25 de setembro de 2011

O fim de Oslo

Palestina na ONU

Judith Butler


Tradução / Dentre as várias frases espantosas que Barack Obama pronunciou no recente discurso em que se opôs ao requerimento dos palestinos à ONU, a mais espantosa talvez tenha sido “a paz não virá de declarações e resoluções”. No mínimo, é frase estranhíssima, enunciada por presidente cuja ascensão ao poder foi construída de repetidos recursos à retórica. O argumento do presidente contra o poder de declarações e resoluções não passou de golpe retórico para minimizar o poder dos golpes retóricos. 

Mais importante, foi esforço para tentar conseguir que o governo dos EUA continue como guardião e negociador de qualquer negociação de paz; o discurso foi meio para tentar reafirmar o prestígio e o poder do guardião negociador, hoje confrontado ao mais potente desafio que lhe apareceu, em décadas. 

Ainda mais importante, aquele discurso foi esforço para neutralizar e drenar a força retórica das manifestações populares e públicas que se empenham em expor o fracasso das negociações de paz, que trabalham para quebrar o contexto e modelo de Oslo e para internacionalizar o processo político, para facilitar a criação do estado palestino. 

Há razões pelas quais contestar a oportunidade do requerimento dos palestinos nos termos em que foi apresentado, mas não são as razões que Netanyahu ofereceu nos seus comentários doentios, sinistros e arrogantes. 

No interior do próprio debate palestino, vários questionaram o requerimento levado à ONU. Para vários, o requerimento deixou absolutamente de fora o direito de retorno dos palestinos da diáspora; não denunciou a discriminação estrutural que os palestinos sofrem hoje, dentro das atuais fronteiras de Israel; pode ter abandonado Gaza;  deslegitima a Organização para a Libertação da Palestina (OLP), elevando a Autoridade Palestina ao poder de estado; exclui da mesa de negociações a “Solução Um Estado”; e, erradamente, entrega-se à dependência da ONU como árbitro e ‘avalista’ do estado palestino, em vez de reafirmar que a autodeterminação dos palestinos é a única base legítima de qualquer estado a ser criado. 

Críticos como Ali Abunimah, editor da Electronic Intifada, argumentam que a ONU já várias vezes demonstrou que não passa de instrumento para paralisar o que interesse aos EUA paralisar, considerado o poder de veto que governa o Conselho de Segurança e afirma o poder discricionário das grandes potências; por tudo isso, é provável que o requerimento agora encaminhado à ONU seja derrotado por um único veto, dos EUA.

Mesmo assim, efeito que já se faz sentir como consequência dessas “declarações e resoluções” é que já não é possível tomar os Acordos de Oslo de 1993 como paradigma para futuras negociações. De fato, espera-se para os próximos dias o esfacelamento definitivo do tal paradigma. 

Oslo não apenas sempre garantiu aos EUA posição privilegiada como intermediário imprescindível de todas as “negociações de paz” como, de fato, foi o instrumento que patrocinou diretamente o massivo crescimento das colônias exclusivas para judeus israelenses em terra palestina – porque Oslo não declarou, em 1993, o status de ilegalidade, nos termos da legislação internacional vigente, das colônias israelenses erguidas em territórios palestinos ocupados. 

Nos anos de Oslo, o número de colonos judeus que Israel fixou em territórios palestinos ocupados dobrou: de 241.500 colonos em 1992, para 490.000 em 2010 (incluindo Jerusalém Leste). Oslo, de fato, ao não tomar posição em nenhuma das “questões de status permanente”, efetivamente implantou a ocupação como regime, na prática, eterno, sem fim à vista. 

Além disso, os Acordos de Oslo também “oficializara” o princípio segundo o qual qualquer alteração de status da Palestina Ocupada dependeria do “consentimento” de Israel. Desde Oslo, portanto, o poder de Israel para decidir o futuro dos palestinos foi sobreposto ao direito legal internacionalmente reconhecido, dos palestinos, à autodeterminação.

O efeito imediato mais potente da decisão dos palestinos de levar seu requerimento à ONU é que assim se decretou o  fim dos Acordos de Oslo como paradigma obrigatório e insuperável. 

Mas continua aberto o importante debate sobre se o requerimento à ONU ofende ou, no mínimo, atropela o direito dos palestinos à autodeterminação, direito político mais abrangente e mais relevante. Os que se opõem à internacionalização do processo destacam que há o risco de metade de todos os palestinos perderem direitos, caso a ONU reconheça o estado palestino nos termos do pedido encaminhado por Abbas. 

Poderão a ONU e o reconhecimento do estado palestino assegurar aos próprios palestinos o direito à autodeterminação sem interferência externa? 

Se a Autoridade Palestina converter-se em sinônimo de Estado Palestino, não se estará decretando o sacrifício do direito de retorno para milhões de palestinos da diáspora? 

E a ONU e a Autoridade Palestina não estarão abandonando Gaza e direitos de minorias, ‘esquecidos’ dentro de Israel? 

Se os direitos à autodeterminação são direito coletivo de todos os palestinos, argumenta Omar Barghouti, nesse caso a ONU terá de preservar a Organização para a Libertação da Palestina (OLP) como representante legítima de todo o povo palestino. 

A crítica mais devastadora veio de Joseph Massad, para quem o requerimento encaminhado à ONU, para que reconheça o estado palestino, apaga todas as lutas e reivindicações históricas do povo palestino. Massad escreveu, na página online de al-Jazeera:

A questão posta à mesa para que a ONU decida, pois, não é se a ONU deve reconhecer o direito do povo palestino a um estado nos termos do Plano de Partição da ONU de 1947, que garantiria aos palestinos 45% da Palestina histórica, nem a estado palestino pelas fronteiras de 5/6/1967 que acompanham a Linha Verde, que garantiria aos palestinos 22% da Palestina histórica. 

Reconheça o que reconhecer, qualquer reconhecimento pela ONU significa, sempre, negar os direitos da maioria do povo palestino em Israel, na diáspora, em Jerusalém Leste e até em Gaza. A ONU ‘reconhecerá’, no máximo, os direitos de alguns poucos palestinos da Cisjordânia a viver num bantustão, em área equivalente a uma fração do território da Cisjordânia, que mal chega a 10% da Palestina histórica. Israel festejará qualquer decisão que a ONU adote.

Isso talvez explique pesquisas que mostram que mais de 60% dos israelenses aprovam o requerimento de Abbas do reconhecimento do estado palestino e têm posições mais à esquerda que a de Obama. 

Fato é que estamos no meio de mudança histórica. Por mais que cresçam as disputas entre os que advogam a favor de uma demanda política, nascida do movimento social, e que exige que se preserve o direito à autodeterminação; e os que visam a internacionalizar o processo, metendo a ONU no papel onde antes esteve Oslo, nos dois casos diminui muito o poder dos EUA, o poder de Oslo e o poder do autonomeado “Quarteto” – que já parece esfacelado, com a ONU potencialmente cada vez mais distanciada da União Europeia, dos EUA e da Rússia. 

Nada, na retórica de Obama, conseguirá limitar esses efeitos. 

Se não houver mais, estará inaugurado um novo conjunto de dinâmicas, brotadas do movimento para levar à ONU o requerimento dos palestinos, e essas dinâmicas podem, na atual conjuntura, revelar-se mais importantes e mais valiosas, do que se consegue antever hoje. 

Ainda que não apareça imediatamente nenhum tipo de estado palestino (e há razões para esperar que logo apareça iniciativa brotada diretamente de um movimento palestino mais inclusivo, que não descarte o direito à autodeterminação), já se podem ver nitidamente os estertores finais de um ‘processo de paz’ que foi usado como pretexto para a expansão colonial de Israel, e para o descarte repetido de todas as aspirações dos palestinos. 

É bem provável que surja algo que Obama antigamente chamava de “esperança”, e derrote a tragédia temporal da ocupação, da expulsão, do confisco e da desqualificação.

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