18 de março de 2015

Precisamos domar a tecnologia

Nosso desafio é enxergar na tecnologia tanto os atuais instrumentos de controle dos empregadores quanto as precondições para uma sociedade pós-escassez.

Peter Frase

Jacobin


Tradução / O Google está nos deixando mais estúpidos? O Facebook está nos tornando solitários? Os robôs vão roubar nossos empregos? Aparentemente, estas ansiedades afligem a muitas pessoas atualmente.

O capitalismo é definido pelo impulso de maximização dos lucros, e um dos caminhos mais seguros para esse objetivo sempre tem sido reduzir os custos do trabalho assalariado. Daí a pressão constante pelo aumento da produtividade por meio de novas técnicas de produção, automação, e agora, da informatização e da robotização.

A ansiedade com os efeitos da tecnologia capitalista sobre o trabalho é tão antiga quanto o capitalismo industrial em si. No folclore anglo-saxão, uma das representações mais famosas desta inquietação é a lenda de John Henry, um trabalhador ferroviário que morreu tentando atingir o mesmo desempenho de um martelo à vapor.

Agora, porém, as preocupações sobre a obsolescência do trabalhador estão atingindo um pico febril. A confluência de estagnação salarial, uma recuperação econômica sem empregos, melhorias rápidas na automação e na inteligência artificial têm alimentado a fornalha do medo do desemprego em massa que sempre assombrou as discussões sobre tecnologia.

Estudos de ampla circulação têm mostrado que até 80% dos empregos atuais estão suscetíveis à automação em um futuro próximo. Parte desse número é uma hipérbole, mas está claro que a automação está saindo da fábrica e entrando no reino de intelectuais e comentaristas – exatamente as pessoas responsáveis por produzir a maior parte da literatura de técno-ceticismo. (Daí o apelo acanhado do articulista Kevin Drum na revista Mother Jones: “Bem-vindos, Mestres Robôs. Podem, por favor, não nos demitir?”)

O movimento socialista, e o marxismo especificamente, possuem uma relação complicada com as ferramentas de produção capitalista: Nosso desafio é ver no desenvolvimento técnico do capitalismo tanto os atuais instrumentos de controle dos empregadores quanto as precondições para um futuro de pós-escassez.

O discurso dominante tende na direção de uma visão simplista de que a tecnologia seria uma coisa que você pode ser a favor ou contra – algo que talvez possa ser usado de uma forma ética ou antiética. No entanto, a tecnologia no processo de trabalho, assim como o capital, não é uma coisa mas uma relação social: as tecnologias são desenvolvidas e introduzidas no contexto da batalha entre capital e trabalhadores, e mascaram as vitórias, derrotas e as concessões mútuas dessas lutas. Quando os termos do debate mudam das relações de produção para uma “tecnologia” reificada, isso beneficia os chefes.

Tome, por exemplo, a greve de 2013 dos trabalhadores de transporte de São Francisco. Os trens BART de São Francisco são usados por muitos membros das elites do Vale do Silício, que despejaram suas frustrações por sofre um inconveniente devido a uma ação dos trabalhadores. Nesse processo, eles tentaram pintar a greve como um debate sobre os méritos da tecnologia: supostamente os trabalhadores estariam resistindo à introdução de tecnologias de economia de tempo e de trabalho no sistema de trânsito.

O sindicato, entretanto, via as coisas de forma diferente. As regras do espaço de trabalho que eles estavam tentando preservar em geral estavam desvinculadas da implementação de novas tecnologias, e tinham mais a ver com coisas como “impedir a administração do BART de fazer atribuições de trabalho como punição contra empregados que preencherem reclamações sobre o ambiente de trabalho.”

A questão, portanto, se torna como incorporar a tecnologia no pensamento social e na estratégia política sem tratá-la como algo externo às relações sociais e sem cair na dicotomia crua de técno-utópicos versus técno-céticos, ao mesmo tempo em que se reconhece que as mediações técnicas do trabalho e do capital possuem sim alguma existência relativamente autônoma. Às vezes as lutas políticas envolvem o uso de certas tecnologias, mas elas nunca são apenas sobre essas tecnologias; são, em última análise, sobre o equilíbrio de poder de classe. Precisamos de algo que poderia ser chamado de um “ludismo iluminado,” se esse termo puder de fato ser reivindicado.

Os luditas eram artesãos ingleses do século XIX conhecidos por destruir maquinário de economia de trabalho. Hoje, seu nome simboliza ou a resistência heroica contra máquinas repressivas, ou o ódio intransigente contra todo progresso tecnológico.

Não surpreende que a “Fundação Tecnologia da Informação e Inovação”, um think tank financiado por gente como Google e IBM, conceda seu “Troféu Ludita” para aqueles que eles julgam insuficientemente favoráveis à tecnologia; o relatório do prêmio de 2014 denuncia a regulação hoteleira e repudia as preocupações sobre privacidade nos registros sobre saúde.

Os luditas originais são incompreendidos de maneira semelhante. Como o historiador marxista Eric Hobsbawm escreveu em um artigo de 1952, a quebradeira de maquinário era uma tática comum de resistência trabalhista durante a Revolução Industrial. Ao invés de dirigirem sua fúria contra a tecnologia em si, os trabalhadores quebravam as máquinas “como um meio de coagir os empregadores a garantir a eles concessões em relação a salários e outras questões.” Tal sabotagem “era dirigida não apenas contra máquinas, mas também contra matérias-primas, produtos finalizados, e até mesmo contra a propriedade privada dos empregadores.”

A figura moderna do ludita é valiosa para os capitalistas e suas ideologias especialmente por razões retóricas: se os trabalhadores puderem ser retratados como sendo hostis a algum método ou dispositivo que possui qualidades patentemente positivas, eles podem ser repudiados como egoístas ou irracionais. Não importa que em muitos casos o problema seja que tecnologias úteis e potencialmente emancipatórias são capturadas dentro da carapaça capitalista, otimizadas para maximizar os lucros privados ao invés da riqueza social.

Isso não quer dizer que os argumentos dos titãs tecnológicos não sejam lógicos em seus próprios termos. Do ponto de vista do capital, não há muita diferença entre a sabotagem de máquinas e outras formas de ação trabalhista – afinal, para o proprietário das máquinas, seu valor não está na coisa específica que elas produzem, mas em quanto dinheiro elas darão em retorno. Uma máquina é apenas parte do mais importante de todos os processos da produção capitalista: M-C-M’, o método de transformar dinheiro em mais dinheiro ao passá-lo através do processo de contratar trabalhadores, produzir mercadorias e vendê-las.

Tão logo uma máquina é comprada, ela custa dinheiro ao seu proprietário: os empréstimos precisam ser pagos, as instalações físicas começam a se deteriorar e novas máquinas constantemente ameaçam tornar inúteis competitivamente aquelas já existentes. Portanto, qualquer coisa que desacelere ou pare a produção tem o efeito de destruir parte do valor da máquina como capital, o que para o capitalista é sua substância real. Se for uma greve de braços cruzados ou uma chave inglesa em uma engrenagem o que estiver parando a produção é irrelevante, já que em ambos os casos valor é destruído. Para os proprietários, toda resistência dos trabalhadores é ludismo.

A hostilidade para com novas tecnologias, a suspeita em relação a toda “inovação” como sendo uma artimanha capitalista, tem uma certa lógica para os trabalhadores organizados, mesmo que seja uma lógica de visão curta. Os luditas são frequentemente invocados como um talismã contra toda crítica à tecnologia, um aviso de que seria impossível resistir à inevitável marcha do progresso. Isso mistifica as questões políticas do progresso ao drenar dele todo o conflito e elementos políticos. Porém, se a resistência dos trabalhadores não representar nada além de parar na frente de mudanças técnicas gritando “PARE!”, ela só será capaz de preservar um status quo completamente capitalista.

O esquerdismo anti-tecnológico coloca os trabalhadores na posição de conservadores intransigentes, que se agarram às tecnologias existentes, que – se a crise do trabalho industrial nos dias do pleno emprego dos anos 60 e 70 forem alguma indicação – não são particularmente amadas. A fabricação industrial que hoje algumas pessoas querem preservar já foi considerada uma imposição monstruosa sobre as prerrogativas do trabalho que exigia habilidades manuais artesanais. Além disso, a resistência contra a tecnologia encoraja a fragmentação de classe, colocando trabalhadores contra os consumidores, que apreciam o acesso à riqueza social possibilitada pelo desenvolvimento capitalista.

Uma estratégia alternativa à atual resistência anti-tecnológica seria lidar com as questões de poder de classe e de distribuição. Alguns dos primeiros socialistas nos EUA a confrontar diretamente esta dinâmica foram os trabalhadores comunistas da indústria automobilística em Detroit, que lutavam com o impacto da robotização. Nelson Peery, um trabalhador radical da “Liga de Trabalhadores Negros Revolucionários”, via a automação como um processo que tornaria irrelevantes as velhas formas de organização industrial e que anunciaria um novo estágio da luta de classes.

É claro, a maioria dos trabalhadores do setor automobilístico acabou ficando sem empregos de altos salários e sem a fatia crescente na riqueza social, enquanto a reestruturação da indústria e a des-sindicalização avançaram lado a lado com o desmantelamento do Estado de Bem-Estar Social Keynesiano.

Então o que significaria lutar por direitos sociais em uma estrutura que vá além da nostalgia industrial? O caso do Sindicato dos Estivadores da Costa Oeste dos EUA fornece um exemplo ilustrativo tanto de possibilidades quanto de limites.

Confrontado com a automação e a conteinerização dos portos e o concomitante colapso na demanda por trabalhadores iniciada nos anos 60, o sindicato portuário conquistou um acordo. Como relembra o repórter sindical Steven Greenhouse no New York Times: “A administração prometeu a todos os estivadores um nível garantido de pagamento, mesmo se não houvesse trabalho para todos.” Os termos reais do acordo e o contexto em que ele foi atingido passavam longe de serem ideais, mas demandas como estas ressaltam a necessidade de esculpir um pedacinho de pós-escassez dentro de um mundo capitalista.

Os trabalhadores das docas, é claro, não representam muito bem a classe trabalhadora mais ampla, de maneira genérica. Devido à sua posição estratégica nos gargalos da distribuição de mercadorias, e sua resultante habilidade de travar partes enormes da economia, eles desfrutam de uma alavanca estratégica que falta à maioria de nós. Além disso, em última análise eles foram incapazes de proteger a sua bolha e tem sofrido uma série de derrotas decentes. Conquistar para o resto de nós uma parcela dos frutos da automação exige vitórias no nível do Estado ao invés do nível dos ambientes de trabalho individuais.

Isto poderia ser feito através de uma Renda Básica Universal, um pagamento mínimo garantido a todos os cidadãos, completamente independente do trabalho. Se levada em frente por forças progressistas, a RBU seria uma reforma não-reformista que também aceleraria a automação ao tornar mais competitivas as máquinas contra trabalhadores melhor posicionados para rejeitar salários baixos. Isso facilitaria também a organização sindical ao funcionar também como um tipo de “fundo de greve” e amortecedor contra a ameaça de desemprego.

Uma renda básica universal poderia defender os trabalhadores e realizar o potencial de uma economia pós-escassez altamente desenvolvida; poderia quebrar a falsa escolha entre trabalhadores bem-pagos ou máquinas de economia de trabalho, entre sindicatos fortes ou avanços tecnológicos.

No fim das contas, a força dos trabalhadores e o desenvolvimento das forças de produção estão dialeticamente entrelaçados. Deixando de lado a falação esbaforida sobre robôs, na verdade o crescimento da produtividade nos últimos anos tem estado em baixas históricas, levando alguns comentaristas a advertir sobre uma “grande estagnação”.

Uma forma de explicar isso é que quando os trabalhadores são baratos e controláveis, é mais fácil para o chefe tratar o próprio trabalhador como uma máquina do que encontrar uma máquina para substituí-lo. Assim, o fortalecimento da classe trabalhadora tanto dentro quanto fora do ambiente de trabalho se torna a força que nos empurra rumo ao ideal utópico de uma sociedade pós-escassez e da abolição do trabalho assalariado.

Colaborador

Peter Frase está no conselho editorial de Jacobin e é autor do livro "Quatro futuro: a vida após o capitalismo", publicado pela Autonomia Literária em 2020.

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