Por Eric Levitz, redator do Intelligencer que cobre política e economia
New York Magazine
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Democracy na América. Photo: Mark Makela/Getty Images |
Tradução / A democracia americana não vai bem; sobre isso, os detratores do Presidente Trump conseguem concordar.
Mas quando se trata de identificar os sintomas da nossa república, de dar nome à sua doença e prescrever uma receita, as diferentes facções da “resistência” produzem diagnósticos divergentes.
Um grupo – formado por estudiosos de política comparativa, analistas liberais e conservadores do grupo NeverTrump – mantém os olhos fixos em Donald Trump. Eles veem a covardia moral de uma elite de republicanos que se recusou a negar a nomeação de um demagogo iliberal, a abandoná-lo nas eleições gerais, ou a deixar as investigações sobre sua campanha prosseguirem sem impedimentos. Eles apenas observam um presidente que ataca implacavelmente a independência da polícia federal, a legitimidade da mídia adversária e a veracidade dos resultados eleitorais oficiais – e uma base conservadora que acredita nas mentiras de Trump. E, pulsando logo abaixo, eles discernem a ascensão de um hiperpartidarismo que está levando as autoridades eleitas de cada partido a extirpar restrições informais a sua autoridade – e os eleitores de cada partido a acreditar que o outro lado não tem legitimidade no poder.
Nessas queixas, o movimento pela democracia (como meu colega Jonathan Chait chamou) vê todos os sinais reveladores de um caso grave de erosão de normas. As democracias não podem viver apenas de leis; elas também exigem a adesão a algumas regras informais que corrigem as falhas inevitáveis %u20B%u20B de qualquer Constituição e protegem contra a ameaça de líderes carismáticos concentrarem poder. Assim, para curar nossa república e imunizá-la contra futuras cepas do mesmo vírus, vários pensadores liberais fizeram um apelo pela formação de coalizões bipartidárias, unidas em defesa das normas democráticas e do estado de direito. Em sua opinião, a ameaça que Trump representa é tão grave e única que ideólogos de ambos os lados devem agora, em vez de focar em vencer batalhas políticas, priorizar a manutenção de uma ordem baseada na lei, a fim de garantir a liberdade de resolver democraticamente tais disputas no futuro.
Mas há uma segunda opinião.
Vários pensadores social-democratas (e/ou socialistas democráticos), examinando o paciente a alguns passos à esquerda do movimento pela democracia, voltaram seus olhos para um conjunto diferente de sintomas. Eles veem os legisladores estaduais e federais que rotineiramente cortam impostos sobre os ricos, e serviços para os pobres, desafiando os desejos de seus constituintes; veem agências reguladoras servindo como campos de treinamento para as empresas que deveriam controlar; veem uma Suprema Corte que não para de expandir os direitos das empresas e de restringir os das organizações de trabalhadores; um sistema de justiça criminal que não processa banqueiros que lavam dinheiro das drogas, mas atribui penas de prisão perpétua a pequenos traficantes de crack; um banco central que tem recursos para salvar grupos financeiros, mas não para salvar os cidadãos que eles exploram; um Pentágono que pode travar guerras de trilhões de dólares que exacerbam os problemas que deveriam resolver – e ainda é recompensado %u20B%u20Bcom um aumento de orçamento – quando o Departamento de Habitação pede aos trabalhadores pobres que paguem um aluguel maior por moradias piores; e, fervilhando por baixo de todas essas falhas e disparidades na distribuição da tão vasta riqueza privada, os super-ricos da nação têm hoje 15 anos de expectativa de vida a mais do que os pobres.
Os social-democratas veem nessas condições sinistras um caso clássico de capitalismo maligno. Democracias não podem sobreviver só de normas. Quando os mercados não são regulados – e quando os trabalhadores estão desorganizados – o setor corporativo, como um tumor cancerígeno, se expande até dominar a política e a sociedade civil. Uma parcela cada vez maior de ganhos econômicos se concentra em cada vez menos mãos, enquanto diminuem as barreiras para que a riqueza privada se converta em poder público. Os políticos não mais obedecem às preferências e necessidades populares. Os eleitores perdem a fé nas eleições – e então, surge um homem forte pronto a dizer que ele, sozinho, pode consertar o país.
Tudo isso contraindica a prescrição do movimento democrático: se a verdadeira doença da nossa república é o seu sistema econômico desigual, a doença não será curada por coalizões pluriideológicas. Muito pelo contrário: é necessário um movimento que mobilize os trabalhadores em número suficiente para que sejam capazes de exigir um novo acordo do capital. Assim, se a intelligentsia liberal deseja salvar a democracia americana, deve dedicar a maior parte de suas energias para conceber como esse movimento pode ser criado – e que mudanças o movimento deve operar na economia política da nação, uma vez que assuma o poder.
Por que esse debate importa
É importante não exagerar a divisão entre liberais "normcore" e esquerdistas "radicais". Jedediah Purdy, o professor de direito da Duke University que escreveu uma crítica muito discutida sobre os primeiros, condenou as mentiras (que desafiam normas) de Trump sobre a fraude eleitoral, que chamou de terrível ameaça à "autonomia" nos Estados Unidos. Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, cujo livro How Democracies Die [Como morrem as democracias] é a bíblia do centro “normie” (normal), argumentam que “tratar a desigualdade econômica” pode ajudar a vacinar os EUA contra futuros demagogos populistas. Ambos os lados reconhecem que tanto a tendência do nosso sistema econômico de concentrar riqueza no topo quanto o ataque de Trump às normas democráticas são problemas sérios; eles apenas discordam sobre qual dos problemas é a ameaça mais fundamental à democracia americana hoje.
Mas há riscos reais nessa disputa. Além das implicações acima mencionadas, sobre como a oposição anti-Trump deve se organizar, pode haver conflito entre o objetivo de preservar as normas e o de redistribuir o poder econômico.
Digamos que Chuck Schumer se torne líder da maioria no Senado no ano que vem. Se a restauração das normas for o objetivo primordial, ele terá que implorar a sua bancada para confirmar o nome de quaisquer candidatos judiciais convencionalmente qualificados apresentados pelo presidente; mas se a prioridade for o combate ao poder corporativo descontrolado, ele precisará matar essas indicações, para manter as vagas abertas para futuros juízes pró-trabalhadores. Da mesma forma, se os democratas conseguirem o controle total em 2020 (ou 2024, ou 2028), o fim da obstrução será, quase certamente, um pré-requisito para qualquer grande reforma redistributiva. E se Trump for capaz de nomear vários juízes da Suprema Corte – dando início a uma “era neo-Lochner”, com uma maioria de extrema-direita do tribunal vetando sistematicamente a legislação progressista (como aconteceu na votação do Affordable Care Act), será então imprescindível para os progressistas saber se a ameaça mais fundamental à democracia é a erosão das normas ou a desigualdade econômica.
Onde a esquerda acerta
Em sua crítica aos principais pensadores do movimento pela democracia, Jedediah Purdy argumenta que suas várias análises da crise política americana compartilham um defeito fundamental: nenhum deles questiona se a versão do capitalismo que emergiu nos Estados Unidos na esteira da crise da estagflação do fim dos anos 1970 – um capitalismo caracterizado, entre outras coisas, por sindicatos fracos, concentração empresarial, baixo crescimento e alta desigualdade – é “compatível com a democracia”.
Purdy sugere que não é. E ele está certo.
Existem dois argumentos diferentes para essa posição. Primeiro, há a hipótese de que os fracassos do capitalismo sejam, em grande parte, responsáveis %u20B%u20Bpela crescente popularidade do populismo iliberal em todo o Ocidente e, portanto, reformar nosso sistema econômico é a melhor maneira de proteger as normas democráticas fundamentais de futuros ataques.
Muitos se opõem a esse argumento apontando para as evidências abundantes de que o apoio a Trump teve raízes em uma reação racial e cultural, não em "ansiedade econômica". E é difícil acreditar que os níveis relativamente altos de imigração dos EUA – e a erosão das hierarquias raciais e de gênero – não gerassem certa reação, mesmo na melhor das circunstâncias econômicas. Mas essa objeção não é decisiva. Por um lado, há evidências científicas tanto histórica quanto social de que, em tempos de incerteza econômica, as pessoas ficam mais inclinadas para os tipos de ressentimentos culturais que Trump explorou e cultivou. Quando os seres humanos sentem que a base de sua autoestima e status social está ameaçada – como é frequentemente o caso de trabalhadores em regiões em processo de desindustrialização – eles tendem a se tornar cada vez mais desconfiados da diversidade, mais abertos a ideias extremistas e mais defensivos do status dos grupos de identidade social a que pertencem.
De maneira mais crítica, a afirmação de que a crise atual tem raízes econômicas não repousa na psicanálise do proletariado Trumpiano. Nas quatro décadas desde a crise da estagflação – que marcou uma curva acentuada para a direita na política e na economia das democracias ocidentais – a participação dos trabalhadores americanos nos ganhos de produtividade desabou; a taxa de sindicalização no setor privado do país despencou; a disparidade entre a riqueza de famílias ricas e pobres explodiu; e a classe média tornou-se dependente de crescente endividamento para financiar suas casas, automóveis e a educação dos filhos.
E nesse mesmo período, a confiança social, o engajamento cívico, a participação eleitoral e a confiança nas instituições públicas diminuíram significativamente nos EUA. Há motivos para ver esses últimos indicadores como desdobramentos dos anteriores: nos anos que antecederam a eleição de Trump, as pesquisas de opinião repetidamente apontaram larga maioria da população americana dizendo que a economia da nação era "manipulada" contra eles. Em novembro de 2015, uma pesquisa do Public Religion Research Institute (PRRI) mostrou que 64% dos americanos concordavam com a afirmação: meu “voto não faz diferença diante da influência dos indivíduos ricos e das grandes empresas no processo eleitoral”. Um ano depois, 75% dos eleitores que votaram antecipadamente nas eleições de 2016 disseram à Reuters/Ipsos que buscavam um "líder forte que possa tirar o país das mãos dos ricos e poderosos".
O que quer que dissesse o coração dos eleitores marginais de Trump, um país onde a maioria dos cidadãos acredita que as eleições não importam, porque os poderosos controlam a política, está pronto para o populismo autoritário.
E os EUA não são a única nação a ver um aumento na desigualdade – e na desconfiança em relação à democracia – desde o fim dos anos 1970. É uma tendência comum à maior parte da Europa Ocidental, onde também coincide com o crescente apoio a partidos políticos iliberais e extremistas. Como Caleb Crain observa no The New Yorker, o período de alto crescimento e distribuição relativamente equitativa dos ganhos de produtividade que prevaleceu no pós-guerra fomentou um clima político visivelmente diferente: nas três décadas após a Segunda Guerra Mundial, nenhum político populista (definido como “antielite, autoritário e nativista”) chegou ao poder em qualquer nação ocidental avançada, enquanto uma “parcela de votos muito menor do que antes ou depois ia para partidos extremistas”.
Há evidências consideráveis, então, de que uma distribuição mais equitativa do poder econômico reduziria o apoio popular a políticos e partidos extremistas nos EUA. É lamentável que a América tenha elegido um demagogo iliberal em 2016 – mas muito bom que ele seja especialmente impopular, incompetente e preguiçoso; se não tomarmos medidas para melhorar as condições que levaram à sua eleição, podemos ter menos sorte na próxima vez.
O segundo (e, a meu ver, o mais consistente) argumento da acusação de Purdy sobre o capitalismo contemporâneo não se apoia em afirmações especulativas sobre o futuro de nossa democracia, mas em uma avaliação crítica de seu passado. Simplificando: tornar a América “já grande” de novo não basta para tornar a nação verdadeiramente democrática. Mesmo que o capitalismo americano não representasse uma ameaça à sobrevivência da atual ordem política, continuaria sendo um obstáculo intransponível para que milhões e milhões de cidadãos dos EUA tenham assegurado o direito de realmente participar de seu próprio governo.
Nos Estados Unidos do presidente Obama, empresas e indivíduos ricos investiram quantias recordes de dinheiro para influenciar a política americana; as preferências políticas da elite econômica se sobrepuseram com frequência às dos cidadãos americanos comuns; quase seis milhões de cidadãos dos EUA perderam o direito de votar por terem cometido crime federal; e a taxa de participação eleitoral do país (sempre aberrantemente baixa) atingiu o nível mais baixo dos últimos 70 anos nas eleições de meio de mandato de 2014.
Nem todos estes obstáculos à soberania popular têm raízes apenas na economia. Mas os mais alarmantes %u20B%u20Be consequentes têm.
Não é preciso acreditar que o capitalismo, como tal, é incompatível com a democracia para aceitar que certo princípio de igualdade econômica é pré-requisito para a última. Na realidade, é improvável que qualquer defensor genuíno da democracia acredite que não exista tal princípio.
Imagine um EUA em que 99,9% dos cidadãos tivessem que trabalhar 70 horas por semana apenas para manter suas famílias abrigadas e alimentadas (e ainda assim, com dificuldade). Imagine que esses cidadãos raramente soubessem exatamente quais seriam seus horários de trabalho e, portanto, tivessem que renegociar constantemente os arranjos de cuidados com os filhos – e tudo isso representassem uma enorme pressão sobre sua saúde mental e suas relações pessoais, deixando-os sem tempo e energia necessários para acompanhar as notícias, ou participar de organizações comunitárias ou de reuniões da prefeitura, ou para votar no meio de uma terça-feira.
Você diria que o sistema econômico de tal nação é compatível com a democracia?
Se não, então como um sistema que condena uma porcentagem menor – mas ainda substancial – da população a essas condições é compatível com a democracia?
Por que o movimento pela democracia não pode ser não ideológico
Mas é possível aceitar todas as alegações da esquerda sobre a incompatibilidade do capitalismo contemporâneo com a democracia e ainda ver o ataque de Trump às normas democráticas como a ameaça mais urgente à nossa república. Afinal, algumas normas são realmente mais fundamentais para a democracia liberal do que qualquer política dos sonhos de um social-democrata: proibir autoridades eleitas de contestar resultados eleitorais, de encorajar a violência política ou de usar as forças policiais contra opositores é mais indispensável à democracia do que a reforma trabalhista ou a assistência médica universal (sem tais proibições, as forças reacionárias terão pouca dificuldade em reverter essas reformas de esquerda, de qualquer forma).
Mas a conclusão não é que os defensores da democracia devam concentrar suas energias na defesa das proibições, em vez de se organizar para garantir as reformas de esquerda. A prescrição do movimento pela democracia pode ser apropriada para um momento de crise democrática aguda. O dia em que o presidente transformar o Ritz-Carlton D.C. em uma prisão provisória para os intelectuais do #Resistance e do NeverTrump; ou anunciar o adiamento das eleições de meio de mandato; ou detiver indefinidamente Robert Mueller como suspeito de terrorismo será um dia para grandes coalizões em defesa de nossa ordem constitucional. Fora de tal contexto, no entanto, é difícil imaginar – meramente como questão prática – como um movimento de massas pode ser mobilizado em defesa de algo abstrato como normas processuais. De modo geral, os americanos comuns estão mais preocupados em fazer suas contas caberem em seus salários do que em forçar Mitch McConnell a permitir uma votação de legislação para proteger a independência do conselho especial.
Essa realidade se reflete na estratégia do Partido Democrata para a eleição da metade do mandato presidencial. Candidatos democratas à eleição ao Congresso em distritos disputados falam muito mais sobre o ataque do Partido Republicano ao Medicaid do que dos ataques de Donald Trump contra Robert Mueller. O Comitê de Campanha Congressional Democrata não é uma vanguarda socialista; não está instruindo seus candidatos a concentrar munição contra a injustiça econômica – em vez de violações de normas – porque deseja lançar as bases para um movimento que desafie o capitalismo. Está fazendo isso porque quer que os democratas controlem a Câmara. Assim, se o objetivo primordial for salvaguardar nossa ordem constitucional contra Trump no curto prazo – ou tornar nosso sistema econômico mais compatível com a democracia no longo prazo – a estratégia de organização da esquerda continua mais viável: um movimento de oposição centrado em um apelo por mudanças econômicas progressistas é mais provável de entusiasmar do que um baseado em um compromisso não ideológico com normas processuais.
Isso resolve uma disputa entre o centro “normcore” e a esquerda “radical”. Mas não resolve seu ponto de discórdia mais profundo: o que fazer quando uma norma democrática genuinamente importante se torna um obstáculo intransponível para uma reforma econômica progressista.
O difícil caso do "cenário neo-Lochner"
Esta não é uma hipótese selvagem, mas uma circunstância encontrada na última vez em que os fracassos do nosso sistema econômico provocaram dúvidas generalizadas sobre a sustentabilidade da democracia liberal.
Franklin Roosevelt assumiu a presidência em um momento de depressão econômica sem precedentes, quando a aparente impotência das democracias liberais em restaurar a prosperidade impulsionava movimentos políticos fascistas (e populistas iliberais) – muitas vezes ao poder absoluto. Na opinião de muitos observadores contemporâneos, mudanças radicais na estrutura da economia política dos Estados Unidos não foram apenas necessárias para melhorar o bem-estar social e aumentar a participação democrática, mas para evitar cair em um governo autoritário.
Roosevelt deu início às reformas – algumas delas vitais e libertadoras, outras mal imprudentes e contraproducentes. Mas o simples fato de as instituições políticas americanas organizarem uma resposta tão inédita e abrangente quanto a própria crise ajudou a restaurar um grau de confiança na viabilidade do modelo democrático liberal. Em 1936, os eleitores americanos recompensaram Roosevelt com a maior votação popular que qualquer candidato presidencial havia recebido em mais de um século.
Mas a Suprema Corte não ficou tão impressionada com o desempenho de FDR. Em 1935 e 1936, o tribunal derrubou leis devidamente promulgadas com uma frequência sem paralelo em sua história. Num tempo em que a sobrevivência de nossa democracia parecia exigir a construção de uma nova ordem econômica, um establishment conservador desacreditado e derrotado usava seu poder residual no Judiciário para impedir mudanças progressistas. O presidente decidiu que tempos atípicos pediam medidas atípicas.
Em seu livro, Levitsky e Ziblatt classificam o esquema de “court-packing” de Roosevelt (o presidente tentou aumentar o número de juízes na Suprema Corte para alterar a correlação de forças, mas foi derrotado) como um perigoso ataque à norma vital de um judiciário apolítico – e apresentam a oposição bipartidária ao plano de Roosevelt como uma afirmação dos ideais democráticos liberais de nossa nação. A norma que Roosevelt tentou violar é uma importante salvaguarda contra o colapso democrático: se um governo iliberal unificado pudesse personalizar sua Suprema Corte, esse regime poderia revogar ostensivamente os direitos civis de grupos minoritários vulneráveis %u20B%u20Be restringir o acesso ao voto para se consolidar no poder.
Mas a análise de Levitsky e Ziblatt levanta duas questões urgentes: uma nação onde cinco juízes não eleitos rotineiramente vetam leis populares devidamente promulgadas – que visam redistribuir o poder econômico em um momento de desemprego em massa e desnutrição – ainda é um regime democrático? E se for – ou seja, se a "democracia" não supuser que as pessoas comuns possam escolher como os recursos da sociedade serão distribuídos e os mercados organizados – por quanto tempo se pode razoavelmente esperar que uma população materialmente privada mantenha alguma reverência pela democracia?
Os autores fazem acenos a essas tensões, mas nunca as abordam diretamente. Levitsky e Ziblatt não explicitam por que manter uma Suprema Corte com nove membros era mais importante do que preservar o Segundo New Deal. Em vez disso, sugerem que as elites, de forma ágil, pouparam os EUA dessa escolha difícil ao colocar a preservação das normas acima da convicção ideológica:
No entanto, o que os autores celebram nesta passagem é justamente a politização do Judiciário que eles se propõem a condenar. Na verdade, se você inclinar a cabeça para a esquerda, o relato dos autores passa a parecer uma prova das virtudes de se priorizar a justiça econômica sobre a preservação de normas: um presidente “populista” organizou um ataque frontal à independência do judiciário; a Suprema Corte respondeu alterando sua jurisprudência para atender às demandas do presidente; e os EUA foram em frente para salvar o modelo democrático liberal de governo dos mais sérios desafios que já havia enfrentado.
Certamente, a causa da mudança jurisprudencial do juiz Owen Roberts é contestada; a reação política à proposta de mudanças na corte atrapalhou a aprovação de outras reformas; e, embora não houvesse como sabê-lo então, aposentadorias e reeleições acabaram permitindo que Roosevelt nomeasse um tribunal pró-New Deal pelos meios normais. Meu objetivo ao destacar as tensões na narrativa de Levitsky e Ziblatt não é dizer que a resposta correta para um cenário neo-Lochner seja óbvia. É dizer o contrário: os riscos de minar a independência judicial são consideráveis; como também são os riscos de permitir que uma Suprema Corte reacionária frustre mudanças econômicas progressistas (um futuro governo democrata pode ser poupado de uma depressão global, mas será confrontado com uma crise ecológica global que não será resolvida sem reformas redistributivas e reguladoras que não vão agradar Neil Gorsuch).
Pode haver uma argumentação convincente contra a violação de normas liberais fundamentais, mesmo em tais circunstâncias. Mas, se os pensadores de centro-esquerda quiserem lançar mão desta argumentação, terão que lidar com os insights de seus críticos radicais – e com as inúmeras maneiras pelas quais a atual ordem econômica dos EUA é incompatível com o modo como as democracias florescem.
Um grupo – formado por estudiosos de política comparativa, analistas liberais e conservadores do grupo NeverTrump – mantém os olhos fixos em Donald Trump. Eles veem a covardia moral de uma elite de republicanos que se recusou a negar a nomeação de um demagogo iliberal, a abandoná-lo nas eleições gerais, ou a deixar as investigações sobre sua campanha prosseguirem sem impedimentos. Eles apenas observam um presidente que ataca implacavelmente a independência da polícia federal, a legitimidade da mídia adversária e a veracidade dos resultados eleitorais oficiais – e uma base conservadora que acredita nas mentiras de Trump. E, pulsando logo abaixo, eles discernem a ascensão de um hiperpartidarismo que está levando as autoridades eleitas de cada partido a extirpar restrições informais a sua autoridade – e os eleitores de cada partido a acreditar que o outro lado não tem legitimidade no poder.
Nessas queixas, o movimento pela democracia (como meu colega Jonathan Chait chamou) vê todos os sinais reveladores de um caso grave de erosão de normas. As democracias não podem viver apenas de leis; elas também exigem a adesão a algumas regras informais que corrigem as falhas inevitáveis %u20B%u20B de qualquer Constituição e protegem contra a ameaça de líderes carismáticos concentrarem poder. Assim, para curar nossa república e imunizá-la contra futuras cepas do mesmo vírus, vários pensadores liberais fizeram um apelo pela formação de coalizões bipartidárias, unidas em defesa das normas democráticas e do estado de direito. Em sua opinião, a ameaça que Trump representa é tão grave e única que ideólogos de ambos os lados devem agora, em vez de focar em vencer batalhas políticas, priorizar a manutenção de uma ordem baseada na lei, a fim de garantir a liberdade de resolver democraticamente tais disputas no futuro.
Mas há uma segunda opinião.
Vários pensadores social-democratas (e/ou socialistas democráticos), examinando o paciente a alguns passos à esquerda do movimento pela democracia, voltaram seus olhos para um conjunto diferente de sintomas. Eles veem os legisladores estaduais e federais que rotineiramente cortam impostos sobre os ricos, e serviços para os pobres, desafiando os desejos de seus constituintes; veem agências reguladoras servindo como campos de treinamento para as empresas que deveriam controlar; veem uma Suprema Corte que não para de expandir os direitos das empresas e de restringir os das organizações de trabalhadores; um sistema de justiça criminal que não processa banqueiros que lavam dinheiro das drogas, mas atribui penas de prisão perpétua a pequenos traficantes de crack; um banco central que tem recursos para salvar grupos financeiros, mas não para salvar os cidadãos que eles exploram; um Pentágono que pode travar guerras de trilhões de dólares que exacerbam os problemas que deveriam resolver – e ainda é recompensado %u20B%u20Bcom um aumento de orçamento – quando o Departamento de Habitação pede aos trabalhadores pobres que paguem um aluguel maior por moradias piores; e, fervilhando por baixo de todas essas falhas e disparidades na distribuição da tão vasta riqueza privada, os super-ricos da nação têm hoje 15 anos de expectativa de vida a mais do que os pobres.
Os social-democratas veem nessas condições sinistras um caso clássico de capitalismo maligno. Democracias não podem sobreviver só de normas. Quando os mercados não são regulados – e quando os trabalhadores estão desorganizados – o setor corporativo, como um tumor cancerígeno, se expande até dominar a política e a sociedade civil. Uma parcela cada vez maior de ganhos econômicos se concentra em cada vez menos mãos, enquanto diminuem as barreiras para que a riqueza privada se converta em poder público. Os políticos não mais obedecem às preferências e necessidades populares. Os eleitores perdem a fé nas eleições – e então, surge um homem forte pronto a dizer que ele, sozinho, pode consertar o país.
Tudo isso contraindica a prescrição do movimento democrático: se a verdadeira doença da nossa república é o seu sistema econômico desigual, a doença não será curada por coalizões pluriideológicas. Muito pelo contrário: é necessário um movimento que mobilize os trabalhadores em número suficiente para que sejam capazes de exigir um novo acordo do capital. Assim, se a intelligentsia liberal deseja salvar a democracia americana, deve dedicar a maior parte de suas energias para conceber como esse movimento pode ser criado – e que mudanças o movimento deve operar na economia política da nação, uma vez que assuma o poder.
Por que esse debate importa
É importante não exagerar a divisão entre liberais "normcore" e esquerdistas "radicais". Jedediah Purdy, o professor de direito da Duke University que escreveu uma crítica muito discutida sobre os primeiros, condenou as mentiras (que desafiam normas) de Trump sobre a fraude eleitoral, que chamou de terrível ameaça à "autonomia" nos Estados Unidos. Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, cujo livro How Democracies Die [Como morrem as democracias] é a bíblia do centro “normie” (normal), argumentam que “tratar a desigualdade econômica” pode ajudar a vacinar os EUA contra futuros demagogos populistas. Ambos os lados reconhecem que tanto a tendência do nosso sistema econômico de concentrar riqueza no topo quanto o ataque de Trump às normas democráticas são problemas sérios; eles apenas discordam sobre qual dos problemas é a ameaça mais fundamental à democracia americana hoje.
Mas há riscos reais nessa disputa. Além das implicações acima mencionadas, sobre como a oposição anti-Trump deve se organizar, pode haver conflito entre o objetivo de preservar as normas e o de redistribuir o poder econômico.
Digamos que Chuck Schumer se torne líder da maioria no Senado no ano que vem. Se a restauração das normas for o objetivo primordial, ele terá que implorar a sua bancada para confirmar o nome de quaisquer candidatos judiciais convencionalmente qualificados apresentados pelo presidente; mas se a prioridade for o combate ao poder corporativo descontrolado, ele precisará matar essas indicações, para manter as vagas abertas para futuros juízes pró-trabalhadores. Da mesma forma, se os democratas conseguirem o controle total em 2020 (ou 2024, ou 2028), o fim da obstrução será, quase certamente, um pré-requisito para qualquer grande reforma redistributiva. E se Trump for capaz de nomear vários juízes da Suprema Corte – dando início a uma “era neo-Lochner”, com uma maioria de extrema-direita do tribunal vetando sistematicamente a legislação progressista (como aconteceu na votação do Affordable Care Act), será então imprescindível para os progressistas saber se a ameaça mais fundamental à democracia é a erosão das normas ou a desigualdade econômica.
Onde a esquerda acerta
Em sua crítica aos principais pensadores do movimento pela democracia, Jedediah Purdy argumenta que suas várias análises da crise política americana compartilham um defeito fundamental: nenhum deles questiona se a versão do capitalismo que emergiu nos Estados Unidos na esteira da crise da estagflação do fim dos anos 1970 – um capitalismo caracterizado, entre outras coisas, por sindicatos fracos, concentração empresarial, baixo crescimento e alta desigualdade – é “compatível com a democracia”.
Purdy sugere que não é. E ele está certo.
Existem dois argumentos diferentes para essa posição. Primeiro, há a hipótese de que os fracassos do capitalismo sejam, em grande parte, responsáveis %u20B%u20Bpela crescente popularidade do populismo iliberal em todo o Ocidente e, portanto, reformar nosso sistema econômico é a melhor maneira de proteger as normas democráticas fundamentais de futuros ataques.
Muitos se opõem a esse argumento apontando para as evidências abundantes de que o apoio a Trump teve raízes em uma reação racial e cultural, não em "ansiedade econômica". E é difícil acreditar que os níveis relativamente altos de imigração dos EUA – e a erosão das hierarquias raciais e de gênero – não gerassem certa reação, mesmo na melhor das circunstâncias econômicas. Mas essa objeção não é decisiva. Por um lado, há evidências científicas tanto histórica quanto social de que, em tempos de incerteza econômica, as pessoas ficam mais inclinadas para os tipos de ressentimentos culturais que Trump explorou e cultivou. Quando os seres humanos sentem que a base de sua autoestima e status social está ameaçada – como é frequentemente o caso de trabalhadores em regiões em processo de desindustrialização – eles tendem a se tornar cada vez mais desconfiados da diversidade, mais abertos a ideias extremistas e mais defensivos do status dos grupos de identidade social a que pertencem.
De maneira mais crítica, a afirmação de que a crise atual tem raízes econômicas não repousa na psicanálise do proletariado Trumpiano. Nas quatro décadas desde a crise da estagflação – que marcou uma curva acentuada para a direita na política e na economia das democracias ocidentais – a participação dos trabalhadores americanos nos ganhos de produtividade desabou; a taxa de sindicalização no setor privado do país despencou; a disparidade entre a riqueza de famílias ricas e pobres explodiu; e a classe média tornou-se dependente de crescente endividamento para financiar suas casas, automóveis e a educação dos filhos.
E nesse mesmo período, a confiança social, o engajamento cívico, a participação eleitoral e a confiança nas instituições públicas diminuíram significativamente nos EUA. Há motivos para ver esses últimos indicadores como desdobramentos dos anteriores: nos anos que antecederam a eleição de Trump, as pesquisas de opinião repetidamente apontaram larga maioria da população americana dizendo que a economia da nação era "manipulada" contra eles. Em novembro de 2015, uma pesquisa do Public Religion Research Institute (PRRI) mostrou que 64% dos americanos concordavam com a afirmação: meu “voto não faz diferença diante da influência dos indivíduos ricos e das grandes empresas no processo eleitoral”. Um ano depois, 75% dos eleitores que votaram antecipadamente nas eleições de 2016 disseram à Reuters/Ipsos que buscavam um "líder forte que possa tirar o país das mãos dos ricos e poderosos".
O que quer que dissesse o coração dos eleitores marginais de Trump, um país onde a maioria dos cidadãos acredita que as eleições não importam, porque os poderosos controlam a política, está pronto para o populismo autoritário.
E os EUA não são a única nação a ver um aumento na desigualdade – e na desconfiança em relação à democracia – desde o fim dos anos 1970. É uma tendência comum à maior parte da Europa Ocidental, onde também coincide com o crescente apoio a partidos políticos iliberais e extremistas. Como Caleb Crain observa no The New Yorker, o período de alto crescimento e distribuição relativamente equitativa dos ganhos de produtividade que prevaleceu no pós-guerra fomentou um clima político visivelmente diferente: nas três décadas após a Segunda Guerra Mundial, nenhum político populista (definido como “antielite, autoritário e nativista”) chegou ao poder em qualquer nação ocidental avançada, enquanto uma “parcela de votos muito menor do que antes ou depois ia para partidos extremistas”.
Há evidências consideráveis, então, de que uma distribuição mais equitativa do poder econômico reduziria o apoio popular a políticos e partidos extremistas nos EUA. É lamentável que a América tenha elegido um demagogo iliberal em 2016 – mas muito bom que ele seja especialmente impopular, incompetente e preguiçoso; se não tomarmos medidas para melhorar as condições que levaram à sua eleição, podemos ter menos sorte na próxima vez.
O segundo (e, a meu ver, o mais consistente) argumento da acusação de Purdy sobre o capitalismo contemporâneo não se apoia em afirmações especulativas sobre o futuro de nossa democracia, mas em uma avaliação crítica de seu passado. Simplificando: tornar a América “já grande” de novo não basta para tornar a nação verdadeiramente democrática. Mesmo que o capitalismo americano não representasse uma ameaça à sobrevivência da atual ordem política, continuaria sendo um obstáculo intransponível para que milhões e milhões de cidadãos dos EUA tenham assegurado o direito de realmente participar de seu próprio governo.
Nos Estados Unidos do presidente Obama, empresas e indivíduos ricos investiram quantias recordes de dinheiro para influenciar a política americana; as preferências políticas da elite econômica se sobrepuseram com frequência às dos cidadãos americanos comuns; quase seis milhões de cidadãos dos EUA perderam o direito de votar por terem cometido crime federal; e a taxa de participação eleitoral do país (sempre aberrantemente baixa) atingiu o nível mais baixo dos últimos 70 anos nas eleições de meio de mandato de 2014.
Nem todos estes obstáculos à soberania popular têm raízes apenas na economia. Mas os mais alarmantes %u20B%u20Be consequentes têm.
Não é preciso acreditar que o capitalismo, como tal, é incompatível com a democracia para aceitar que certo princípio de igualdade econômica é pré-requisito para a última. Na realidade, é improvável que qualquer defensor genuíno da democracia acredite que não exista tal princípio.
Imagine um EUA em que 99,9% dos cidadãos tivessem que trabalhar 70 horas por semana apenas para manter suas famílias abrigadas e alimentadas (e ainda assim, com dificuldade). Imagine que esses cidadãos raramente soubessem exatamente quais seriam seus horários de trabalho e, portanto, tivessem que renegociar constantemente os arranjos de cuidados com os filhos – e tudo isso representassem uma enorme pressão sobre sua saúde mental e suas relações pessoais, deixando-os sem tempo e energia necessários para acompanhar as notícias, ou participar de organizações comunitárias ou de reuniões da prefeitura, ou para votar no meio de uma terça-feira.
Você diria que o sistema econômico de tal nação é compatível com a democracia?
Se não, então como um sistema que condena uma porcentagem menor – mas ainda substancial – da população a essas condições é compatível com a democracia?
Por que o movimento pela democracia não pode ser não ideológico
Mas é possível aceitar todas as alegações da esquerda sobre a incompatibilidade do capitalismo contemporâneo com a democracia e ainda ver o ataque de Trump às normas democráticas como a ameaça mais urgente à nossa república. Afinal, algumas normas são realmente mais fundamentais para a democracia liberal do que qualquer política dos sonhos de um social-democrata: proibir autoridades eleitas de contestar resultados eleitorais, de encorajar a violência política ou de usar as forças policiais contra opositores é mais indispensável à democracia do que a reforma trabalhista ou a assistência médica universal (sem tais proibições, as forças reacionárias terão pouca dificuldade em reverter essas reformas de esquerda, de qualquer forma).
Mas a conclusão não é que os defensores da democracia devam concentrar suas energias na defesa das proibições, em vez de se organizar para garantir as reformas de esquerda. A prescrição do movimento pela democracia pode ser apropriada para um momento de crise democrática aguda. O dia em que o presidente transformar o Ritz-Carlton D.C. em uma prisão provisória para os intelectuais do #Resistance e do NeverTrump; ou anunciar o adiamento das eleições de meio de mandato; ou detiver indefinidamente Robert Mueller como suspeito de terrorismo será um dia para grandes coalizões em defesa de nossa ordem constitucional. Fora de tal contexto, no entanto, é difícil imaginar – meramente como questão prática – como um movimento de massas pode ser mobilizado em defesa de algo abstrato como normas processuais. De modo geral, os americanos comuns estão mais preocupados em fazer suas contas caberem em seus salários do que em forçar Mitch McConnell a permitir uma votação de legislação para proteger a independência do conselho especial.
Essa realidade se reflete na estratégia do Partido Democrata para a eleição da metade do mandato presidencial. Candidatos democratas à eleição ao Congresso em distritos disputados falam muito mais sobre o ataque do Partido Republicano ao Medicaid do que dos ataques de Donald Trump contra Robert Mueller. O Comitê de Campanha Congressional Democrata não é uma vanguarda socialista; não está instruindo seus candidatos a concentrar munição contra a injustiça econômica – em vez de violações de normas – porque deseja lançar as bases para um movimento que desafie o capitalismo. Está fazendo isso porque quer que os democratas controlem a Câmara. Assim, se o objetivo primordial for salvaguardar nossa ordem constitucional contra Trump no curto prazo – ou tornar nosso sistema econômico mais compatível com a democracia no longo prazo – a estratégia de organização da esquerda continua mais viável: um movimento de oposição centrado em um apelo por mudanças econômicas progressistas é mais provável de entusiasmar do que um baseado em um compromisso não ideológico com normas processuais.
Isso resolve uma disputa entre o centro “normcore” e a esquerda “radical”. Mas não resolve seu ponto de discórdia mais profundo: o que fazer quando uma norma democrática genuinamente importante se torna um obstáculo intransponível para uma reforma econômica progressista.
O difícil caso do "cenário neo-Lochner"
Esta não é uma hipótese selvagem, mas uma circunstância encontrada na última vez em que os fracassos do nosso sistema econômico provocaram dúvidas generalizadas sobre a sustentabilidade da democracia liberal.
Franklin Roosevelt assumiu a presidência em um momento de depressão econômica sem precedentes, quando a aparente impotência das democracias liberais em restaurar a prosperidade impulsionava movimentos políticos fascistas (e populistas iliberais) – muitas vezes ao poder absoluto. Na opinião de muitos observadores contemporâneos, mudanças radicais na estrutura da economia política dos Estados Unidos não foram apenas necessárias para melhorar o bem-estar social e aumentar a participação democrática, mas para evitar cair em um governo autoritário.
Roosevelt deu início às reformas – algumas delas vitais e libertadoras, outras mal imprudentes e contraproducentes. Mas o simples fato de as instituições políticas americanas organizarem uma resposta tão inédita e abrangente quanto a própria crise ajudou a restaurar um grau de confiança na viabilidade do modelo democrático liberal. Em 1936, os eleitores americanos recompensaram Roosevelt com a maior votação popular que qualquer candidato presidencial havia recebido em mais de um século.
Mas a Suprema Corte não ficou tão impressionada com o desempenho de FDR. Em 1935 e 1936, o tribunal derrubou leis devidamente promulgadas com uma frequência sem paralelo em sua história. Num tempo em que a sobrevivência de nossa democracia parecia exigir a construção de uma nova ordem econômica, um establishment conservador desacreditado e derrotado usava seu poder residual no Judiciário para impedir mudanças progressistas. O presidente decidiu que tempos atípicos pediam medidas atípicas.
Em seu livro, Levitsky e Ziblatt classificam o esquema de “court-packing” de Roosevelt (o presidente tentou aumentar o número de juízes na Suprema Corte para alterar a correlação de forças, mas foi derrotado) como um perigoso ataque à norma vital de um judiciário apolítico – e apresentam a oposição bipartidária ao plano de Roosevelt como uma afirmação dos ideais democráticos liberais de nossa nação. A norma que Roosevelt tentou violar é uma importante salvaguarda contra o colapso democrático: se um governo iliberal unificado pudesse personalizar sua Suprema Corte, esse regime poderia revogar ostensivamente os direitos civis de grupos minoritários vulneráveis %u20B%u20Be restringir o acesso ao voto para se consolidar no poder.
Mas a análise de Levitsky e Ziblatt levanta duas questões urgentes: uma nação onde cinco juízes não eleitos rotineiramente vetam leis populares devidamente promulgadas – que visam redistribuir o poder econômico em um momento de desemprego em massa e desnutrição – ainda é um regime democrático? E se for – ou seja, se a "democracia" não supuser que as pessoas comuns possam escolher como os recursos da sociedade serão distribuídos e os mercados organizados – por quanto tempo se pode razoavelmente esperar que uma população materialmente privada mantenha alguma reverência pela democracia?
Os autores fazem acenos a essas tensões, mas nunca as abordam diretamente. Levitsky e Ziblatt não explicitam por que manter uma Suprema Corte com nove membros era mais importante do que preservar o Segundo New Deal. Em vez disso, sugerem que as elites, de forma ágil, pouparam os EUA dessa escolha difícil ao colocar a preservação das normas acima da convicção ideológica:
Vale notar que a própria Suprema Corte desempenhou um papel importante na derrota do plano de Roosevelt. Em um movimento descrito como um "recuo magistral" para preservar a integridade da Suprema Corte, a Corte anteriormente anti-New Deal rapidamente voltou atrás em uma série de decisões... incluindo a Lei Nacional de Relações Trabalhistas e a legislação de Seguridade Social de Roosevelt. Com o programa New Deal em terreno constitucional mais seguro, os democratas liberais no Congresso puderam se opor mais facilmente ao plano do presidente para o tribunal.
No entanto, o que os autores celebram nesta passagem é justamente a politização do Judiciário que eles se propõem a condenar. Na verdade, se você inclinar a cabeça para a esquerda, o relato dos autores passa a parecer uma prova das virtudes de se priorizar a justiça econômica sobre a preservação de normas: um presidente “populista” organizou um ataque frontal à independência do judiciário; a Suprema Corte respondeu alterando sua jurisprudência para atender às demandas do presidente; e os EUA foram em frente para salvar o modelo democrático liberal de governo dos mais sérios desafios que já havia enfrentado.
Certamente, a causa da mudança jurisprudencial do juiz Owen Roberts é contestada; a reação política à proposta de mudanças na corte atrapalhou a aprovação de outras reformas; e, embora não houvesse como sabê-lo então, aposentadorias e reeleições acabaram permitindo que Roosevelt nomeasse um tribunal pró-New Deal pelos meios normais. Meu objetivo ao destacar as tensões na narrativa de Levitsky e Ziblatt não é dizer que a resposta correta para um cenário neo-Lochner seja óbvia. É dizer o contrário: os riscos de minar a independência judicial são consideráveis; como também são os riscos de permitir que uma Suprema Corte reacionária frustre mudanças econômicas progressistas (um futuro governo democrata pode ser poupado de uma depressão global, mas será confrontado com uma crise ecológica global que não será resolvida sem reformas redistributivas e reguladoras que não vão agradar Neil Gorsuch).
Pode haver uma argumentação convincente contra a violação de normas liberais fundamentais, mesmo em tais circunstâncias. Mas, se os pensadores de centro-esquerda quiserem lançar mão desta argumentação, terão que lidar com os insights de seus críticos radicais – e com as inúmeras maneiras pelas quais a atual ordem econômica dos EUA é incompatível com o modo como as democracias florescem.
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