30 de março de 2015

O mito do antropoceno

Culpar toda a humanidade pela mudança climática deixa o capitalismo sair ileso

Andreas Malm

Jacobin


John Collier / Biblioteca do Congresso

O ano passado foi o mais quente já registrado. Ainda assim, os últimos números mostram que em 2013 a fonte que gerou a maior parte da energia para a economia mundial não foi solar, eólica, nem mesmo o gás natural ou petróleo, mas o carvão.

O crescimento nas emissões globais – de 1% ao ano nos anos 90 para 3% até agora neste milênio – é impressionante. É um aumento paralelo ao do nosso conhecimento crescente das terríveis consequências do uso de combustíveis fósseis.

Quem está nos levando ao desastre? Uma resposta radical seria a dependência do capitalismo da extração e do uso de energias fósseis. Alguns, porém, preferem identificar outros culpados.

A Terra, nos dizem, entrou agora no “Antropoceno”: a Época da Humanidade. Enormemente popular – e aceito até mesmo por muitos estudiosos marxistas – o conceito do Antropoceno sugere que a humanidade é a nova força geológica transformando o planeta para além de qualquer reconhecimento, principalmente ao queimar quantidades prodigiosas de carvão, petróleo e gás natural.

De acordo com estes intelectuais, tal degradação é o resultado dos humanos agindo segundo suas predisposições inatas, o destino inescapável para um planeta sujeito ao “business-as-usual” da humanidade. De fato, os proponentes não poderiam argumentar de outra forma, por que se essas dinâmicas tivessem um caráter mais contingente, a narrativa de uma espécie inteira ascendendo à supremacia biosférica seria de difícil defesa.

A história deles está centrada em um elemento clássico: o fogo. Apenas a espécie humana pode manipular o fogo, e daí que ela seja a única capaz de destruir o clima; quando nossos ancestrais aprenderam a incendiar as coisas, eles acenderam o estopim do “business-as-usual”. Aqui, escrevem os proeminentes cientistas climáticos Michael Raupach e Josep Canadell, estava “o gatilho evolucionário essencial para o Antropoceno”, levando a humanidade direto para “a descoberta de que a energia poderia ser derivada não apenas de carbono de detritos bióticos, mas também de carbono de detritos fósseis, inicialmente à partir do carvão.”

A razão primária para a atual queima de combustíveis fósseis seria que “muito antes da Era Industrial, uma espécie particular de primatas aprendeu como drenar as reservas de energia estocadas em carbono detrítico.” Eu aprendendo a andar com um ano de idade é a razão pra que eu dance salsa hoje; quando a humanidade inflamou sua primeira árvore morta, só poderia resultar, um milhão de anos depois, em queimar um barril de petróleo.

Ou, nas palavras de Will Steffen, Paul J. Crutzen, e John R. McNeill: “O controle do fogo pelos nossos ancestrais proveu a humanidade com uma poderosa ferramenta monopolística indisponível para outras espécies, que nos colocou firmemente no longo caminho rumo ao Antropoceno.” Nesta narrativa, a economia fóssil é precisamente a criação da humanidade, ou do “o macaco-de-fogo, Homo pyrophilus”, como na versão popular do pensamento do Antropoceno de Mark Lyna, apropriadamente intitulada “A Espécie Divina.

Agora, a habilidade de manipular o fogo foi certamente uma condição necessária para o começo da queima de combustiveis fósseis em larga escala na Inglaterra no início do século XIX. Mas foi também a causa disso?

O mais importante a se notar aqui é a estrutura lógica da narrativa do Antropoceno: algum traço universal da espécie precisa estar guiando a sua época geológica, senão seria o caso de algum subconjunto da espécie [estar cumprindo este papel]. Mas a história da natureza humana pode vir de diversas formas, tanto no gênero do Antropoceno como em outras partes do discurso sobre as mudanças climáticas.

Em um ensaio na antologia “Engaging with Climate Change”, o psicoanalista John Keene oferece uma explicação original para o porquê dos humanos poluírem o planeta e se recusarem a parar. Na infância, o ser humano descarrega dejetos sem limites e aprende que sua zelosa mãe levará para longe as fezes e a urina, e limpará sua virilha.

Como resultado, os seres humanos estariam acostumados à pratica de deteriorar os seus arredores: “Acredito que estes repetidos encontros contribuem para a crença complementar de que o planeta é uma ‘privada-mãe’ ilimitada, capaz de absorver nossos produtos tóxicos ao infinito.”

Mas onde está a evidência para qualquer tipo de conexão causal entre queima de combustíveis fósseis e defecação infantil? O que dizer de todas aquelas gerações que, até o século XIX, dominaram ambas as artes mas nunca esvaziaram os depósitos de carbono da Terra e os despejaram na atmosfera? Eles eram defecadores e queimadores apenas esperando para realizar todo o seu potencial?

É fácil zombar de certas formas de psicanálise, mas tentativas de atribuir o “business-as-usual” às propriedades da espécie humana estão fadadas à vacuidade. O que existe sempre e em toda parte não pode explicar por que uma sociedade diverge de todas as outras e desenvolve algo novo – tal como a economia fóssil, que apenas emergiu a cerca de dois séculos mas que já se tornou tão arraigada que nós a reconhecemos como a única forma em que os humanos podem produzir.

Enquanto isso, porém, o discurso climático mainstream está encharcado de referencias à humanidade como tal, “a natureza humana”, “o engenho humano”, como um grande vilão dirigindo o trem. Em “A Espécie Divina”, podemos ler “O poder divino está sendo cada vez mais exercido por nós. Nós somos os criadores da vida, mas também somos seus destruidores.” Esta é uma das mais comuns metáforas no discurso: nós, todos nós, você e eu, criamos essa bagunça juntos, e a tornamos pior a cada dia.

Entra então Naomi Klein, que em “Isso Muda Tudo” habilmente desnuda as muitas maneiras em que a acumulação de capital em geral, e em sua variante neoliberal em particular, derrama gasolina no incêndio hoje consumindo o sistema da Terra. Dando pouca indulgência ao papo sobre o humano como malfeitor universal, ela escreve, “nós estamos travados por que as ações que nos dariam a melhor chance de evitar a catástrofe – e que beneficiariam a vasta maioria – são extremamente ameaçadoras para uma elite minoritária que estrangula nossa economia, nosso processo político, e a maioria de nossos grandes veículos de comunicação.”

Então como os críticos respondem? “Klein descreve a crise climática como um confronto entre o capitalismo e o planeta,” contradiz o filósofo John Gray no The Guardian. “Seria mais preciso descrever a crise como uma luta entre as demandas em expansão da humanidade e um mundo finito.”

Gray não está sozinho. Este cisma está emergindo como a grande divisão ideológica no debate climático, e os proponentes do consenso mainstream estão contra-atacando.

No London Review of Books, Paul Kingsnorth, um escritor britânico que a tempos tem argumentado que o movimento ambiental deveria debandar e aceitar o colapso total como nosso destino, replica: “As mudanças climáticas não são algo que um pequeno grupo de bandidos impingiu sobre nós”; “no final, estamos todos implicados.” Esta, argumenta Kingsnorth, “é uma mensagem menos palatável do que uma que vê o brutal 1% ferrando o planeta e um nobre 99% se opondo a eles, mas está mais próxima da realidade.”

Está mesmo mais perto da realidade? Seis fatos simples demonstram o contrário.

Primeiro, a maquina à vapor é amplamente, e corretamente, vista como a locomotiva original do “business-as-usual”, pela qual a combustão de carvão foi inicialmente ligada à sempre-crescente espiral capitalista de produção de mercadorias.

Enquanto isso é notoriamente banal de se apontar, as máquinas à vapor não foram adotadas por alguns representantes-por-nascimento da espécie humana. A escolha de um motor primário para a produção de mercadorias não poderia ter sido uma prerrogativa da espécie, já que ela [a produção de mercadorias] pressupunha, de início, a instituição do trabalho assalariado. Foram os proprietários dos meios de produção quem instalaram o novo motor primário. Uma pequena minoria mesmo na Inglaterra – todos homens, e todos brancos – esta classe de pessoas compunha uma fração infinitesimal da humanidade na primeira metade do século XIX.

Segundo, quando os imperialistas britânicos penetraram no norte da Índia mais ou menos na mesma época, eles tropeçaram em veios de carvão que já eram, para sua grande surpresa, conhecidos para os nativos – de fato, os indianos tinham o conhecimento básico para cavar, queimar, e gerar calor à partir do carvão. E ainda assim eles não davam a mínima para o combustível.

Os britânicos, em compensação, queriam desesperadamente o carvão na superfície – para propelir barcos à vapor pelos quais eles transportavam os tesouros e matérias-primas extraídos dos camponeses indianos rumo sua metrópole, e seu próprio excesso de bens de algodão rumo os mercados do interior. O problema era que nenhum trabalhador se voluntariava a entrar nas minas. Daí que os britânicos tiveram de organizar um sistema de servidão por contrato, forçando os agricultores ao inferno para adquirir o combustível para a exploração da Índia.

Terceiro, a maior parte da explosão de emissões no século XXI se origina na República Popular da China. O condutor dessa explosão é evidente: não é o crescimento populacional chinês, nem seu consumo interno, nem seus gastos públicos, mas a tremenda expansão da indústria manufatureira, implementada na China via capital estrangeiro para extrair mais-valia do trabalhador local, percebido ao redor da virada do milênio como extraordinariamente barato e disciplinado.

Tal mudança foi parte de um assalto global sobre os salários e condições de trabalho – trabalhadores ao redor do mundo sendo pressionados pela ameaça do Capital de realocação por substitutos chineses, que só poderiam ser explorados por meio da energia fóssil como um substrato material necessário. A explosão de emissões subsequente é o legado atmosférico da guerra de classes.

Quarto, provavelmente nenhuma outra indústria encontra tanta oposição popular onde quer que se estabeleça quanto as de petróleo e gás natural. Como Klein registra tão bem, comunidades locais estão em revolta contra oleodutos, fraturamento hidráulico [13] e exploração do Alaska ao Delta do Níger, da Grécia ao Equador. Mas contra eles permanece um interesse recentemente expressado com clareza exemplar por Rex Tillerson, presidente e CEO da ExxonMobil: “Minha filosofia é fazer dinheiro. Se posso perfurar e fazer dinheiro, então é isso que quero fazer.” Esse é o espírito do Capital Fóssil encarnado.

Quinto, Estados capitalistas avançados continuam a ampliar e aprofundar implacavelmente suas infraestruturas fósseis – construindo novas rodovias, novos aeroportos, novas usinas de energia à base de carvão – sempre afinados aos interesses do Capital, dificilmente consultando suas populações sobre essas questões [14]. Apenas intelectuais realmente cegos, do tipo de um Paul Kingsnorth, podem acreditar que “estamos todos implicados” em tais políticas.

Quantos estadunidenses estão envolvidos nas decisões de dar ao carvão uma parcela maior do setor elétrico, para que a intensidade de carbono da economia dos EUA tenha subido em 2013? Quantos suecos podem ser culpados pela construção de uma nova rodovia em torno de Estocolmo – o maior projeto de infraestrutura na história sueca moderna – ou pela assistência de seu governo a usinas de energia à base de carvão na África do Sul?

As mais extremas ilusões sobre a democracia perfeita do Mercado são necessárias para manter a noção de que “todos nós” estamos guiando o trem.

Sexto, e talvez o mais óbvio: poucos recursos são tão desigualmente consumidos quanto energia. Somente os 19 milhões de habitantes de Nova Iorque consomem mais energia que os 900 milhões de habitantes da África Subsariana. A diferença no consumo de energia entre um pastor de subsistência no Sahel e um canadense médio pode estar facilmente na casa de 1000 vezes ou mais – e esse é um canadense médio, não o proprietário de cinco casas, três SUVs e um avião particular.

Um solitário cidadão estadunidense médio emite mais que 500 cidadãos da Etiópia, Chade, Afeganistão, Mali ou Burundi; quanto um milionário médio nos EUA emite – e quão mais que um trabalhador médio nos EUA ou no Camboja – permanece não-contado. Mas a marca de uma pessoa na atmosfera varia tremendamente dependendo de onde ela nasce. “Humanidade” é, como resultado, uma abstração magra demais para carregar o peso da culpa.

Estamos não na Época Geológica da humanidade, mas do capital. É claro, uma economia fóssil não precisa necessariamente ser capitalista: a União Soviética e seus Estados-satélite tiveram seus próprios mecanismos de crescimento vinculados ao carvão, petróleo e gás natural. Eles não eram menos sujos, cobertos de fuligem, ou intensivos em emissões – eram talvez até mesmo mais – que seus adversários na Guerra Fria. Então por que focar no capital? Por que razão se aprofundar sobre a destrutividade do capital, quando os estados comunistas tiveram um desempenho no mínimo tão abismal quanto?

Em medicina, uma questão similar seria talvez ‘por que concentrar esforços de pesquisa no câncer ao invés da varíola? Ambos podem ser fatais!’ Mas apenas um ainda existe. A História fechou os parênteses ao redor do sistema soviético, então estamos de volta ao início, onde a economia fóssil corresponde diretamente ao modo de produção capitalista – só que agora em escala global.

A versão stalinista merece suas próprias investigações, e em seus próprios termos (sendo os mecanismos de crescimento de um tipo próprio); mas nós não vivemos no gulag de mineração de carvão em Vorkuta nos anos 30 do século passado. Nossa realidade ecológica, abrangendo todos nós, é o mundo fundado pelo capital-à-vapor, e existem cursos alternativos que um socialismo ambientalmente responsável poderia tomar. Daí o Capital, e não a Humanidade como tal.

Não obstante o sucesso de Naomi Klein e recentes mobilizações de rua, esta permanece uma visão muito minoritária. A Ciência climática, a política e o discurso são constantemente concebidos dentro da narrativa do Antropoceno: a auto-flagelação coletiva indiferenciada, o ataque à humanidade, o pensamento em termos de Espécie, apelam à população geral de consumidores a corrigir seus atos e outras piruetas ideológicas que servem apenas para ocultar o maquinista.

Retratar certas relações sociais como propriedades naturais da espécie não é nada de novo. Des-historicizar, universalizar, eternizar e naturalizar um modo de produção específico de um tempo e lugar – estas são as estratégias clássicas da legitimação ideológica.

Elas bloqueiam qualquer prospecto de mudança. Se o “business-as-usual” é o produto da natureza humana, como podemos mesmo imaginar algo diferente? É perfeitamente lógico que os defensores do Antropoceno e de formas associadas de pensamento deem suporte a falsas soluções que se esquivam de desafiar o capital fóssil – como “geo-engenharia” no caso de Mark Lynas e Paul Crutzen, o inventor do conceito do Antropoceno – ou preguem a derrota e o desespero, como no caso de Kingsnorth.

De acordo com este último, “está claro que parar a mudança climática é impossível” – e, a propósito, construir uma usina eólica é tão ruim quanto abrir outra mina de carvão, pois ambos profanam a paisagem.

Sem antagonismo não pode haver qualquer mudança em sociedades humanas. O pensamento em termos de espécie em relação a mudança climática apenas induz à paralisia. Se todos são culpados, então ninguém é.

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