31 de maio de 2018

A Europa sob Merkel IV: O balanço da impotência

Wolfgang Streeck



Tradução / A Europa, como está organizada – ou desorganizada – na União Europeia (UE), é um estranho monstro político. Consiste, em primeiro lugar, na política interna dos seus estados membros que, com o passar do tempo, se entrelaçaram profundamente. Em segundo lugar, os estados membros, que ainda são estados-nação soberanos, perseguem interesses definidos nacionalmente através de políticas externas nacionais dentro das relações internacionais intra-europeias. Aqui, em terceiro lugar, podem escolher entre confiar numa variedade de instituições supranacionais ou em acordos intergovernamentais entre coligações seletivas de países interessados. Em quarto lugar, desde o início da União Monetária Europeia (UEM), que inclui apenas dezanove dos vinte e oito Estados-Membros da UE, surgiu uma outra arena de relações internacionais europeias, constituída principalmente por instituições intergovernamentais informais, vistas com desconfiança pela UE supranacional. Em quinto lugar, todas estas instituições estão inseridas nas condições geopolíticas e nos interesses geoestratégicos de cada nação, que estão relacionados em particular com os Estados Unidos, por um lado, e com a Rússia, a Europa Oriental, os Balcãs, o Mediterrâneo Oriental e o Médio Oriente, por outro. E sexto, há no fundo do sistema estatal europeu uma batalha contínua pela hegemonia entre os seus dois maiores países membros, a França e a Alemanha – uma batalha que ambos negam existir. Cada um dos dois, a seu modo, considera que a sua pretensão de supremacia europeia é simples e evidentemente justa, a Alemanha tanto assim que nem sequer reconhece as suas ambições enquanto tais (1). Além disso, ambas as possíveis hegemonias estão conscientes de que só podem realizar os seus projetos nacionais incorporando o outro dentro delas, e por isso apresentam as suas aspirações nacionais como projetos de “integração europeia” baseados numa relação especial entre Alemanha e França.

No entanto, desde a crise financeira de 2008, pelo menos, este acordo tem estado numa situação de disfuncionalidade e em crescendo. Os sistemas políticos nacionais estão-se a transformar sob o impacto da integração do mercado internacional e da reação “populista” contra ela. As disparidades económicas entre os países-membros estão a aumentar, com um país em particular, a Alemanha, a colher a maior parte dos benefícios da moeda comum – uma condição impossível de corrigir sob a UEM, tal como está constituída pelo Tratado de Maastricht. Os interesses nacionais no que diz respeito às instituições económicas da União diferem muito entre as diferentes variedades de capitalismo aí reunidas. Embora os conflitos que se seguiram tenham sido, durante algum tempo, encobertos por sucessivas “operações de resgate ” e medidas de emergência, agora parece ter chegado a hora da verdade. O Reino Unido está prestes a partir, alterando o equilíbrio de poder entre os países membros. As pressões para a “reforma” estão a aumentar, mas os Estados-Membros e as instituições supranacionais parecem estar num impasse. O antigo “método comunitário” de adiar decisões críticas parece ter atingido os seus limites; entretanto, os riscos estão a acumular-se.

Este ensaio tenta explicar algumas das complexidades subjacentes ao impasse europeu. Argumenta que a política da Europa está suspensa entre as realidades nacionais e uma ideologia pós-nacional. A Europa sofre de uma negação coletiva do fosso entre as duas realidades, em nome de uma “ideia europeia”. E, à medida que se força para que haja cada vez mais “integração” de diversas sociedades nacionais, o fosso entre a ideologia e a realidade aumenta ainda mais.

A Europa da ideia europeia é um futuro sem passado, atrativamente inocente para um continente carregado de memórias de guerra e de genocídio. No entanto, é também um futuro sem presente: para ser aceitável para os seus diversos constituintes, só pode ser vagamente definido para que todos possam ler nele o que quiserem. As tensões entre a diversidade nacional e a unidade supranacional não podem, portanto, ser abordadas de forma eficaz, uma vez que isso revelaria tanto o vazio da ideologia como os conflitos escondidos debaixo dela.

As crises emergentes devem ser enfrentadas através da improvisação quotidiana, deixando para trás um conjunto opaco e confuso de instituições mal articuladas.

Entretanto, a Europa está dividida por interesses nacionais concorrentes, investida de conteúdos nacionais divergentes e transformada num veículo de ambições nacionais contraditórias, nenhuma das quais pode ser publicamente admitida. Os operadores políticos tornaram-se altamente competentes em substituir o simbolismo sentimental por argumentos públicos sóbrios. O sistema político europeu resultante, ao mesmo tempo que substitui cada vez mais a democracia nacional, tornou-se impenetrável para os cidadãos nacionais – um resultado que dificilmente é acidental. Neste ensaio fazemos uma tentativa de desvendar as muitas convoluções da política europeia e de mostrar como é que a interação crítica entre o nacional e o supranacional está a evoluir na Europa. Conclui que chegou o momento em que a manutenção do status quo europeu deixará de ser suficiente.

Alemanha: O centro em colapso

A Alemanha de Angela Merkel costumava considerar-se um exemplo brilhante de estabilidade política. Mas as mesmas forças de fragmentação e divisão entre e dentro dos campos políticos, que assolaram outras democracias capitalistas, também têm estado presentes na Alemanha, operando subterraneamente e aparecendo sob diversas formas. Na eleição de 24 de setembro de 2017, os dois partidos centrais, CDU/CSU e SPD (União Democrática Cristã/União Social Cristã e Partido Social Democrata), que haviam formado a grande coligação Merkel III e dominado juntos a política alemã desde a década de 1950, ganharam apenas 53,4% dos votos. Desse total, apenas 20,5% foram para o SPD. Isto a comparar-se com 67,2% (SPD 25,7%) quatro anos antes. Em 2005, na eleição que levou a Merkel I (também uma grande coligação), o total de votos combinados foi de 69,4% (SPD 34,2%).

É indicativo da nova volatilidade da política alemã que uma política extremamente hábil como Merkel possa ter interpretado mal o eleitorado em 2017. A política de refugiados de Merkel foi calculada, entre outras coisas, para abrir caminho para uma coligação com os Verdes. (2 ) Em vez disso, esta politica ajudou dois novos partidos, a Alternativa para a Alemanha (AfD) e o Partido Democrata Livre (FDP) (3 ) a sentarem-se no Bundestag, com 12,6% e 10,7% dos votos, respetivamente. Enquanto a AfD é apaixonadamente anti-imigração, o FDP opõe-se à imigração por asilo e defende um regime de imigração orientado para o mercado de trabalho. Depois de que a nova maioria desejada por Merkel com os Verdes não se ter materializado a substituição da grande coligação anterior exigiu que o FDP se juntasse ao governo como um terceiro (ou quarto) parceiro.(4) A nova coligação em potencial passou a ser conhecida coloquialmente como “Jamaica”, referindo-se às cores da bandeira do país e ao código de cores usado para identificar os possíveis partidos da coligação (preto para a DU/CSU, verde para os Verdes e amarelo para o FDP). A Jamaica fracassou em novembro de 2017, após quatro semanas de intensas conversações “exploratórias”, quando o FDP desistiu no último minuto. Aparentemente, isso deveu-se à prática de Merkel de arruinar parceiros de coligação desobedientes nas memórias passadas, reavivadas durante as conversações, com a impressão de que uma profunda e preestabelecida harmonia entre Merkel e os Verdes colocaria os ministros do FDP à margem de um futuro governo conjunto.

A retirada do FDP deixou apenas o SPD como um parceiro de coligação viável para Merkel, mas a resistência dentro do SPD a outra grande coligação foi intensa. O SPD foi o que mais sofreu com a grande coligação de 2013-17 e estava a recuperar-se do seu pior desempenho eleitoral de todos os tempos. Esperando que “Jamaica” se concretize, a liderança do SPD comprometeu-se imediatamente após a eleição para a renovação como partido da oposição. No entanto, essa posição mudou três meses depois, quando o presidente federal, um social-democrata que havia perdido contra Merkel em 2009, lembrou ao SPD a sua “responsabilidade nacional”. Sentindo-se como se a escolha fosse entre a morte e o suicídio, o SPD concordou em dialogar com a CDU/CSU, o que levou duas semanas em janeiro de 2018. Uma convenção do partido em 21 de janeiro aprovou por estreita margem as negociações formais. Duas semanas depois, essas negociações produziram um projeto de acordo de coligação, que teve de ser votado pelos membros do SPD.

Em muitos pontos, o projeto de acordo continha a caligrafia do SPD. Merkel, indiferente como sempre à substância, fez concessões de grande alcance para tornar o acordo aceitável para os membros do SPD. O preço que ela pagou foi ter dado a impressão de que estava apenas preocupada em permanecer no poder. O descontentamento cresceu até mesmo no seu próprio partido quando ela concedeu três dos ministérios mais importantes ao SPD: Finanças, Relações Exteriores e Trabalho. Com o Ministério do Interior a ir para a CSU, restaram apenas departamentos menores para a CDU de Merkel (além da chancelaria, é claro). Durante algum tempo, o partido pareceu cair na sua crise mais profunda desde que Merkel substituiu Helmut Kohl da presidência honorária em 2000.

O SPD também começou a fraturar depois da publicação do projeto de acordo. A oposição a outra grande coligação foi forte, independentemente do resultado das negociações. Muitos temiam que, depois de mais quatro anos sob Merkel, o partido pudesse acabar por ficar atrás da AfD. Enquanto o referendo sobre a adesão ainda estava em curso, Martin Schulz, o infeliz chanceler-candidato e líder inepto do partido desde o início de 2017, foi forçado a demitir-se como líder do partido e de futuro ministro das Relações Exteriores (o cargo que ele mesmo havia reivindicado, depois de ter categoricamente recusado servir num gabinete de Merkel). Pouco depois, Merkel nomeou vários rostos novos, metade dos quais mulheres, para os restantes seis cargos de gabinete da CDU. Isto silenciou, por enquanto, os seus opositores internos do partido. A 4 de Março, foi anunciado que dois terços dos membros do SPD (com uma participação de 78 por cento) tinham votado a favor de outra grande coligação, tendo muitos votado a favor dela por receio de que uma nova eleição geral resultasse noutra derrota ainda mais grave. No dia 14 de março, o Bundestag elegeu Merkel para um quarto mandato como chanceler.( 5 )

Fundamentalmente, o caminho tortuoso para uma grande coligação renovada levantou a questão do futuro de Merkel. Até à onda de imigração de 2015, Merkel tinha dominado no seu partido ainda mais do que Kohl, mudando de direção à vontade, vestindo a CDU com cores esverdeadas e de centro-esquerda, eliminando todos os que poderiam tê-la desafiado para a sucessão. Isso ajudou-a na crise pós-eleitoral quando, após a passagem à reforma do ministro das finanças Wolfgang Schäuble, não restou ninguém que pudesse realisticamente afirmar que lhe sucederia sem o seu consentimento. Ainda assim, após os resultados desastrosos das eleições, o atraso de meio ano na formação de um governo e as difíceis concessões necessárias para formar uma coligação, parece improvável que o seu partido a nomeie para um quinto mandato em 2021. Isto significa que o seu sucessor terá que ser designado no verão de 2020, o mais tardar, para dar tempo suficiente para a campanha. Por outras palavras, aproximadamente no meio do seu quarto mandato, Merkel transformar-se-á numa espécie de pato coxo. Além disso, não só o longo período de formação do governo reduziu a sua vida útil no cargo, como também o calendário eleitoral regional. Nenhuma decisão politicamente difícil pode ser tomada antes das eleições na Baviera em outubro de 2018, certamente não sobre assuntos “europeus”.
Europa alemã

A política nacional alemã é um fator crucial na política da Europa, assim como a Europa é uma poderosa presença interna na Alemanha. O “consenso permissivo” que durante várias décadas permitiu que a integração europeia prosseguisse sem entraves foi mais forte na Alemanha do que em qualquer outro lugar, exceto talvez na Itália. (6) Até hoje, a “Europa ” (7) carrega algo como uma aura sagrada na Alemanha, demasiado elevada para ser ligada a conceitos sujos como o interesse nacional. Os principais sustentáculos do europeísmo alemão são as educadas classes médias e a geração jovem, para quem a Europa representa tudo o que é virtuoso e agradável – de paz, direitos humanos, tolerância e “abertura” para um mercado de trabalho internacional e viagens convenientes através das fronteiras. Refletindo as dificuldades de se identificarem a uma nação alemã depois de 1945, o sentimento pró-europeu alemão há muito tempo considerou evidente que a UE é, em última análise, o navio em que as nações europeias podem abrigar os seus Estados, identidades e interesses separados. Enquanto outros países membros podem ter aderido à UE para restaurar ou preservar a sua soberania nacional, (8) a Alemanha está na UE para se desfazer dela, acreditando firmemente que isso se aplica a todos os outros também.

Isto, naturalmente, não significa que o europeísmo alemão não tenha sido (e não seja) orientado por interesses. A adesão à CEE nos anos 50 foi necessária para o ressurgimento da Alemanha Ocidental como Estado soberano. Além disso, a garantia de acesso a um mercado europeu integrado e em constante expansão era e é indispensável para a prosperidade da economia alemã, excessivamente industrializada e exportadora. Hoje, o acesso ao mercado é assegurado pela moeda comum, que também deprime artificialmente a taxa de câmbio das indústrias alemãs que exportam para o resto do mundo. (9) Na consciência pública alemã, no entanto, os interesses materiais alemães na “Europa” são revestidos por uma imagem da UE, incluindo a UEM, como uma “comunidade de valores” (Wertegemeinschaft). Isso ofusca a questão estrutural de como é e deve ser a Europa política e economicamente organizada: como uma zona de livre comércio, uma plataforma de cooperação entre Estados-nação soberanos, uma organização internacional dedicada à “globalização” das economias nacionais, ou um super-Estado supranacional -e como em particular ela deve estar relacionada à democracia nacional. Uma vez que qualquer discussão sobre esta questão poderia minar a “Europa” como um símbolo integrador – acordando cães adormecidos e expondo a superficialidade de um consenso pró-europeu meramente idealista – esta questão é cuidadosamente evitada. Aqui, a inigualável capacidade de Merkel em se exprimir sem nada dizer tem sido inestimável para preservar a aparência “verde” sem pagamento de juros do europeísmo alemão, que é tão atraente para os eleitores da classe média

Um resultado é que, na Alemanha, os interesses nacionais tendem a ser confundidos com os interesses gerais europeus. (10) Enquanto outros países distinguem entre os dois, e muito menos dão primazia aos primeiros, os alemães ficam honestamente perplexos e a distância entre a intriga e a desaprovação moral é curta. Na Alemanha, ser pouco entusiasta da “união cada vez mais estreita dos povos da Europa” (Tratado de Maastricht) é considerado um indicador de um défice moral: veja-se a condenação moral universal da decisão britânica de sair da União Europeia. A afirmação de interesses nacionais face a algo tão sagrado como “a ideia europeia” é considerada como um lapso deplorável num passado desacreditado. Entretanto, a insistência alemã num mercado integrado em que nenhum país pode enganar a indústria alemã desvalorizando a sua moeda não é vista como a defesa de um interesse nacional, mas como o cumprimento de um imperativo moral.

A perspetiva dos interesses nacionais alemães se dissolverem num interesse europeu comum, ou numa “ideia europeia”, é a mais popular entre os Verdes. Mas é também partilhada por uma grande parte dos eleitores e dos membros do SPD, embora o seu número exato não seja claro. Quando Sigmar Gabriel percebeu, no início de 2017, que o SPD estava farto dele como presidente e candidato a chanceler, chamou Martin Schulz, um ex-presidente do Parlamento Europeu que não conseguiu avançar para a presidência da Comissão Europeia, para que este assumisse ambas as posições do SPD. (11) Como Schulz não tinha experiência na política em geral e na política alemã em p, em particular, a ideia, aparentemente, era que o SPD beneficiasse da sua aura “europeia”. Curiosamente, porém, Schulz optou por não fazer campanha pela “Europa” – a conselho da sua equipa, nunca mencionou sequer o assunto – mas sim pela “justiça social”, uma decisão que mais tarde considerou ser um dos seus muitos erros. Provavelmente para corrigir este erro entendido já como tal, Schulz, de repente, defendeu que um “Estados Unidos da Europa” numa convenção do SPD, em 7 de dezembro de 2017, fosse concluído “o mais tardar em 2025″. Os países que não estivessem dispostos a aderir teriam de abandonar a UE. (A frase ” Estados Unidos da Europa” nunca mais apareceu.)

Enquanto isso, as conversações “Jamaica” fracassaram, sobretudo por causa das suspeitas do FDP de que Merkel e os Verdes já tinham chegado a um acordo tácito para oferecer concessões fiscais substanciais à França. (12) Em resposta, e impulsionados pelas suas conexões francesas, Schulz e Gabriel insistiram que o capítulo do acordo de coligação sobre “Europa” deveria vir em primeiro lugar, o que foi celebrado pelos media convencionais como um importante passo em frente.(13) Alegadamente Schulz e o seu antigo camarada de armas, Jean-Claude Juncker, da Comissão Europeia, foram co-autores da parte do acordo relacionada com a Europa, com Merkel, programaticamente agnóstica como sempre, fazendo-o aprovar sem qualquer modificação. A esperança de Schulz, no entanto, de que isso gerasse entusiasmo entre os membros do SPD e outra grande coligação ficou rapidamente desapontada. Quando Schulz, no seu discurso na convenção do Partido em janeiro, mais uma vez falou de que Emmanuel Macron o chamou para lhe pedir que a formação do novo governo fosse acelerada, os delegados riram-se com desprezo, para surpresa dos jornalistas alemães dos principais media pró-europeus.

Passivos a chegarem à data de vencimento

Entre os legados de Merkel III está uma fragmentação sem precedentes do sistema político partidário alemão, com a AfD a estabelecer uma presença considerável no Bundestag, e o FDP a ter um pouco menos. Ambos chegaram a este nível de representação parlamentar após a abertura das fronteiras de Merkel em 2015. Em comparação com outros países, os seis ou sete partidos parlamentares da Alemanha (dependendo de como se conta a CSU) podem não parecer excessivos. Mas dois deles, o AfD e o Die Link, que juntos representam 22% do eleitorado, são tratados como párias pelos outros. Isso exclui-os de qualquer maioria governamental e é uma das razões pelas quais a formação de Merkel IV foi tão difícil. (Na Alemanha Oriental, os dois partidos juntos representam cerca de 40% dos votos.14)

O Parlamento alemão é um órgão potencialmente bastante poderoso, desde que utilize os seus direitos. Sob o domínio de Merkel III, muitas vezes não o fez. No que se refere à “Europa”, em particular, ambos os partidos da oposição, os Verdes e a Esquerda, estavam ansiosos por proteger a sua reputação “pró-europeia”, não sendo demasiado curiosos. Agora, se a AfD aprende as regras parlamentares, isso vai mudar. E se o FDP, enquanto partido liberal, é claramente “pró-europeu”, é também um porta-estandarte da tradição ordoliberal alemã. Este partido não se cansará, portanto, de recordar ao governo os princípios, como os do Tratado de Maastricht, que a Chancelaria pretende subscrever em público, mas que, na prática, foram muitas vezes desprezados. A AfD, por seu lado, sendo clamorosamente anti-imigração, não perderá qualquer oportunidade de exigir o acesso a informações governamentais politicamente sensíveis sobre esta matéria.

Relativamente à Europa, Merkel III alcançou o seu objetivo primordial: salvar o euro como moeda comum. Não se trata de uma conquista menor, dada a contribuição essencial do euro para a prosperidade alemã. Além disso, porém, o legado europeu de Merkel está cheio de responsabilidades potencialmente destrutivas.

O convite súbito, em setembro de 2015, para a entrada de cerca de um milhão de migrantes na Alemanha – e, ipso facto, no espaço Schengen e na União Europeia – serviu as necessidades alemãs, tanto nacionais como internacionais, e foi alargado sem consulta aos parceiros europeus da Alemanha. Internamente, pretendeu-se preparar uma mudança de coligação em 2017, ajudando Merkel a superar a imagem de “rainha do gelo” que ela havia ganho quando, no início de 2015, ela explicou num programa de TV ao vivo para uma refugiada palestina a chorar e que prestes a ser deportada que “não podemos ficar com vocês todos”. A nível internacional, respondeu, “mostrando um rosto amigo”, à controvérsia sobre o último diktat de “austeridade” entregue à Grécia em junho de 2015, que tinha provocado uma onda de desenhos animados por toda a Europa retratando Merkel e Schäuble com uniformes da Wehrmacht adornados com suásticas.

Entre outras coisas, a abertura da fronteira causou uma profunda divisão com a Europa Oriental, que se tornou ainda mais profunda quando países como a Hungria e a Polónia foram posteriormente ameaçados, tanto por Merkel como por Schulz, com um corte nos subsídios da UE, a menos que concordassem em receber uma parte fixa de um número indefinido de novos imigrantes. A política de imigração alemã de 2015 também pode ter sido a última gota no balde a favor da Leave no referendo Brexit de junho de 2016.

Não menos destrutivo foi um outro aspeto da liderança europeia da Alemanha. A política alemã há muito que é caricaturada pelos seus críticos como excessivamente rígida e inflexível, de acordo com os estereótipos da rigidez “teutónica”. Mas isto baseou-se principalmente na retórica de Merkel, do seu partido, do Bundesbank e do Conselho Alemão de Consultores Económicos. O que raramente se notou foi que estes últimos eram igualmente críticos em relação ao governo de Merkel, mas por ser demasiado acomodatício. De facto, Merkel III, depois de uma análise atenta, tinha repetidamente encorajado tacitamente o BCE e a Comissão Europeia a olharem para o outro lado quando, por exemplo, a França excedeu o seu limite da dívida, ou o Estado italiano precisava de refinanciar o seu sistema bancário, contornando de forma “flexível” as regras de Maastricht. (15). Para manter unido o campo político de Merkel, isto não podia ser admitido publicamente. O custo de tal duplicidade era que se tornava possível desencadear o descontentamento popular relativamente à “rigidez” alemã no exterior, às vezes culminando em pedidos de reparação por crimes de guerra alemães, ou em veredictos de tribunais italianos autorizando a apreensão de propriedades do governo alemão, como instalações do Instituto Goethe, na Itália.

Entre as elites europeias, as concessões não reconhecidas de Merkel parecem ter sido apreciadas, pois ajudaram a manter os novos “populistas” fora do poder. Com o tempo, porém, à medida que a situação no Mediterrâneo continuava a deteriorar-se, a permissividade alemã teve de ser complementada com promessas informais de reformas na zona euro, após a renovação do mandato de Merkel. É claro que não há registo público de que tais promessas tenham sido realmente feitas. Mas sem elas é difícil imaginar como as exigências europeias de uma mudança institucional fundamental poderiam ter ficado tão perfeitamente silenciadas durante a campanha eleitoral alemã. A estratégia de Merkel pode ter sido inspirada pela memória de Helmut Kohl, que foi amplamente venerado por ter pago a conta quando não havia outra forma de resolver as tensões entre os Estados-Membros da UE, especialmente as disputas envolvendo a Alemanha. (16) No entanto, como as contas europeias aumentaram em dimensão, especialmente depois da união monetária, a generosidade alemã atingiu os seus limites, e a austeridade de Schäuble sucedeu-se à generosidade de Kohl como a contribuição alemã prototípica para a integração europeia.

O problema fundamental com as promessas da Alemanha de fazer futuras reparações estruturais ao edifício europeu, a expensas da Alemanha, foi e é o facto de estas se terem tornado inevitavelmente cada vez mais irrealistas, tanto do ponto de vista económico como político. Pouco é tão destrutivo nas relações internacionais como expectativas irrealistas, especialmente quando encorajadas por uma negação moralista dos interesses nacionais e pela sua substituição por “valores”. O estilo de liderança pessoal de Merkel – que sempre se baseou num turbilhão de questões através de uma ambiguidade habilmente elaborada e, na maioria das vezes, de um discurso ininteligível – pode tê-la ajudado durante algum tempo. Mas, em última análise, quando os chips estão em baixo, o risco é que a capacidade limitada seja tomada por ser má vontade, e a incapacidade de dar seja vista como falta de vontade de dar. A defesa da ultra posse é excluída quando a desaprovação moral impede um ajustamento realista das expectativas. A distância entre o prometido e o possível torna-se identificada como um problema moral e não como um problema político ou económico, e o desapontamento resulta numa retórica altamente inflamável, emocional e hostil.

Desde a crise do euro depois de 2008, a política europeia de Merkel consistiu em sucessivas soluções de curto prazo para os problemas estruturais, acompanhadas de sinais de soluções estruturais futuras quando as condições políticas na Alemanha eram favoráveis.

A perspetiva de uma coligação com os Verdes foi útil neste contexto, tal como o foram os sociais-democratas como Gabriel e Schulz. O primeiro como ministro dos Negócios Estrangeiros e o segundo como chanceler-candidato tentaram classificar-se entre os eleitores alemães como sendo de espírito europeu, anunciando repetidamente contribuições alemãs mais elevadas para a “Europa”, a serem dadas unilateral e incondicionalmente, e prometendo geralmente um “fim à austeridade” através do aumento do “investimento” de tipo não especificado. Quando Schulz fez saber que tencionava suceder a Gabriel como ministro dos Negócios Estrangeiros, os jornais italianos falaram de forma lírica sobre a perspetiva de um governo alemão “verdadeiramente europeu”. Finalmente, a Alemanha estaria disposta a reciclar o excedente comercial alemão – presumivelmente localizado nas caves do Bundesbank- no sítio onde pertencia legitimamente, na Itália. (17) (Poucos dias depois, Schulz desapareceu no redemoinho pós-eleitoral do SPD).

Expectativas como estas fazem parte do difícil legado europeu de Merkel e do seu parceiro da coligação SPD, que terá agora de ser resolvido de forma dolorosa. Após a saída de Schulz, a nova estrela do SPD tornou-se um Olaf Scholz, nomeado ministro das Finanças e representante do SPD no gabinete como vice-chanceler. Scholz, ao contrário de Schulz, é um político experiente, que foi ministro do Trabalho em Berlim e foi prefeito de Hamburgo (um Lander segundo a Constituição alemã). Um social-democrata conservador do ponto de vista orçamental, Scholz foi um dos gestores da Agenda 2010 de Schröder. Apesar de conhecer em primeira mão os problemas que os Länder e as comunidades locais têm para equilibrar os seus orçamentos, Scholz apoia vigorosamente o “travão da dívida” que a Alemanha impôs a si própria, tanto a nível nacional como dos Länder. No entanto, após o desaparecimento de Schulz, a imprensa europeia optou por se entusiasmar com Scholz – acreditando que, seja com Schulz ou com Scholz, o SPD no governo manteria a sua retórica sobre as responsabilidades alemãs na “absorção de choques” na Europa, “investimento” e “solidariedade”.

Este artigo foi originalmente publicado em American Affairs Volume II, Número 2 (verão de 2018): 162-92.

Notas

1 Herfried Münkler, Macht in der Mitte: Die neuen Aufgaben Deutschlands in Europa (Hamburg: Körber-Stiftung, 2015).

2 Esta foi uma segunda tentativa depois da “viragem da energia” (Energiewende) após o desastre de Fukushima Daiichi de 2011. Surpreendentemente, em 2013, isso não foi suficiente para fazer com que a ala esquerda dos Verdes renunciasse aos planos de reforma orçamental como condição para aderir ao governo. Desde então, e por causa disso, a ala centrista dos Verdes ganhou vantagem

3 O FDP regressou após a sua experiência de quase morte em 2013, quando, como parceiro menor de Merkel por quatro anos, não conseguiu, com 4,8%, ultrapassar o limite de 5%.

4 A CDU e a CSU são formalmente duas entidades políticas separadas. Mas a CSU apresenta candidatos apenas na Baviera e a CDU apenas fora da Baviera, o que os torna, no seu calão, “partidos irmãos”. Desde a década de 1950, a CSU tem governado o Land da Baviera, quase sempre com maioria absoluta. Em parte, isso é devido à sua presença distinta no nível federal, onde representa agressivamente os interesses e sentimentos bávaros, se necessário, em conflito com a própria CDU. Com efeito, isto contém quaisquer tendências separatistas que ainda possam existir na Baviera.

5 Dos 399 votos combinados da CDU/CSU e do SPD, Merkel recebeu 364, uma diferença de 35 e apenas 9 mais do que o necessário para a maioria absoluta exigida.

6 Leon N. Lindberg and Stuart A. Scheingold, Europe’s Would-Be Polity: Patterns of Change in the European Community (Englewood Cliffs, N.J.: Prentice-Hall, 1970).

7 Qualquer distinção entre a Europa, o continente e a “Europa” como forma idealizada da União Europeia é algo que os acérrimos defensores desta última fazem tudo o que podem para ofuscar.

8 Alan Milward, The European Rescue of the Nation-State (London: Routledge, 1992).

9 Fritz W. Scharpf, “Forced Structural Convergence in the Eurozone—Or a Differentiated European Monetary Community,” MPIfG Discussion Paper 16/15, Max Planck Institute for the Study of Societies, Cologne (2016).

10 A este respeito, se em nenhum outro mais, a política interna alemã assemelha-se à de um país (potencialmente) hegemónico. O mesmo se aplica, naturalmente, à França – só que os franceses imaginam os interesses europeus como idênticos aos interesses franceses, enquanto os alemães imaginam os interesses europeus como negando ou substituindo todos os interesses nacionais, incluindo os alemães. Enquanto ambos os lados se abstiverem tacitamente de levantar a questão, os dois conceitos podem coexistir mais ou menos confortavelmente.

11 Sobre isto e na consequente campanha eleitoral veja-se: Markus Feldenkirchen, Die Schulz-Story: Ein Jahr zwischen Höhenflug und Absturz (München: Deutsche Verlags-Anstalt, 2018).

12 Note-se que Macron tinha alegadamente declarado antes das eleições que, “se o FDP entrar no governo alemão, eu estarei morto.” Mais sobre isso veja-se abaixo.

13 Ambos trabalharam arduamente durante todo o ano para melhorar a sua imagem, encontrando-se com Macron e almoçando ocasionalmente com o filósofo Jürgen Habermas, pelo menos uma vez em conjunto com o próprio Macron. Gabriel chegou ao ponto de declarar Macron um social-democrata, e Habermas fez saber que Macron estava prestes a abolir “a trágica divisão entre direita e esquerda na política francesa”. Quando o SPD se preparava para afastar Gabriel como ministro dos Negócios Estrangeiros, Habermas exigiu, num artigo de um jornal semanal, Die Zeit, que ele fosse mantido no cargo, por causa do seu europeísmo visionário. Sobre as artimanhas de Gabriel, ver Feldenkirchen, Die Schulz-Story (2018).

14 O rendimento per capita da Alemanha Oriental tem sido durante muitos anos cerca de três quartos da média alemã, apesar das transferências financeiras anuais em torno de 4% do PIB alemão. As implicações da persistência obstinada da desigualdade regional, mesmo num estado federal como a Alemanha, para a política e a economia da zona do euro raramente são discutidas. Ver Wolfgang Streeck e Lea Elsässer, “Desunião monetária”: The Domestic Politics of Euroland”, Max Planck Institute for the Study of Societies, Colónia (2014), Documento de reflexão 14-17.

15 Johannes Becker and Clemens Fuest, “Deutschlands Rolle in der EU: Planloser Hegemon. Ein Gastbeitrag,” Frankfurter Allgemeine Zeitung, December 13, 2016.

16 Ver o pagamento da parte de leão dos custos da política agrícola comum (PAC) feito pela Alemanha que beneficiou principalmente a França, em troca da abertura dos mercados para o seu sector transformador.

17 Podemos suspeitar que isso foi, em grande parte, para impedir uma maioria anti-euro nas eleições italianas que se aproximavam. Se assim foi, falhou de forma espetacular. Veja abaixo.

Os idosos são mais conservadores porque os pobres não sobrevivem para se tornarem idosos

As pessoas pobres muitas vezes não sobrevivem para se tornarem idosos que votam

Por Ed Kilgore, colunista político do Intelligencer desde 2015

New York Magazine

Votar não é uma coisa fácil se você é velho, doente e pobre. Foto: Emile Wamsteker/Bloomberg via Getty Images

Tradução / Uma das realidades permanentes da nossa era política é uma grande divisão geracional ancorada, pela direita, por idosos desproporcionalmente conservadores e, pela esquerda, por millennials e pós-millenials desproporcionalmente progressistas. Isso geralmente é avaliado como um fenômeno perfeitamente normal, até inevitável: pessoas jovens são aventureiras, abertas a novas maneiras de pensamento e não investiram intensamente seu tempo no status quo, enquanto a terceira idade já testou pontos de vista, possui ativos que quer proteger e um crescente medo do desconhecido.

Existe alguma verdade nestes estereótipos, apesar de diferentes grupos de jovens no passado terem sido muito mais conservadores que os atuais, e, em termos culturais, pessoas mais velhas terem sido às vezes tão progressistas (ou até mais) que seus filhos e netos (por exemplo a famosa Grande Geração, que em sua maioria cresceu na Grande Depressão Norte-Americana, era persistentemente democrata politicamente).

Mas é importante notar que algumas separações geracionais em comportamento político são dirigidas pela demografia. É bem entendido que millennials são significantemente mais diversos que as gerações anteriores. Contudo, há outro fator direcionando a relativa homogeneidade dos mais antigos: pessoas mais pobres são muitas vezes acometidas por doenças crônicas e sucumbem em morte prematura. Um novo estudo acadêmico destacado pelo blog Washington Post's Monkey Cage explica:

A participação política dos pobres é, em geral, mais baixa por causa da pobreza, má saúde e muitos outros fatores, mas milhões de americanos empobrecidos em todo o país também morrem prematuramente. Por exemplo, em 2015, uma pesquisa financiada pelos Instituto Nacional de Administração da Saúde e da Seguridade Social revelou que, desde 1990, no último quartel dos americanos com menor escolaridade, a expectativa de vida estagnou ou diminuiu. Isso ocorre para mais de 40 milhões de pessoas.

Adicione a esta tendência negativa o fato de que a mortalidade entre os mais pobres aumenta na meia idade – que é quando cidadãos geralmente se envolvem em política. O desaparecimento prematuro dos pobres, então, ocorre precisamente no momento em que deles seria esperado alcançar seu ‘pico participativo’ na sociedade. Mas eles não vivem o suficiente para alcançar este marco.

Como pessoas brancas sofrem proporcionalmente menos de pobreza que não-brancos, eles tendem a viver mais e em melhores condições de saúde, o que proporciona maior possibilidade de ativismo civil e político. O grupo racial demográfico mais tendente à esquerda, os negros norte-americanos, progrediu recentemente em reduzir esta lacuna entre as expectativas de vida com os brancos, contudo ainda está atrasado em duração de vida e saúde, como o estudo de 2017 do Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos (CDC) mostra:

Para negros de 18 a 64 anos, os dados mostraram que eles estavam em maior risco de morte prematura que os brancos.

Essas descobertas são consistentes em sua generalidade com relatórios anteriores, que usam o termo ‘declive’, sugerindo que negros experienciam envelhecimento e declínio em condições de saúde prematuramente quando comparados a brancos, e que esse declínio se acumula durante toda a vida e, potencialmente, em gerações futuras. Isso acontece como uma consequência de complicadores psicossociais, econômicos e ambientais.” disse Leandris Liburd, diretor do Escritório de Equidade de Saúde de Minorias do CDC.

Como o autor do novo estudo discute na nota do Monkey Cage, disparidades de idade e expectativa de vida podem ser autoperpetuadoras.

Desigualdade nos Estados Unidos, em outras palavras, não é apenas o resultado de diferenças econômicas. Saúde também tem um potencial considerável em atrapalhar os mais pobres. Socioeconomia, longevidade e participação política se reforçam mutuamente, fazendo com que, para norte-americanos pobres, seja especialmente difícil ganhar influência política.

Então não é apenas uma questão de pessoas naturalmente crescendo e se tornando conservadoras no processo. É também uma questão de que as pessoas mais ricas – e mais conservadoras, sobrevivem em taxas maiores e por mais tempo.

A política de refino, derivados e preços da Petrobras, uma comédia de erros

Economistas liberais tentam simplificar causas da greve dos caminhoneiros

Rodrigo Leão e William Nozaki

Folha de S.Paulo


Os economistas liberais têm o hábito de submeter realidades complexas criando verdades simplificadoras, como no atual diagnóstico da greve dos caminhoneiros. Para eles, o estopim da atual greve (ou locaute) seria fruto do aumento dos impostos ou até mesmo uma decorrência do excesso de oferta de caminhões.

Causa estranheza o primeiro argumento, dado que o último aumento de impostos na gasolina e no diesel ocorreu há aproximadamente um ano. Segundo o relatório do Ministério de Minas e Energia de março deste ano, entre os países da OCDE e América do Sul, o preço do óleo diesel no Brasil, excluindo os impostos, é mais baixo somente do que o praticado no Uruguai, Argentina e Japão (que não são grandes produtores de petróleo).

Quando incluídos os tributos, o diesel no Brasil é mais barato do que em dez países, entre eles França e Reino Unido. Seria difícil, portanto, creditar aos impostos a recente elevação do preço.

O argumento lançado por Samuel Pessôa, nesta Folha, comete de uma só vez pelo menos quatro erros: (i) deixa de observar a heterogeneidade do movimento dos caminhoneiros e trata a questão como se o problema pudesse ser reduzido ao número de caminhões; (ii) ignora que essa compressão das margens ocorre desde o início da crise em 2015; (iii) omite o papel da atual política de desmonte da Petrobras como se a petrolífera brasileira não tivesse responsabilidade na crise de preços dos combustíveis; (iv) com isso desloca a interpretação do setor de petróleo para o setor de transporte, invertendo causa e consequência.

A se seguir o raciocínio do autor, os proprietários de veículos são os responsáveis pelo aumento da gasolina e as donas de casa, provavelmente, responsáveis pela elevação do preço do gás de cozinha. Mas, então, por que as manifestações eclodiram apenas agora?

Os argumentos apontados acima visam tergiversar sobre o assunto e não se atentam ao cerne do problema: a política de refino dos derivados da Petrobras.

A atual subutilização do parque de refino da Petrobras reduziu a sua capacidade de utilização de 87%, em março de 2015, para 68% em março de 2018, tornando o país incapaz de atender sua própria demanda interna. Entre 2015 e 2018, a venda de derivados no mercado interno se reduziu de 2,5 milhões para 2,3 milhões de barris por dia, ao passo que a produção de derivados da estatal caiu de 1,9 milhão para 1,6 milhão de barris por dia.

Considerando que a atual capacidade do parque de refino brasileiro é de 2,4 milhões de barris por dia, o uso pleno da capacidade de produção seria capaz para atender grande parte do mercado interno. Em vez disso, opta-se por recorrer às importações e reduzir artificialmente o uso de refinarias.

Segundo estimativas do Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (Ineep), o custo de produção dos derivados no Brasil —cerca de US$ 40 a 45 o barril— é bem mais baixo que o atual preço do petróleo internacional, cerca de US$ 70. Sendo assim, por que abrir mão do uso do parque de refino para importar os derivados no mercado externo?

Ao contrário do que afirma Samuel Pessôa, isso daria mais flexibilidade à gestão dos preços da estatal brasileira, fazendo ajustes mais graduais no preço, levando-se em conta as mudanças no mercado interno.

No entanto, o colunista trata o Brasil como uma economia dependente das importações de gasolina e diesel e que, portanto, o preço doméstico dos derivados deveria seguir “fielmente” as variações dos preços internacionais. Tudo se passa como se o parque de refino nacional não tivesse participação nesse processo.

No Brasil, o debate sobre a industrialização, a segurança energética e a necessidade de autossuficiência no abastecimento nacional de combustíveis continua mais atual do que nunca, ao contrário do que propõe os liberais que, submersos numa comédia de erros, continuam colocando as ideias fora do lugar.

Sobre os autores

Rodrigo Leão

Economista, pesquisador-visitante do Núcleo de Estudos de Conjuntura da UFBA e diretor-técnico do Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (Ineep)

William Nozaki

Cientista político, professor da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo e diretor-técnico do Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (Ineep)

27 de maio de 2018

Como Claud Cockburn inventou o jornalismo de guerrilha



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12.02.2024United KingdomMedia
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How Claud Cockburn Invented Guerrilla Journalism
ByGustav Jönsson

https://jacobin.com/2024/12/claud-cockburn-guerrilla-journalism-left

In Believe Nothing Until It Is Officially Denied, Patrick Cockburn explores the fascinating life of his father, journalist Claud Cockburn, whose cutting prose spoke truth to power with charm and wit.


Claud Cockburn with his wife, Patricia, on May 22, 1968. (Victor Drees / Evening Standard / Getty Images)



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Review of Believe Nothing Until It Is Officially Denied: Claud Cockburn and the Invention of Guerrilla Journalism by Patrick Cockburn (Verso, 2024)

Before Claud Cockburn first entered the Times of London premises in 1929, he had contributed to its Berlin bureau, which gave him some idea of what to expect. But even so, he thought it rather much that the first conversation he overheard was one editor translating Plato’s Phaedo into Chinese, while his colleague recited the relevant passages in Greek from memory. Times editors, he recalled, were typically ensconced behind fat bookstacks, “engaged in writing historical works of their own.”

It was at the desks of Britain’s paper of record that C. K. Scott Moncrieff translated Proust, with the rest of the staff leaving their typewriters to help him find the right phrases — I guess it beat thumping out notices on municipal matters in, say, Cornwall. That’s to say, the Times’ editors were rather more interesting than their typical readers, who, like Ian Fleming’s James Bond, were so soundly conformist they wouldn’t read other papers but the Times.

The best oppositional writers have often started their careers in establishment strongholds. As the legendary Times correspondent Willmott Lewis once told Claud, “Every government will do as much harm as it can and as much good as it must.” That saying became one of Claud’s mantras. It captured both his unsentimental view of politics and his sense of ironic humour — it’s that combination that makes him, one of Britian’s finest investigative reporters, worth revisiting a century later.

Cockburn was no cynic. He believed that the press, if it were tough enough, could force the government to correct course. The seasoned foreign correspondent Patrick Cockburn writes in his biography of his father, Claud, Believe Nothing Until It Is Officially Denied, that he believed political leaders without “fixity of purpose” were “sensitive to pinprick criticism,” so that with the right kind of pressure, they’d “prove more malleable than they pretended.”

Surveying the field today, the Cockburn thesis hasn’t exactly been conspicuously confirmed. The political leaders in the United States persist in backing Israel’s slaughter in Gaza, no matter what “pinpricks” they receive. Though President Joe Biden, of course, has nothing if not “fixity of purpose” when it comes to the killing of Palestinians. As he once put it to Israeli prime minister Menachem Begin, it wouldn’t matter “if all the civilians get killed.” Patrick Cockburn notes in the introduction that pictures of bombed children in Gaza can now be instantly communicated to the rest of the world, but the established press itself is no less conformist than in Claud’s time — it largely relies on official information even as it prides itself on being a “crusading profession.”

Seeing the Times from the inside forever cured Claud of that self-congratulatory notion. When he took over from Lewis in Washington, DC, Lewis proposed to the Times that he report on London with the same irreverent vigour that had made his American despatches so popular. That proposal, Claud noted, was rather coldly received. The mainline press, in other words, prefers consensus to confrontation. It is perhaps most evident by the intramural prizes, bestowed between colleagues who’ve learned to compromise their principles — or still better, never had any. As Claud recalled, perhaps the worst thing that could happen to a Times employee was that they “developed ‘views’ on something or other — and in the Times language ‘viewy’ was a dreadfully damaging epithet.” Not much more than two years after joining the Times, Claud, in the words of its brass, went “red on us.”Cockburn believed political leaders without ‘fixity of purpose’ were ‘sensitive to pinprick criticism,’ so that with the right kind of pressure, they’d ‘prove more malleable than they pretended.’

Believe Nothing Until It Is Officially Denied takes its title from a Fleet Street saying that Claud popularized, having heard a senior representative of JP Morgan, on the day of the Great Crash of 1929, say everything would be fine in spite of “a little distress selling on the stock exchange.” Claud had a knack for being in the right place with the right people: he traveled to the occupied Ruhr with his schoolmate Graham Greene; he went to Oxford with his cousin Evelyn Waugh but spent his time outside term in-between Budapest and Berlin, where he learned politics rather more radical than that of the panelled rooms of Keble College; he met Al Capone in Chicago; he fled Hitler’s thugs in Germany, but then returned to rescue the children of a comrade; and he fought Franco’s forces in Spain, where he hung out with Arthur Koestler, met Ernest Hemingway, and helped W. H. Auden, who had traipsed through the countryside on a mule, reach Valencia by car.

Biographers typically spend several hundred pages on their subject’s childhood — sedulously listing obscure relatives — with even more on their senescence. It’s thrilling stuff if you’re the sort of person whose idea of a fun Saturday evening is to curl up in bed with a copy of the Maastricht Treaty. But Patrick Cockburn has pleasingly focused on the interwar period — the peak of Claud’s contra-establishment campaign of “guerilla journalism.” Claud left the Times in 1933, owing to how it suppressed news it thought overly hostile towards Hitler, to start his scrappy oppositional newsletter the Week. To resign on a point of principle, Patrick Cockburn observes, isn’t precisely common; though colleagues praised him for it, “few followed his example.”

Claud launched the Week with minimal funds, relying on a humble mimeograph in an even humbler Victoria flat, in the hallway through which bustled lawyers threatening libel with police informants trying to uncover Claud’s sources. British intelligence compiled a fat file on him, but it invariably concluded that suing would be too embarrassing. Perhaps they learned from Labour’s first prime minister, Ramsay MacDonald, who brandished a copy of the Week to the gathered correspondents at the London Economic Conference of 1933, claiming that no one should believe its pessimistic pronouncements. This alarmism was made hysterical by the fact that prior to the PM’s intervention, the Week had only seven subscribers. Following it, as Claud noted, everyone from King Edward VIII to Charlie Chaplin read it, while Joachim von Ribbentrop “on two separate occasions demanded its suppression on the ground that it was the source of all anti-Nazi evil.”

Foreign correspondents that Claud had befriended in Central Europe supplied the Week with information they couldn’t get into their own papers. They’d meet at London’s Café Royal to share news, while Nazi spies competed with British intelligence for tables within earshot. Norman Ebbutt, Claud’s erstwhile mentor, sent cables from Berlin on the Nazis that the Times wouldn’t print; it meant the Week became Britain’s perhaps most well-informed paper on Hitler’s regime.

Claud himself was uniquely placed to expose the so-called “Cliveden Set,” the pro-appeasement clique that numbered the owner as well as the editor of the Times. Claud set himself in opposition to both Whitehall and Fleet Street. But that situation couldn’t last forever. When Britain eventually sided with the Soviet Union, he realized that the moment the Week had exploited so fully had passed. He found himself on the side of official policy.

Even though Claud belonged to the Communist Party, he was friends with several High Tories, like the novelist Anthony Powell and the satirist Malcolm Muggeridge. It might, I suppose, have helped that he came from the right kind of family; but still, he had none of the political puritanism one sometimes encounters on the Left: he knew how to be serious without being solemn. His friends sometimes inquired how he remained on such close terms with so many of the establishment Right. He’d reply that he measured people not by reassuringly conventional categories but by his own “Dreyfus test.” As Patrick Cockburn puts it,


Claud asked himself: If, hypothetically, a person had been in France during the affair, would they have protested in person and in print in favour of Dreyfus and against his persecutors? In other words, was their opposition to injustice an overriding feature of their character which took precedence over their other political sympathies?

A sound enough test, to be sure, but perhaps Claud left himself open to the charge of hypocrisy. He had, one should recall, stuck with the Communist Party through the Stalinist show trials, even though in 1952 his friend Otto Katz went to the gallows in Prague, having confessed to being in the pay of the well-known British spy, Claud Cockburn.

Shortly following his return from America, Claud began writing for the Daily Worker, which sent him to report on the war in Spain. Patrick Cockburn is perhaps a shade too complimentary regarding Claud’s Spanish pieces. Claud brilliantly illustrated the courage of the troops that battled Franco’s far superior forces, but he evinced every mark of trying rather too hard to “inspire” — praising the frontline loyalists for their “epic heroism,” relaying the official line a little too faithfully to be truly convincing. In fact, George Orwell launched a minor polemic against “Frank Pitcairn,” Claud’s nom de plume for the Daily Worker, claiming he had slandered the vaguely Trotsky-inflected POUM to which Orwell belonged.‘Personal courage and resolution count for much,’ Patrick Cockburn concludes, ‘as do a willingness to endure poverty and danger.’

It can’t be said that Orwell was wrong. Historian Paul Preston rates him one of the least reliable foreign correspondents in Spain. But it’s not just that he shaded the truth in his cables, they have none of his characteristic irony or stylistic verve. His book, Reporter in Spain, written on the orders of the British Communist Party, is far better than one might suppose, given that it was completed in one or two weeks’ time; but nonetheless, some passages read like hammed-up lines from a mob play: “very swell,” he has a waiter say of a Francoist “big shot.” Patrick Cockburn says of the spat with Orwell that it ultimately mattered little. Orwell himself said that the “real issue” was the class war while the rest was mere “froth.” For his part, Claud later remarked that he found it “irksome to be endlessly proclaiming the imminence of victories which do not, in fact, occur.”

Still, he thought the Times’ talk of being “impartial” was sheer pablum.


It seemed to me that a newspaper is always a weapon in somebody’s hands, and I never could see why it should be shocking that the weapon should be used in what its owner conceived to be his best interest. The hired journalist, I thought, ought to realize that he is partly in the entertainment business — advertising either goods, or a cause, or a government.

That, too, is sound enough — provided one emphasizes that supporting a cause isn’t exactly the same as supporting a government. Besides, Claud thought it rather rich that the same types who pulled themselves up to their fullest stature to lecture him for penning propaganda themselves later boasted of having worked for the British wartime information services. A fair point, but it invites the rejoinder that much of what he wrote for the Daily Worker, like most official propaganda, isn’t really worth reading today — except, of course, if one’s reviewing it.

But if it’s safe to give the Spanish pieces a miss, his memoir, I, Claud, can still be read from cover to cover. By his personal example, he showed that oppositional journalism needn’t be boring or sombre. But he showed, too, that there’s a price: he was chased by debt collectors most of his life. Dissent isn’t free. “Personal courage and resolution count for much,” Patrick Cockburn concludes, “as do a willingness to endure poverty and danger.”
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Gustav Jönsson is an essayist and critic based in London.
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23 de maio de 2018

A meio caminho com Mao Zedong

Como os Students for a Democratic Society passaram de um movimento de massa a uma política de autodestruição.

Por Paul Heideman

Jacobin


A esquerda americana nunca produziu um grupo mais autocrítico do que o Students for a Democratic Society (SDS). Nos anos desde o colapso da organização em 1969, seus antigos membros produziram um fluxo interminável de mea culpas.

Parte disso veio de apóstatas autoconscientes, como o editor colaborador da New Republic, Paul Berman. Um SDS da Columbia em 1968, Berman mais tarde condenou a "degeneração do grupo em violência e irracionalidade... sua adoção final de doutrinas totalitárias". O SDS posterior deveria ter, ele brinca, sido renomeado como "Students for a Dictatorial Society". Mesmo aqueles menos alegres em espetar seus antigos camaradas expressaram arrependimentos sobre o radicalismo do final dos anos 60. James Miller tornou-se "profundamente cético em relação às suposições sobre a natureza humana e a boa sociedade sustentadas por muitos radicais". Mark Rudd, um membro da facção Weatherman do SDS, reflete que "nós jogamos nas mãos do FBI... Poderíamos muito bem estar na folha de pagamento deles".

Claro, em um nível é difícil argumentar contra essas avaliações. Imagine uma convenção de estudantes, dividida entre dois lados, um gritando "Ho, Ho, Ho Chi Minh!" e o outro "Mao, Mao, Mao Zedong!" O SDS realmente degenerou em uma caricatura do esquerdismo.

No entanto, se ex-membros do SDS entenderam o que deu errado com sua organização, eles tiveram menos sucesso em entender o porquê. Isso é especialmente gritante em relatos como o de Berman e Miller, onde a ênfase é colocada nas ideias que os membros do SDS mantiveram em vários momentos. Ex-membros do SDS ainda tendem a ver a história de sua organização como uma em que as escolhas feitas pelos estudantes determinaram o caminho do movimento.

Mas entender o SDS requer mais do que entender os estudantes. Requer entender os dilemas que a esquerda americana enfrentou de forma mais ampla na década de 1960. Nesses anos, uma nova radicalização, impulsionada acima de tudo pela oposição ao massacre no Vietnã, viu-se totalmente isolada de um movimento trabalhista em si mesmo desprovido de radicalismo por expurgos anticomunistas. O resultado foi uma radicalização desvinculada das forças sociais capazes de concretizar suas ideias. Como resultado, essas próprias ideias foram lançadas em fluxo, à medida que os SDSers substituíram uma força social após a outra pela classe trabalhadora, passando de estudantes para revolucionários negros e guerrilheiros do Terceiro Mundo.

O SDS serve como um aviso sobre a fragilidade das ideias políticas no abstrato e quão rapidamente elas podem ser refeitas quando a história bate à porta.

A juventude trabalhista

Os Students for a Democratic Society nasceram, com pouca fanfarra, em janeiro de 1960, quando membros da Liga Estudantil pela Democracia Industrial (SLID) decidiram mudar seu nome para algo mais moderno. O grupo de jovens da venerável Liga pela Democracia Industrial (LID), SLID, passou pela década de 1950 como uma pequena parte da corrente maior da social-democracia americana. Dentro dela, um certo conjunto de políticas era axiomático: primeiro, oposição ao comunismo em todas as suas formas, tanto estrangeiras quanto domésticas; segundo, um compromisso com o movimento sindical, seja com entusiasmo, como no caso do farol do liberalismo de esquerda de Walter Reuther, o United Auto Workers (UAW), ou com relutância, como no caso do sindicalismo empresarial descarado do chefe da AFL-CIO, George Meany; terceiro, ver o Partido Democrata como o veículo político para a reforma.

O avanço do Movimento pelos Direitos Civis na segunda metade da década de 1950 introduziu as primeiras rachaduras nas fundações do meio do SLID. Embora os social-democratas fossem fervorosos apoiadores do movimento desde seus primeiros dias e campeões da igualdade racial dentro do Partido Democrata ainda Dixificado, o movimento do Sul, com sua dramática desobediência civil em massa, implicitamente questionou a fé mantida no progresso por meio de eleições e negociações coletivas. O novo nome do SLID, Estudantes por uma Sociedade Democrática, foi informado pela sensibilidade tão forçosamente impressionada pelo movimento negro — que os Estados Unidos, apesar de todas as suas proclamações, ainda não eram uma democracia.

A primeira ordem do dia do SDS foi organizar uma conferência na primavera de 1960, realizada em Ann Arbor, Michigan, em apoio ao Movimento pelos Direitos Civis. Intitulada "Direitos Humanos no Norte", teve a sorte de acontecer algumas semanas depois que os protestos estudantis decolaram no Sul. A conferência trouxe algumas das principais luzes do movimento — Bayard Rustin da Southern Christian Leadership Conference, James Farmer do Congress of Racial Equality — para conversar com jovens ativistas estudantis. Embora nenhuma iniciativa concreta tenha surgido, a conferência ajudou a solidificar o Movimento pelos Direitos Civis como a principal causa do SDS.

Saindo da conferência, o SDS fez um movimento fatídico: contratou como funcionário em tempo integral um jovem estudante de pós-graduação da Universidade de Michigan, Al Haber. Ao contrário de notáveis ​​do SDS posteriores, Haber não era um líder carismático nem um pensador criativo. Mas ele era um organizador, com uma motivação e energia que se mostrariam cruciais para estabelecer o SDS como uma nova força ativista. Haber abraçou o foco da organização nos direitos civis e se dedicou a colocar seus escassos recursos a serviço da luta. Ele começou um boletim informativo do SDS sobre direitos civis, que em um ano tinha mais de dez mil assinantes. Ele também liderou a organização em um boicote à Sears, Roebuck & Co. por discriminação na contratação. Em novembro, o SDS e o Student Nonviolent Coordinating Committee (SNCC) coeditaram uma edição especial do jornal do SNCC, Student Voice, sobre a eleição. Em conferências estudantis por todo o país, Haber fez contatos com outros apoiadores do movimento, construindo o nome e o perfil do SDS.

Em 1961, o SDS contratou Tom Hayden como seu oficial de campo. Hayden havia se formado recentemente em Michigan e foi trabalhar em Atlanta, atuando como repórter do SDS no local. Sua chegada no outono em Atlanta coincidiu com o início de uma nova etapa no movimento, pois o SNCC estava começando sua campanha de registro de eleitores no Deep South. No verão anterior, os ativistas do SNCC se estabeleceram no Condado de McComb, Mississippi, para tentar registrar eleitores negros diante da intimidação da supremacia branca.

À medida que a violência contra a campanha aumentava, Hayden voou para Jackson para chamar a atenção para a luta. Muito rapidamente, ele próprio se tornou alvo de violência e foi forçado a deixar o estado. Ele logo escreveria suas experiências em um panfleto do SDS intitulado "Revolução no Mississippi". O relato de Hayden sobre os ativistas estudantis no Condado de McComb viria a servir como uma descrição adequada para as ambições de sua geração para o SDS:

Eles decidiram não apenas protestar, mas também buscar a transformação social, e isso é revolução. Eles decidiram que é hora agora — não em um minuto, não depois que mais um comitê se reunir, não depois que tivermos a defesa legal e os custos judiciais prometidos — de doar sangue e corpo, se necessário, para a justiça social, para a liberdade, para a vida em comum e para a criação de dignidade para os escravizados e, portanto, para todos nós.

Durante esse período inicial, o SDS estava ligado ao movimento trabalhista. O LID, a organização-mãe do SDS, era amplamente financiado pelos sindicatos, tornando-os financiadores indiretos do SDS. A organização também recebeu uma quantia considerável de financiamento direto dos sindicatos. A contratação de Al Haber foi possível graças a uma doação de US$ 10.000 do UAW. O Departamento de Sindicatos Industriais da AFL-CIO promoveu os esforços de arrecadação de fundos do SDS e emprestou à jovem organização sua impressora. O próprio Walter Reuther elogiou o grupo como “a organização estudantil de vanguarda dedicada às forças do progresso na América”.

Por sua vez, os primeiros ativistas do SDS tinham uma visão positiva do movimento trabalhista. O pai de Haber era um árbitro trabalhista em Michigan. Quando Haber pressionou o SDS a se tornar ativo no boicote à Sears, ele escreveu que esperava que o caso "trouxesse à tona a aliança natural do trabalho e do movimento pelos direitos civis". Sharon Jeffrey, outra líder inicial do grupo, era filha de Mildred Jeffrey, uma alta autoridade do UAW. O pequeno capítulo do SDS em Nova York apoiou a greve dos jornais de 1962, argumentando que tal apoio "deveria ser um reflexo automático" para o grupo.

Até mesmo Tom Hayden, que viria a ser o símbolo da alienação da Nova Esquerda da velha esquerda, estava favoravelmente inclinado ao trabalho, escrevendo em uma carta a Reuther que "o movimento trabalhista continua sendo a agência crítica no futuro avanço de soluções democráticas e igualitárias para nossos problemas econômicos". Esse relacionamento, no entanto, não foi isento de tensão. Em particular, o LID olhou com apreensão para o envolvimento do SDS no ativismo pelos direitos civis. O LID era, afinal, uma organização educacional, bem como uma organização sem fins lucrativos cuja isenção fiscal poderia ser ameaçada por ação política.

O envolvimento do SDS em boicotes e piquetes de solidariedade foi além do briefing imaginado pela liderança do LID para a organização. Quando descobriu sobre os esforços de Haber para transformar o grupo em uma espécie de SNCC do Norte, tentou tirá-lo da liderança. Haber permaneceu firme, no entanto, e, aproveitando os contatos de seu pai no movimento trabalhista, conseguiu persuadir o conselho do LID de que ele deveria permanecer.

O SDS era, portanto, um filho do trabalho. Seus primeiros anos foram possíveis pela generosidade do movimento, e sua ideologia estava firmemente dentro dos limites da social-democracia americana. A questão do que motivou a perturbação posterior do SDS não é, portanto, por que a organização não olhou para a classe trabalhadora, mas sim por que sua outrora forte parceria com o trabalho não conseguiu sobreviver aos anos 60.

Além da social democracia

Conferência sindical realizada em Port Huron, Michigan, 1946. Wystan Stevens / Biblioteca do Congresso

Qualquer resposta a essa pergunta tem que passar por Port Huron, Michigan. Lá, em junho de 1962, o SDS publicou a "Declaração de Port Huron", o documento definidor de seus primeiros anos. Como a organização cresceu nos últimos dois anos, adquirindo um punhado de capítulos organizados e cerca de oitocentos membros pagantes espalhados pelo país, houve a necessidade de esclarecer seus objetivos. A convenção de junho foi convocada para realizar essa tarefa, e Tom Hayden foi encarregado de redigir um documento para servir de base para a discussão na convenção. Em consonância com as raízes trabalhistas do SDS, a convenção foi realizada em um acampamento em Port Huron de propriedade do UAW.

A declaração é uma destilação extraordinária da política em jogo no radicalismo estudantil emergente. É assumidamente de classe média, refletindo sobre como seus autores e leitores foram "criados em conforto, pelo menos modesto" e estão "alojados agora nas universidades". Mais tarde, declara um tanto presunçosamente que "uma nova esquerda não pode depender apenas de estômagos doloridos para ser a força motriz da reforma social". Em vez de enfrentar os problemas que o país enfrentava no início dos anos 1960 — racismo, dominação corporativa e a ameaça de aniquilação nuclear — uma revolução de valores era necessária. Sem surpresa, os autores da Declaração de Port Huron identificaram estudantes e universidades como atores-chave na realização de tal revolução.

Hoje, esses sentimentos podem parecer irremediavelmente fora de sintonia com as realidades da maioria dos americanos na época (a grande maioria dos quais nunca pisaria em um campus universitário). Mas devemos entender por que esse tipo de análise foi convincente para tantos. Primeiro, havia o fato demográfico de uma grande protuberância jovem, começando com o baby boom. Isso combinado com o crescimento econômico do pós-guerra criou uma geração de estudantes universitários muito maior do que qualquer um de seus antecessores. A década de 1960 foi a primeira vez que os estudantes universitários superaram os agricultores nos Estados Unidos. Nesse contexto, os fatos da vida estudantil e o ambiente social da universidade pareciam uma nova fonte de força para a esquerda, em vez de uma prescrição para o isolamento.

O início da década de 1960 também foi um período em que a sociedade americana exibia poucos dos sinais de patologia óbvia que marcam nossa política hoje. Esses foram anos em que o padrão de vida da maioria das pessoas estava aumentando, impulsionado por uma economia em rápido crescimento e um movimento trabalhista com densidade sindical de 30%. Ao contrário de nossa própria era de desigualdade catastrófica e do naufrágio da política oficial, esses foram anos em que, no mínimo, o sistema parecia estar funcionando com muita eficiência — o problema era que sua operação estava totalmente fora do controle da maioria dos americanos. Alienada da operação mecânica das instituições dos EUA, a maioria da população estava, na visão de Hayden, se distanciando cada vez mais do tipo de vida cívica necessária para enfrentar os problemas reais que permaneciam na sociedade. Foi para esse problema que o SDS propôs a solução de uma revolução de valores.

Esses impulsos inegavelmente de classe média coexistiram, no entanto, com uma apreciação contínua da centralidade do movimento trabalhista para a política progressista. A seção da declaração sobre o trabalho começa observando a frequente equação de "grande trabalho" com "grandes negócios", argumentando que "nada poderia ser mais distorcido". Em vez disso, declara que "qualquer progresso que tenha havido no atendimento das necessidades humanas neste século depende em grande parte do movimento trabalhista". Os principais problemas com o trabalho são resultado do sucesso das grandes empresas em conter a expansão adicional do movimento. Nesse contexto, a declaração argumenta, sem pouca justificativa, que o trabalho passou a se ver como um grupo de pressão, em vez de um "órgão de 18 milhões de membros voltado para as massas fazendo demandas políticas para toda a América". O trabalho, conclui, será uma parte essencial da criação de um país mais progressista, mas também precisa de uma revolução de valores.

A Declaração de Port Huron provocou críticas intensas dos aliados do SDS que identificaram suas políticas com a casa do trabalho. Suas críticas, no entanto, não se concentraram na crítica bastante gentil ao trabalho no documento, mas sim na questão do comunismo. A questão surgiu em uma convenção de junho, mesmo antes da redação de Port Huron. O comitê da convenção votou para reconhecer como observador Jim Hawley, de dezoito anos, membro de um grupo de jovens do Partido Comunista. A resposta de líderes do LID como Michael Harrington foi nada menos que apoplética. Isso foi agravado pelos ataques contínuos da declaração ao anticomunismo em todo o documento, que ele culpou por encorajar o apoio a ditadores no exterior e impor uma conformidade política sufocante em casa. Para Harrington e outros, tudo isso pareceu um terrível esquecimento do que eles viam como a lição mais duramente conquistada da década de 1930 — a necessidade de isolar completamente os stalinistas do movimento progressista.

Haber e Hayden foram convocados perante um comitê do LID para discutir as questões. Para os SDSers, deve ter havido uma ironia especial em serem levados perante um comitê para responder perguntas sobre suas visões sobre o comunismo. Essa ironia, no entanto, não foi apreciada por seus questionadores, que atacaram Haber e Hayden com perguntas diretas como "Vocês dariam assentos aos nazistas também?"

As respostas dos SDSers não conseguiram comover seus inquisidores, e o LID tentou conter seu filho rebelde. Ele suspendeu os salários de Hayden e Haber, declarou que todas as publicações futuras do SDS seriam pré-aprovadas pelo LID e trocou as fechaduras das portas do escritório de Nova York. Embora nas próximas semanas a crise fosse amenizada, em grande parte pelos esforços do presidente da Sarah Lawrence, Harold Taylor, e do porta-voz do Partido Socialista, Norman Thomas, danos irreparáveis ​​foram causados ​​à imagem da social-democracia aos olhos da esquerda estudantil. Para uma esquerda que tinha amadurecido irritada com os rituais do macartismo, a demanda por uma quarentena contra ativistas ligados ao comunismo e por uma hostilidade inflexível à União Soviética parecia menos princípios para a esquerda do que sintomas das próprias coisas que eles esperavam mudar sobre a sociedade. Como Hayden disse anos depois, a experiência daquele verão "me ensinou que os social-democratas não são radicais e não podem ser confiáveis ​​em um movimento radical".

Ouse lutar

Embora a Declaração de Port Huron e as batalhas com o LID tenham contribuído poderosamente para o desenvolvimento da política do SDS, o grupo ainda não tinha uma noção clara do que estava realmente tentando fazer. Hayden e companhia foram inspirados pelo exemplo do SNCC, mas ficou abundantemente claro para eles que os estudantes do Norte indo para o Sul não eram de muita ajuda para o movimento. Em vez disso, a questão se tornou como o SDS poderia replicar o que o SNCC estava fazendo em outros lugares.

A resposta do grupo foi os Programas de Pesquisa e Ação Econômica — os ERAPs. Inspirados pelo trabalho recente de economistas social-democratas argumentando que a automação estava ameaçando o desemprego crescente e a recessão na década de 1960, os SDSers se convenceram de que organizar os pobres do Norte poderia ser sua contribuição para a luta. Assim como o SNCC se espalhou das cidades do Sul para o Sul rural com o objetivo de mobilizar negros marginalizados, os estudantes do Norte deixariam as universidades e viveriam entre os pobres de suas cidades, organizando-os em "sindicatos comunitários" para lutar por seus próprios interesses. A partir do verão de 1963, o SDS começou a se dedicar a esse projeto. Ele ainda foi ajudado nessa empreitada pelo UAW, que forneceu a maior parte do financiamento inicial do ERAP.

Nos dois anos seguintes, centenas de estudantes se mudaram para bairros pobres em cidades como Baltimore, Chicago e Newark. Lá, eles próprios viveram na pobreza, renunciando aos privilégios da vida estudantil de classe média para ajudar a construir um "movimento inter-racial dos pobres". Os organizadores do ERAP tentaram realizar reuniões comunitárias e trabalhar com organizadores locais em tudo, desde coleta de lixo da cidade até greves de aluguel contra proprietários de favelas.

Em retrospecto, é fácil ver que o ERAP nunca teve chance de sucesso. Longe de uma nova era de desemprego, a economia embarcou em uma das escaladas mais fortes do século, e o emprego e os salários cresceram. Além disso, os SDSers, em seu idealismo, subestimaram enormemente os obstáculos para organizar os pobres urbanos. Os níveis absolutos de atomização e desapropriação nas cidades do Norte chocaram os jovens ativistas. Embora mais de uma dúzia de cidades tivessem ERAPs em algum momento, na primavera de 1965, apenas algumas permaneceram.

No entanto, a experiência não foi totalmente negativa. Ativistas, tanto negros quanto brancos, aprenderam muito com a experiência. Muitos organizadores negros que trabalharam com o SDS passaram a desempenhar papéis importantes na política de suas cidades. Os estudantes brancos, por sua vez, se convenceram de que algo mais do que idealismo era necessário para lidar com a pobreza — o sistema americano precisava ser reconstruído de baixo para cima.

Essa radicalização foi reproduzida de forma constante em todo o país. A Crise dos Mísseis Cubanos em 1962 e o assassinato de John F. Kennedy em 1963 serviram de aviso de que a miragem da política de consenso que reinou durante os anos de Eisenhower estava se dissipando. A suposição de progresso social constante não podia mais ser tomada como certa. Esse novo clima foi sentido nos campi, à medida que o SDS expandia lentamente sua base de capítulos ativos do punhado que tinha desde sua fundação para várias dezenas em 1965. Esse crescimento foi ainda mais notável dado que a atenção da organização estava focada nos ERAPs fora do campus.

No outono de 1964, o radicalismo estudantil deu um passo qualitativo à frente com o Movimento pela Liberdade de Expressão (FSM). O FSM surgiu do ativismo pelos direitos civis em Berkeley, onde os alunos eram ativos em trabalho de solidariedade com grupos como SNCC e core. Em 15 de setembro, um grupo local anunciou planos de fazer piquete no Oakland Tribune, um jornal de direita que criticava ferozmente o Movimento pelos Direitos Civis. No dia seguinte, o reitor de estudantes enviou uma carta a todos os grupos estudantis proibindo a concentração em um pedaço popular da calçada e proibindo a distribuição de literatura defendendo ações em questões fora do campus. Em resposta, os estudantes montaram piquetes contra a administração e montaram mesas coletando dinheiro para a SNCC e o núcleo em desafio explícito à política.

Em 1º de outubro, Jack Weinberg foi preso por concentração para o CORE. Em resposta, centenas de estudantes cercaram o carro da polícia, recusando-se a deixá-lo ser processado. Um discurso contínuo foi realizado, usando o carro como um pódio, e depois de trinta e duas horas, Weinberg foi finalmente solto. Nos meses seguintes, o ativismo estudantil continuou, levando a um protesto dramático no qual oitocentos estudantes foram presos. Em janeiro, no entanto, os estudantes venceram, pois o chanceler da universidade foi forçado a renunciar e seu substituto emitiu novas regras aderindo à maior parte das demandas do movimento.

Berkeley teve um impacto imediato na política estudantil em todo o país. Enquanto o SDS dedicava a maior parte de sua atenção aos ERAPs, o FSM chamou sua atenção de volta para os campi com autoridade.

Embora a Declaração de Port Huron tenha identificado um papel especial para estudantes e universidades no processo de mudança social, o FSM deu a esses argumentos uma força que eles não tinham antes. Os estudantes poderiam, ao que parecia, desempenhar um papel semelhante ao SNCC no Sul. Eles até recorreram ao mesmo séquito de táticas — piquetes, desobediência civil e protestos. Se a demografia e uma economia em expansão criaram um novo potencial para a política estudantil, o FSM mostrou como eles poderiam ser.

A guerra em casa

Na primavera de 1965, o SDS finalmente se moveu contra a Guerra do Vietnã. Embora a oposição à guerra dentro do grupo existisse há muito tempo, ele ainda não havia tomado nenhuma ação antiguerra. O envolvimento dos EUA na guerra havia crescido lentamente nos últimos anos; antes da Resolução do Golfo de Tonkin em agosto de 1964, o Vietnã permaneceu muito atrás do Movimento pelos Direitos Civis em sua importância na política americana. Além disso, muitos no SDS sentiam que o foco na política externa estava muito distante do projeto de uma revolução de valores ao qual o grupo era devotado.

No entanto, quando o Vietnã se tornou o assunto da discussão na reunião do Conselho Nacional em dezembro de 1964, foi um tópico inesperadamente contencioso, com diferentes planos de ação propostos para enfrentar a guerra. Todd Gitlin, então presidente do SDS, propôs uma promessa nacional de recusar ordens de recrutamento. Outro membro propôs enviar suprimentos médicos para os Vietcongs. Alguns dos membros mais conservadores do grupo, temerosos do apoio aberto às forças comunistas, propuseram uma marcha em Washington como uma alternativa mais branda. Esta proposta foi aprovada, comprometendo o SDS a uma marcha de primavera contra a guerra.

O plano colocou o SDS no lugar certo na hora certa para um crescimento tremendo. Poucas semanas após essa reunião, o governo Johnson anunciou uma escalada significativa, lançando bombardeios no Norte e aumentando maciçamente a presença de tropas dos EUA. Em resposta, o ativismo no campus aumentou. Os primeiros ensinamentos contra a guerra começaram, e novos capítulos do SDS se formaram em um ritmo sem precedentes. A marcha, planejada para abril, atraiu 20.000 pessoas — muito mais do que os 3.000 organizadores esperavam — tornando-se o maior protesto antiguerra americano de todos os tempos. Como um evento organizado pelo SDS, também trouxe mais mídia e atenção ao grupo, facilitando ainda mais recrutamento e formação de capítulos.

O influxo de novos membros logo começou a mudar o caráter do SDS. Isso ficou claro na convenção de verão, realizada em Kewadin, Michigan. Aqui, em uma convenção dez vezes maior do que aquela que produziu a Declaração de Port Huron, o SDS começou seu movimento para a extrema esquerda.

Os novos recrutas que se afirmaram em Kewadin eram muito diferentes da geração que fundou o SDS. Muitos dos primeiros membros cresceram em torno da política liberal de esquerda, como Al Haber e Sharon Jeffreys, ou encontraram seu caminho nesse meio por meio de suas atividades intelectuais, como Tom Hayden. O novo quadro, no entanto, veio de lares e campi sem tradição de liberalismo que pudesse servir como plataforma de lançamento para a radicalização. Como Jeff Shero, um da nova geração, disse: "Se você fosse do Texas, no SDS, você era um filho da puta mau, não poderia ir para casa no Natal".

Para esses alunos, a ruptura com o mainstream da política americana foi necessariamente muito mais dura do que para a geração anterior. Nesse ponto, no entanto, essa alienação se expressou mais organizacionalmente do que ideologicamente. Em vez de lutar por posições mais militantes no SDS, os novos membros, que facilmente ganharam a maioria dos votos em Kewadin, lutaram pela descentralização e pela rejeição total de posições nacionais.

Essa hostilidade à estratégia teria consequências profundas para o grupo nos próximos anos. Primeiro, deixou o grupo organizacional e politicamente incapaz de sustentar o papel de liderança que desempenhou na mobilização do sentimento antiguerra. Segundo, a decisão de apostar todas as fichas na espontaneidade e no dinamismo dos capítulos locais em vez de qualquer tipo de visão política, apenas garantiu que mais tarde, quando esse dinamismo inevitavelmente vacilasse, haveria uma busca frenética e ad hoc por uma política capaz de explicar o porquê.

Kewadin também foi onde os últimos fios que conectavam o SDS ao LID foram finalmente cortados. Os social-democratas ficaram furiosos com o patrocínio do SDS à marcha antiguerra. Permitir que um comunista observasse a convenção de Port Huron já era ruim o suficiente; agora o grupo estava convocando marchas onde os comunistas se organizavam abertamente contra a política do governo Johnson. Em Kewadin, o SDS deu um passo além disso — em uma decisão apoiada por antigos e novos membros, o grupo se livrou da cláusula em sua constituição que proibia apoiadores de governos "totalitários" de se juntarem ao grupo.

Para os veteranos, que estavam lentamente desiludidos com a social-democracia americana, a mudança meramente institucionalizou uma ruptura política que estava demorando a chegar. Para os novos membros, já chamados de comunistas em suas comunidades, era simplesmente senso comum. Como resultado, em outubro, a conexão organizacional entre LID e SDS foi finalmente dissolvida completamente. Nascido da social-democracia americana, o SDS finalmente se comprometeu com um caminho diferente, embora poucos na época pudessem dizer aonde esperavam que isso levasse.

Ação que demonstra

O resultado imediato de Kewadin foi a paralisia. À medida que o sentimento antiguerra continuava a crescer, o SDS não conseguia dar-lhe forma ou direção. O sentimento em Kewadin era fortemente contra a priorização do trabalho antiguerra, tanto por princípio, porque diminuiria a autonomia dos capítulos locais, quanto porque a maioria dos membros sentia que a guerra estava tão profundamente enraizada na vida americana que apenas a vaga "revolução de valores" poderia acabar com ela. Além disso, as decisões em Kewadin jogaram a infraestrutura organizacional do grupo no caos, pois as questões de eficiência burocrática eram tratadas com desprezo.

Em um momento em que o envolvimento americano na guerra estava aumentando mensalmente, e o sentimento antiguerra crescendo para corresponder a isso, o grupo estava desesperadamente procurando por qualquer outra coisa para fazer.

No entanto, apesar do desprezo do grupo pelo movimento antiguerra, ele continuou a ser identificado com ele na mente do público. Os congressistas fulminaram contra a oposição do SDS à guerra, e os estudantes em todo o país continuaram a vê-lo como a principal organização antiguerra. Quando as marchas foram convocadas para meados de outubro por um grupo diferente, o endosso do SDS foi menos do que entusiasmado: "Somos a favor de ações que eduquem, em vez de ações que demonstrem". Apesar da hostilidade dos organizadores nacionais, os capítulos locais participaram entusiasticamente da marcha, que atraiu mais de cem mil pessoas, ofuscando a manifestação de abril. O SDS continuou a crescer, apesar de si mesmo.

Manifestantes da Guerra do Vietnã marcham no Pentágono em Washington, D.C. em 21 de outubro de 1967. Frank Wolfe / Biblioteca Lyndon B. Johnson

Na primavera, a tolice da tentativa de fugir da guerra ficou clara para todos. O ímpeto imediato foi mais uma vez a administração Johnson, que, no esforço de fornecer mão de obra para o esforço de guerra americano expandido, encerrou o adiamento do recrutamento estudantil. As universidades foram instruídas a classificar os alunos, com as classificações mais baixas sendo vulneráveis ​​aos conselhos de recrutamento locais, e um teste nacional foi proposto para ajudar na classificação. A resposta nos campi foi imediata. Embora o SDS tenha fracassado nacionalmente na preparação de uma resposta concertada, os capítulos locais entraram em ação. Em todo o país, os estudantes interromperam os exames de recrutamento e se reuniram nos campi contra a cumplicidade da universidade com a guerra. Aqui, finalmente, a visão da Declaração de Port Huron, de uma luta para refazer a universidade a fim de refazer a sociedade, encontrou fruição em nível nacional.

Aquela primavera também viu a entrada do Partido Trabalhista Progressista (PL) no SDS. O PL nasceu de uma cisão em 1961 do Partido Comunista, quando um pequeno número de membros baseados em Nova York foram expulsos por suas críticas ao apoio contínuo do partido à campanha de "desestalinização" de Nikita Khrushchev. Liderados pelo ex-operário siderúrgico de Buffalo Milt Rosen, esses comunistas olharam para a China de Mao. Rosen e seus camaradas fundaram uma revista, Progressive Labor, e se lançaram como uma organização trabalhista de esquerda. Em 1964, movendo-se bruscamente para a esquerda, o grupo se declarou um partido e anunciou sua campanha de luta contra outras correntes de esquerda por seu "revisionismo".

O partido cresceu a uma taxa respeitável nos anos seguintes, tomando iniciativas como organizar viagens para estudantes universitários para a Cuba revolucionária e formando um grupo antiguerra próprio, o Movimento 2 de Maio. No início de 1966, no entanto, estava claro que o SDS era onde a ação estava. Ao entrar na organização, os membros do PL, treinados por antigos quadros do PC com décadas de experiência, rapidamente ganharam influência. Suas políticas desenvolvidas se destacaram no contexto da evitação geral do SDS de ideologia, permitindo que se tornassem um polo de atração para os SDSers que buscavam algo mais profundo do que ação imediata. Sua influência começou a ser sentida de pequenas maneiras, como cartas em publicações do SDS cheias de elogios estridentes à China.

Em 1966, no entanto, o PL permaneceu como uma pequena corrente no grupo. Muito mais populares foram as políticas em evolução do protesto universitário, que receberam crescente elaboração teórica ao longo do ano. Dois artigos em particular lançaram as bases para uma elevação da luta estudantil. O primeiro foi "Toward a Student Syndicalist Movement" de Carl Davidson. Apresentado na Convenção SDS de 1966, o artigo de Davidson argumentava que as universidades eram centrais para sustentar a sociedade americana moderna. Sua função era, essencialmente, "produzir o tipo de homem que pode criar, sustentar, tolerar ou ignorar situações como Watts, Mississippi e Vietnã". A centralidade dos campi, portanto, levantou uma questão óbvia — "o que aconteceria a uma sociedade manipuladora se seus meios de criar pessoas manipuláveis ​​fossem eliminados? A resposta é que poderíamos ter uma chance de lutar para mudar esse sistema".

As sugestões concretas de Davidson para interromper esse sistema eram peculiares, focando em particular no efeito supostamente revolucionário que a abolição das notas teria. Mas as táticas que ele aconselhou eram menos importantes do que o quadro teórico geral, no qual as universidades atuavam como uma das principais engrenagens da sociedade moderna.

O segundo artigo, originário de alunos da New School, foi chamado, em paródia consciente de seu ancestral, de "The Port Authority Statement". Ele ofereceu uma versão mais sociocientífica do argumento de Davidson, sustentando que a classe trabalhadora tradicional estava em declínio e sendo substituída pela "nova classe trabalhadora", consistindo principalmente de trabalhadores administrativos, técnicos e profissionais. Como esses trabalhadores foram educados, é claro, em universidades, as escolas poderiam ser um local-chave de luta para conquistá-los.

Ao longo do final de 1966 e 1967, essa análise se conectou poderosamente com o que estava acontecendo nos campi. A população universitária continuou a explodir. Embora menos de quatro milhões estivessem matriculados no ensino superior no início da década, em 1967, o número era pouco menos de sete milhões. Os campi continuaram a ser locais de luta estudantil, com o envolvimento da universidade no Vietnã como o alvo mais importante.

Os alunos organizaram referendos sobre a facilitação universitária de testes de recrutamento; eles lançaram protestos em escritórios administrativos; e declararam greves estudantis, fechando universidades inteiras. Na Universidade de Wisconsin, depois que alguns manifestantes estudantis foram presos, mais de mil ocuparam um prédio até que o presidente da universidade foi forçado a pagar a fiança dos alunos presos com seu próprio dinheiro. Tudo isso criou um público pronto no campus para as ideias do SDS sobre o sindicalismo estudantil e o potencial da nova classe trabalhadora.

1968

Os alunos tinham acabado de voltar aos campi no início de 1968, quando as forças de libertação lançaram a Ofensiva do Tet, destruindo um dos argumentos mais importantes da administração para continuar a guerra — que eles estavam vencendo e que a guerra terminaria em breve. O sentimento antiguerra surgiu em resposta, e Johnson se viu enfrentando desafios primários democratas. Dois meses depois, Martin Luther King Jr foi assassinado, dando início a rebeliões negras em mais de cem cidades. Não era difícil imaginar que a revolução havia chegado.

Para o SDS, o desenvolvimento decisivo foi a luta na Universidade de Columbia. Saindo de lutas em torno da cumplicidade da universidade com os militares e um plano de expansão para o Harlem, os estudantes ocuparam vários prédios da universidade, mantendo-os por uma semana. Cerca de setecentas pessoas foram presas no processo, e o campus foi fechado no mês seguinte por uma greve estudantil com amplo apoio. Ocorrendo em uma faculdade da Ivy League na cidade de Nova York, a luta foi intensamente coberta pela imprensa nacional e pareceu uma confirmação dramática da força da esquerda estudantil.
Columbia também ofereceu uma reconciliação entre o poder estudantil e a política de resistência. A luta foi liderada por estudantes, mas seu alvo foi a cumplicidade da universidade com os militares e o racismo da abordagem de Columbia em relação à sua vizinhança. Para muitos na liderança do SDS, parecia que a política estudantil e juvenil poderia ser uma vanguarda em uma luta que não era principalmente sobre suas próprias condições, mas sobre refazer o país como um todo.

Indo para a convenção de 1968, a liderança do SDS estava confiante de que essa análise encontraria amplo apoio no grupo. Eles ficaram profundamente decepcionados. O PL, que comandava cerca de um quarto dos delegados, lançou um ataque total à perspectiva deles. A liderança argumentou que o projeto do SDS deveria ser usar os campi como base para construir uma organização revolucionária nas cidades, aproveitando as teorias da "nova classe trabalhadora" que surgiram antes. O PL criticou essa proposta por sua imprecisão, sua dependência de noções ainda nebulosas de classe, e apontou, em vez disso, para a França de maio de 68, que eles argumentaram demonstrar o potencial político de uma aliança trabalhador-estudante. Obtendo apoio muito além de seus próprios números, o PL derrotou decisivamente a proposta das cidades revolucionárias.

Incapaz de competir com o PL politicamente, o grupo de liderança recorreu a argumentar contra suas práticas organizacionais. A conduta do PL como um grupo de quadros disciplinado, eles argumentaram, era contrária ao espírito do SDS. O PL estava no SDS simplesmente para recrutar membros, não para realmente construir a organização. Embora o PL frequentemente se comportasse de maneiras destrutivas e sem princípios, a crítica da liderança ao grupo teria sido mais convincente se eles próprios não fossem culpados de ignorar os membros quando conveniente, e se tivessem levantado essas preocupações antes de começarem a perder votos para o PL.

Os membros do PL responderam acusando a liderança de incitação aos vermelhos, levando um SDSer indignado a balbuciar "Incitação aos vermelhos! Incitação aos vermelhos? Eu sou o comunista aqui, não vocês do PL!” A liderança conseguiu manter o controle sobre a infraestrutura organizacional. Pela primeira vez na história do SDS, eles apresentaram uma chapa para os escritórios nacionais, liderada por Mike Klonsky, um ex-estudante ativista da Costa Oeste, e Bernardine Dohrn, uma assistente jurídica que havia se envolvido recentemente no SDS. A política de resistência havia conquistado uma vitória, mesmo que por pouco.

Na esteira do debate sobre cidades revolucionárias, Klonsky e companhia foram forçados a desenvolver suas ideias de forma mais sistemática. O resultado foi o documento do Movimento Revolucionário da Juventude (RYM), que forneceu a base para a política da liderança durante grande parte do resto da vida do SDS. Abrindo com uma citação de Mao, ele argumentava que a juventude era uma força revolucionária fundamental, mas que o SDS até então não havia conseguido explorar esse potencial por causa da adoção dos privilégios da vida universitária pela organização. Em vez de lutar lá, os SDSers deveriam priorizar ir a faculdades comunitárias, escolas técnicas e escolas de ensino médio para conhecer os jovens radicalizados e trazê-los para o movimento.

Para levar essa perspectiva adiante, a liderança do SDS convocou uma greve nacional de estudantes em torno da eleição. A iniciativa foi um fracasso enorme, incapaz de fechar uma única escola. A intensidade dos fracassos ideológicos entre as facções que disputavam a liderança do SDS escondia uma distância cada vez maior dos membros e do público reais do grupo.

Ainda assim, o SDS continuou a crescer. Em 1968, seus membros chegaram a cem mil. Em Princeton, naquele outono, um décimo da classe de calouros se juntou ao grupo. Uma pesquisa com estudantes universitários estimou que cerca de 350.000 se consideravam revolucionários. À medida que a radicalização continuava a crescer, o SDS também crescia, mesmo quando sua liderança se mostrou mais incapaz do que nunca de tirar vantagem disso.

Charles Manson vs. Mao

O SDS começou seu último ano de existência felizmente sem saber que seu fim estava próximo. Desenvolvendo ainda mais a perspectiva do RYM, os apoiadores de Klonsky e Dohrn argumentaram que o movimento juvenil só poderia ter sucesso em aliança com as duas grandes forças revolucionárias da época: radicais negros e guerrilheiros anti-imperialistas. A elevação dessas lutas foi parcialmente motivada pelo reconhecimento de que um movimento juvenil sozinho dificilmente poderia liderar uma revolução; mas também foi impulsionado pela liderança porque essas alianças pareciam armas valiosas contra o PL. Naquele ano, o PL publicou uma série de documentos argumentando que o nacionalismo negro precisava ser combatido vigorosamente como uma barreira à libertação negra. Isso, combinado com o sectarismo do PL em torno do Vietnã, fez com que impulsionar esses grupos fosse um movimento natural para os apoiadores do RYM.

Eles também tentaram implementar a perspectiva do RYM indo às escolas de ensino médio para recrutar. O resultado foi um desastre. Os membros do SDS chegaram e discursaram sobre a revolução para os alunos do ensino médio que estavam descobrindo a política radical. Eles trouxeram os debates cada vez mais arcanos entre PL e RYM diretamente para seu trabalho com jovens estudantes, faccionando em vez de organizar. Os SDSers se viram indesejados entre os jovens ativistas.

O fracasso da perspectiva RYM em produzir qualquer sucesso foi agravado pela repressão crescente que veio com o governo Nixon. A Casa Branca tinha o SDS na mira; o procurador-geral adjunto escreveu sobre o SDS que "Se as pessoas se manifestassem de forma a interferir com os outros, elas deveriam ser presas e colocadas em um campo de detenção". Os legisladores estaduais apresentaram mais de quatrocentos projetos de lei visando ativistas do campus.

Os administradores da universidade também entraram na ação. Os psiquiatras escolares foram até encorajados a identificar e "tratar" ativistas estudantis. A crescente repressão apenas agravou os problemas internos do SDS, pois os debates políticos já superaquecidos agora aconteciam na sombra da infiltração.

Este foi o ambiente em que a convenção de verão de 1969 foi aberta. Ao contrário do ano anterior, quando o conflito com a PL foi inesperado, esta foi claramente uma batalha até o fim entre a RYM e a PL. O tiro de abertura da RYM foi um documento intitulado "Você não precisa de um meteorologista para saber para onde o vento sopra". O título, tirado de uma música de Bob Dylan, era um tiro na PL, cuja facilidade com a teoria marxista a RYM esperava transformar em uma marca de elitismo. O documento em si é quase ilegível — um líder mais velho do SDS brincou que, se lido com atenção, deixaria o leitor cego. Milhares de palavras de jargão maoísta confuso, o trabalho argumenta que a principal contradição no mundo é entre o imperialismo dos EUA e as forças que se opõem a ele. Como tal, as lutas nos Estados Unidos que não eram orientadas principalmente em torno do combate ao imperialismo eram distrações perigosas. A maioria dos trabalhadores americanos foi simplesmente submetida a uma lavagem cerebral e teria que ser acordada.

A PL, naturalmente, atacou essa perspectiva de frente. A RYM tinha ido à convenção com apoio, no entanto. Representantes do Partido dos Panteras Negras falaram contra o PL, argumentando que suas críticas aos Panteras os desqualificavam do movimento e que, se o SDS esperava ser levado a sério, precisava expulsá-los. No entanto, a intervenção dos Panteras saiu do roteiro quando o orador começou a discursar sobre a libertação das mulheres, argumentando que o "poder das bucetas" — mulheres se recusando a dormir com homens não revolucionários — era crucial. Quando o PL (e muitos SDSers não PL) começaram a gritar "Combata o chauvinismo masculino" em resposta, os Panteras responderam com uma piada infame de Stokeley Carmichael — "A posição das mulheres no movimento é propensa".

As coisas só pioraram a partir daí. Os argumentos PL–RYM degeneraram em PL gritando "Mao! Mao! Mao Zedong!" com o RYM tentando abafá-los com "Ho! Ho! Ho Chi Minh!" (alguns brincalhões de Nova York responderam à cacofonia com seus próprios gritos de "Go Mets!"). A essa altura, estava claro que cada grupo havia alienado todos, exceto seus apoiadores mais ferrenhos. Cada lado se retirou para o caucus. Quando o RYM retornou ao palco, eles anunciaram, sem a pretensão de uma votação em toda a convenção, que o PL foi expulso do SDS. No dia seguinte, houve dois SDSes.

Após junho de 1969, o SDS deixou de existir como uma entidade nacional. O PL tentou construir seu próprio SDS, embora o ponto de uma organização separada com políticas idênticas ao PL tenha sido perdido pela maioria dos estudantes. O RYM se dividiu rapidamente em dois grupos — os Weathermen, que abraçaram a luta de guerrilha armada contra o sistema, e o RYM ii, com políticas maoístas mais ortodoxas. O grupo Weathermen logo se estabeleceu como uma ameaça à política radical, mas apenas um incômodo para o sistema. Seus bombardeios contra alvos do establishment não realizaram nada, e seus ocasionais pronunciamentos públicos bizarros, como a declaração de Bernardine Dohrn de que “The Weathermen dig Charles Manson” apenas ressaltaram o quão longe esses antigos membros do SDS estavam de seu antigo objetivo de um movimento de massa para transformar a América.

Enquanto isso, a radicalização estudantil continuou. Em 1970, as pesquisas indicavam que um milhão de estudantes universitários nos Estados Unidos se consideravam revolucionários. A greve estudantil na primavera de 1970 contra a invasão do Camboja fechou centenas de campi por meses. No entanto, sem o SDS, não havia organização para dar coerência a esse levante.

A revolução perdida

O SDS foi pego na armadilha cruel que a política americana criou para a esquerda na década de 1960. De um lado, o país testemunhou uma expansão massiva do ensino superior, transformando os estudantes em um grupo social com peso social e político real. Isso foi então combinado com a guerra no Vietnã, um compromisso constantemente crescente com o massacre no exterior, para criar uma radicalização formidável da juventude. No entanto, do outro lado, o aliado mais importante dos movimentos radicais ao longo do século XX, os sindicatos, permaneceram ferozmente opostos à organização antiguerra, tanto por um profundo compromisso anticomunista quanto por uma lealdade firme à administração Johnson. Politicamente desarmado pela repressão macartista e liderado por uma casta de burocratas que acreditavam genuinamente na missão americana no Vietnã, a casa do trabalho e seus aliados liberais de esquerda viam o SDS e o movimento antiguerra mais amplo como inimigos, em vez de aliados em potencial.

As consequências dessa divisão dificilmente podem ser exageradas. No nível mais básico, foi uma tragédia terrível que uma das maiores realizações da esquerda americana do século XX — o movimento para acabar com a guerra no Vietnã — teve que ser construída em grande parte contra a oposição do movimento trabalhista. Esse fato distorceu profundamente a política do movimento antiguerra, gerando a busca às vezes frenética do SDS por uma base social — passando do Movimento dos Direitos Civis para os estudantes, para os pobres, de volta para os estudantes e, finalmente, para as guerrilhas anticoloniais.

À medida que a escalada na guerra alimentava um radicalismo crescente, o SDS foi pego nos tipos mais superficiais de ultrarradicalismo, eventualmente se dividindo, pois seus diferentes grupos imaginaram agências profundamente diferentes para a transformação da política americana.

Um olhar mais amplo sobre a política de esquerda nesses anos apenas confirma que as forças centrífugas em ação no SDS vieram de forças muito maiores do que o próprio grupo estudantil. Afinal, a social-democracia americana, representada pelo Partido Socialista, também se dividiu nesses anos, enquanto figuras como Michael Harrington tentavam manter uma oposição cautelosa à guerra, enquanto outros perseguiam a lógica do anticomunismo trabalhista até suas conclusões mais perturbadas, movendo-se firmemente para a direita nas décadas seguintes e acabando orbitando a administração Reagan. A separação institucional entre trabalhista e radicalismo na década de 1960 teve consequências trágicas para os moderados e também para os radicais.

No entanto, se a destruição do SDS não foi, em um sentido fundamental, de sua própria autoria, não se segue que tenha sido inconsequente. A automarginalização e o fim do grupo privaram o movimento antiguerra de qualquer agência capaz de canalizar sua tremenda energia. Embora a espontaneidade continuasse a impulsionar o movimento, isso significava que a vida do movimento era uma série dolorosa de altos e baixos, com pouco esforço para construir as infraestruturas de dissidência que podem sustentar a política radical.

O SDS, portanto, legou uma herança complicada aos radicais de hoje. Devemos nos inspirar na coragem moral que o grupo demonstrou tantas vezes, sua relutância em permitir que suas críticas à sociedade americana permanecessem confinadas aos limites da política aceitável. Ao mesmo tempo, suas mudanças ideológicas espasmódicas e o abraço final da automarginalização ressaltam a importância de desenvolver uma análise sóbria da realidade política bem antes de qualquer ascensão.

Mas se pudermos questionar o caminho que eles tomaram para trazer uma, não pode haver dúvidas sobre o objetivo do SDS — a América ainda precisa desesperadamente de uma revolução de valores.

Colaborador

Paul Heideman é PhD em Estudos Americanos pela Rutgers University–Newark.

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