Se a esquerda fala sério sobre usar o poder do Estado e transformá-lo, ela precisa ir além de uma compreensão moralista da corrupção.
Benjamin Fogel
Jacobin
Tradução / A luta contra a corrupção tornou-se um tema definidor da política contemporânea. Todo mundo, desde o Banco Mundial até Donald Trump, dizem ser necessário limpar o pântano e expulsar os malfeitores do poder. Contudo, do golpe que derrubou a ex-presidenta do Brasil, Dilma Rousseff, à campanha assassina do filipino Rodrigo Duterte contra supostos criminosos, o discurso “anti-corrupção” assumiu tonalidades nitidamente reacionárias.
Um brinquedo mostrando Lula com um macacão de prisioneiro em um protesto contra o Partido dos Trabalhadores no Rio de Janeiro, Brasil, em 2016. José Roitberg / Flickr |
Tradução / A luta contra a corrupção tornou-se um tema definidor da política contemporânea. Todo mundo, desde o Banco Mundial até Donald Trump, dizem ser necessário limpar o pântano e expulsar os malfeitores do poder. Contudo, do golpe que derrubou a ex-presidenta do Brasil, Dilma Rousseff, à campanha assassina do filipino Rodrigo Duterte contra supostos criminosos, o discurso “anti-corrupção” assumiu tonalidades nitidamente reacionárias.
A esquerda tem penado para oferecer uma resposta coerente para este problema, especialmente quando as políticas “anti-corrupção” são mobilizadas contra governos progressistas. Ela tem muitas vezes dispensado a corrupção como uma mera expressão mais aparente do capitalismo, que não precisaria ser abordada nos seus próprios termos; frequentemente tem tratado alegações de infrações como nada mais que uma campanha difamatória da direita; ou pior, tem se juntado de forma oportunista com a retórica anti-corrupção da direita.
No entanto, se a esquerda fala sério sobre empunhar e transformar o poder do Estado, ela precisa ir além de uma compreensão moralista dessa questão. Ninguém poderia argumentar razoavelmente “à favor” da corrupção. No entanto, é somente compreendendo adequadamente as fontes desse mal e as razões de sua relevância contínua que podemos abordá-lo como um problema político.
O que é corrupção?
A corrupção tende a prosperar em meio a uma cultura de impunidade e um baixo grau de desenvolvimento. Na Era moderna, os remanescentes de oligarquias pré-capitalistas que perpetuam fontes personalizadas de poder são uma importante fonte de corrupção nas relações entre Estado e Capital. Mas essa tendência é reforçada sempre que os movimentos de massa não são poderosos o suficiente para forçar as elites a ter de responder e prestar contas à sociedade. Precisamente por essa razão, a corrupção não é o destino inevitável de nações empobrecidas ou pecadoras, mas um produto de forças históricas e de lutas de classes específicas.
De fato, a própria noção de corrupção tem mudado ao longo do tempo. Essa categoria tem sido central para o pensamento e a prática política há milênios, ocupando um lugar central em obras desde os Discursos Sobre a Primeira Década de Tito Lívio, de Nicolau Maquiavel, até As Paixões e os Interesses, de Alfred Hirschman. A teoria política clássica enxergava a corrupção como um processo predeterminado que faz com que as instituições se degenerem, a menos que algo intervenha para promover a sua renovação. Na tradição filosófica republicana, a corrupção enfraqueceria a saúde moral da sociedade como um todo; a luta contra ela exigiria, assim, um retorno à “virtude cívica” através de um projeto político comum.
Isso diverge da definição de corrupção usada atualmente na política anticorrupção promovida por instituições internacionais como o Banco Mundial, que a define como “comportamento (s) que quebra(m) as regras que regem os agentes públicos no que diz respeito à busca de interesses privados, tais como riqueza, poder ou status.” Curiosamente, esta definição negligencia os atores não-estatais que geralmente estão envolvidos em tais trocas corruptas – o empresário corrupto tentando influenciar um formulador de políticas públicas através de suborno é deixado de lado, pois ele é reduzido a um papel meramente passivo. Mas essa mudança nas definições de corrupção reflete um movimento mais amplo na compreensão da política, deixando para trás uma visão dela como uma esfera de paixões e de virtude cívica por outra que a vê como não mais do que um terreno de interesses concorrentes.
Na verdade, a corrupção é mais do que simplesmente um conjunto de trocas ilícitas. Mais do que isso, é uma estratégia política que interesses específicos utilizam para capturar ou influenciar instituições ou o Estado. É, em essência, a privatização da vida pública.
Para constatar isso, precisamos apenas dar uma olhada no exemplo recente dos Guptas, um clã indiano de negócios que conseguiu capturar o Estado sul-africano. Com a ajuda do ex-presidente Jacob Zuma (que eles haviam comprado), os Guptas puderam dirigir as nomeações do governo, a estratégia de licitações e os orçamentos do Estado para canalizar fundos públicos para seus cofres privados.
De fato, os atores privados não são apenas agentes passivos que sofrem com a corrupção – eles a geram ativamente. Isso varia desde empresários subornando políticos para votar pela desregulamentação de um setor até atividades possivelmente não-ilegais, como a “porta giratória” entre o setor privado e a política. Atores privados podem corromper as instituições ao longo do tempo, até o ponto em que códigos e práticas não-escritas incentivem os funcionários públicos a se engajarem em trocas corruptas (ou a fecharem os olhos para elas). Quando esse se torna o funcionamento normal de uma instituição, podemos dizer que ela foi corrompida.
Ao mesmo tempo, práticas mencionadas por seus oponentes na linguagem da “corrupção” às vezes podem desempenhar um papel redistributivo – por exemplo, quando o patrocínio é trocado por votos na forma de infraestrutura, de gastos do Estado ou moradia pública. Isto está resumido na famosa expressão “rouba mas faz”. Se alguém se vê forçado a escolher entre um político neoliberal que pode não ser corrupto, mas que vai cortar gastos sociais, ou um demagogo corrupto que garante que sua comunidade receba algo de volta, podemos realmente dizer que o primeiro é melhor?
Corrupção e desenvolvimento
Isso, no entanto, carrega perigos próprios. A corrupção sistêmica faz mais do que apenas afetar o funcionamento de instituições: Ela desencadeia um ciclo de expectativas decrescentes, produzindo apatia e desmoralização política. Se os indivíduos vêem um partido ou um movimento político como “corrupto” e, portanto, incapaz de efetuar uma mudança significativa, esse cinismo os levará muitas vezes a se voltar para seus próprios interesses privados ou, no máximo, a ver a política em termos puramente transacionais. Se a mudança política for impossível, fazer o quê senão cuidar da sua família e do seu próprio bem-estar pessoal?
Esse cinismo é tóxico. E a corrupção sistêmica, em qualquer caso, tornará mais fácil para um funcionário público justificar as trocas corruptas como se elas próprias fossem parte da política normal; subornos são transformados em “presentes” e “favores” e transações ilícitas se tornam expressões de “amizade” e “solidariedade” ao invés de auto-interesse.
Esse ciclo vicioso é tal que hoje o Banco Mundial denuncia a corrupção como o maior obstáculo ao desenvolvimento global. Como resultado, políticas anticorrupção tornaram-se uma característica padrão dos projetos de desenvolvimento no pós-Guerra Fria, institucionalizados como uma característica da ordem mundial neoliberal. No entanto, na verdade, a corrupção nem sempre foi vista como um impedimento ao desenvolvimento. De fato, a mudança da visão da corrupção de uma questão doméstica para uma preocupação internacional é um aspecto particular da era pós-Guerra Fria.
Durante o auge da teoria da modernização nas décadas de 1950 e 1960, os principais teóricos do desenvolvimento, como Samuel Huntington, argumentavam sobre como na verdade a corrupção propiciaria o desenvolvimento, pois ela poderia reduzir a burocracia e permitir que os mercados operassem com mais suavidade – facilitando o ambiente para as corporações multinacionais fazer negócios. A corrupção não ficava de fora do processo de modernização; antes, era vista como seu produto inevitável.
Conforme grande parte do Terceiro Mundo entrava na crise da dívida dos anos 80 e 90, em grande parte como consequência de terem sido obrigados a seguir as políticas neoliberais estabelecidas pelo Banco Mundial e pelo Fundo Monetário Internacional como condição para ter acesso a empréstimos, o Ocidente passa a invocar a “corrupção” para se livrar da culpa pela miséria, pobreza e sofrimento que infligiu por todo o mundo. Neste retrato, o fracasso das nações empobrecidas em se modernizar não seria culpa dos especialistas tecnocratas que introduziram políticas de ajuste estrutural, mas sim da corrupção endêmica própria desses países, que seriam atrasados demais para aderir aos padrões internacionais.
As falhas do socialismo do Bloco da Europa Oriental e da social-democracia (tanto as falhas verdadeiras quanto aquelas declaradas por seus inimigos) também têm sido explicadas em termos de corrupção. Nos anos 90, conforme os ideólogos liberais se apressavam em proclamar que o socialismo havia se provado inviável, eles insistiam em que todos os projetos coletivistas estariam fadados ao fracasso por causa da ganância individual e da busca racional do interesse próprio, que inevitavelmente corromperiam esses sistemas. Nesse argumento, essas energias só poderiam ser controladas e colocadas para funcionar através do livre-mercado.
Após o colapso da União Soviética, a corrupção passou a ser vista como o obstáculo essencial ao desenvolvimento do Terceiro Mundo. Por volta de 1993, a anticorrupção havia sido adotada como um componente-chave da política de desenvolvimento internacional pelo Banco Mundial, pelo FMI e pelas Nações Unidas. A política anticorrupção tornou-se centrada em algo chamado de “transparência” – ou seja, a adesão aos padrões que atendam aos interesses do capital internacional. O nível de facilidade com que as corporações transnacionais e o capital financeiro movimentam dinheiro livremente e fazem negócios tornaram-se as pedras angulares da política de fiscalização da corrupção. De fato, isso tem significado pouco mais do que uma luta para aumentar a autonomia das burocracias locais em relação às suas populações, as isolando da influência “corrupta” da política de massas e, ao invés, as tornando mais dependentes das instituições internacionais que as vigiam.
Tecnocratas e populistas
As políticas que se afirmam “contra a corrupção” podem ser divididas amplamente em dois tipos principais, dependendo se elas são predominantemente tecnocratas ou populistas. As primeiras são um elemento da ordem econômica e política internacional promovida por instituições multilaterais como o Banco Mundial e o FMI, ou ONGs com muito dinheiro, como a Transparência Internacional. O populismo anticorrupção é uma forma de política baseada na promoção da salvação nacional da praga da corrupção através de uma figura messiânica localizada fora do sistema, que “limpará a política”.
A política anticorrupção tecnocrata visa transferir o poder do eleitorado para “elites responsáveis”; ela estabelece padrões internacionais sobre o que deve ser considerado corrupção, muitas vezes em consonância com a abertura dos países ao capital internacional. Intervenção estatal na economia, reformas redistributivas e Estados de Bem-Estar Social são retratados como sendo ou vulneráveis a serem capturados por interesses corruptos ou às vezes como sendo eles mesmos formas de corrupção (particularmente para os “libertários” de direita, que consideram todos os impostos como roubo). Aqui, precisamos apenas pensar nas condenações rituais de “burocracias inchadas”.
Já a política anticorrupção populista surge em resposta a sistemas políticos percebidos de maneira ampla como presos no lamaçal da corrupção, que mancha todos os políticos e partidos políticos, independente de sua ideologia. Surge um outsider carismático, que não carrega a mancha do establishment, prometendo varrer o sistema e purificar a elite corrupta que domina o país, já que ele – invariavelmente ele – oferece uma política messiânica de redenção.
No entanto, se a esquerda fala sério sobre empunhar e transformar o poder do Estado, ela precisa ir além de uma compreensão moralista dessa questão. Ninguém poderia argumentar razoavelmente “à favor” da corrupção. No entanto, é somente compreendendo adequadamente as fontes desse mal e as razões de sua relevância contínua que podemos abordá-lo como um problema político.
O que é corrupção?
A corrupção tende a prosperar em meio a uma cultura de impunidade e um baixo grau de desenvolvimento. Na Era moderna, os remanescentes de oligarquias pré-capitalistas que perpetuam fontes personalizadas de poder são uma importante fonte de corrupção nas relações entre Estado e Capital. Mas essa tendência é reforçada sempre que os movimentos de massa não são poderosos o suficiente para forçar as elites a ter de responder e prestar contas à sociedade. Precisamente por essa razão, a corrupção não é o destino inevitável de nações empobrecidas ou pecadoras, mas um produto de forças históricas e de lutas de classes específicas.
De fato, a própria noção de corrupção tem mudado ao longo do tempo. Essa categoria tem sido central para o pensamento e a prática política há milênios, ocupando um lugar central em obras desde os Discursos Sobre a Primeira Década de Tito Lívio, de Nicolau Maquiavel, até As Paixões e os Interesses, de Alfred Hirschman. A teoria política clássica enxergava a corrupção como um processo predeterminado que faz com que as instituições se degenerem, a menos que algo intervenha para promover a sua renovação. Na tradição filosófica republicana, a corrupção enfraqueceria a saúde moral da sociedade como um todo; a luta contra ela exigiria, assim, um retorno à “virtude cívica” através de um projeto político comum.
Isso diverge da definição de corrupção usada atualmente na política anticorrupção promovida por instituições internacionais como o Banco Mundial, que a define como “comportamento (s) que quebra(m) as regras que regem os agentes públicos no que diz respeito à busca de interesses privados, tais como riqueza, poder ou status.” Curiosamente, esta definição negligencia os atores não-estatais que geralmente estão envolvidos em tais trocas corruptas – o empresário corrupto tentando influenciar um formulador de políticas públicas através de suborno é deixado de lado, pois ele é reduzido a um papel meramente passivo. Mas essa mudança nas definições de corrupção reflete um movimento mais amplo na compreensão da política, deixando para trás uma visão dela como uma esfera de paixões e de virtude cívica por outra que a vê como não mais do que um terreno de interesses concorrentes.
Na verdade, a corrupção é mais do que simplesmente um conjunto de trocas ilícitas. Mais do que isso, é uma estratégia política que interesses específicos utilizam para capturar ou influenciar instituições ou o Estado. É, em essência, a privatização da vida pública.
Para constatar isso, precisamos apenas dar uma olhada no exemplo recente dos Guptas, um clã indiano de negócios que conseguiu capturar o Estado sul-africano. Com a ajuda do ex-presidente Jacob Zuma (que eles haviam comprado), os Guptas puderam dirigir as nomeações do governo, a estratégia de licitações e os orçamentos do Estado para canalizar fundos públicos para seus cofres privados.
De fato, os atores privados não são apenas agentes passivos que sofrem com a corrupção – eles a geram ativamente. Isso varia desde empresários subornando políticos para votar pela desregulamentação de um setor até atividades possivelmente não-ilegais, como a “porta giratória” entre o setor privado e a política. Atores privados podem corromper as instituições ao longo do tempo, até o ponto em que códigos e práticas não-escritas incentivem os funcionários públicos a se engajarem em trocas corruptas (ou a fecharem os olhos para elas). Quando esse se torna o funcionamento normal de uma instituição, podemos dizer que ela foi corrompida.
Ao mesmo tempo, práticas mencionadas por seus oponentes na linguagem da “corrupção” às vezes podem desempenhar um papel redistributivo – por exemplo, quando o patrocínio é trocado por votos na forma de infraestrutura, de gastos do Estado ou moradia pública. Isto está resumido na famosa expressão “rouba mas faz”. Se alguém se vê forçado a escolher entre um político neoliberal que pode não ser corrupto, mas que vai cortar gastos sociais, ou um demagogo corrupto que garante que sua comunidade receba algo de volta, podemos realmente dizer que o primeiro é melhor?
Corrupção e desenvolvimento
Isso, no entanto, carrega perigos próprios. A corrupção sistêmica faz mais do que apenas afetar o funcionamento de instituições: Ela desencadeia um ciclo de expectativas decrescentes, produzindo apatia e desmoralização política. Se os indivíduos vêem um partido ou um movimento político como “corrupto” e, portanto, incapaz de efetuar uma mudança significativa, esse cinismo os levará muitas vezes a se voltar para seus próprios interesses privados ou, no máximo, a ver a política em termos puramente transacionais. Se a mudança política for impossível, fazer o quê senão cuidar da sua família e do seu próprio bem-estar pessoal?
Esse cinismo é tóxico. E a corrupção sistêmica, em qualquer caso, tornará mais fácil para um funcionário público justificar as trocas corruptas como se elas próprias fossem parte da política normal; subornos são transformados em “presentes” e “favores” e transações ilícitas se tornam expressões de “amizade” e “solidariedade” ao invés de auto-interesse.
Esse ciclo vicioso é tal que hoje o Banco Mundial denuncia a corrupção como o maior obstáculo ao desenvolvimento global. Como resultado, políticas anticorrupção tornaram-se uma característica padrão dos projetos de desenvolvimento no pós-Guerra Fria, institucionalizados como uma característica da ordem mundial neoliberal. No entanto, na verdade, a corrupção nem sempre foi vista como um impedimento ao desenvolvimento. De fato, a mudança da visão da corrupção de uma questão doméstica para uma preocupação internacional é um aspecto particular da era pós-Guerra Fria.
Durante o auge da teoria da modernização nas décadas de 1950 e 1960, os principais teóricos do desenvolvimento, como Samuel Huntington, argumentavam sobre como na verdade a corrupção propiciaria o desenvolvimento, pois ela poderia reduzir a burocracia e permitir que os mercados operassem com mais suavidade – facilitando o ambiente para as corporações multinacionais fazer negócios. A corrupção não ficava de fora do processo de modernização; antes, era vista como seu produto inevitável.
Conforme grande parte do Terceiro Mundo entrava na crise da dívida dos anos 80 e 90, em grande parte como consequência de terem sido obrigados a seguir as políticas neoliberais estabelecidas pelo Banco Mundial e pelo Fundo Monetário Internacional como condição para ter acesso a empréstimos, o Ocidente passa a invocar a “corrupção” para se livrar da culpa pela miséria, pobreza e sofrimento que infligiu por todo o mundo. Neste retrato, o fracasso das nações empobrecidas em se modernizar não seria culpa dos especialistas tecnocratas que introduziram políticas de ajuste estrutural, mas sim da corrupção endêmica própria desses países, que seriam atrasados demais para aderir aos padrões internacionais.
As falhas do socialismo do Bloco da Europa Oriental e da social-democracia (tanto as falhas verdadeiras quanto aquelas declaradas por seus inimigos) também têm sido explicadas em termos de corrupção. Nos anos 90, conforme os ideólogos liberais se apressavam em proclamar que o socialismo havia se provado inviável, eles insistiam em que todos os projetos coletivistas estariam fadados ao fracasso por causa da ganância individual e da busca racional do interesse próprio, que inevitavelmente corromperiam esses sistemas. Nesse argumento, essas energias só poderiam ser controladas e colocadas para funcionar através do livre-mercado.
Após o colapso da União Soviética, a corrupção passou a ser vista como o obstáculo essencial ao desenvolvimento do Terceiro Mundo. Por volta de 1993, a anticorrupção havia sido adotada como um componente-chave da política de desenvolvimento internacional pelo Banco Mundial, pelo FMI e pelas Nações Unidas. A política anticorrupção tornou-se centrada em algo chamado de “transparência” – ou seja, a adesão aos padrões que atendam aos interesses do capital internacional. O nível de facilidade com que as corporações transnacionais e o capital financeiro movimentam dinheiro livremente e fazem negócios tornaram-se as pedras angulares da política de fiscalização da corrupção. De fato, isso tem significado pouco mais do que uma luta para aumentar a autonomia das burocracias locais em relação às suas populações, as isolando da influência “corrupta” da política de massas e, ao invés, as tornando mais dependentes das instituições internacionais que as vigiam.
Tecnocratas e populistas
As políticas que se afirmam “contra a corrupção” podem ser divididas amplamente em dois tipos principais, dependendo se elas são predominantemente tecnocratas ou populistas. As primeiras são um elemento da ordem econômica e política internacional promovida por instituições multilaterais como o Banco Mundial e o FMI, ou ONGs com muito dinheiro, como a Transparência Internacional. O populismo anticorrupção é uma forma de política baseada na promoção da salvação nacional da praga da corrupção através de uma figura messiânica localizada fora do sistema, que “limpará a política”.
A política anticorrupção tecnocrata visa transferir o poder do eleitorado para “elites responsáveis”; ela estabelece padrões internacionais sobre o que deve ser considerado corrupção, muitas vezes em consonância com a abertura dos países ao capital internacional. Intervenção estatal na economia, reformas redistributivas e Estados de Bem-Estar Social são retratados como sendo ou vulneráveis a serem capturados por interesses corruptos ou às vezes como sendo eles mesmos formas de corrupção (particularmente para os “libertários” de direita, que consideram todos os impostos como roubo). Aqui, precisamos apenas pensar nas condenações rituais de “burocracias inchadas”.
Já a política anticorrupção populista surge em resposta a sistemas políticos percebidos de maneira ampla como presos no lamaçal da corrupção, que mancha todos os políticos e partidos políticos, independente de sua ideologia. Surge um outsider carismático, que não carrega a mancha do establishment, prometendo varrer o sistema e purificar a elite corrupta que domina o país, já que ele – invariavelmente ele – oferece uma política messiânica de redenção.
A anticorrupção desempenha um papel central na antipolítica: o sentimento de que a política não é mais um veículo para mudanças significativas. Qualquer tentativa de realizar mudanças através da Política inevitavelmente será vitimada pela corrupção; todo o sistema é corrupto e somente alguém ou algo de fora do sistema será capaz de exercer mudanças significativas. Somente um partido, um líder ou um movimento de fora do sistema – ou seja, de fora da “política” – será capaz de realizar mudanças, alguém como um oficial militar ou um empresário de sucesso. A rejeição generalizada da Política ou do sistema não abre o caminho para uma tomada do poder ao estilo bolchevique pelos socialistas revolucionários; em vez disso, leva ao surgimento de outsiders políticos carismáticos e autoritários que prometem acabar com a corrupção, como Rodrigo Duterte, nas Filipinas, ou Jair Bolsonaro, no Brasil.
A anticorrupção populista, embora não seja necessariamente sempre de tendência conservadora, tende a favorecer as forças reacionárias. Isto é especialmente verdadeiro no contexto contemporâneo de uma perda generalizada de legitimidade para os partidos de centro-esquerda ou social-democratas. O populismo anticorrupção de direita, como a Frente Nacional na França ou a Liga Norte na Itália, preencheu o vazio deixado pelo colapso da centro-esquerda.
O populismo anticorrupção é uma forma de moralismo encoberto pelo véu da antipolítica; a solução seria apenas chutar os bandidos para fora do governo. A corrupção tende a ser individualizada e personificada na figura de algum político de uma elite distante ou de centro-esquerda, que se torna o símbolo de tudo o que é corrupto e errado. Isso funciona especialmente bem quando é plausível (como no caso de Hillary Clinton), mas também pode funcionar em termos do ódio de classe, sexismo, racismo e sentimento anti-pobre, como no caso de Dilma Rousseff. A anticorrupção individualiza a Política, ao mesmo tempo em que ignora os incentivos estruturais que produzem a corrupção sistêmica; ironicamente, isso fortalece líderes corruptos voltados para os seus próprios interesses, como Donald Trump ou Silvio Berlusconi.
Políticas anticorrupção populistas e tecnocratas compartilham impulsos antidemocráticos semelhantes. O populismo anticorrupção tende a desconsiderar os sistemas políticos democráticos como corruptos, retratando direitos ou o devido processo legal como coisas que apenas atrapalhariam o combate à corrupção. “É só atirar nos filhos-da-mãe”, “basta prender todos eles” e outras bravatas do tipo são características comuns dessa retórica. A política anticorrupção tecnocrata vê a mobilização popular e o debate ideológico sobre políticas públicas como ilegítimos e, portanto, como uma influência corruptora.
Às vezes, formas populistas e tecnocratas de política anticorrupção podem até se fundir. O exemplo mais ilustrativo desse fenômeno é o Movimento Cinco Estrelas da Itália, que defende uma forma antipolítica de populismo em que o poder deve ser tirado de uma classe política corrupta e colocado nas mãos de especialistas, controlados por uma audiência online de ativistas. Na prática, esse utopismo tecnológico substitui a mobilização de massa, o debate público e outras formas de vida política inclusiva por pesquisas online incessantes. De fato, dado o vácuo de organização e de debate político verdadeiros, a massa online atomizada invariavelmente vai apenas carimbar as políticas decididas pelos líderes do Movimento como se fossem “a vontade do povo”.
Esse movimento de fato combina as formas tecnocrática e populista de política anticorrupção. Mesmo além dos impulsos antidemocráticos que unem essas duas abordagens, também descobrimos que eles compartilham um mesmo núcleo milenarista no qual a força redentora da tecnologia ou da liderança poderia eliminar a mancha da corrupção e redimir o país em questão.
Ironicamente, ao remover a Política dos freios e contrapesos da responsabilidade democrática, a política anticorrupção tecnocrata leva exatamente à desilusão com a Política que ajuda a corrupção a prosperar. Ela isola as autoridades corruptas, evitando que tenham de prestar contas às massas e deixa a política pública sobre corrupção nas mãos do setor privado, que muitas vezes não tem interesse em combatê-la. O populismo anticorrupção transforma a luta política num simples moralismo, muitas vezes deslegitimando a luta de massas como um veículo para uma mudança significativa.
Criminalizando a social-democracia
Para ilustrar mais concretamente o fracasso das políticas anticorrupção, vale a pena contemplar o exemplo específico de seus efeitos no Brasil. Aqui, protestos de massa anticorrupção contra Dilma Rousseff e seu governo do Partido dos Trabalhadores (PT) em 2015 ajudaram a introduzir um golpe suave, “parlamentar”, que fez o país retroceder décadas nos direitos sociais. Os protestos seguiram a histórica investigação de corrupção Lava-Jato, que levou à prisão do ex-presidente Lula baseada em evidências frágeis, e que virtualmente implicou toda a classe política brasileira. No entanto, seu verdadeiro alvo estava em outro lugar.
A anticorrupção populista, embora não seja necessariamente sempre de tendência conservadora, tende a favorecer as forças reacionárias. Isto é especialmente verdadeiro no contexto contemporâneo de uma perda generalizada de legitimidade para os partidos de centro-esquerda ou social-democratas. O populismo anticorrupção de direita, como a Frente Nacional na França ou a Liga Norte na Itália, preencheu o vazio deixado pelo colapso da centro-esquerda.
O populismo anticorrupção é uma forma de moralismo encoberto pelo véu da antipolítica; a solução seria apenas chutar os bandidos para fora do governo. A corrupção tende a ser individualizada e personificada na figura de algum político de uma elite distante ou de centro-esquerda, que se torna o símbolo de tudo o que é corrupto e errado. Isso funciona especialmente bem quando é plausível (como no caso de Hillary Clinton), mas também pode funcionar em termos do ódio de classe, sexismo, racismo e sentimento anti-pobre, como no caso de Dilma Rousseff. A anticorrupção individualiza a Política, ao mesmo tempo em que ignora os incentivos estruturais que produzem a corrupção sistêmica; ironicamente, isso fortalece líderes corruptos voltados para os seus próprios interesses, como Donald Trump ou Silvio Berlusconi.
Políticas anticorrupção populistas e tecnocratas compartilham impulsos antidemocráticos semelhantes. O populismo anticorrupção tende a desconsiderar os sistemas políticos democráticos como corruptos, retratando direitos ou o devido processo legal como coisas que apenas atrapalhariam o combate à corrupção. “É só atirar nos filhos-da-mãe”, “basta prender todos eles” e outras bravatas do tipo são características comuns dessa retórica. A política anticorrupção tecnocrata vê a mobilização popular e o debate ideológico sobre políticas públicas como ilegítimos e, portanto, como uma influência corruptora.
Às vezes, formas populistas e tecnocratas de política anticorrupção podem até se fundir. O exemplo mais ilustrativo desse fenômeno é o Movimento Cinco Estrelas da Itália, que defende uma forma antipolítica de populismo em que o poder deve ser tirado de uma classe política corrupta e colocado nas mãos de especialistas, controlados por uma audiência online de ativistas. Na prática, esse utopismo tecnológico substitui a mobilização de massa, o debate público e outras formas de vida política inclusiva por pesquisas online incessantes. De fato, dado o vácuo de organização e de debate político verdadeiros, a massa online atomizada invariavelmente vai apenas carimbar as políticas decididas pelos líderes do Movimento como se fossem “a vontade do povo”.
Esse movimento de fato combina as formas tecnocrática e populista de política anticorrupção. Mesmo além dos impulsos antidemocráticos que unem essas duas abordagens, também descobrimos que eles compartilham um mesmo núcleo milenarista no qual a força redentora da tecnologia ou da liderança poderia eliminar a mancha da corrupção e redimir o país em questão.
Ironicamente, ao remover a Política dos freios e contrapesos da responsabilidade democrática, a política anticorrupção tecnocrata leva exatamente à desilusão com a Política que ajuda a corrupção a prosperar. Ela isola as autoridades corruptas, evitando que tenham de prestar contas às massas e deixa a política pública sobre corrupção nas mãos do setor privado, que muitas vezes não tem interesse em combatê-la. O populismo anticorrupção transforma a luta política num simples moralismo, muitas vezes deslegitimando a luta de massas como um veículo para uma mudança significativa.
Criminalizando a social-democracia
Para ilustrar mais concretamente o fracasso das políticas anticorrupção, vale a pena contemplar o exemplo específico de seus efeitos no Brasil. Aqui, protestos de massa anticorrupção contra Dilma Rousseff e seu governo do Partido dos Trabalhadores (PT) em 2015 ajudaram a introduzir um golpe suave, “parlamentar”, que fez o país retroceder décadas nos direitos sociais. Os protestos seguiram a histórica investigação de corrupção Lava-Jato, que levou à prisão do ex-presidente Lula baseada em evidências frágeis, e que virtualmente implicou toda a classe política brasileira. No entanto, seu verdadeiro alvo estava em outro lugar.
Com o apoio da mídia corporativa, dominada pela Rede Globo, a Lava-Jato foi transformada em um evento nacional, com manchetes todos os dias focando nos processos e investigações dos principais membros do PT. O protagonista central da Lava-Jato, o juiz Sergio Moro, foi transformado numa super-estrela internacional messiânica na luta anticorrupção.
Seguindo convocações na mídia, centenas de milhares de brasileiros, em sua maioria da classe média, tomaram as ruas em protestos contra a corrupção. De maneira crucial, foi a classe média-alta que liderou esses protestos, mesmo que as manifestações incluíssem setores da classe trabalhadora e até mesmo do trabalho organizado. Os protestos foram apoiados por sombrios movimentos anticorrupção, como o Movimento Brasil Livre, financiado pelos irmãos Koch e pela teia obscura de dinheiro “libertário” e partidos internacionais de direita.
A anticorrupção tornou-se assim um grito de guerra para os inimigos do PT. Mas o mais notável é que ela foi usada como uma expressão guarda-chuva para toda a hostilidade às políticas sociais do partido. Embora não tenha rompido com o neoliberalismo, o período do PT no poder apresentou medidas sociais históricas, como o aumento do salário mínimo, de benefícios de assistência social e a introdução de cotas em universidades de elite, que permitiram a entrada de muitos alunos pobres.
Mesmo essas políticas sociais bem moderadas foram interpretadas como perturbadoras da ordem natural – uma suposta “meritocracia” – ao elevar as condições dos pobres de maneira supostamente imerecida. A mídia de direita, portanto, projetou a seguridade social como um “suborno” para os pobres e para a classe trabalhadora. As tentativas neo-desenvolvimentistas de estimular o setor industrial brasileiro (há tempos em péssimas condições), promovendo certos setores de capital – principalmente a indústria da construção e as empresas estatais – se tornaram alvos especialmente visados pelos ativistas anticorrupção. A Lava-Jato paralisou esses esforços e, com a ajuda dos partidos da oposição, impediu o PT de responder à crise econômica; ela foi usada para retratar a própria intervenção do Estado na economia como uma forma de corrupção.
O efeito foi a criminalização da social-democracia moderada e da esquerda através da retórica anticorrupção. O presidente pós-golpe, Michel Temer – que alcançou o menor índice de aprovação já registrado – e seu governo foram manchados por escândalos de corrupção. Porém, embora ele esteja fortemente envolvido na Lava-Jato, não enfrentou nenhum processo durante seu governo. Os protestos anticorrupção visavam apenas o PT, enquanto a criminalidade nua do governo Temer encontrou a indiferença das mesmas forças que exigiam a cabeça de Dilma.
Moralidade e democracia
Uma convocação para que o povo se una contra uma elite corrupta é uma característica padrão da retórica política de esquerda; por exemplo, isso desempenhou um papel fundamental na histórica vitória eleitoral de Andrés Manuel López Obrador no México. No entanto, esse tipo de política geralmente planta as sementes da sua própria queda. Um governo de centro-esquerda ou socialista que chegue ao poder sobre uma plataforma anticorrupção certamente arriscará a desmoralização e a desmobilização se ele próprio acabar sendo vítima de escândalos. Por essa razão, a esquerda precisa ir além de uma retórica anticorrupção moralista e fácil, especialmente se levamos a sério a ideia de assumir o poder.
A esquerda enfrenta o desafio específico de convencer as pessoas comuns não apenas de que a ordem existente é indesejável, mas também de que ela pode ser transformada substancialmente através da ação coletiva, numa luta que certamente exigirá sacrifícios. A direita tem um fardo muito menor a esse respeito, porque tudo o que ela precisa fazer geralmente é persuadir as pessoas a ficar em casa e perseguir seus próprios interesses privados. Tanto a corrupção quanto os movimentos anticorrupção representam um perigo significativo para a esquerda porque reorientam a Política para esse terreno, ao mesmo tempo em que alimentam um cinismo mais amplo sobre como a Política jamais poderia ser mais do que um terreno da busca de interesses próprios.
Assumir o poder necessariamente exige concessões em algum grau; alguns elementos de um projeto político serão absorvidos pelo Estado, e qualquer um governando instituições que são administradas de acordo com seus próprios códigos não-escritos dependerá da troca de favores ou de influência. Muitas vezes, como no caso do Syriza na Grécia, um governo de esquerda dependerá de parceiros de coalizão repugnantes. Isso faz com que quadros e intelectuais fundamentais sejam absorvidos por uma burocracia que incentiva não apenas a negociação, mas também a negociata. Ao mesmo tempo, oportunistas invariavelmente se aproximarão em manada de um partido de sucesso, mesmo sem compartilhar dos seus princípios fundamentais, buscando avançar com suas próprias carreiras.
A corrupção, portanto, representa um desafio específico para a esquerda interessada em assumir o poder. É muito fácil para uma esquerda concentrada em manter sua própria pureza, sempre na oposição, abraçar um cinismo moralista sobre os que estão no poder, sem refletir sobre o efeito rebote que isso pode ter na própria crença na mudança política. Relatos formulaicos sobre líderes traindo a luta dos trabalhadores ou a revolução muitas vezes não são tão diferentes das narrativas míopes dos conservadores sobre os efeitos corruptores do poder sobre projetos que visam usar o Estado para objetivos progressistas.
Uma política de esquerda para enfrentar a corrupção precisa, portanto, realizar duas tarefas centrais. Em primeiro lugar, precisa politizar a corrupção de uma maneira que não seja nem moralista nem tecnocrática. Em segundo lugar, ela deve se concentrar na redução das fontes de corrupção sistêmica – o poder da elite e a desigualdade. A fonte da corrupção sistêmica só pode ser combatida através de lutas políticas para alcançar reformas significativas em conjunto com políticas sociais igualitárias.
Se a esquerda no governo pretende não ser cooptada pelos mecanismos corruptores próprios do Estado, ela precisa começar a construir um legado institucional que futuros governos de esquerda possam usar como base. Isso exige uma reforma política significativa e medidas para enfraquecer o poder de seus inimigos dentro da máquina do Estado. No entanto, impor essa mudança – que talvez seja o maior desafio que uma política anticorrupção de esquerda precisa enfrentar – também depende da construção de controle democrático por meio da mobilização de massa. Devemos enfrentar a corrupção não simplesmente nos gabando de nossa moralidade superior, mas através da luta para expandir o alcance da própria democracia.
Colaboraor
Benjamin Fogel é historiador e editor colaborador de Africa is a Country e Jacobin.
Seguindo convocações na mídia, centenas de milhares de brasileiros, em sua maioria da classe média, tomaram as ruas em protestos contra a corrupção. De maneira crucial, foi a classe média-alta que liderou esses protestos, mesmo que as manifestações incluíssem setores da classe trabalhadora e até mesmo do trabalho organizado. Os protestos foram apoiados por sombrios movimentos anticorrupção, como o Movimento Brasil Livre, financiado pelos irmãos Koch e pela teia obscura de dinheiro “libertário” e partidos internacionais de direita.
A anticorrupção tornou-se assim um grito de guerra para os inimigos do PT. Mas o mais notável é que ela foi usada como uma expressão guarda-chuva para toda a hostilidade às políticas sociais do partido. Embora não tenha rompido com o neoliberalismo, o período do PT no poder apresentou medidas sociais históricas, como o aumento do salário mínimo, de benefícios de assistência social e a introdução de cotas em universidades de elite, que permitiram a entrada de muitos alunos pobres.
Mesmo essas políticas sociais bem moderadas foram interpretadas como perturbadoras da ordem natural – uma suposta “meritocracia” – ao elevar as condições dos pobres de maneira supostamente imerecida. A mídia de direita, portanto, projetou a seguridade social como um “suborno” para os pobres e para a classe trabalhadora. As tentativas neo-desenvolvimentistas de estimular o setor industrial brasileiro (há tempos em péssimas condições), promovendo certos setores de capital – principalmente a indústria da construção e as empresas estatais – se tornaram alvos especialmente visados pelos ativistas anticorrupção. A Lava-Jato paralisou esses esforços e, com a ajuda dos partidos da oposição, impediu o PT de responder à crise econômica; ela foi usada para retratar a própria intervenção do Estado na economia como uma forma de corrupção.
O efeito foi a criminalização da social-democracia moderada e da esquerda através da retórica anticorrupção. O presidente pós-golpe, Michel Temer – que alcançou o menor índice de aprovação já registrado – e seu governo foram manchados por escândalos de corrupção. Porém, embora ele esteja fortemente envolvido na Lava-Jato, não enfrentou nenhum processo durante seu governo. Os protestos anticorrupção visavam apenas o PT, enquanto a criminalidade nua do governo Temer encontrou a indiferença das mesmas forças que exigiam a cabeça de Dilma.
Moralidade e democracia
Uma convocação para que o povo se una contra uma elite corrupta é uma característica padrão da retórica política de esquerda; por exemplo, isso desempenhou um papel fundamental na histórica vitória eleitoral de Andrés Manuel López Obrador no México. No entanto, esse tipo de política geralmente planta as sementes da sua própria queda. Um governo de centro-esquerda ou socialista que chegue ao poder sobre uma plataforma anticorrupção certamente arriscará a desmoralização e a desmobilização se ele próprio acabar sendo vítima de escândalos. Por essa razão, a esquerda precisa ir além de uma retórica anticorrupção moralista e fácil, especialmente se levamos a sério a ideia de assumir o poder.
A esquerda enfrenta o desafio específico de convencer as pessoas comuns não apenas de que a ordem existente é indesejável, mas também de que ela pode ser transformada substancialmente através da ação coletiva, numa luta que certamente exigirá sacrifícios. A direita tem um fardo muito menor a esse respeito, porque tudo o que ela precisa fazer geralmente é persuadir as pessoas a ficar em casa e perseguir seus próprios interesses privados. Tanto a corrupção quanto os movimentos anticorrupção representam um perigo significativo para a esquerda porque reorientam a Política para esse terreno, ao mesmo tempo em que alimentam um cinismo mais amplo sobre como a Política jamais poderia ser mais do que um terreno da busca de interesses próprios.
Assumir o poder necessariamente exige concessões em algum grau; alguns elementos de um projeto político serão absorvidos pelo Estado, e qualquer um governando instituições que são administradas de acordo com seus próprios códigos não-escritos dependerá da troca de favores ou de influência. Muitas vezes, como no caso do Syriza na Grécia, um governo de esquerda dependerá de parceiros de coalizão repugnantes. Isso faz com que quadros e intelectuais fundamentais sejam absorvidos por uma burocracia que incentiva não apenas a negociação, mas também a negociata. Ao mesmo tempo, oportunistas invariavelmente se aproximarão em manada de um partido de sucesso, mesmo sem compartilhar dos seus princípios fundamentais, buscando avançar com suas próprias carreiras.
A corrupção, portanto, representa um desafio específico para a esquerda interessada em assumir o poder. É muito fácil para uma esquerda concentrada em manter sua própria pureza, sempre na oposição, abraçar um cinismo moralista sobre os que estão no poder, sem refletir sobre o efeito rebote que isso pode ter na própria crença na mudança política. Relatos formulaicos sobre líderes traindo a luta dos trabalhadores ou a revolução muitas vezes não são tão diferentes das narrativas míopes dos conservadores sobre os efeitos corruptores do poder sobre projetos que visam usar o Estado para objetivos progressistas.
Uma política de esquerda para enfrentar a corrupção precisa, portanto, realizar duas tarefas centrais. Em primeiro lugar, precisa politizar a corrupção de uma maneira que não seja nem moralista nem tecnocrática. Em segundo lugar, ela deve se concentrar na redução das fontes de corrupção sistêmica – o poder da elite e a desigualdade. A fonte da corrupção sistêmica só pode ser combatida através de lutas políticas para alcançar reformas significativas em conjunto com políticas sociais igualitárias.
Se a esquerda no governo pretende não ser cooptada pelos mecanismos corruptores próprios do Estado, ela precisa começar a construir um legado institucional que futuros governos de esquerda possam usar como base. Isso exige uma reforma política significativa e medidas para enfraquecer o poder de seus inimigos dentro da máquina do Estado. No entanto, impor essa mudança – que talvez seja o maior desafio que uma política anticorrupção de esquerda precisa enfrentar – também depende da construção de controle democrático por meio da mobilização de massa. Devemos enfrentar a corrupção não simplesmente nos gabando de nossa moralidade superior, mas através da luta para expandir o alcance da própria democracia.
Colaboraor
Benjamin Fogel é historiador e editor colaborador de Africa is a Country e Jacobin.
Nenhum comentário:
Postar um comentário