22 de março de 2015

Petróleo demais

Enfrentar as mudanças climáticas exigirá investimento estatal massivo e a destruição da indústria de combustíveis fósseis.

Matt Huber


Campo de petróleo no condado de Marion, Illinois (1940). (Arthur Rothstein / Biblioteca do Congresso dos EUA)

Tradução / Costumamos associar petróleo e crise a preços altos e escassez. Entretanto, quando os preços despencam — como tem sido nos últimos anos —, cria-se um tipo de problema diferente para os produtores de petróleo. À medida que esse choque reverbera nos cofres de Estados como Rússia, Venezuela até os campos de petróleo no Texas e da Dakota do Norte, como a esquerda pode responder?

Algumas correntes da esquerda estão, sem dúvida, atordoadas por tal desenvolvimento, pois estavam convictos de que a humanidade estava exaurindo as reservas de petróleo da terra. De Michael Klare a John Bellamy Foster, durante os anos 2000, muitos também presumiram que o pico do petróleo e a escassez do produto justificaria as aventuras imperialistas norte-americanas no Iraque e em outros países. Nesse ponto de vista, poderosas corporações e Estados conspiraram para assegurar acesso a reservas cada vez menores de petróleo e ao dinheiro e poder que vêm atrelados à operação. O impulso incessante para extrair cada vez mais petróleo, em outras palavras, é a principal preocupação.

Contudo, como a esquerda radical Retort observou uma década atrás, “a história do petróleo no século XX não é uma história de queda e inflação, mas de constante ameaça (para o setor e para as nações petrolíferas) da capacidade excessiva e queda nos preços, de excedentes e estoques excessivos”. O problema imediato — para produtores de petróleo e para quem se preocupa com as mudanças climáticas como nós — é que há petróleo demais.

E o pico do petróleo? A Energy Information Agency (EIA, Agência de Informação sobre Energia dos Estados Unidos) estimou recentemente que, em 2015, os EUA alcançaram um nível de produção de petróleo de 9,3 milhões de barris por dia — meros 300.000 barris a menos do que 1970, onde o defensor do pico do petróleo M. King Hubbert previu de forma notável em 1956.

É possível que o gigantesco crescimento de “tight oil” (tipo de petróleo em estrato de baixa permeabilidade) sendo extraído por meio de fraturamento hidráulico (fracking), a partir de formações de xisto, faça o pico do petróleo norte-americano “reiniciar” quase cinquenta anos após ter supostamente acontecido. Porém, os defensores do pico do petróleo sempre subestimam a habilidade que o capital tem de revolucionar a capacidade técnica para acessar novas reservas a fim de lucrar mais.

Timothy Mitchell destaca que, da mesma forma que o capital petrolífero busca novas fronteiras de produção, ele está igualmente interessado em manter o petróleo fora do mercado para assegurar a rentabilidade. Se existir amplo acesso ao petróleo e o nível de fornecimento aumentar, será impossível manter a lucratividade. Enquanto as petrolíferas têm gozado de preços altos e lucros recordes ao longo dos últimos dez anos, os preços elevados do petróleo (e seus megalucros) provaram ser muito tentadores para os produtores, resultando em superprodução e excedente.

Para o consumidor, o petróleo ser novamente comercializado a baixos preços costuma ser aclamado como um indicador positivo para os trabalhadores e para a economia. De fato, nos Estados Unidos, gasolina barata é um dos poucos alívios para uma classe trabalhadora oprimida por desemprego, rendas estagnadas e dívidas.

Entretanto, o movimento operário não pode esperar que as melhorias nos padrões de vida venham pela bomba de gasolina. Seja qual for o benefício momentâneo de abastecer por menos de US$ 0,50/litro, o colapso dos preços do petróleo é extremamente perigoso para a sociedade como um todo. Se queimarem o petróleo remanescente (carvão e gás) do planeta, será impossível atenuar os (talvez já incontroláveis) efeitos das mudanças climáticas.

Além disso, a ameaça não vem somente da enorme quantidade de combustíveis fósseis inexplorados, mas também de um prolongado período de baixos preços no setor de energia de combustíveis fósseis, assim como os que ocorreram entre os anos 1950-60 e 1980-90. Em termos históricos, o capitalismo movido a combustíveis fósseis passa por períodos contínuos de baixos preços de energia; os disparos nos preços são uma exceção. E mais: ter energia barata impede o interesse político (se é que ele existe) de mudar nosso sistema energético.

O problema é que os Estados Unidos têm uma política energética regida principalmente pela oscilação de preços de mercados voláteis de energia. A mudança climática é uma falha de mercado de proporções planetárias, e não podemos esperar que as altas e baixas dos mercados de energia nos guiem em direção a um futuro de energia limpa.

Como Naomi Klein e Christian Parenti têm argumentado de maneira persuasiva, a crise climática é tão catastrófica que mobilizará ações do setor público da mesma forma como se estivessem em guerra (planejamento estatal, tarifas punitivas e subsídios em massa para energia limpa) para que nossa economia transicione dos combustíveis fósseis.

Uma abordagem da esquerda para a energia deve retirar sua provisão do mercado, priorizando o bem-estar social e ecológico em vez de sinalizações de preço. O abastecimento de energia deveria ser visto como algo equivalente à educação, saúde ou saneamento básico: algo tão fundamental para o bem coletivo que não pode ficar à mercê das forças do mercado e dos anseios por lucro. Apesar de tudo isso, infelizmente foram os preços de mercado que, mais do que qualquer outra coisa, guiaram a política energética dos EUA nas últimas décadas.

Desde 2008, a produção de gás natural dos EUA disparou 17%, incluindo um aumento de 314% na produção de gás de xisto (resultado da popularidade do gás não-convencional, que usa perfuração horizontal e fraturamento hidráulico). O excesso de gás natural levou a períodos de contínuos preços baixos, caindo de US$ 8/metro cúbico (m3) para menos de US$ 2 durante parte de 2012 e menos de US$ 3 atualmente. Para os serviços de energia elétrica (provavelmente o setor mais importante de uma perspectiva de política energética), o preço do gás natural para a geração de energia em junho de 2008 chegou a US$ 12,41/m3. Hoje está em US$ 4,33.

Essa rápida queda nos preços ocasionou uma grande alteração nas fontes de energia. Uma década atrás, apenas 17% de nossa eletricidade vinha do gás natural. Em 2012, chegou a 30%, antes de ter uma leve queda durante os últimos dois anos e ficar por volta dos 27%.

O uso do carvão também teve uma queda simultânea, de 49% em 2007 para 39% em 2013. Essa mudança (do tipo de mudança maciça e rápida que precisamos em direção aos renováveis) tem pouco a ver com as características mais limpas da queima do gás natural ou com preocupações com a segurança nacional supostamente aliviadas pela domesticação da produção de energia. Esses números são simplesmente resultado da busca por combustível mais barato por parte das concessionárias.

Tudo isso se relaciona com a suposta forte ação executiva do ex-presidente norte-americano Barack Obama para o meio-ambiente no último mês de junho. Em uma ação comemorada pela maioria dos grupos ambientalistas, Obama passou a imagem de estar usando o poder estatal — a Environmental Protection Agency (EPA, Agência de Proteção Ambiental), sob a proteção da Lei para o Ar Limpo (Clean Air Act) — para forçar o setor de energia elétrica a diminuir suas emissões.

O objetivo é reduzir as emissões em 30% até 2030. Entretanto, ao fazer a inteligente escolha de estabelecer 2005 como ano de referência (o ano em que as emissões chegaram a um pico) muitas das reduções exigidas pela EPA já foram atingidas devido à troca pelo gás de xisto barato. De acordo com a EIA, as emissões de CO2 já diminuíram 15% desde 2005. Dessa forma, por meio de uma guinada motivada pelo mercado, Obama consegue agradar os ativistas do clima mais à esquerda, ao mesmo tempo em que continua reproduzindo o consenso bipartidário das últimas três décadas de que a política energética é mais bem orientada por sinalizações de mercado.

Também há preocupações mais graves sobre as significativas emissões de metano vazando da estrutura de fraturamento (dutos e estações de compressores, por exemplo) que colocam em xeque os anunciados benefícios climáticos da expansão no uso de gás de xisto. E essa escolha pelo gás, impulsionada pelo mercado, basicamente tem aprisionado décadas de infraestrutura de combustíveis fósseis: mais dutos, mais plantas químicas e fábricas de fertilizantes, e mais eletricidade centralizada gerada por combustíveis fósseis. Isso sem contar os custos ecológicos devastadores do fraturamento: água inflamável em torneiras, contaminação da água, terremotos etc.

A volatilidade do mercado petrolífero nos últimos vinte anos também tem sido impressionante. Em 1999, a The Economist publicou uma matéria de capa quando os preços do petróleo caíram drasticamente para US$ 10/barril. Em 2008, atingimos um ápice de preços, com o barril a US$ 147, até despencarem para US$ 30/barril no despertar da crise financeira. Após muitos anos de relativa estabilidade com preços por volta de US$ 90 a US$ 100, em 2014 os preços caíram novamente para menos de US$ 50.

No entanto, pelo menos essa intensa turbulência deixou claro que nosso sistema energético precisava de uma grande reestruturação. Agora, o perigo é termos preços baixos e estáveis por um longo período. O retorno à energia barata pode criar um tipo de “sedativo” para as forças políticas que almejam transformar nossa política energética de modo que deixem de ser uma energia dependente de carbono.

A sedação dos ciclos do mercado está ligada a uma história altamente liberal (mais conhecida pelo relato de Julian Simon em The Ultimate Resource) da aparentemente infinita capacidade de os mercados incentivarem a produção em momentos de escassez. Sempre que os mercados passam por dificuldades e um recurso energético está escasso, os preços aumentam, dando o mágico incentivo para que os produtores desenvolvam novas fontes.

No caso do petróleo, as “novas” fontes de hoje incluem perfuração offshore em águas profundas, “tight oil” e areias betuminosas. Chega um momento em que a nova produção gera excedentes de estoque (como atualmente) e o preço despenca. Um ponto positivo em termos ambientais é que tais projetos energéticos extremos e de alto custo, como o fraturamento e as areias betuminosas, podem tornar-se economicamente inviáveis.

Após longos períodos de preços baixos, a falta de um “incentivo do mercado” causa cortes na produção e escassez. E o ciclo recomeça. Esse ano se parece muito com 1999, que foi muito parecido com 1986, que foi muito parecido aos anos 30. O sedativo dos ciclos de mercado faz parecer que estamos presos em um carrossel inescapável de escassez e excesso de energia.

O problema é que o planeta não aguenta outro ciclo de décadas de combustível fóssil barato: preços baixos vão simplesmente obstruir a transição para a energia renovável. E embora o The Economist tenha sugerido recentemente que a volta de energia barata é uma oportunidade “histórica” para aplicar fortes taxas aos combustíveis fósseis como um caminho para a transição à energia limpa, parece mais provável que os processos de reprodução social movidos a combustível barato serão reafirmados, de forma que SUVs, transportes metropolitanos de longa distância e a expansão urbana substituirão a liberdade e o “estilo de vida norte-americano”.

Para escapar do sedativo dos ciclos do mercado, precisamos de uma estratégia que reconheça o papel crítico do investimento público na transformação dos sistemas energéticos.

Uma plataforma de energia à esquerda deveria transformar nossas infraestruturas compartilhadas de energia (como redes elétricas, edifícios, sistemas de transporte). A característica duradoura desses investimentos significa que eles não são bem gerenciados pelo capital privado. Na verdade, será necessário um comprometimento coletivo e o poder do Estado para transformar esses sistemas. Isso é diferente de simplesmente esperar que os empreendedores do setor privado e as sinalizações do mercado (ou até mesmo um punhado de créditos fiscais) desenvolvam as transições energéticas por nós. Ao criar um programa de obras públicas para a infraestrutura energética, podemos transformar a própria natureza do sistema energético.

Os Estados Unidos não se tornaram o maior consumidor de petróleo do mundo apenas por terem sido os maiores fornecedores de commodities de petróleo. Foram necessários grandes investimentos públicos (usando o poder do Estado para investir em metas de longo prazo que não são possíveis no mundo de curto prazo dos mercados) para financiar programas habitacionais em bairros residenciais de classe média e desenvolver as malhas viárias e rodoviárias que, ironicamente, acabaram se tornando a base popular para o privatismo movido a petróleo dessas regiões.

Esse movimento em direção ao controle público da infraestrutura energética já está acontecendo. Em Tudo pode mudar, Naomi Klein relembra vários movimentos que ocorreram para fazer os sistemas de energia elétrica propriedade do Estado, de Hamburgo a Bolder. No entanto, o tipo de mudanças em grande escala necessárias para resolver a crise global das mudanças climáticas deve ir além do nível local, municipal.

Nesse quesito, a China oferece um bom exemplo. A energia renovável na China teve uma gigantesca alta não só devido ao subsídio de produtores privados de painéis eólicos e solares (embora isso seja importante), mas também porque o Estado chinês lançou um plano ambicioso de longo prazo para transformar sua rede elétrica por meio de investimentos em infraestrutura de redes elétricas inteligentes (smart grid), que podem lidar com os fluxos às vezes intermitentes de energia solar e eólica.

A título de exemplo: a companhia estatal de energia elétrica chinesa, publicounormas de produtos para os componentes principais das redes inteligentes. Devido a sua posição dominante no mercado de eletricidade, a companhia consegue garantir que haverá espaço no mercado para os fabricantes das redes. Um perfeito exemplo da noção de “Big Green Buy” (grande aquisição verde, em tradução livre) de Christian Parenti, o Estado chinês está ajudando a tornar possível uma rápida transição à energia ecológica e renovável.

Enquanto isso, os Estados Unidos estão se afogando em petróleo de xisto barato, fingindo que é alguma espécie de ponte para um futuro mais limpo enquanto mexem nos números para apresentarem quedas drásticas de emissões na geração de energia elétrica a gás natural. Pior que isso, os subsídios insignificantes para os produtores solares e eólicos estão correndo perigo de desaparecerem nas mãos de um Congresso que acredita que subsídios (para combustíveis fósseis segundo os Democratas e para renováveis segundo os Republicanos) prejudicam um mercado de energia verdadeiramente livre e competitivo.

As mudanças climáticas são a personificação de uma falha do mercado. É a ruína de um sistema que tratamos como um bem comum atmosférico: um sistema público e compartilhado que o mercado não enxerga ou valoriza. É claro que muitos criticam o mercado por não se responsabilizar pelo custo de jogar gases do efeito estufa na atmosfera (apesar dos corruptos esforços de estabelecer mercados de carbono). Porém, ainda não refletimos o suficiente sobre como esses mercados também tendem a produzir altas e baixas que criam longos períodos de preços baixos de energia e menor motivação política para mudar nosso sistema energético.

Uma transição energética não acontecerá magicamente por meio de inovação empreendedora e sinalizações de preço. Precisamos de uma mobilização do setor público tanto para destruir a indústria de combustíveis fósseis quanto para criar as condições para um novo sistema energético. Serão necessários grandes programas de obras públicas para criar uma rede elétrica mais favorável a sistemas de energia renovável (assim como sistemas altamente centralizados, como as usinas heliotérmicas no sudeste dos EUA).

Criar um setor elétrico movido a energia solar, eólica e outras fontes renováveis também pode transformar o setor de transporte movido a petróleo. Afinal, veículos elétricos só serão verdadeiramente ecológicos se forem conectados a uma rede elétrica que não é energizada por carvão, gás natural e energia nuclear. De forma muito parecida a como nosso sistema de transporte foi transformado por meio de financiamento federal coordenado pelo Estado para estradas e rodovias, devemos nos mover em direção a um transporte público e usar o poder de compra do Estado para criar amplos espaços para veículos elétricos no mercado.

Essa transformação deve ser defendida e legitimada como um projeto público e uma resposta à crise pública das mudanças climáticas, e não como algo que precisa ter bom “custo-benefício” ou ser “competitivo” no contexto das forças de mercado.

Enquadrar as mudanças climáticas como uma crise pública também exige que transformemos a própria energia de uma commodity para um bem comum. Isso é especialmente importante para os consumidores pobres e da classe trabalhadora que já lutam para conseguir o básico em alimentação e habitação.

Muito do populismo sobre a produção nacional de petróleo dos EUA está enraizado na preocupação diária com o aumento nos preços da eletricidade. A direita tem conseguido barrar qualquer política energética coerente simplesmente falando para os consumidores: “isso vai custar mais a você”. Precisamos reimaginar a energia não apenas como um custo, mas como um bem público cujo orçamento é planejado tendo em mente justiça social de longo prazo e sustentabilidade ecológica.

Os trabalhadores devem estar no centro dessa transformação, e a nova transição em si — assim como o novo paradigma — devem contemplar a insegurança econômica que afeta os trabalhadores, oferecendo-lhes empregos bem remunerados e estáveis no setor público que construam um novo futuro. Além disso, qualquer transição energética deve levar em conta os trabalhadores que serão afastados desses setores. Uma formação pública e empregos para esses trabalhadores pode providenciar a base para a construção de uma nova economia energética.

Por fim, essa luta não pode ser vista apenas como um problema ou setor individualizado chamado “energia”. A concessão de nosso sistema energético ao mercado é parte de uma economia política neoliberal mais ampla, que privilegia o privado em detrimento de soluções coletivas para as necessidades básicas da vida: energia, saúde, habitação e, para alguns, até mesmo água.

O início da construção de uma política socialista virá por meio da recuperação de nossas noções básicas sobre o que é “público” e “coletividade” contra o privatismo cruel da lógica do mercado.

Colaborador

Matt Huber é professor assistente de Geografia na Syracuse University. É autor de "Lifeblood: Oil, Freedom, and the Forces of Capital".

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