20 de maio de 2019

Ressuscitando Thomas Sankara

Trinta e dois anos após seu assassinato, o revolucionário africano Thomas Sankara, conhecido como o "Che Guevara africano", segue inspirando a luta revolucionária até os dias de hoje.

Ernest Harsch

Jacobin

Foto por Patrick Durand / Sygma via Getty Images

Tradução / Fadel Barro, um líder central do movimento de juventude do Senegal Y’en a Marre (algo como “Basta” ou “Cansados”) está ganhando reputação entre os ativistas ao longo da África. Em 2011, Barro e Y’en Marre iniciaram uma massiva tentativa para impedir o então presidente Abdoulaye Wade de emendar a Constituição em favor sua reeleição. Mais recentemente, Barro e várias dúzias de outros ativistas foram detidos por diversos dias na República Democrática do Congo por criticar os esforços inconstitucionais do presidente de tal país para manter-se no poder.

Em suas aparições publicas, Barro frequentemente usa sua camiseta favorita: na frente há uma imagem de Thomas Sankara, o falecido líder revolucionário de Burkina Faso, com as palavras “Eu ainda estou aqui”.

Barro não está sozinho em sua veneração. Embora Sankara seja popular entre a juventude africana há tempos, nos anos recentes o interesse em seu exemplo e suas ideias tem ressurgido, em particular no próprio Burkina Faso.

Sankara foi assassinado em 1987 em um golpe militar que interrompeu o nascente movimento por mudanças progressistas e justiça em Burkina Faso. Sua crescente popularidade se conecta com o profundo descontentamento entre os burquinabês, que depuseram o presidente Blaise Compaoré – o capitão responsável pela morte de Sankara – durante uma insurreição popular em outubro de 2014.

Che Guevara africano

Durante os meses das manifestações que levaram à deposição de Compaoré, símbolos de Sankara estava quase em todos lugares. Manifestantes carregavam seu retrato, e sua voz gravada ressoava nos equipamentos de som. Citações de suas falas eram apresentadas em cânticos populares. Mesmo os líderes da oposição política moderada frequentemente concluíam seus discursos com a emblemática palavra de ordem do governo revolucionário de Sankara: La patrie ou la mort, nous vaincrons! (“Pátria ou morte, venceremos!”)

Os líderes dos principais partidos de oposição – alguns deles “Sankaristas”, mas a maioria com outras perspectivas – desempenharam um importante papel convocando inicialmente as demonstrações. No entanto, foram os círculos de ativistas e as redes da juventude que se ergueram e se confrontaram com as forças de segurança do regime, com muitas dúzias de manifestantes sacrificando suas vidas no processo.

Muitos desses grupos, como o Balaï Citoyen (“Vassoura dos Cidadãos”), abertamente conta Sankara entre seus heróis. Enquanto os manifestantes marchavam em direção ao prédio da Assembléia Nacional em 30 de outubro (antes de incendiá-lo), eles entoavam conhecidas palavras de ordem de Sankara como “Quando o povo se levanta, o imperialismo treme”. Al Jazeerareportou que muitos jovens nos protestos eram inspirados pelo espíritos do “Che Guevara africano”, enquanto o diário parisiense Le Monde declarou a derrubada de Compaoré como “a vingança dos filhos de Thomas Sankara”.

Duas semanas após a fuga de Compaoré do país, um governo de transição foi formado para organizar novas eleições em outubro de 2015. O governo é diversificado – tecnocratas, intelectuais, oficiais do exército, figuras da sociedade civil, alguns ativistas radicais – e inclui alguns pró-Sankaristas.

Michel Kafando, o diplomata aposentado que serve como presidente de transição, elogiou o “modelo de desenvolvimento igualitário” da revolução. Seu primeiro ministro, Tenente Coronel Yacouba Isaac Zida, exaltou a “identidade de integridade que carregamos orgulhosamente desde a revolução de agosto de 1983”. Um novo parlamento transitório foi também estabelecido, encabeçado por Chériff Sy, editor de um jornal independente conhecido por sua admiração por Sankara.

Como oponentes de longa data de Compaoré, aqueles abertamente identificados com o legado de Sankara agora dispõe de considerável autoridade moral, reforçada pela viva memória de Sankara entre muitos burquinabês. Eles e outros ativistas estão pressionando por reformas fundamentais nos sistemas políticos e sociais e por justiça no que diz respeito aos mais sérios casos de violações de direitos humanos e corrupção sob Compaoré.

Investigações foram reabertas acerca do assassinato do jornalista investigativo Norbert Zongo, em 1998 (presumidamente por membros da guarda presidencial de Compaoré), e pela primeira vez, um inquérito judicial foi iniciado acerca da morte do próprio Sankara.

Apesar das circunstâncias da morte de Sankara, são suas ações e ideias em vida que atraem os maiores interesses hoje. A duração de seu legado é tanto mais notável considerando a curta duração em que seu governo revolucionário esteve no poder – de agosto de 1983 e outubro de 1987.

Em retrospecto, muitos burquinabês – quer gostem de tal governo ou não – concordam que isso trouxe mais mudanças positivas para o país do que havia ocorrido nos 25 anos precedentes desde a independência nacional.

“Terra das pessoas íntegras”

Quando o Conselho Nacional da Revolução (CNR) de Sankara alçou-se ao poder em agosto de 1983, a mídia estrangeira em geral descreveu a tomada do poder como um golpe militar – apenas outro entre diversos ao longo da África.

Sankara era um capitão do exército, e uma quantidade de colegas que ocupavam posições chave (inclusive Compaoré no momento) eram oficiais. Mas eles derrubaram a junta militar anterior como parte de uma ampla coalizão política que incluía diversos grupos políticos de esquerda, alguns sindicatos, o movimento estudantil e outros ativistas civis. O CNR e seu governo eram instituições híbridas que aproximaram participantes de vários setores de sociedade e atraíram forte e ativo apoio dos jovens, dos pobres e de outros marginalizados pela antiga ordem.

Os jovens líderes do CNR (Sankara tinha apenas 33 anos então) deixaram claro desde o início que não estavam interessados em fazer algumas poucas modificações superficiais. Eles queriam transformar fundamentalmente o país – um dos mais pobres e pouco desenvolvidos do mundo. Para sublinhar essa ruptura, mudaram o nome da nação de Alto Volta, a antiga designação colonial francesa, para um que afirmasse uma identidade africana: Burkina Faso, ou “Terra das Pessoas Íntegras”.

A política externa do país também passou por uma reviravolta: fim do alinhamento com a França e outras potencias ocidentais, em direção a movimentos e governos anti-imperialistas, revolucionários e radicalmente nacionalistas em meio ao “Terceiro Mundo”. O CNR de Sankara aberta e ativamente apoiou os lutadores pela liberdade no sul da África – o primeiro novo passaporte de Burkina Faso foi simbolicamente emitido para Nelson Madela, à época ainda preso na África do Sul do apartheid.

O governo Sankara também respaldou vários movimentos que se opunham diretamente à dominação francesa. Durante viagens à América Latina, Sankara abraçou Fidel Castro, bem como os revolucionários nicaraguenses resistindo à intervenção dos EUA. No interior da África, Sankara e seus camaradas defenderam um modelo de unidade pan-africana baseada em populações mobilizadas – não só palavreado, como era o caso da maior parte dos governantes do continente, que geralmente mantinham fortes ligações com seus aliados ocidentais.

Sem surpresa, o CNR atraiu a inimizade da França, dos EUA e de outras nações poderosas. Seus clientes estatais africanos, especialmente a vizinha Costa do Marfim, Mali e Togo tentaram desestabilizar o governo de Sankara. Ajudaram oficiais militares dissidentes levar a cabo bombardeios, e em 1986 o Mali travou mesmo uma breve guerra contra Burkina Faso.

Estado revisto, povo mobilizado

O radicalismo de Burkina Faso não era apenas para consumo externo. O conselho governamental de Sankara não escondeu que enquanto algumas mudanças levariam necessariamente anos, isso não o limitaria a reformas marginais. A “suprema tarefa” da revolução, Sankara se comprometia, “será a total conversão de todo o maquinário estatal, com suas leis, administração, cortes, polícia e exército”.

Para além de reestruturar o judiciário, as forças militares e outras instituições estatais, o conselho governamental de Sankara atacou a corrupção e o consumo ostensivo pela elite nacional. Frugalidade e integridade se tornaram novas palavras de ordem, e julgamentos públicos enviaram dezenas de dignitários para a cadeia por apropriação indevida e fraude. Os ministros de governo tiveram seus salários e bônus cortados e suas limusines tomadas. Sankara declarava publicamente todos seus bens, manteve seus próprios filhos na escola pública e rejeitou parente que lhe procuraram em busca de cargos públicos.

Mais fundamentalmente, o CNR visou desenvolver uma nova política promovendo laços robustos entre o estado reformado e uma população recém-mobilizada. Em sua primeira transmissão como presidente, Sankara apelou a todos, “homem ou mulher, jovem ou velho” a formar organizações populares conhecidas como Comitês para a Defesa da Revolução (CDRs). Eleitos diretamente por assembleias gerais abertas a todos residentes de algum bairro ou vila em particular, os CDRs logo se espalharam por Burkina Faso. Os comitês locais eram genuinamente populares, preenchidos com pessoas de origem social humilde, não apenas os poucos educados.

Mobilizações de trabalho coletivo generalizadas começaram dentro de semanas após a posse de Sankara. Os primeiros chamados vieram das autoridades centrais, mas no nível local eles eram usualmente iniciados e organizados pelos CDRs.

Durante os primeiros anos, comunidades mobilizadas assumiram uma série de projetos: limpar escolas e pátios de hospitais, cobrir estradas, construir pequenas barragens para capturar ou canalizar a água escassas para irrigação do campo, e, quando materiais de construção podiam ser assegurados, construir escolas, centros comunitários, teatros e várias outras instalações. O esforço dos residentes às vezes excedia a capacidade governamental para dar-lhes suporte – por exemplos, construir mais escolas do que as autoridades poderiam suprir com professores ou mantimentos.

As mobilizações, ademais, não eram monopólio dos CDR. Embora as relações com a maioria dos sindicados estabelecidos fosse complicada e às vezes se tornasse tensa, dezenas de novas organizações de autoajuda emergiram através do país, muitas sem qualquer conexão direta com o governo central.

Sankara era aberto quanto à suas crenças ideológicas: marxista, não-dogmático. Uma vez que Burkina Faso era extremamente pobre, com pouca indústria e com uma pequena classe de assalariados, ele tomou o cuidado de não colar o rótulo de “socialismo” ou “comunismo” no processo revolucionários. Em vez disso, ele o enquadrava como “uma revolução anti-imperialista” focada em combater a dominação externa, construindo uma nação unificada, elevando as capacidades produtivas da economia e respondendo os problemas sociais mais urgentes da população, como a fome generalizada, a doença e o analfabetismo.

Embora a pobreza permanecesse uma realidade dolorosa para a maior parte das pessoas, os quatro curtos anos do CNR de Sankara começaram a trazer uma ligeira melhora nas condições de vida – novos postos de saúde pelo país, centenas de novas escolas, uma campanha de alfabetização de adultos e maior apoio aos pequenos produtores rurais. Ao lado de uma rigorosa austeridade para cargos do estado (especialmente a burocracia de alto nível), os gastos públicos em educação aumentaram 26,5% por pessoa entre 1983 e 1987, e em saúde aumentaram 42,3%.

Alguns países ocidentais continuaram a auxiliar os esforços de desenvolvimento de Burkina Faso, mas muitos – receosos da política do governo – reduziram o financiamento. Nesse clima, Sankara e seus colegas enfatizaram a necessidade de ser tão autossuficiente economicamente quanto fosse possível. Evitaram aceitar auxílios para o desenvolvimento que viessem atados à submissão política. “Nós sabemos que temos de depender de nós mesmo”, dizia Sankara.

Especialmente em uma país tão árido, isso inclusive significava ser ambientalmente sustentáveis. Centenas de novos poços foram cavados e reservatórios construídos para melhor conservar a pouca água que tinha o país. Agricultores foram ensinados sobre como combater a erosão do solo e produzir fertilizantes orgânicos. Milhões de árvores foram plantadas pelas zonas rurais do país. Nessa preocupação ambiental, Sankara estava notavelmente na dianteira da maioria dos outros líderes africanos.

Sankara também estava à frente de seu tempo em salientar os direitos das mulheres. Muitos dos programas sociais e econômicos incluíam medidas específicas como aulas de alfabetização para mulheres, orientação sobre maternidade em vilas rurais, e apoio a cooperativas e associações comerciais de mulheres. Um novo código da família estabeleceu uma idade mínima para o casamento, estabeleceu o divórcio por consenso mútuo, reconheceu o direito das viúvas a herdar e suprimiu o pagamento do preço pelo noivado. Campanhas públicas buscaram combater a mutilação genital feminina, o casamento forçado e a poligamia.

Em uma época em que poucas mulheres haviam atingido altas posições políticas e administrativas na África, o governo Sankara indicou mulheres como juízas, altas comissionarias regionais e diretoras de empreendimentos estatais. Em cada um de seus governos, em 1986 e 1987, haviam cinco mulheres ministras, cerca de um quinto do total. (Uma delas foi Joséphine Ouédraogo — agora ministra da justiça no governo de transição do presidente Kafando).

Como em outras experiências revolucionárias na África e noutros lugares, diferenças emergiram no interior das lideranças. Alguns dos camaradas de Sankara eram seguidores ideológicos de Stalin, Maio e do albanês Enver Hoxha. Eles eram menos preocupados que Sankara sobre os abusos de alguns CDRs, eram intolerantes com dissidentes e tendiam à favor da coerção, inclusive prendendo alguns sindicalista veementes demais.

Gradualmente, esses linha-duras gravitaram em direção a Compaoré – o ministro da defesa, que estava ligado ao presidente da vizinha Costa do Marfim, politicamente conservador e pró-França.

A relevância duradoura de Sankara

Em 15 de outubro de 1987, os seguidores de Compaoré levaram a cabo um golpe, assassinando Sankara e dezenas de colaboradores seus. O povo burquinabê ficou chocado e aterrorizado, e mobilizações populares eclodiram de um dia para o outro. O regime de Compaoré eventualmente destruiu a maior parte das políticas progressistas e programas dos dias de Sankara.

Alguns oponentes de Sankara tentam minimizar seu legado, argumentando que durante seu época ocorreram abusos de poder e repressão. Eles acusam seus seguidores de perpetuar um “mito” estilizado. O projeto revolucionário de Sankara não era perfeito e não deve ser idolatrado. Os militares continuaram a exercer um peso excessivo, e os CDRs são lembrados mais por seus abusos que por seu papel positivo na mobilização comunitária e suas autoridades tinham pouca tolerância pelo dissenso político.

Mas muitos burquinabês recordam os grandes avanços da era de Sankara em promover a saúde e a educação popular, suas inovadoras iniciativas pelo desenvolvimento, suas vigorosas medidas anticorrupção, sua política externa progressista e sua ênfase na justiça social, direitos das mulheres e empoderamento da juventude. Como resultado, as ideias de Sankara estão ganhando reconsideração generalizada, e merecidamente.

Sankara não é apenas uma figura colorida do passado ou um lutador da liberdade para os livros de história. Ele é um “mito vivo”, como um dos jornais diários de Burkina Faso recentemente colocou. “Suas ideias continuam a mobilizar multidões inimagináveis”.

Colaborador

Ernest Harsch trabalhou em questões africanas por mais de duas décadas nas Nações Unidas e atualmente é professor adjunto da Columbia University. Seu livro mais recente é Thomas Sankara: An African Revolutionary (Ohio University Press, 2014).

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