parte de várias redes. Um exemplo maravilhoso da importância dos elementos reguladores diz respeito a duas espécies de ratazanas e ao gene que codifica o receptor de um hormônio chamado vasopressina. As ratazanas-da-montanha e as ratazanas-da-pradaria têm sequências de DNA idênticas para esse gene. Mas elas têm sequências diferentes para o promotor e, como resultado, o receptor ocorre em diferentes partes do cérebro nas duas espécies. E isso faz uma grande diferença — é por isso que as ratazanas-da-montanha são polígamas e as ratazanas-da-pradaria são monogâmicas. Se você fizer alguma mágica de engenharia molecular e transformar o promotor de uma ratazana-da-montanha macho na versão das ratazanas-da-pradaria, ele se torna monogâmico.

O que isso implica é que a evolução dos genes — seleção para mudanças nas sequências de DNA de genes específicos — não é tão importante quanto a visão extrema centrada no gene sugere. Mas isso não diminui a importância da evolução do genoma, a coleta de todo o DNA (codificação de genes, elementos reguladores e quaisquer outras funções que ainda não foram descobertas). Por quê? Porque, como observado acima, elementos reguladores como promotores também são feitos de sequências de DNA. Quando há uma mudança mutacional na sequência de DNA que codifica um gene, e essa nova variante é selecionada, a evolução acontece. Mas, criticamente, quando há uma mudança mutacional na sequência de DNA que codifica um elemento regulador, e essa nova variante é selecionada, a evolução também acontece. E isso pode importar — pense naqueles ratos-do-mato que antes eram polígamos. Agora, está claro que a evolução dos elementos reguladores é pelo menos tão importante quanto a dos próprios genes. Por exemplo, uma porcentagem desproporcional das diferenças genômicas entre humanos e chimpanzés está nas sequências de elementos reguladores e nos genes que codificam os fatores de transcrição que ativam elementos reguladores.

Então Dobbs está certo em enfatizar a importância da regulação genética e, portanto, da evolução, trabalhando mais consequentemente no genoma, em vez de nos genes em si. Viva a regulação genética. Mas é hora de explorar as implicações da biologia molecular dessa regulação genética. Lembre-se do exemplo icônico de Dobbs sobre regulação genética, a transformação de um gafanhoto em um gafanhoto. O que começou esse drama? Aglomeração e/ou escassez de alimentos. Vamos reformular essa pergunta e resposta: o que desencadeou o frenesi de fatores de transcrição que causou essa metamorfose ao regular a transcrição genética em praticamente todas as células desse organismo? O ambiente. Dobbs corretamente desvaloriza os genes como o Código do Código. Mas, ao fazer isso, ele incorretamente transforma o genoma nisso; ele permanece preso na atração gravitacional do DNA, em vez de reconhecer o que regula os reguladores genéticos.

O ambiente pode ser o ambiente celular local. Suponha que radicais de oxigênio estejam se acumulando em uma célula, o que não é bom. Espalhados pela célula estão cópias de uma classe de fatores de transcrição sentinela que são ativados por radicais de oxigênio. Uma vez ativados, eles vão para o DNA. Há uma série de genes que codificam antioxidantes que absorvem radicais de oxigênio, e logo antes do início de cada um deles há um promotor regulado por esse fator de transcrição. Então, neste cenário, o genoma dentro desta célula mobiliza defesas antioxidantes em resposta a sinais do ambiente celular.

O ambiente pode ser o ambiente do corpo. Suponha que uma mulher esteja secretando estrogênio de seus ovários durante a última metade de seu ciclo reprodutivo. Depois de percorrer a corrente sanguínea, o estrogênio entrará nas células uterinas e se ligará a um receptor de estrogênio. E este receptor ativado agora atua como... sim, um fator de transcrição. Ele se liga a promotores "a montante" de genes relacionados à divisão celular. E como resultado, novas células proliferam, o útero engrossa, preparando-o para a implantação de um óvulo fertilizado. Neste cenário, o genoma dentro desta célula faz com que ela se divida em resposta a um sinal de um órgão distante.

E o ambiente pode ser ambiente com "E" maiúsculo, o mundo exterior. Suponha que um antílope macho sinta o cheiro dos feromônios de um competidor ameaçador. Por meio de etapas que vão do nariz aos testículos, ele secreta testosterona. Que chega a uma célula muscular, se liga a um receptor de testosterona, que atua como um fator de transcrição e ativa genes relacionados ao crescimento celular, contribuindo para o aumento da massa muscular. E, portanto, neste cenário, o tão alardeado genoma dentro daquela célula está sendo regulado pela urina de outro sujeito.

Em última análise, não faz sentido perguntar o que um gene faz, apenas o que ele faz em um ambiente específico; lembre-se do que transforma gafanhotos em gafanhotos. É o triunfo do contexto. Ao proclamar a importância da regulação genética, Dobbs está de fato proclamando o genoma mais como um colaborador do ambiente do que como o Santo Graal.

Precisamos de melhores explicações genéticas para pacientes e pais

Laura Hercher, conselheira genética

A genética é nova, mas o determinismo genético é antigo. A ideia de que você não pode escapar do seu destino espreita em histórias antigas, fazendo de Édipo um monstro e de Macbeth um bobo. No século XVI, o teólogo João Calvino convenceu multidões de que Deus havia determinado antes do nascimento quem seria condenado e quem seria salvo. Um calvinismo secular e molecular não foi inventado nem endossado por Richard Dawkins em The Selfish Gene. E ainda assim o livro — brilhante, sutil, até poético — persuadiu muitos de seus leitores de que o gene existe isoladamente, o engenheiro de características, construindo o organismo como um mero veículo para se levar um passo adiante no tempo evolutivo. Os humanos são "máquinas de sobrevivência", escreveu Dawkins, "veículos robóticos cegamente programados para preservar as moléculas egoístas conhecidas como genes". Tomado literalmente e de forma redutora, ele apresenta uma caricatura do determinismo genético: você, como a manifestação temporária de genes em busca de sua própria imortalidade.

Em ‘Die, Selfish Gene, Die’, David Dobbs não mira no livro, que ele chama de ‘um dos trechos mais emocionantes de escrita explicativa já escritos’ – mas na história, a mensagem para levar para casa que devorou ​​todas as outras mensagens para levar para casa. O argumento de Dobbs é que as explicações centradas no gene não estão erradas, mas incompletas – mas incompletas de uma forma que fundamentalmente obscurece nossa compreensão geral de como a genética funciona.

Grande parte da reação ao ensaio se concentrou em se a crítica de Dawkins era justa; como alguém define um ‘gene’; e alguns balbucios sobre a caracterização incorreta de William Hamilton como estatístico. A ciência era ‘notícia velha’, zombaram alguns críticos, falando em nome daqueles para quem epigenética e epistasia são palavras familiares. Mas essa ênfase na controvérsia dentro do universo evo-devo obscureceu o que eu consideraria ser o argumento mais significativo de Dobbs: há uma necessidade urgente de criar uma linguagem na qual discutir a complexa relação entre genes e características, que seja acessível ao não cientista.

Em retrospecto, Sr. Dobbs, você poderia ter reconsiderado o título.

Genes affect traits – not in simple ways, but in complicated ways. This complexity makes the science interesting, but it makes clinical practice very hard. As a genetic counsellor, I am often called upon to explain to worried patients and their family members concepts such as incomplete penetrance, which sounds like a sexual problem but actually denotes the likelihood that someone with a gene for a condition will remain unaffected. Or variable expressivity, which describes the range of outcomes associated with a given genetic disease.

It turns out to be very difficult to make predictions about the effect that a given gene variant will have on traits and behaviours. Even in those exceptional situations where there is a well-characterised relationship between the gene and the disease, my colleagues and I often have a hard time predicting who will get sick and how sick they will be. In the clinic, we call these genotype-phenotype correlations, and they are notoriously inexact. For example, the gene for cystic fibrosis (CF) was identified in 1989. We know how and why the changes in the gene create symptoms of the disease. Does that mean we can predict the course of the disease in individuals? No, it does not. Even siblings with CF can have very different outcomes. This is the frustrating reality for a couple with a foetus diagnosed prenatally. And these are the easy cases, the Mendelian diseases, the ones that pass down through families in predictable patterns of inheritance, like Gregor Mendel’s peas.

Complexity is very hard to communicate, in part because people are primed to believe that genes are powerful (which they are) and determinative (which they are not). It might not be news to geneticists or science writers or professors of evolutionary biology at Oxford that identical DNA can produce both grasshoppers and locusts. But the case for plasticity has not been made in a manner accessible to the general population. Shifting the popular emphasis from genes to gene expression, Dobbs suggests, will allow people to understand how environment and other mediators of gene expression affect the development of traits and behaviours at the same fundamental level as DNA sequence.

This is such an important discussion to have right now, as we embark on a grand experiment, using DNA to personalise treatment and prognosis, to predict who is at risk for heart disease, cancer, diabetes, mental illness, etc. What should you, as an individual, do with that information?

Understanding that your genes are not destiny is the difference between paralysis and empowerment. Understanding that environment has a hand in gene expression means that intervention is not just a fancy name for pills you take when you are already sick. Sometimes, as with Alzheimer’s disease, we in the genetics community have debated the ethics of informing people about their genetic risk factors, because it is hard to get comfortable with the idea of looking someone in the eye and telling them that this is likely their future, unless – unless! – you can also give them some hope. And slowly, we are getting to a point where we have some hope to give them – treatments, risk-reducing strategies, preventive measures.

In September last year, the National Institute of Health in the US announced a grant of $25 million to examine the impact of DNA sequencing in newborns. Some of those parents are going to get results that suggest that the little bundle they are bringing home from the hospital is at risk for cancer, heart disease, autism. How important is it for parents to understand the limitations of the test? We have a minute, two minutes, maybe a year, to think about that question before we start talking about pre-natal DNA sequencing.

Stories are important to writers. Many of us love the story of The Selfish Gene, which might explain some of the drama in response to Dobbs’s article. But stories are also important to all people as a method of coping, of making predictions about the world, of understanding things that are complicated and frightening. David Dobbs is right that when it comes to genetics in 2014, we need a better story to tell – a less selfish, more inclusive metaphor to offer the wider world.

Vamos manter a lâmpada do "gene egoísta" acesa

Karen James, bióloga

Eu era uma criacionista de 18 anos quando li The Selfish Gene de Richard Dawkins pela primeira vez. Caloura, pré-graduada em veterinária na Colorado State University, me vi no curso de biologia de Bernard Rollin. Além do livro de Dawkins, ele atribuiu The Structure of Scientific Revolutions (1962), de Thomas Kuhn, The Double Helix (1968), de James Watson, e Never Cry Wolf (1963), de Farley Mowat.

Todos esses livros eram de expansão da mente, mas The Selfish Gene finalmente me ensinou evolução (meu professor de biologia criacionista do ensino médio havia omitido o assunto). A ideia de que meu corpo é um veículo para meus genes não era apenas um desafio pessoal e intelectual, era parte de uma revelação maior de "não é tudo sobre mim", do tipo que acontece com estudantes universitários.

The Selfish Gene started me on a number of paths: away from creationism, away from teenage narcissism and towards biology as my chosen field. I lost interest in becoming a veterinarian, and decided that research in genetics, cell biology, and developmental biology was for me. So when David Dobbs’s essay, provocatively titled ‘Die, Selfish Gene, Die’ triggered an energetic debate, I found myself in the ‘both liked it and objected to it’ camp.

‘Die, Selfish Gene, Die’ is a splendidly written, carefully researched and constructed piece. As a scientist and an educator, I was delighted to read clean, compelling descriptions of complex processes such as environmentally responsive gene expression and epistasis, and to imagine others – especially students and non-scientists – reading them. On the other hand, as a geneticist who has done research in some of these areas, I also objected to the portrayal of The Selfish Gene book (and the selfish gene concept described therein) as outdated, wrong, and even harmful to scientific progress.

Dobbs begins his essay by telling the story of how grasshoppers morph into locusts and back again, not through a change in the grasshoppers’ genes, but in how those genes are read (gene expression). He cites other examples as well – such as honeybees becoming either workers, guards or scouts – and could have called on hundreds more if he had wanted. Gene expression is important; indeed it is one of the most-studied processes in modern genetics. But it’s not at all clear that gene expression (whether generating environmentally responsive variation within the same species or codified variation among different species) represents an overthrow of the gene-centric view, on which The Selfish Gene rests.

It’s important to realise that there are two quite distinct meanings of the ‘gene-centric view’. One is the view that the gene – not the cell, the organism, the group, or the species – is the unit of natural selection. This is the meaning that is typically used in discussions of evolution, especially where the selfish gene is concerned. Although it remains controversial – there is vigorous debate about whether and how selection acts at different levels of the hierarchy of life – it’s not the focus of Dobbs’s essay.

Dobbs defines the gene-centric view as ‘the one you learnt in high school … the one you hear or read of in almost every popular account of how genes create traits and drive evolution’, or, quoting the Berkeley geneticist Michael Eisen: ‘a gene changes, and therefore the organism changes’. In a blog post responding to Dobbs, Richard Dawkins describes this definition of the gene-centric view as a ‘deterministic, one-to-one, atomistic causal relationship between a gene and an object of phenotype … an extension of a deep principle of embryonic differentiation’.

I agree with Dobbs that this gene-centric view of development is commonly oversimplified. Genetics involves ‘more fluid, environmentally dependent factors such as gene expression and intra-genome complexity’, and we need to do a better job communicating this.

Even so, such complexity is still encoded in, and inherited through, genes (defined broadly as biologically relevant stretches of DNA). All of these variations, including those triggered by the organism’s environmental context, the cell’s cellular context, or the gene’s genomic context, are a function of genes. The ability of an individual organism or a species to change can come from changes in gene expression, but those changes are controlled by the products of other genes. Variation via gene expression is still gene-centric.

There are some notable exceptions, including cultural transmission of knowledge and behaviour (a concept that Dawkins explores in the final chapter of The Selfish Gene, in which he coins the word ‘meme’), epigenetic changes such as methylation, and epistasis (complex, gene-gene interactions). My major disagreement with Dobbs is not with these, but with the exception that he focuses on at greatest length: genetic assimilation.

Dobbs defines genetic assimilation as ‘an adaptive trait … originally developed through gene expression alone … made more permanent in … descendants by a new gene’. But ‘gene expression alone’ is misleading; gene expression is itself controlled by genes and how they interpret the environment. While it’s true that this interpretation can further modify the organism’s (and the gene’s) environment, and new genetic variations will now be selected in that modified environment, I don’t see this as evidence against the gene-centric view of evolution. I see it as an extension.

In fairness, Dobbs does acknowledge that genetic assimilation is not the norm, nor ‘that it widely replaces conventional gene-driven evolution.’ But if it’s not common, and if it doesn’t replace gene-centric evolution, surely it cannot be a significant threat to the selfish gene.

How does this all connect to a larger view of evolutionary change? Considering the elements of evolution by natural selection – heritability, variation, and differential survival – it becomes clear that rewriting the genome really is the only way to evolve. Heritability is a must for evolution and, with a few exceptions, the aspects of organisms that are stably inherited through the generations are their genes. There are other mechanisms of evolution besides natural selection, such as genetic drift, but those still require heritability.

The answer to Dobbs’s question ‘Why bother rewriting the genome to evolve?’ then is ‘Because there is no other way’. The interactions among genes, and between them and the environment, are indeed far more sophisticated and ramified than what we learnt in high school, but evolution is, and indeed must be, gene-centric.

Isso não significa que o gene egoísta esteja totalmente a salvo de ataques. Outro aspecto importante do argumento de Dobbs é sobre metáfora e história, não apenas o relato técnico da genética — em particular como metáforas e histórias se infiltram na imaginação pública. Minha sensação é que a regulação da expressão genética é de fato um fenômeno pouco comunicado. Apoiando esse argumento, um comentarista do ensaio escreveu:

Como um leigo completo, [pensei:] Uau, a evolução faz sentido agora! ... Aprendi que ... os genes sofrem mutações aleatórias e os mais favoráveis ​​continuam por meio da sobrevivência e reprodução ... Descobrir que a evolução tem ... o mecanismo que muda o gafanhoto e as abelhas sem mudar o gene primeiro, isso simplesmente me deixou perplexo! A coisa toda ... explica muito melhor como tal complexidade e especialização podem surgir, por meio da interação com o ambiente

Se "Die, Selfish Gene, Die" teve esse efeito, então estou encantado.

Perhaps we do need a new meme that expresses the complexity of gene-gene and gene-environment interactions (and their role in evolution). The ideal metaphor would avoid the rhetorical pitfall of ‘selfish’ and include, or at least hint at, a greater complexity than is conveyed by ‘gene’. Dobbs suggests ‘the social genome’. Suggestions floated on Twitter include ‘DNA soirée’, ‘copy co-op’, ‘genome-environmental complex’, ‘thrifty genes’, and ‘the interactive genome’. Many of these seem to me to address only development, not evolution, or else fail to convey what I think of as the ‘lightbulb’ idea that we are vehicles for our genes. Those that refer to the ‘genome’ are problematic, as the genome is not inherited intact in sexually reproducing species. The heritable unit is the ‘haplotype’, a stretch of DNA much smaller than the genome that is statistically indivisible by genetic recombination, a process that occurs every generation. Unfortunately, ‘selfish haplotype’ is way too technical to become popular. My favourite by far is the ‘Allele Olympics’, suggested by the American science writer Emily Willingham on Twitter. ‘Some compete alone. Some in teams’ she elaborated. ‘And genome = national contingent eg Team USA,’ I added.

But is ‘the selfish gene’ really such a bad metaphor? We simply do not know what its real influence on lay audiences and students might be. Willingham posted a public question to her Facebook profile: ‘Non-scientist friends: have you heard of the selfish gene? What do you think that means? (no googling!)’ and the responses revealed ignorance and confusion about the concept rather than something akin to the gene-centric view (of development) that worries Dobbs (and me).

Some outstanding questions prompted by this discussion include: what contributes to the overuse of the ‘gene for x’ rhetoric, that is, the portrayal of genes acting in relative isolation to produce phenotypes? Is the selfish gene meme part of the problem and, if so, how? What other factors might contribute?

On my wish list for 2014 are answers to these questions and more, and further explorations of alternatives to the selfish gene that both highlight the complexity of gene-gene and gene-environment interactions while keeping the selfish gene ‘lightbulb’ switched on.
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Por que a evolução deveria exigir algo imortal em seu cerne?

John Dupré, filósofo da ciência

Devemos enterrar a metáfora do gene egoísta? Acredito que sim. Em seu ensaio na Aeon, David Dobbs analisa muitos dos desenvolvimentos recentes na biologia que foram corretamente vistos como colocando pressão sobre essa metáfora, mas o efeito é um tanto disperso, e não é fácil ver exatamente onde o dano fatal foi feito.

Como Richard Dawkins e Jerry Coyne deixaram claro em suas respostas ao ensaio de Dobbs, a existência e a importância de muitos genes reguladores, mesmo a percepção de que a maioria dos genes é reguladora, não é um problema imediato para a teoria do gene egoísta. Um gene regulador pode se encaixar no relato de egoísmo de Dawkins tão bem quanto um gene estrutural.

O chamado "efeito Baldwin", ou seja, o processo pelo qual a assimilação genética gradualmente assume as mudanças produzidas pela adaptação fenotípica (como o desenvolvimento de músculos maiores a partir de usos específicos) também não é um problema fatal para o gene egoísta. Na verdade, a assimilação genética pode exemplificar prontamente o pensamento de que todos os processos evolutivos devem, em última análise, envolver mudança genética. O que é mais radical é o argumento de que a mudança evolutiva pode ocorrer sem envolvimento genético algum. Aqui, eu acho, vislumbramos o dogma no cerne da metáfora do egoísmo genético que precisa ser abandonado. Este é um dogma sobre a natureza da evolução em si.

Todos os processos evolutivos consistem em incontáveis ​​ciclos de reprodução e desenvolvimento. Cada ciclo individual varia em maneiras geralmente menores, e alguns são mais bem-sucedidos do que outros. Estes são selecionados, ou seja, eles são bem-sucedidos em passar para novos ciclos aquelas mudanças que são geradas em um processo de reprodução. A teoria do gene egoísta diz que as únicas mudanças que satisfazem essa condição são mudanças na sequência genética, mas este é um artigo de fé que superou sua utilidade. Músculos de pernas mais fortes podem ser transmitidos se forem o resultado de genes diferentes, mas também podem ser transmitidos se os pais "treinarem" seus filhos para perseguir presas mais rápidas. Em ambos os casos, há características que contribuem para taxas diferenciais de sucesso reprodutivo, mas em apenas um caso elas são geneticamente codificadas.

Coyne discorda. Considere sua resposta a Dobbs, na qual ele argumenta que:

"Todas as diferenças hereditárias entre espécies, de fato, devem residir no DNA; não conhecemos nenhum caso em que não o façam. Onde mais elas poderiam estar?"

Esta é uma visão notavelmente estreita e, certamente, falsa. Na espécie humana, riqueza e educação, por exemplo, são altamente hereditárias, mas certamente não por causa do DNA. Os predadores caçadores de porcos de Dobbs passam os músculos desenvolvidos das pernas para seus descendentes, encorajando-os a perseguir os porquinhos suculentos. Esses casos ilustram o que é frequentemente amplamente chamado de herança cultural.

A herança cultural do comportamento aprendido é uma alternativa aos genes como base para a herança, mas não a única. Mudanças comportamentais em um organismo específico que são passadas para seus descendentes por outros meios podem até mesmo iniciar um processo de especiação. Os pássaros índigo africanos são parasitas de ninhada – como os cucos, eles colocam seus ovos nos ninhos de suas espécies hospedeiras. Como o biólogo Michael Sorenson da Universidade de Boston demonstrou, se uma fêmea em particular põe seus ovos em um ninho pertencente a uma espécie hospedeira diferente, sua prole crescerá marcada naquela espécie hospedeira e até aprenderá suas canções. Um processo de especiação simpátrica pelo qual duas populações divergem, apesar de continuarem a viver no mesmo lugar, foi observado como tendo começado com essa mudança comportamental. A mosca-das-frutas da rosa mosqueta põe ovos em várias plantas hospedeiras: uma mudança na escolha da planta hospedeira pode causar mudanças metabólicas e comportamentais de longo alcance em uma população que não são necessariamente acompanhadas por mudanças genéticas, mas são estabilizadas ao longo do tempo e também podem representar o início de um processo de especiação.

Está se tornando cada vez mais claro que alguma herança epigenética transgeracional ocorre. Experimentos do neurologista Michael Meaney e colegas da Universidade McGill em Montreal mostraram que quando as ratas lambem seus filhotes, isso produz mudanças epigenéticas que afetam a expressão genética nos cérebros dos filhotes, o resultado disso é que os filhotes se desenvolvem em adultos menos suscetíveis ao estresse. Uma das consequências disso para as fêmeas em desenvolvimento é que elas têm mais probabilidade de lamber seus próprios filhotes adequadamente, transmitindo assim o comportamento através das gerações, sem nenhum mecanismo genético. A real relevância da complexidade dos sistemas de expressão e regulação genética, bem como da herança epigenética, é que estes fornecem múltiplas maneiras possíveis nas quais as mudanças no sistema podem ser estabilizadas sem envolver mudanças na sequência de DNA.

Esses exemplos colocam em questão uma ideia notável e insuficientemente discutida em The Selfish Gene, a ideia de que o DNA forma espirais imortais. Dawkins argumenta que apenas os genes se replicam com fidelidade suficiente para estabilizar um processo evolutivo. Mas por que a evolução, um processo de mudança, deveria exigir algo imortal em seu cerne? Uma suposição mais modesta é que, sem uma mudança altamente durável, a linhagem retornará ao seu estado anterior. Mas por que isso deveria ser? Dentro de uma linhagem em evolução, há muitas fontes possíveis de variação fenotípica e muitas fontes de estabilização.

O dogma do DNA como o único meio de herança é reforçado pela ideia de um gargalo genético. Muitos organismos multicelulares passam por um estágio unicelular em seu ciclo de vida, o zigoto, ou óvulo fertilizado com um novo genoma construído a partir de partes daqueles de seus pais. Sem dúvida, essa geração de novos genomas é importante para a evolução. Mas é claro que há muito mais até mesmo na célula única do que sua sequência genética. Isso existe em um ambiente químico e estrutural massivamente complexo, e o próprio genoma é moldado (literal e funcionalmente) por mudanças epigenéticas. Além disso, o gargalo não ocorre em todas as espécies. Muitas plantas, por exemplo, se reproduzem vegetativamente, e não há razão conceitual para que a evolução não ocorra dentro desses processos de reprodução vegetativa.

Uma maneira muito melhor de entender a evolução é vê-la como uma sequência de ciclos de vida. Há uma tendência comum de pensamento de ver o mundo como composto de coisas e, portanto, de ver a evolução como uma sequência de coisas sutilmente diferentes - genes, genomas ou organismos. Mas se nos apegarmos à perspectiva do ciclo de vida, tendo em mente que a evolução é um processo composto de processos, a evolução deve ser vista como uma série de perturbações e reestabilizações desses processos, algumas das quais levam a partes mais robustas e reprodutivamente fecundas do processo. Dessa perspectiva, é fácil ver que pode haver muitas fontes de perturbação e, desde que haja estabilizações efetivas desses processos perturbados, todos eles podem ter consequências evolutivas. A importância dos sistemas complexos de regulação genética e da interação destes com os efeitos epigenéticos é fornecer aos sistemas biológicos uma gama diversificada de fontes de mudança e estabilidade.

A ciência se move permitindo que suas histórias evoluam

David Dobbs, escritor de ciências

Em "Die, Selfish Gene, Die", argumentei que o modelo de evolução do "gene egoísta" de Richard Dawkins ameaça nos cegar para visões emergentes mais ricas da genética e da evolução. O ensaio gerou respostas que variaram de concordância entusiasmada a objeções civis e selvagens. Naturalmente, obtive prazer com a concordância entusiasmada, que veio tanto de leigos quanto de cientistas. E fiquei realmente encorajado pelas críticas construtivas de cientistas e outros que discordaram da ideia de aposentar o meme do gene egoísta. O desafio deles expandiu meu pensamento, me ajudou a melhorar o ensaio em uma forma revisada e, o melhor de tudo, estimulou uma discussão ampla e de mente aberta, cheia de questionamento mútuo, reconsideração e muito humor.

Infelizmente, uma linha de objeção mais vitriólica também surgiu. Eu o encontrei pela primeira vez na forma de um tuíte do psicólogo de Harvard Steven Pinker, descrevendo-me como "outro jornalista confuso que odeia a evolução genética, mas não a entende". Continuo intrigado que Pinker concluiu que eu odeio a evolução genética, cujas maravilhas e enigmas escrevi por vários anos.

Em outro tuíte, Pinker perguntou:

Por que os jornalistas científicos acham que é profundo que os genes sejam ligados/desligados? Eles acham que todas as células produzem todas as proteínas o tempo todo?

O que me leva a perguntar:

Por que Steven Pinker acha superficial quando escritores científicos contam aos leitores sobre coisas que cientistas sabem, mas outros não?

Como escritor e professor, certamente Pinker está no negócio de compartilhar conhecimento e ideias. Por que eu não deveria fazer o mesmo? A expressão genética pode ser um assunto antigo para cientistas. Mas o poder dessa dinâmica biológica mais essencial atinge muitas outras pessoas curiosas e inteligentes como algo novo e, como as respostas ao meu ensaio deixaram claro, profundamente emocionante. Em seu blog, o geneticista populacional Jerry Coyne também me acusou de tentar vender coisas velhas como novas. E Dawkins, depois de graciosamente reconhecer que eu "mal fiz um único ponto" que ele não ficaria feliz em fazer, um pouco menos graciosamente me acusou de escrever sobre fatos, ideias e dinâmicas bem estabelecidos como uma forma de "fabricar controvérsia".

Logo ficou claro que algumas pessoas estão dispostas a defender a ideia do gene egoísta como se estivessem guardando um reino sagrado. A retórica era surpreendente. Coyne afirmou que "se [Dobbs] fosse um homem honesto", eu me desculparia pela minha história, "mas sabemos que isso não vai acontecer!" Seus seguidores me acusaram de trazer "outras agendas"; de sensacionalismo no estilo tabloide, distorção intencional e desonestidade intelectual; de ser um palhaço jornalístico; de ser barato, de má qualidade e grosseiro; de escrever a soldo de criacionistas. Um comentarista disse que, em vez de questioná-lo, eu deveria contemplar Richard Dawkins e me encolher.

Acho que consigo entender como as pessoas podem escrever essas coisas se passaram muito tempo defendendo a ciência de ataques de criacionistas ou outros hostis ao esforço empírico. Mas é uma maneira estranha de responder a ideias enviadas de boa fé.

Meus sentimentos aqui importam pouco. O que importa é o efeito que esses ataques têm sobre os outros que estão observando e sobre discussões abertas sobre genética e evolução em um momento em que a genética tem muitos motivos para se reagrupar e reconsiderar em vez de se defender e atacar. Essa hostilidade parece projetada para reprimir em vez de enriquecer a discussão; para congelar em vez de promover o entendimento; acima de tudo, para silenciar. Funcionou. Enquanto pesquisadores evolucionistas que se opuseram ao meu artigo corretamente se sentiram livres para falar, poucos acadêmicos que concordaram comigo se sentiram igualmente confortáveis. Embora muitos tenham expressado concordância em particular, quase ninguém o fez abertamente. Não posso culpá-los; quem quer pular em uma maldita piscina de tubarões?

O lado positivo é que algumas pessoas se opuseram a esse barulho. Muitos, incluindo pessoas de quem eu nunca tinha ouvido falar antes, me escreveram em particular para dizer que achavam que a resposta de Pinker-Coyne-Dawkins era esclerosada e contraproducente. E alguns protestaram publicamente. Um comentarista do meu blog, um leitor chamado Agga, expressou sua consternação desta forma:

Como um leigo completo, minha interpretação do artigo da Aeon foi esta. Uau, a evolução faz sentido agora! Antes, como alguém que só fez biologia no ensino médio e um módulo curto de graduação em herdabilidade, me ensinaram que a evolução funcionava desta maneira: genes sofrem mutações aleatórias e os mais favoráveis ​​continuam por meio da sobrevivência e reprodução.… Esta visão extremamente simplificada é o que está sendo ensinado e o que está implícito na narrativa comum da evolução. Descobrir que a evolução tem esses mecanismos como epigenética e o mecanismo que muda o gafanhoto e as abelhas sem mudar o gene primeiro, isso simplesmente me deixou perplexo! A coisa toda é muito mais intuitiva; e explica muito melhor como tal complexidade e especialização podem surgir, por meio da interação com o ambiente desta forma.

A Agga também discordou da reclamação sobre a expressão genética ser algo ultrapassado:

[T]alvez todos vocês, PhDs, devam se lembrar de que vocês não sabem qual é a visão do leigo, o que a narrativa comum ou a metáfora [gene egoísta] realmente faz, como ela é interpretada. Você não sabe disso porque já sabe sobre a complexidade. Eu nunca soube, até agora. Não é uma pena?

Dawkins, respondendo ao meu artigo, perguntou: "Dobbs realmente espera que eu fique surpreso [com o poder da expressão genética]?"

Eu não espero. Eu não estava escrevendo para Dawkins. Eu estava escrevendo, como o próprio Dawkins escreve, para um público geral, e pelas mesmas razões que Dawkins faz: para compartilhar as maravilhas dos genes e da evolução com pessoas que talvez não as conheçam; para colocar essas maravilhas em contexto de uma forma que possa gerar uma nova compreensão; para compartilhar e tornar memorável não um fato ou descoberta totalmente nova, mas uma nova reformulação da história de como a evolução funciona. Assim como as ideias que Dawkins descreveu em The Selfish Gene, as ideias sobre as quais escrevi foram discutidas por cientistas por anos ou décadas, mas chegaram a poucos fora da academia. E como Dawkins havia feito originalmente, argumentei que uma caracterização diferente do papel do gene na evolução — no meu caso, uma enfatizando a sociabilidade do gene em vez de seu egoísmo — poderia contar uma história sobre a evolução que ainda fosse precisa, mas mais em camadas, emocionante e consistente com pesquisas recentes.

Para Agga e outros, incluindo muitos cientistas, isso funcionou. O artigo despertou neles, se me permitem pegar emprestado o título do livro mais recente de Dawkins, um apetite por maravilhas.

Alguns podem objetar que a ciência não é sobre histórias, mas fatos. Mas a ciência é sempre uma história sobre fatos. É por isso que os artigos científicos têm seções de discussão. E sempre há histórias diferentes para contar sobre qualquer conjunto de fatos. É por isso que as pessoas oferecem várias hipóteses e teorias sobrepostas. O verdadeiro trabalho e modus operandi da ciência é encontrar e articular a história mais convincente consistente com os fatos. Naturalmente, os cientistas devem revisar e substituir essas histórias conforme a pesquisa revela novos fatos.

Dawkins sabe disso e, em The Selfish Gene, ele conta uma história muito convincente. Mas em uma época em que a pesquisa está mostrando que a conversa do genoma com o mundo exterior, e consigo mesmo, é muito mais complexa do que jamais supusemos, a história do gene egoísta continua sendo a mais convincente que podemos oferecer sobre genética e evolução?

Essa é a minha pergunta. Muitos dos defensores de Dawkins a descartam insistindo que o gene egoísta de Dawkins não é meramente um meme ou uma metáfora, mas uma declaração parcimoniosa de fato que merece o status de um fato em si. Mas não é um fato. É uma história sobre fatos.

Na verdade, dificilmente podemos concordar sobre o que é um gene. O próprio George Williams, o biólogo que foi o verdadeiro pai do gene egoísta, reconheceu isso claramente. Em Adaptation and Natural Selection, seu livro fundamental de 1966 que expôs a teoria centrada no gene que Dawkins popularizaria uma década depois, Williams observou que nosso DNA é transmitido em repetidamente, continuamente ‘fragmentos dissociados’, e que o objeto ‘potencialmente imortal’ da seleção – ‘o gene’ que Dawkins logo chamaria de egoísta – era uma abstração que poderia ser definida de várias maneiras. Williams enfatizou isso citando nada menos que quatro definições de ‘o gene’ (como ele mesmo o enquadrou, entre aspas) no próprio parágrafo em que o chamou de potencialmente imortal. Ele definiu o gene como ‘“o gene” que é tratado nas discussões abstratas da genética populacional’; como um raro ‘segmento ou cromossomo’, protegido de forças comuns de recombinação, ‘[que] se comporta de uma forma que se aproxima da genética populacional de um único gene’; como ‘aquilo que segrega e recombina com frequência apreciável’, e que é ‘potencialmente imortal’; e finalmente e mais amplamente, como ‘qualquer informação hereditária’ para a qual há seleção.

Isso foi há 48 anos. Como o geneticista de Yale Mark Gerstein e outros demonstram no artigo "O que é um gene?" (2012), o meio século subsequente adicionou apenas mais definições à lista conservadora de Williams.

No século desde que foi nomeado, "o gene" tem sido algo vago, variável e frequentemente abstrato. É sensato insistir que algo tão escorregadio e mutável, concebido de forma tão variada, não é apenas "potencialmente imortal", como Williams propôs, mas literalmente imortal? A ciência não avança insistindo que certas de suas histórias são imortais. Ela se move permitindo que as histórias evoluam. E às vezes deixando-as morrer.

David Dobbs escreveu para o The New York Times, National Geographic, NewYorker.com e Slate. Seu próximo livro, título provisório The Orchid and the Dandelion, está previsto para 2015. Ele mora em Vermont.

John Duprès é um filósofo britânico da ciência e diretor do Centro de Estudos de Ciências da Vida da Universidade de Exeter. Seu último livro é Processes of Life: Essays in the Philosophy of Biology (2012).

Karen James é uma cientista da equipe do Mount Desert Island Biological Laboratory no Maine e cofundadora e diretora da instituição de caridade The HMS Beagle Trust, sediada no Reino Unido.
Laura Hercher é instrutora em ética e questões sociais em aconselhamento genético no Sarah Lawrence College em Nova York e autora do romance Anybody's Miracle (2013).

Robert Sapolsky é um primatologista, professor na Universidade de Stanford e na Escola de Medicina de Stanford. Seu último livro é Monkeyluv: And Other Essays on Our Lives as Animals (2005).

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