6 de julho de 2018

Inventando o fim de semana

O advento do capitalismo não apenas regimentou nossas vidas profissionais. Mudou o próprio significado do tempo livre.

Benjamin Y. Fong

Escadas de piscina para o mar. Foto: Marco Verch / Flickr

Tradução / Mesmo que a “comemoração da Ressurreição” fosse a razão oficial dos primeiros cristãos começarem a observar o dia de descanso no domingo ao invés do sábado, eles também estavam ansiosos para se diferenciar dos judeus e, no século IV, essa ânsia havia sido traduzida na codificação do sabá no domingo tanto em leis eclesiásticas quanto civis.

Um milênio e meio depois, o movimento sabatista apontou para esse anti-semitismo, junto com a influência indevida da adoração pagã ao sol entre os primeiros cristãos, como motivos para restabelecer o sábado como o dia do sabá cristão. Segundo sua argumentação na época, as preocupações temporais e políticas não deveriam ter afetado a observância do verdadeiro dia de descanso.

No entanto, há outra razão pela qual o sábado foi re-santificado no século XIX, que tem a ver com a “ilegitimidade” não do domingo, mas da segunda-feira. Na Inglaterra pré-industrial, de acordo com um poema de George Davis, “pessoas de todas as fileiras, às vezes, obedecem [iam] / às orgias festivas deste dia jocoso”. Não apenas os trabalhadores qualificados, mas todos os grupos e níveis de trabalhadores observavam a “Segunda-Feira Santa” como um feriado do trabalho, para grande desgosto dos empresários emergentes. Embora seja verdade que muitos trabalhadores passavam a Segunda-Feira Santa na cervejaria e em rinhas de briga de galo ou de cachorro, era também um dia de relaxamento e sociabilidade, um dia em que os jardins públicos estariam “literalmente fervilhando de corpos das classes trabalhadoras, bem vestidos, felizes e decorosos”.

O fato da segunda-feira ser muitas vezes adotada como um dia de descanso era uma consequência do ritmo típico do trabalho pré-industrial, no qual os trabalhadores se reuniam para completar um determinado conjunto de tarefas, trabalhavam intensamente por alguns dias até que essas tarefas fossem concluídas, e então passavam metade da semana de folga. Como retratado por E. P. Thompson, “o padrão de trabalho era de períodos alternados de trabalho intenso e de ociosidade, onde quer que os homens estivessem no controle de suas próprias vidas profissionais”. A ideia de que o trabalho deveria ser feito durante um determinado período de tempo repartido em porções regulares, um tempo de trabalho bem demarcado de outro tempo de “lazer”, ainda era um tanto estranha. Em 1806, um comitê nomeado pela Câmara dos Comuns para avaliar o estado das manufaturas de lã na Inglaterra encontrou “uma aversão extrema por parte dos homens a quaisquer horários regulares ou hábitos regulares”. O trabalho era visto como um conjunto de tarefas e, quando essas tarefas eram concluídas, a folga começava.

Não surpreende, portanto, que os mestres expressassem uma frustração sem fim com a “grande dificuldade de fazer seus homens trabalharem às segundas-feiras” e com a ineficácia de incentivos monetários para mudar seu comportamento. “Eles não irão além do que a necessidade lhes incita”, reclamava um relatório. Esse problema tornou-se cada vez mais agudo com o surgimento da energia a vapor. Impelidos por seu investimento em meios de produção, os capitalistas precisavam de mãos humanas em suas máquinas tantas horas por dia quanto possível, uma necessidade sempre frustrada pela vilipendiada Segunda-Feira Santa.

Além de táticas mais diretas – ameaças de demissão na terça-feira para uma ausência na segunda-feira – dois desenvolvimentos minaram a instituição da Segunda-Feira Santa em meados do século XIX. O primeiro foi a severidade moral da era vitoriana. Não foi por acaso que, quando os primeiros movimentos pela temperança surgiram no início do século XIX, eles estivessem especificamente orientados para remediar os hábitos supostamente degenerados da classe trabalhadora. O ritmo da máquina a vapor exigia a erosão da Segunda-Feira Santa, e o movimento da temperança chegou bem na hora para transformar o prazer e o contentamento em atitudes bárbaras. (É certo que os avanços nas técnicas de destilação e o crescimento resultante do consumo de bebidas destiladas no século XVIII – a primeira e ainda a mais precisa métrica da alienação – significavam que novos patamares de embriaguez estavam sendo alcançados na Segunda-Feira Santa.)

O segundo foi o movimento pelo “meio feriado” aos sábados. Sempre se auto-aclamando de maneira barulhenta por isso, os empregadores começaram a dispensar seus trabalhadores algumas horas mais cedo nas tardes de sábado para “induzir as classes trabalhadoras a serem mais estáveis ​​… [e] para lhes dar os meios para uma recreação lícita.” A imprensa enfatizava isso e publicava relatos de gratidão dos trabalhadores pela beneficência de seus patrões. Logo, atividades especialmente organizadas – “diversões racionais”, como concertos e futebol – passaram a ser planejadas para esses feriados sancionados, que se tornaram obrigatórios para as mulheres com a Lei das Fábricas de 1867 e, em seguida, conquistados para todos pelo Movimento pelas Nove Horas de Trabalho, de 1871-72. À medida que o meio feriado do sábado se tornava a norma, a Segunda-Feira Santa passou a ser cada vez mais associada à boemia e à embriaguez. Segundo o historiador Douglas Reid, “o meio feriado do sábado foi usado como um peixe pequeno de isca para pegar um bem maior; uma redução (geralmente) de três horas no sábado em troca da mão de obra por dez ou onze horas na segunda-feira”.

No entanto, a erradicação da Segunda-Feira Santa significou mais do que o prolongamento da semana de trabalho em mais sete ou oito horas: como já foi mencionado, fazer com que os trabalhadores comparecessem de forma consistente às segundas-feiras fazia parte de uma transformação do trabalho orientado por tarefas em trabalho cronometrado. Como argumentou Thompson em seu artigo clássico, “Tempo, Disciplina de Trabalho e Capitalismo Industrial” (Time, Work-Discipline, and Industrial Capitalism), essa transformação levou à crescente incompreensibilidade da vida no trabalho. Quando alguém possui uma tarefa a cumprir, por mais mundana que seja, o trabalho carrega uma certa inteligibilidade: tem um começo e um fim (a conclusão da tarefa) e o fruto do trabalho é um objeto comercializável. Nas palavras de Thompson, “o camponês ou trabalhador parece estar atendendo a algo como uma necessidade observada.”

Não é assim com o trabalho cronometrado: começa-se e termina-se o dia no meio de tarefas, que parecem desconectadas de qualquer produto final, meras peças de um processo maior, opaco aos que dele participam. A eliminação da Segunda-Feira Santa, portanto, coincidiu não apenas com a extensão quantitativa do trabalho, mas também com sua mudança qualitativa em direção à falta de sentido – o que Marx chama de alienação em relação aos “produtos do trabalho” e à “atividade produtiva”.

Enquanto isso, as escolas do século XIX – “as máquinas a vapor do mundo da moralidade”, como os owenistas as descreveram – foram encarregadas de reformular essa acomodação à alienação como uma ética de “economia de tempo”. Em algum nível, todos os alunos na sociedade capitalista entendem que a educação consiste em aprender a tolerar atividades inúteis e sem sentido, e a internalizar conhecimentos descontextualizados, dentro de um cronograma restrito, como uma forma de condicionamento para uma vida de trabalho alienado. Porém, foi apenas no século XIX que as escolas se tornaram esses locais de aculturação para a ideologia capitalista.

Além de exigir uma intervenção sobre a infância e a adolescência, a eliminação da Segunda-Feira Santa também exigiu uma alteração drástica no que era considerado “tempo livre”. No início do século XIX, reformadores de classe média como John Foster estavam indignados com os padrões de lazer predominantes:

“De que maneira [...] este tempo precioso é gasto por aqueles que não possuem cultivo mental? [...] Frequentemente os veremos simplesmente aniquilando essas porções de tempo. Eles ficarão juntos por uma hora, ou por várias horas [...] sentados em bancos, tamboretes ou montes de terra [...] cedendo ao completo vazio e torpor... ou reunidos em grupos à beira da estrada, em prontidão para encontrar, em qualquer coisa que passe por ali, ocasiões para jocosidades grosseiras; praticando alguma impertinência, ou proferindo alguma obscenidade zombeteira, às custas das pessoas que estiverem passando.”

Para evitar a dor de ser ridicularizado pelas classes trabalhadoras, atividades estruturadas (as já mencionadas “diversões racionais”) eram apresentadas como dando propósito e “cultivo” àqueles que não os possuíam. Era imprescindível, aliás, o desenvolvimento de formas bem delimitadas de lazer – uma trajetória cultural que eventualmente acabaria por nos trazer a música pop de três minutos e o programa de televisão de 22 minutos – para trazer uma definição mais nítida entre as esferas do “trabalho” e da “vida”. Na década de 1870, era “desnecessário dizer que nas noites de sábado os ‘deuses das galerias’ reuniriam grandes massas nos teatros e o terreno havia sido preparado para o crescimento do Futebol das Associações.”

Como argumentou Thompson, seria um erro nos perguntarmos como vamos “consumir todas essas unidades de tempo adicionais de lazer” em um mundo pós-capitalista, porque a questão assume uma definição de tempo livre e de lazer inimigas do socialismo, forjadas pelos defensores do meio feriado de sábado. A verdadeira questão, que vai contra a natureza de nossa subjetividade atual, é, antes: “qual será a capacidade para a experiência dos homens [sic] que tenham esse tempo não direcionado para viver?”

Reid conclui que “a erradicação da Segunda-Feira Santa prejudicou muito a qualidade de vida da classe trabalhadora, tanto na realidade quanto em seu potencial. Metade de um dia foi dado em troca de um dia inteiro; na submissão às normas do capitalismo industrial, a noção de um equilíbrio adequado entre trabalho e lazer foi perdida”. Mas a lembrança da Segunda-Feira Santa é mais do que apenas uma lamentação por uma forma de vida passada, onde o trabalho fazia mais sentido, onde tínhamos mais controle sobre seus ritmos e onde a “passagem do tempo, sem propósitos específicos” ainda não havia sido canalizada para uma forma estruturada de diversão. É também um lembrete do que precisa ser reconquistado.

Com a conquista de uma sociedade socialista, o trabalho não apenas entraria novamente no reino do controle consciente, mas também da inteligibilidade básica; a força por trás da cruel deterioração psicológica no uso de álcool e drogas – responsável hoje pela tragédia do encarceramento em massa – secaria em sua origem social; as escolas estariam livres para descobrir o que a pedagogia realmente pode significar, uma tarefa tornada impossível pelas demandas do condicionamento ao capitalismo. E todo mundo poderia ter o tempo e o espaço para mais uma vez “reaprender algumas das artes do viver perdidas na revolução industrial: como preencher os interstícios de seus dias com relações pessoais e sociais mais enriquecedoras e de maior lazer”.

Colaborador

Benjamin Y. Fong é professor, escritor e militante de organização no Arizona, nos EUA. Ele faz parte do comitê de direção da campanha dos Socialistas Democráticos Por Um Sistema de Saúde Para Todos ("Democratic Socialists for Medicare for All").

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