31 de outubro de 2022

A vitória de Lula traz um sopro de esperança para a democracia

Lula derrotou o presidente da extrema direita, Jair Bolsonaro, na eleição mais acirrada da história do país. O veterano de esquerda enfrentará enormes desafios ao tomar posse, mas seu triunfo sobre Bolsonaro deu à política brasileira uma nova chance após uma presidência catastrófica.

Olavo Passos de Souza

Jacobin

O presidente eleito do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, cumprimenta apoiadores após vencer a eleição presidencial, São Paulo, Brasil, 30 de outubro. (Caio GUATELLI / AFP via Getty Images)

Tradução / No domingo, 30 de outubro, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva conseguiu uma vitória histórica sobre o atual presidente Jair Bolsonaro. Na disputa mais acirrada desde a redemocratização brasileira na década de 1980, Bolsonaro se tornou o primeiro presidente em exercício a perder a reeleição.

A eleição dividiu o Brasil entre a defesa da democracia e um retorno à política civil de um lado, e o autoritarismo e a política reacionária do outro. A vitória de Lula, com 50,9% dos votos contra os 49,1% de Bolsonaro, provocou comemorações nas maiores avenidas do Brasil, onde o grito popular pediu o fim da crise social que assolar o país.

O jornalista brasileiro Fernando Gabeira, que lutou como guerrilheiro contra a ditadura militar, chamou a eleição de “uma vitória para o Brasil, e uma vitória para a humanidade. Agora podemos respirar de novo”. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, um rival de longa data de Lula, enviou a ele uma mensagem de felicitações proclamando que “a democracia venceu”.

Vitória para a democracia

Em 2018, o total de votos de Bolsonaro no segundo turno foi um pouco mais alto: 58,2 milhões em comparação com 57,7 há quatro anos. Mas Lula conseguiu também conseguiu um aumento na votação frente a Fernando Haddad, seu correligionário do Partido dos Trabalhadores (PT), principal oponente de Bolsonaro em 2018, aumentando de 47 milhões de votos há quatro anos para 60 milhões de votos desta vez.

Lula fez campanha com uma mensagem de democracia e pragmatismo, defendendo a unidade política, e uma valorização dos direitos humanos e civis. Para seu candidato a vice, Lula escolheu Geraldo Alckmin, outro antigo rival, que foi seu oponente presidencial em 2006. A frente ampla de Lula, composta de figuras que vão dos socialistas aos neoliberais, denunciou o desprezo de Bolsonaro pelo povo brasileiro, pela economia e pelo meio ambiente, prometendo um retorno à estabilidade e ao progresso em oposição aos quatro anos de caos de Bolsonaro.

No discurso de vitória, Lula incluiu a seguinte proclamação:

Esta não é uma vitória do PT, não é uma vitória dos partidos políticos, mas uma vitória do movimento democrático, do povo brasileiro que deseja mais do que aquilo que lhe foi dado. Democracia é mais do que uma palavra bonita a ser jogada pelo ar – é algo que temos que sentir na pele.

É a terceira vitória presidencial na carreira de Lula, após dois mandatos consecutivos, entre 2002 e 2010, consolidando sua posição como o político vivo mais popular do Brasil.

Entretanto, a eleição de Lula é um momento amargo e doce, pois as eleições legislativas e governamentais do último mês foram em grande parte vencidas por candidatos conservadores ou de extrema direita que apoiaram Bolsonaro. Lula enfrentará uma hostilidade sem precedentes como presidente, já que seus opositores políticos controlarão o Congresso brasileiro, bem como seus maiores e mais ricos Estados.

Além disso, Bolsonaro afirmou repetidamente no passado que a única maneira que ele poderia perder seria no caso de fraude. Com sua base cada vez mais radicalizada e disposta a agir violentamente, resta saber o que os próximos meses significarão para a democracia brasileira.

Uma campanha sem igual

No período que antecedeu a eleição, Bolsonaro se apresentou como um campeão de estabilidade e progresso, alegando que o Brasil estava em uma condição próspera com uma economia forte, desafiando todas as evidências contrárias. Uma de suas principais ferramentas de campanha foi o uso do Auxilio Brasil, um programa social destinado aos cidadãos de baixa renda, através de transferências financeiras diretas. Inicialmente criado como um programa emergencial durante a pandemia da COVID-19, ele provou ser uma das poucas ferramentas que Bolsonaro teve para elevar seus níveis desastrosos de aprovação.

Com isto em mente, o presidente fez pressão para manter o programa vivo até outubro e turbinar a campanha presidencial. Bolsonaro afirmou que o Auxilio Brasil foi mais bem-sucedido que o Bolsa Família de Lula, o histórico programa de apoio às pessoas de baixa renda do ex-presidente que ajudou a tirar dezenas de milhões de pessoas da pobreza nos anos 2000. Enquanto a política parecia estar em desacordo com a posição econômica neoliberal de Bolsonaro, ele usou o Auxilio Brasil para se retratar como um ótimo líder humanitário.

Seus críticos, por outro lado, o chamaram de o maior ato de compra de votos em massa da história do Brasil. Entretanto, é inegável que o programa emergencial de Bolsonaro, introduzido após quatro anos de desordem econômica e social, pelo qual seu próprio governo foi responsável, aumentou sua popularidade e ajudou a mantê-lo competitivo nas urnas.

Lula, por sua vez, trabalhou duro para se apresentar como a única escolha democrática. Lembrou de seu próprio governo como uma era próspera para o país, enquanto se defendia de uma oposição amargamente hostil que o enchia de acusações falsas relacionadas à mentiras, ao comunismo e até mesmo ao satanismo.

Mesmo estando à frente nas pesquisas eleitorais, Lula não estava tão acostumado a fazer campanha na era digital quanto Bolsonaro, cujos apoiadores inundaram as redes com a narrativa reacionária. O ex-presidente, que concorreu pela primeira vez às eleições nos anos 1980 e hoje nem sequer possui um telefone celular, utilizou locais de comunicação mais tradicionais. Isto fez um forte contraste com Bolsonaro, um usuário ativo do Twitter que implantou uma máquina de notícias falsas incrivelmente eficaz.

Em uma campanha eleitoral repleta de hostilidade e violência, os dois candidatos permaneceram acirrados nas urnas durante todo o mês de outubro.

Democracia em perigo

As eleições desde o retorno da democracia nos anos 1980 têm sido marcadas pela relativa civilidade e pela transição pacífica do poder. Esta tendência começou a enfraquecer em 2010, pois a polarização transformou as campanhas do país cada vez mais hostis, fazendo com que as campanhas presidenciais de 2014, 2018 e agora 2022 fossem cada vez mais agressivas que as últimas.

O Tribunal Superior Eleitoral (TSE), a instituição que regulamenta as eleições, aplica regras rígidas de campanha para garantir que o processo democrático possa prosseguir pacificamente. A todos os candidatos é garantido um tempo de propaganda nos canais de televisão e rádio proporcional à força legislativa de seu partido. A campanha na véspera das eleições ou dentro das áreas eleitorais é ilegal, e propagandas falsas podem ser denunciadas e retiradas de circulação.

Este sistema, juntamente com as urnas eletrônicas de votação que têm se mostrado consistentemente confiáveis, fizeram das eleições brasileiras uma referência de eficiência e representação no mundo democrático. Porém, a nova era de desinformação e polarização testou estas medidas de proteção eleitoral até o limite de suas possibilidades.

Os aplicativos de comunicação como o WhatsApp são focos de notícias falsas e extremamente difíceis de monitorar. Isto tornou quase impossível evitar que a desinformação fosse enviada de um lado para o outro. As autoridades eleitorais removeram de circulação um número recorde de anúncios de TV e rádio que eram considerados agressivos, mas somente depois de seu efeito já ter sido divulgado. Os candidatos de extrema direita cresceram mais confiantes e revitalizados em seus ataques, já que a marca do conservadorismo reacionário de Bolsonaro retratava a esquerda brasileira como um inimigo mortal.

É o caso do governo Bolsonaro e seus aliados, que desempenharam um papel ativo nesta investida. O presidente constantemente atacou o processo eleitoral e respondeu aos esforços para sancionar seu comportamento antidemocrático com gritos de perseguição. Bolsonaro apresentou o TSE, a Suprema Corte (STF), os institutos de votação e a mídia em geral como parte de uma conspiração para retirá-lo do poder.

Violência da extrema direita

Esta demonização das bases democráticas alimentou um clima perigoso entre os seguidores de Bolsonaro. Os trabalhadores que fazem pesquisas eleitorais foram atacados nas ruas e apoiadores de extrema direita assassinaram várias pessoas, incluindo um homem que foi morto com um facão por expressar seu apoio a Lula. Os apelos para que a STF fosse dissolvida se tornaram comuns entre os eleitores bolsonaristas.

O mês de outubro, que culminou na eleição de domingo, foi um campo de batalha de desinformação, extremismo político e até violência aberta. Em 23 de outubro, Roberto Jefferson, um político ligado historicamente com a direita e agora com Bolsonaro, que uma vez empregou seu filho como estagiário, atacou a Polícia Federal (PF). Os ataques virtuais de Jefferson ao STF haviam violado os termos de sua prisão domiciliar e provocaram uma ação para prendê-lo, o que Bolsonaro tentou evitar.

Quando os policiais federais se aproximaram da casa de Jefferson, o ex-político respondeu com tiros e granadas, antes de ser finalmente detido. Em qualquer outra eleição, este evento teria dominado o ciclo de notícias. Entretanto, a campanha de Bolsonaro conseguiu desviar a atenção dela, direcionando a conversa para uma suposta fraude nas inserções das campanhas na rádio.

Em outro incidente, desta vez em 29 de outubro, a deputada de direita Carla Zambelli sacou uma arma em público e perseguiu um homem em uma rua de São Paulo. Zambelli alegou que o homem a estava perseguindo por sua posição política e a tinha agredido fisicamente, embora provas em vídeo desmascaram essas acusações. Transportar armas de fogo, escondidas ou não, no dia anterior a uma eleição é ilegal no país.

No entanto, Zambelli desafiou abertamente a lei, declarando em uma entrevista na TV após o incidente que ela não reconheceu a decisão da STF sobre o assunto. Esta injeção de violência armada e intimidação na cena política mostra como os esforços de Bolsonaro corroeram o discurso público e a confiança nas instituições democráticas.

A fase final

Após o desempenho surpreendentemente forte de Bolsonaro no primeiro turno e as vitórias esmagadoras dos candidatos bolsonaristas nas eleições do Congresso, Senado e Governo, a campanha do presidente foi para a ofensiva, na esperança de que eles pudessem alcançar uma surpresa. Durante a primeira quinzena de outubro, o número de votos dos bolsonaristas aumentou continuamente.

Isto serviu como um alerta para a campanha de Lula e o ex-presidente fez uma série de movimentos para garantir que ele mantivesse sua vantagem sobre Bolsonaro. Talvez o mais polêmico de todos foi sua abordagem ao bloco evangélico.

Pastores evangélicos, que constituem uma poderosa força conservadora na política e na sociedade em sua maioria apoiaram Bolsonaro e sua postura moralista “pró-família”. A direita religiosa pregou ativamente contra todas as formas de política de esquerda e alegou que Lula fecharia as igrejas. O multimilionário televangelista Silas Malafaia ficou ao lado do presidente Bolsonaro em muitos de seus comícios de campanha e até viajou com ele para o funeral da Rainha Isabel II na Inglaterra.

Lula tentou afastar a base religiosa de seu oponente, incluindo referências a Deus em seus discursos e escrevendo uma “carta aos evangélicos” na qual ele procurava dissipar seus medos. Esta carta lembrava sua “Carta ao povo brasileiro” de 2002, na véspera de sua primeira vitória presidencial, que tentou combater as alegações de seus oponentes de que ele era um comunista disfarçado. O apelo pragmático aos valores tradicionais por Lula desanimou alguns de sua base, enquanto outros o viam como uma necessidade em uma eleição apertada.

Nos debates presidenciais de outubro, Bolsonaro também mudou de tática. Afastando-se de sua retórica agressiva e explosiva bem conhecida, Bolsonaro tentou cultivar a imagem de uma figura calma e civilizada, elogiando seu próprio mandato como presidente enquanto acusava Lula de tentar prejudicar sua reputação. Esta surpreendente mudança de tática funcionou bem para o presidente em exercício, colocando Lula na posição de defender a si mesmo e suas políticas.

A reorientação foi em grande parte o trabalho do chefe de campanha de Bolsonaro e seu segundo filho, Carlos, que por muitos anos foi o formador da imagem pública de seu pai. Junto com seus dois irmãos, Carlos se tornou um político de sucesso por mérito próprio. Ele é um parceiro do aliado de Donald Trump, Steve Bannon, e da empresa Cambridge Analytica, e tem se mostrado um mestre da desinformação nas redes sociais.

A derrota de Jair Bolsonaro pode trazer um fim à sua própria carreira política. Entretanto, seus filhos continuam ativos e influentes, e sua marca de autoritário reacionário e protofascista tem crescido mais forte desde sua vitória eleitoral em 2018.

A resposta de Bolsonaro

Odesprezo de Bolsonaro pelo processo democrático é bem conhecido. Ele forjou sua carreira política como apologista da ditadura militar e de seus torturadores. A cada passo, Bolsonaro tentou barrar as medidas democráticas a fim de garantir sua reeleição.

Ao longo de 2022, ele fez campanha para a instauração do voto por cédulas de papel no lugar das comprovadas e testadas urnas eletrônicas, alegando que essas urnas seriam inevitavelmente invadidas. Ele alegou ter provas de irregularidades (mas nunca as apresentou) e pediu aos militares que fizessem sua própria contagem dos votos.

Quando os governos estaduais liberaram o transporte público no dia da eleição para garantir maior comparecimento no primeiro turno, Bolsonaro tentou detê-los. No segundo turno, a Polícia Federal Rodoviária realizou blitz no trânsito perto das áreas de votação no nordeste, o reduto político de Lula. Isto constituiu um movimento de obstrução legal para a interferência ilegal.

O STF tornou oficial a vitória de Lula, proclamando que não há “nenhum risco de que os resultados sejam ameaçados”. O presidente da Câmara dos Deputados, aliado de Bolsonaro, Arthur Lira, também reconheceu publicamente o resultado. Estes pronunciamentos certamente tornarão mais difícil para Bolsonaro desafiar sua derrota.

No entanto, as eleições estabeleceram uma forte união de políticos bolsonaristas que fizeram campanha ativa em favor do presidente. Sua base se mostrou mais do que disposta a ignorar o processo democrático a fim de proteger seu líder. Será que o Brasil ainda pode enfrentar algo semelhante aos tumultos de 6 de janeiro no Capitólio, nos Estados Unidos?

Desafio e esperança

Em seu discurso de vitória, Lula comemorou seu retorno político: “Eles tentaram me enterrar, mas aqui estou eu”. Eleito pela primeira vez em 2002, Lula teve que moderar suas posturas de esquerda para governar um país tão diverso politicamente como o Brasil. Seu tempo no cargo foi altamente bem-sucedido e terminou com uma taxa de aprovação de 87%.

Na década de 2010, Lula viu seu partido, o PT, demonizado pela investigação tendenciosa de Sergio Moro. Moro prendeu Lula sob falsas acusações em 2018, bem a tempo de impedi-lo de concorrer à presidência contra Bolsonaro. O STF anulou sua condenação em 2019, permitindo que ele voltasse ao meio político, e agora ele conseguiu um terceiro mandato, vinte anos após sua primeira vitória presidencial.

No entanto, o Lula que saiu vitorioso ontem não é a mesma figura que se tornou presidente em 2002, e o país que ele irá governar também mudou. A fim de derrotar Bolsonaro, Lula se moveu cada vez mais em direção ao centro para ampliar seu apelo. Seu vice-presidente, Geraldo Alckmin, é um oponente ideológico da esquerda, junto com muitos de seus outros aliados. O apelo de Lula aos evangélicos também tem servido para fortalecer o lugar da religião na vida política brasileira.

O Congresso que o novo presidente irá presidir é muito mais conservador e hostil do que aquele com o qual ele trabalhou nos anos 2000. Lula enfrenta uma série de desafios assustadores, tais como reverter os danos causados à Amazônia, reconstruir as entidades sociais e ambientais que Bolsonaro destruiu, e combater a cultura de ódio e preconceito que o seu antecessor cultivava. Mas quaisquer que sejam as provações que possam surgir, sua vitória deu à democracia e ao debate público uma nova chance em um país que precisava desesperadamente de esperança.

Colaborador

Olavo Passos de Souza é doutorando em história pela Stanford University.

Bolsonaro perdeu, mas seguirá ditando ritmo da política

Presidente articulou melhor que outros políticos valores emergentes da sociedade

Miguel Lago

Cientista político, professor da Escola de Assuntos Públicos da Sciences Po (Paris) e da Escola de Assuntos Internacionais e Públicos da Universidade de Columbia (Nova York) e diretor do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS)

Folha de S.Paulo

Eleições costumam ser encaradas como forma de premiar ou punir o governo. O governante que melhora a vidas das pessoas seria reeleito ou elegeria seu sucessor. Aquele que piorasse a vida da população, não.

Em que pese a derrota, é surpreendente o sucesso eleitoral de Jair Bolsonaro (PL). A economia piorou, a fome voltou, as políticas públicas foram desmanteladas, milhares de pessoas morreram na pandemia por causa do comportamento do presidente e o futuro foi hipotecado. Em circunstâncias normais, não estaria sequer no segundo turno.

De onde vem a força de Bolsonaro? Alguns dirão que a sociedade brasileira é intrinsecamente conservadora e, portanto, preocupada com a preservação dos valores cristãos e da família. O capitão reformado seria aquele que melhor representa esse ideário.

Apoiadores de Bolsonaro acompanham a apuração das urnas na Esplanada dos Ministérios, em Brasília - Gabriela Biló/Folhapress

A conclusão me parece apressada e superficial. Bolsonaro não é conservador, muito menos representa os valores cristãos.

O conservadorismo político se construiu integralmente em oposição à ruptura e à revolução. Mudanças radicais são seu pesadelo, e toda a força política conservadora busca suavizar as mudanças, impedir os arroubos, as rupturas. O conservadorismo é, por essência, contrarrevolucionário.

Bolsonaro é um revolucionário de extrema direita. Nada em seu discurso se relaciona à tradição conservadora brasileira. Ao contrário, ele articula forças emergentes e insurgentes presentes em nossa sociedade: a religiosidade neopentecostal, a estética do agro e a sociabilidade de perfil.

O Brasil é o maior país católico do mundo, mas a força religiosa preponderante é a neopentecostal. Para grande parte dos fiéis católicos, a identidade católica não é definidora das escolhas do dia a dia, como é a neopentecostal.

Esta identidade condiciona todas as decisões, desde a forma de se vestir, se comportar, consumir e votar. Sua influência no comportamento dos brasileiros é muito maior. Ainda que minoritária do ponto de vista estatístico, ela pesa muito mais do que a grande maioria silenciosa e desarticulada.

Sobre o segundo ponto, o Brasil depende cada vez mais do agronegócio. Seu peso na economia tem sido crescente e acompanha a desindustrialização do país. Essa força econômica emergente articula uma estética própria.

A vestimenta de gaúchos e sertanejos, tão típica de nossa tradição rural, foi substituídas pela de caubói. O rodeio se tornou o grande festival do país, e a música que mais toca nas rádios brasileiras é uma espécie de country music cantada em português.

A posse e o porte de arma completam a composição deste novo "homem do campo". A promoção dessa nova estética é articulada pelo setor e difundida pelo país inteiro sob os slogans "o agro é pop", "o agro é tech" e daí por diante…

Quanto ao último ponto, a população brasileira está entre as maiores consumidoras de redes sociais do mundo. A sociabilidade de grande parte de nossos compatriotas se dá primordialmente através dos perfis de redes sociais. Somos aquilo que desejamos projetar em nossos perfis. O conhecimento foi substituído pela opinião, e o encontro na praça deu lugar à aventura narcísica.

Bolsonaro soube articular muito bem esse novo ambiente comunicacional com a identidade neopentecostal e a estética do agro. Seu movimento se tornou o fio condutor dessas forças propulsoras e a partir delas o capitão reformado construiu uma nova gramática política desprendida da lógica do "bom governo".

O que está em jogo é derrubar a tradição brasileira e substituí-la por uma nova visão de mundo. Para tanto é necessário eliminar o "inimigo" —nomeado como "a esquerda", mas, na realidade, o bolsonarismo tem como alvo as construções sociais e institucionais de décadas da sociedade brasileira.

O bolsonarismo representa uma ruptura política e cultural com a tradição brasileira. Quem vota em Bolsonaro não o faz por acreditar racionalmente que ele representará melhor seus interesses, mas por representar suas opiniões. Trata-se de um voto exclusivamente identitário.

Enquanto essas forças forem as identidades políticas preponderantes no país, o bolsonarismo seguirá ditando o ritmo da política. Bolsonaro perdeu neste domingo (30) nas urnas, mas o trabalho para derrotar o bolsonarismo na sociedade será imenso.

Opções golpistas encolhem e Bolsonaro encara abismo isolado

Se apostar na bagunça dos caminhoneiros, presidente enfrentará reação quase unânime

Folha de S.Paulo

Quando apareceu rapidamente em frente às câmaras para saudar o fim do processo eleitoral e abrir caminho para manter seu quinhão de poder no terceiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), Arthur Lira (PP) disparou a mais importante sinalização institucional da noite do domingo (30).

O presidente Jair Bolsonaro (PL) está mais isolado do que nunca, mesmo contando seu padrão insular de articulação política. O presidente da Câmara foi seguidos pelo do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD), e por toda a litania dos Poderes no reconhecimento do resultado das urnas.

Bolsonaro deixa o Palácio da Alvorada rumo ao Planalto na manhã desta segunda (31) - Evaristo Sá/AFP

Ninguém apareceu para gritar que houve fraude fora das redes robotizadas do bolsonarismo. Nenhuma Damares, nenhum Moro, nenhuma Zambelli. E os líderes mundiais rapidamente parabenizaram Lula, Joe Biden (EUA) à frente.

Ato contínuo, o mandatário máximo se comportou como criança que perdeu a partida e foi correndo para casa se trancar em um silêncio vexatório, digno de um João Figueiredo saindo do Planalto para não passar a faixa a José Sarney em 1985. E não pôde levar consigo a bola do jogo.

Ela ficou com seus aliados, após quase quatro anos de ameaças de ruptura de ordens diversas. Não que o potencial disruptivo do presidente tenha se exaurido por completo, como o silêncio que mantém até a confecção destas linhas indica e as barricadas em mais de 240 pontos de estradas federais provam.

Mas tudo indica que, ao contemplar o abismo em sua solidão, Bolsonaro se veja na posição descrita por Friedrich Nietzsche em 1886 e seja encarado de volta. E o que ele verá é uma pletora de ameaças a quaisquer manifestações golpistas daqui em diante.

Um importante presidente de partido de centro dizia nesta manhã que, se tentar amplificar a bagunça ensaiada desde domingo por seus aliados caminhoneiros, Bolsonaro irá encarar nada menos que a sugestão para que renuncie. Impeachment, se houvesse tempo hábil, estaria à mão também.

Outro líder, este do centrão que reabsorveu Bolsonaro e aproveitou-se de sua musculatura eleitoral para engordar a ponto de dominar de vez a Câmara e o Senado, diz que esforços estão sendo feitos para que o presidente entre em modo de resignação e entenda que só isso o salva de uma saraivada imediata de questionamentos jurídicos.

Pois o emprego da Polícia Rodoviária Federal na evidente tentativa de intimidar eleitores nordestinos, e na relatada inação em alguns pontos de bloqueio de estradas, configura crime de responsabilidade claro, mesmo na visão deste aliado. Não seria o primeiro para o qual o establishment fecharia os olhos em nome de não balançar ainda mais o barco.

Mas aqui voltamos ao abismo, ou seja, qual a contemplação que Bolsonaro faz. Nos delírios bolsonaristas, amparados no forte apoio a seus atos antidemocráticos, particularmente os feriados de 7 de Setembro de 2021 e neste ano, uma derrota para Lula implicaria um movimento de rua imediato em favor do presidente.

Até aqui, o que se vê são crimes contra o direito de ir e vir praticados por uma minoria importante e organizada, mas uma minoria. E todo o mundo político, salvo talvez os filhos de Bolsonaro, o áulico Walter Braga Netto e alguns generais do bolsonarismo, ex-usuários de farda ou não, já avisou que não entrará no jogo.

Emparedados ficam os militares, que foram instrumentalizados por Bolsonaro ao servir à sua campanha contra as urnas eletrônicas: como a Folha mostrou domingo, há pressão interna no Planalto para um relatório sugerindo fraudes a ser assinado pela Defesa.

Se não há nenhum indício de que apoiariam uma contestação com armas na mão, a movimentação nas estradas enseja o temor de uma querela institucional: algum governador pede para o Exército fazer o que a PRF não está fazendo e liberar estrada, e Bolsonaro nega a autorização, forçando a entrada do Supremo na discussão.

Mas essa hipótese extrema, com suas variantes, já se mostrou rejeitada pelo entorno ampliado de Bolsonaro, para não falar em seus adversários percebidos. Mais importante, há a posição do serviço ativo. O Alto-Comando do Exército, principal colegiado militar do país, sinalizou ao governo que não irá aderir a nenhuma contestação da eleição.

Um dos movimentos centrais nesse balé foi dado pelo assertivo presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Alexandre de Moraes. Ele matou no peito, para usar a expressão de gosto em Brasília, a cartada dada pela PRF no domingo. Chamou seu comandante para uma conversinha, conseguiu desmoralizar o processo golpista e, de quebra, não escalou a crise ao manter o cronograma das eleições.

Sem adiamento do pleito, tudo transcorreu com tensão, mas com formatação de naturalidade democrática. Resta saber se a tática do domingo seguirá a mesma, ou se o ministro irá usar o arsenal que tem à disposição para enquadrar o que resta do governo Bolsonaro.

Essa munição é outro componente do abismo à frente do presidente, que de resto sempre trabalhou com a hipótese de que poderia ser preso assim que perdesse o foro privilegiado. Agora a data está estabelecida, e o modelo Roberto Jefferson ou Carla Zambelli de reação ronda conversas de adversários e aliados.

Bolsonaro vende a ideia de que algum tipo de imunidade para si e sua família garantiria a estabilidade pós-derrota. O problema, para ele, é a credibilidade de sua tática mesmo entre quem lhe dá sustentação.

Cinco Guerras em Uma

Análise da guerra pela Ucrânia como a colisão de cinco tipos diferentes de conflito, distintos em suas origens, meios e fins, cuja interligação produziu uma dinâmica de escalada perigosa.

Susan Watkins


NLR 137 • Sept/Oct 2022

Susan Watkins

Cinco Guerras em Uma

A Batalha pela Ucrânia

Uma análise clássica da Segunda Guerra Mundial a define como o resultado de cinco tipos diferentes de conflito.[1] Primeiro, uma guerra entre as principais potências imperialistas — Alemanha, Japão, EUA e Grã-Bretanha — competindo pela posição de hegemonia mundial. Para isso, as potências desafiantes precisavam tanto afirmar o controle sobre uma região-chave — para o Japão, a China e o Sudeste Asiático; para a Alemanha, a União Soviética Ocidental e o Cáucaso ("nossa Índia") — quanto infligir um golpe devastador em quaisquer potências imperialistas que tentassem bloqueá-las: no caso do Japão, os EUA, que não tinham intenção de permitir um concorrente no Pacífico; no caso da Alemanha, a França e a Grã-Bretanha, que não desejavam ver a Europa dominada por Berlim.

Inicialmente, essa guerra interimperialista foi travada em dois teatros de operações distintos: o Norte da Europa — primeiro a Polônia, depois a Bélgica, a Holanda, a França, a Dinamarca e a Noruega, que caíram para a Wehrmacht em 1940; Barbarossa foi lançada no verão seguinte — e no Pacífico, onde o embargo do FDR ao fornecimento de petróleo e a intransigência nas negociações levaram Tóquio, em 1941, a adicionar Malásia, Cingapura e Indonésia às suas conquistas na China e na Indochina Francesa, e a tentar derrubar a frota americana no Havaí. Os dois teatros de operações se interligaram quando os EUA entraram na guerra e o Reino Unido, seu devedor, tendo sobrevivido à Batalha da Grã-Bretanha, transferiu suas forças para o Oriente Médio para defender seus campos de petróleo no Iraque e no Irã e o vasto império que se estendia do Egito e da África Oriental, passando pela Índia, Birmânia, Malásia e Cingapura, até Hong Kong e o Pacífico. Essa guerra interimperialista foi vencida decisivamente pelos EUA, que esmagaram a Alemanha e o Japão e enfraqueceram a Grã-Bretanha e a França, emergindo como a nova potência hegemônica mundial.

O segundo tipo de guerra foi a autodefesa da URSS contra a invasão alemã, protegendo as conquistas de 1917 da contrarrevolução nazista, reconstruindo o Exército Vermelho e, então — enquanto os Aliados Ocidentais estavam presos por defesas alemãs surpreendentemente robustas no norte da Itália e na Renânia-Ardenas — avançando para o oeste em 1944-45, com a retirada da Wehrmacht e o desmoronamento dos regimes de colaboração nazista em Bucareste, Sófia, Vilnius, Tallinn, Varsóvia, Budapeste e Viena. A URSS emergiu da guerra como a segunda potência mundial, com controle sobre a Europa Oriental. Embora Moscou tenha permitido a entrada de tropas ocidentais em Viena e Berlim, uma vez que a Doutrina Truman foi posta em prática, Stalin impulsionou "revoluções de cima" militar-burocráticas, esmagando forças de esquerda independentes e legando "um legado político feio" que marcaria a situação do pós-guerra.

Diferente disso, houve um terceiro tipo de guerra, travada pelo povo chinês contra o imperialismo japonês, que se desenvolveria em uma revolução social assim que o apoio dos Aliados ao Kuomintang fosse cortado. Em quarto lugar, e novamente distintas, foram as guerras de libertação nacional travadas por forças anticoloniais que se recusaram a lutar por seus senhores franceses, britânicos, holandeses e americanos na Indochina, Birmânia, Malásia, Indonésia e Filipinas, às quais se juntou o movimento Quit India; essas lutas novamente se voltaram para a revolução social na Indonésia e na Indochina. Em quinto lugar, os movimentos de resistência armada da Europa ocupada pelos nazistas, que em vários casos — Iugoslávia, Albânia, Grécia — assumiram o caráter de levante nacional, revolução ou guerra civil, enquanto processos paralelos na França e na Itália testemunharam o surgimento de partidos comunistas de massa. A entrada de forças sociais independentes vindas de baixo no turbilhão do conflito interimperialista, por meio dessas "guerras justas" de resistência e libertação nacional, desempenharia um papel significativo na formação dos primeiros trinta anos da ordem do pós-guerra.[3]

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Será que esse tipo de perspectiva analítica pode lançar alguma luz sobre a atual guerra pela Ucrânia? Os contrastes de escala e destrutividade entre os dois conflitos — 80 milhões de pessoas pereceram entre 1939 e 1945 — dificilmente precisam ser enfatizados. Mais do que isso, a situação histórica mundial não apenas mudou, mas foi invertida. A equivalência aproximada de potências em conflito deu lugar a uma super-hegemonia mundial de um novo tipo, equipada com uma poderosa ideologia universalista e detentora de um poderio militar e financeiro sem precedentes, para quem qualquer Estado resistente à sua penetração econômica e política é, por definição, um adversário de algum tipo. Economicamente, o boom do pós-guerra deu lugar à desindustrialização da longa recessão, sustentada apenas por bolhas financeiras, engenharia monetária e crescentes dívidas. Socialmente, uma ofensiva capitalista liderada pelos EUA reverteu os termos do pós-guerra: em vez da crescente militância da classe trabalhadora, a mão de obra industrial foi rebaixada, terceirizada e considerada uma perdedora ressentida. A China revolucionária empobrecida é a segunda maior economia, sob o domínio digitalmente aprimorado do Partido Comunista Chinês (PCC). A URSS se dissolveu e os EUA instalaram uma espécie de capitalismo em todo o antigo Bloco Soviético. A hierarquia de potências em guerra na Ucrânia, suas economias e classes, contrasta fortemente com as de 1939-1945.

No entanto, a guerra de 2022 também é internacional, travada em frentes econômicas, ideológicas e militares, dividindo as potências mundiais e mobilizando uma ampla gama de Estados como participantes ou apoiadores, se não combatentes.[4] Ao entrar em seu nono mês, pode ser útil distinguir os diferentes tipos de conflito envolvidos — analisar suas origens, bem como suas causas imediatas; os objetivos, estratégias, coesão interna e recursos materiais e ideológicos dos beligerantes — e refletir sobre como estes alimentam a dinâmica da conflagração mais ampla. O que se segue é inevitavelmente esquemático, escaneando o caráter complexo dos atores e, sem dúvida, obscurecido em alguns pontos pela névoa da guerra e pelas informações limitadas disponíveis sobre questões-chave. É oferecido no espírito de um primeiro corte que certamente precisará de nuances e correções. Mas, primeiro, como em toda guerra, a análise deve levar em conta os determinantes regionais específicos.

O cenário geográfico e geopolítico da Ucrânia, que se estende por quase mil milhas através das terras marginais do Dnieper, há muito tempo deixou seu território vulnerável à penetração de potências externas — no entanto, com frequência, esses forasteiros foram convocados por forças locais em conflito. Não há necessidade de retornar às invasões mongóis, ou à imposição do domínio aristocrático-católico sob a Comunidade Polaco-Lituana do século XVII e ao apelo dos cossacos rebeldes ao Czar. Durante a Primeira Guerra Mundial, forças austro-húngaras e czaristas-kerenskianas se espalharam por essas terras, um dos principais teatros de operações da Frente Oriental. De 1917 a 1922, a região tornou-se a Frente Sul da Guerra Civil: a Rada Central em Kiev solicitou ajuda de Berlim e Viena para combater os sovietes de Kharkiv, Odessa e Donets, bem como os anarquistas de Makhno em Zaporizhzhia; a Polônia anexou a região de Lviv, com a bênção da Conferência de Paz de Paris; forças brancas apoiadas pelo Ocidente e insurgentes independentistas de diversas tendências, do socialista ao neofascista, lutaram contra o Exército Vermelho de Kiev à Crimeia. Antes do fim da década de 1920, as depredações de Stalin começaram a pavimentar o caminho para a conquista da Wehrmacht e a luta de vida ou morte da Segunda Guerra Mundial. O Estado recém-nascido, eclodido da dissolução furtiva da União Soviética na noite de 8 de dezembro de 1991 pela troika de Belavezha, Yeltsin, Shushkevich e Kuchma, não escaparia dessa lógica. Em um país dividido, forças rivais convidariam forasteiros a entrar.

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Quais são os principais tipos de conflito em jogo hoje? Analiticamente, partindo do menor para o maior, não há como evitar a questão do conflito civil dentro da própria Ucrânia. Por si só, isso não poderia ter gerado uma guerra internacional; no entanto, a luta não poderia ter se intensificado sem ela. Na sua raiz estava a dissolução repentina da URSS, que transformou a pluralidade russa em uma série de grandes minorias dentro dos novos Estados-nação. Na Ucrânia, a própria classe dominante estava politicamente dividida, com alguns oligarcas e seus partidos tendendo mais para Moscou, outros para Washington, Berlim e Varsóvia, enquanto os mais poderosos cultivavam relações suavemente cosmopolitas com todos os lados. Socialmente, as divisões entre a região da ferrugem e a metrópole se estendiam não apenas além das fronteiras, mas também das diferenças linguísticas, dos regimes de acumulação e até mesmo dos modos de produção. A esperança bolchevique de que, dentro de sua república soviética compartilhada, o proletariado industrial da Bacia do Donets fosse um farol para a Ucrânia ocidental conservadora foi invertida. Em 2014, um estudante em Kiev poderia dizer sobre os trabalhadores do Donbass: "Lá são todos sovoks. Não conseguem evitar."[5]

Os eventos de Maidan ("praça") de 2014 — a derrubada do governo pró-Moscou Yanukovych por uma revolta popular em Kiev, enfrentada por contraprotestos no leste, onde se encontrava a maior parte de sua maioria eleitoral — colocaram imensa pressão sobre essas relações. A oposição ao novo governo era ampla; no final de fevereiro, cerca de 3.500 autoridades eleitas se reuniram em uma conferência anti-Maidan em Kharkiv. No dia seguinte, o parlamento de Kiev revogou as proteções ao russo como língua regional. As revoltas anti-Maidan no leste da Ucrânia copiaram o modelo de Kiev de ocupação de praças centrais e tomada de prédios governamentais. As forças de segurança também estavam divididas; em algumas áreas, a polícia local não fez nenhuma tentativa de deter os manifestantes anti-Maidan. Este foi um fator crucial para seu sucesso. Em cidades como Kharkiv ou Odessa, a autoridade de Kiev prevaleceu. Em cidades pobres como Donetsk e Luhansk, milícias populares compostas por mineiros, caminhoneiros, seguranças e desempregados locais invadiram os escritórios da administração regional e declararam repúblicas populares, elegendo como líderes empresários locais ou ex-comandantes militares. No caos dos primeiros dias, havia poucos "voluntários russos" em cena.[6]

A militarização da divisão política foi lenta e desigual. Se os primeiros tiros simbólicos foram os dos atiradores de elite em Kiev disparando contra os manifestantes do Maidan, ainda não está claro se eram forças de segurança do regime ou, como sugere a análise das evidências forenses, militantes de extrema direita das fileiras dos manifestantes.footnote7 Certamente, o novo Ministro do Interior, Arsen Avakov, integrou os combatentes de rua de extrema direita do Pravy Sektor à Guarda Nacional antes de enviá-la para reprimir os "terroristas" no leste. Em Mariupol, forças do Ministério do Interior aparentemente massacraram vinte pessoas, incluindo policiais locais que se recusaram a reprimir os protestos locais contra o Maidan. Em Odessa, por outro lado, as forças civis enfrentaram-se: cerca de 2.000 adeptos de futebol nacionalistas, armados com armas improvisadas, atacaram um acampamento de 300 manifestantes pró-Rússia na praça central; quarenta dos manifestantes morreram quando os nacionalistas incendiaram as sedes sindicais onde tinham tentado barricar-se para se protegerem.[8]

Os dois lados do conflito civil eram um adversário desigual. O novo governo em Kiev não só possuía os recursos do Estado — em junho de 2014, sua força aérea e artilharia estavam bombardeando as cidades rebeldes de Donbass — como também era mais politicamente focado e socialmente coeso, unido pela antipatia à Rússia e pela perspectiva de se juntar ao Ocidente. As demandas dos orientais eram mais difusas: federalização, autonomia regional; inicialmente, menos de um terço era a favor da secessão total. Eles não tinham uma estratégia propriamente dita. Ideologicamente, os primeiros protestos basearam-se sobretudo na noção de autodeterminação democrática, espelhando o Maidan. A isso, o ambiente de clubes de veteranos e associações de artes marciais de onde as milícias eram oriundas adicionou uma camada russo-nacionalista mais rigorosa, legitimada pelo mito do Kremlin de uma mobilização antifascista contra a "junta de Kiev".

Ambos os lados buscaram ajuda em potências externas. O Departamento de Estado tinha uma grande presença em Kiev há muito tempo, e os países da UE financiavam uma série de ONGs. Elas apoiaram a oponente de Yanukovych nas eleições de 2010, a nacionalista Yulia Tymoshenko, e apoiaram o levante de Maidan contra ele. Victoria Nuland, a mulher de confiança do governo Obama, esteve intensamente envolvida nas nomeações para o novo bloco governante em Kiev, que incluía oligarcas pró-ocidentais, neoliberais, ONGs de direitos humanos, nacionalistas linha-dura e elementos da extrema direita. Washington ignorou um acordo entre Yanukovych e a oposição, garantido pela Alemanha, Polônia e França, para uma transição pacífica, eleições antecipadas e o retorno à Constituição de 2004, e fez vista grossa ao violento ataque final ao prédio da Administração Presidencial. A equipe de Obama, incluindo o vice-presidente Biden, almejava um resultado mais conclusivo para o vaivém leste-oeste do poder político na Ucrânia. Em resposta, Putin assumiu o controle da Crimeia, de maioria russa, onde Moscou já tinha direitos de base para sua frota e para uma força de 25.000 homens — ativos que considerava ameaçados pelo novo regime em Kiev. Obama declarou isso um ultraje ao direito internacional e impôs sanções.

A anexação tranquila da Crimeia aumentou a esperança entre as milícias rebeldes de que Putin também as socorreria. Em vez disso, a Rússia enviou apenas o necessário para manter as repúblicas populares em funcionamento — incluindo apoio armado secreto, na operação Vento do Norte de agosto de 2014 — sem oferecer reconhecimento oficial. Em 2015, Putin forçou seus representantes relutantes a assinar os Acordos de Minsk, que restringiram sua expansão. O objetivo de Moscou era impedir a entrada da Ucrânia na OTAN, não a libertação do Donbass. Ao mesmo tempo, Washington armava e treinava as forças de Kiev, sugando o oxigênio dos Acordos de Minsk. Sob Biden, o ritmo acelerou. Em 2021, a Ucrânia participou de extensos exercícios militares e navais com potências da OTAN e assinou um novo acordo de "Parceria Estratégica" com os EUA. O resultado do conflito civil foi, portanto, um impasse armado externo. Em um contexto em que a maioria dos ucranianos permaneceu politicamente passiva, as intervenções russas e americanas — cada uma a convite de forças partidárias — serviram para fortalecer a dinâmica conflituosa.

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A guerra de Putin, o segundo tipo de conflito em jogo, tem um caráter duplo ambíguo, definido por seus adversários gêmeos, a OTAN e a Ucrânia. Por um lado, a mobilização da Rússia começou como uma aposta defensiva desesperada contra o avanço do poder militar dos EUA. Por outro, a invasão é uma guerra neoimperialista de conquista ou partição, de escopo variável, provocada pela opção declarada de Kiev pela incorporação ao Ocidente. Analiticamente, os dois aspectos da guerra são distintos em suas origens, objetivos e ideologias. O aspecto defensivo – as apreensões do Kremlin com o avanço do armamento americano até sua porta – antecede em muito qualquer relevância política para um "mundo russo" reconstituído. Suas origens residem na constituição da OTAN como uma aliança militar ofensiva sob comando dos EUA, visando Moscou desde o início. Reutilizada para operações fora de área após o fim da Guerra Fria, a exclusão da Rússia pela OTAN serve claramente para definir uma relação assimétrica entre amigos e inimigos. Por mais subserviente que tenha sido o apoio do Kremlin às operações americanas no Afeganistão e em outros lugares, seus pedidos por uma conclusão negociada para o avanço da OTAN em direção ao leste — Munique em 2007, Bucareste em 2008, as repetidas diligências russas em 2021 — sempre foram rejeitados.

Diante disso, a estratégia racional de Moscou foi equilibrar-se contra Washington com outros forasteiros, tentando ampliar quaisquer fissuras dentro da aliança atlântica e fortalecer sua própria posição. A aceleração do realinhamento ocidental da Ucrânia a partir de 2014 levou a situação a um ponto crítico, talvez agravado pela preocupação de Putin com seu lugar na história e pela consciência de que o tempo estava se esgotando. Sua primeira jogada foram os Acordos de Minsk, que teriam garantido à Ucrânia uma potência neutra sob uma constituição confederada. Por essa razão, foram implacavelmente contestados pelos nacionalistas ucranianos, com apoio tácito dos EUA. Em 2021, o governo Biden acelerou a integração da Ucrânia como "parceira" da OTAN e Kiev anunciou em um novo documento de estratégia militar que contava com "apoio militar da comunidade mundial no confronto geopolítico com a Federação Russa". Isso levou Putin a arriscar escalar a diplomacia coercitiva em setembro de 2021, apoiando suas demandas com uma mobilização em larga escala. Mas, na ausência de qualquer rota de fuga para apaziguar a tensão, a recusa de Biden em aceitar negociações reais ajudou a transformar a postura defensiva da Rússia contra a OTAN em uma postura neoimperialista agressiva em relação à Ucrânia.

Embora ofuscada por erros no centro do país — o ataque fracassado de paraquedistas a Kiev, o congestionamento de 64 quilômetros de tanques paralisados ​​e a incapacidade de destruir as defesas aéreas ucranianas — a estratégia militar da Rússia no sul e no leste não foi tão desastrosa quanto a imprensa ocidental apregoa. A Rússia ocupa 20% do território ucraniano, um bloco sólido contíguo ao seu. A reconstrução começou em meio às ruínas de Mariupol, com 30.000 trabalhadores da construção civil recebendo o dobro dos salários nacionais.footnote10 Materialmente, a Rússia ainda possui recursos profundos para uma guerra de atrito: uma indústria de armamentos substancial, apoiada por uma base industrial que vem migrando para a substituição de importações desde as sanções de 2014; mão de obra suficiente para rotacionar as tropas durante o inverno, após a mobilização de setembro de 2022; e, apesar dos corajosos protestos antiguerra e do êxodo de homens em idade de lutar, um grau não desprezível de coesão social, inspirado nos tropos ainda vívidos da Segunda Guerra Mundial. Nenhum deles durará indefinidamente. O apoio à guerra ainda é de 72%, de acordo com pesquisas de opinião, abaixo dos 80% em março; mas aqueles que acham que a "Operação Militar Especial" é geralmente bem-sucedida caíram de 68% para 53%, com um sentimento comum de que "já dura há muito tempo".footnote11 Os rostos da nomenklatura de Putin, reunidos sob os lustres do Grande Salão do Kremlin enquanto ele anunciava a adesão das quatro novas regiões - Donetsk, Luhansk, Kherson e Zaporizhzhia - à Federação Russa no final de setembro, eram um estudo de inquietação e melancolia.

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Russia’s invasion generated a third type of conflict: Ukraine’s war of national self-defence. Kiev faced stiff odds: seu orçamento anual de defesa pré-2022 era de US$ 5 bilhões, contra US$ 65 bilhões da Rússia. A população da Ucrânia era menos de um terço da russa, e seu PIB, um oitavo. Mas o recrutamento universal masculino equilibrou as chances nas forças terrestres, e a Ucrânia já estava bem equipada com mísseis, defesas aéreas e as estruturas de TI, logística e comando que os EUA vinham implementando desde 2015. Enquanto milhões de refugiados fugiam para a Polônia, equipamentos militares ocidentais eram transportados pela fronteira em caminhões em quantidades industriais, apoiados por bilhões em ajuda. A recusa de Zelensky em se alojar na Polônia foi simbólica da vontade de resistir.

O trauma da invasão inevitavelmente forjou uma nova consciência nacional na Ucrânia. Após a revolta de Maidan em 2014, dois terços dos ucranianos achavam que o país estava "indo na direção errada", com uma breve exceção para os movimentos de paz em 2019; agora, mais de 75% acham que está indo na direção certa. Uma esmagadora maioria acredita que a Ucrânia vencerá a guerra, mesmo achando que isso pode levar um ano ou mais. O orgulho pela Ucrânia aumentou de 34% em agosto de 2021 para 75% um ano depois.footnote12 Isso veio ao preço de um ódio visceral pelos russos — "os orcs" — cujos termos Zelensky compartilha: "Até que sejam esmagados na cara, eles não entenderão nada", disse ele ao Wall Street Journal.footnote13 Em agosto de 2022, 81% dos ucranianos relataram que se sentiam "frios" ou "muito frios" em relação ao povo russo, e quase metade via as populações das repúblicas populares de Donetsk e Luhansk da mesma forma hostil. A proporção de pessoas que acham que o ucraniano deve ser a única língua oficial aumentou de 47 para 86%. Uma clara maioria dos jovens acha que será impossível restaurar relações amigáveis ​​entre a Ucrânia e a Rússia; outros 28% acham que levaria pelo menos vinte ou trinta anos. Dadas as genealogias mistas e as famílias extensas transfronteiriças na região, isso se traduz em inúmeros relacionamentos tensos ou rompidos; um terço dos ucranianos define seu sentimento predominante como luto.footnote14

A estratégia militar ucraniana tem se baseado em apelos internacionais por mais ajuda, apoiados por um coro de políticos dos países bálticos que proclamam sua disposição de morrer pela liberdade. Ideologicamente, isso tem sido altamente bem-sucedido, embora as somas não sejam tão grandes: medidos em euros, os EUA comprometeram € 27,6 bilhões em ajuda militar e € 15,2 bilhões em ajuda financeira desde janeiro, em comparação com € 2,5 bilhões em ajuda militar e € 12,3 bilhões em ajuda financeira da UE.footnote15 Mas, embora a ajuda ocidental tenha nivelado o campo de batalha, ela não deu à Ucrânia uma vantagem decisiva. Em julho, equipadas com sistemas de foguetes Himars de 90 kg guiados por GPS, mísseis antiaéreos lançados do ar, mais de 800.000 projéteis de artilharia de 155 mm e treinamento intensivo da OTAN, as forças ucranianas conseguiram desacelerar e, em seguida, conter o avanço russo, aldeia por aldeia, através do Donbass. Anúncios semanais do Pentágono sobre novos carregamentos de armas mantiveram o ritmo, e as forças de operações especiais da OTAN detonaram explosões atrás das linhas russas. Operações mais complexas dependem fortemente da ajuda dos EUA. Português Quando em julho Zelensky, precisando de uma vitória de algum tipo para provar que a guerra não estava se tornando um conflito congelado e consolidar o apoio ocidental, propôs uma ofensiva ao sul, atacando Kherson, cortando Mariupol do leste e tomando Zaporizhzhia, os oficiais do Pentágono foram mordazes — as posições russas lá estavam bem reforçadas — e, em vez disso, elaboraram planos para uma surtida em pequena escala de quinze tanques na zona quase vazia a sudeste de Kharkiv, devidamente aclamada como uma contra-ofensiva revolucionária pela imprensa ocidental leal.[16] A captura mais significativa de Lyman atraiu menos atenção.

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O quarto tipo de conflito, então, é o que está sendo travado pelo governo Biden. Um ex-chefe da CIA o descreve como uma guerra por procuração: os EUA explorando a coragem dos ucranianos e sua vontade de lutar contra os russos, como — por exemplo — outrora armaram e aconselharam os curdos de Rojava.footnote17 Mas, se for assim, este é apenas um aspecto da guerra de Washington. Na frente econômica, as somas envolvidas são muito maiores do que aquelas que fluem para a Ucrânia. O governo Biden congelou cerca de US$ 400 bilhões das reservas cambiais da Rússia, grandes bancos russos foram impedidos de acessar rapidamente, empresas russas estão impedidas de comprar componentes cruciais e grandes empresas ocidentais — Shell, BP, a gigante do transporte marítimo Maersk — estão deixando a Rússia. Notoriamente, as sanções saíram pela culatra no curto prazo, com o aumento dos custos de combustível e alimentos aumentando as receitas de exportação da Rússia. No entanto, o objetivo das sanções de Biden não era apenas colocar um estrangulamento econômico na invasão da Ucrânia; Seus objetivos, explicou a revista The Economist, são mais abrangentes — "prejudicar a capacidade produtiva e a sofisticação tecnológica da Rússia" e dissuadir a China. Nota de rodapé 18

As origens do tratamento hostil de Washington à Rússia pós-soviética remontam aos debates de política externa dos EUA após a Guerra Fria. O principal arquiteto da estratégia foi Zbigniew Brzezinski, Conselheiro de Segurança Nacional de Carter. Nascido em 1928 perto de Lviv, então parte da Polônia, ele era filho de um diplomata destacado para o Canadá no final da década de 1930 e um guerreiro frio comprometido. Na era pós-comunista, argumentou Brzezinski em "O Grande Tabuleiro de Xadrez" (1997), a questão estratégica central para Washington era como exercer a primazia americana sobre a Eurásia, a massa terrestre central do mundo — o que significava lidar, antes de tudo, com o enorme buraco negro que era a Rússia pós-soviética. Brzezinski alertou que as elites russas ficariam ressentidas com o desmembramento de seu Estado e especialmente magoadas com a perda da Ucrânia. Para evitar que qualquer revanchismo se enraízasse nesse solo fértil, a grande estratégia americana deveria estender a OTAN às fronteiras da Rússia e construir uma barreira contra elas, abrangendo Ucrânia, Azerbaijão e Uzbequistão. Esse fato consumado — e, idealmente, a divisão da própria Rússia em três Estados mais administráveis ​​— deveria persuadir o Kremlin a aceitar um futuro mais modesto, como uma espécie de lacaio da UE. Essa foi a estratégia adotada pelo governo Clinton e implementada pela protegida de Brzezinski, Madeleine Albright, como Secretária de Estado — contra a oposição apaixonada de muitos membros da elite da política externa dos EUA.[19]

Quinze anos depois, Brzezinski mudou de ideia, explicando em Strategic Vision (2012) que a Rússia deveria, na verdade, ser totalmente integrada às instituições ocidentais e que a China era a potência mais problemática. A essa altura, já era tarde demais. As forças americanas estavam em solo ex-soviético no Báltico, a Casa Branca havia declarado que a Geórgia e a Ucrânia se juntariam à OTAN e a perspectiva de integração ocidental já exercia uma forte influência sobre políticos e formadores de opinião em Kiev. Dentro de alguns anos, Nuland ajudaria a nomear o novo primeiro-ministro da Ucrânia e comandos russos das Forças Especiais guardariam as entradas do Conselho Supremo e do Conselho de Ministros da Crimeia. A anexação da Crimeia não foi de forma alguma o pior dos atos de Putin, realizada com o mínimo de força e um alto grau de apoio local — o oposto de sua guerra contra a Chechênia. Mas, para o governo Obama, foi um insulto inconcebível ao governo que Washington acabara de ajudar a estabelecer, um ato de lesa-majestade contra os próprios Estados Unidos, que não podia ser permitido continuar.

Os recursos americanos superam em muito os da Rússia, não apenas no campo da inteligência, mas também na qualidade de seu arsenal nuclear, no qual Obama esbanjou uma atualização de trilhões de dólares no auge da Grande Recessão. Mas, mesmo com os planejadores do Pentágono supervisionando os campos de batalha do Dnieper, apenas uma pequena fração do armamento americano está indo para a Ucrânia (e muito menos dos compatriotas europeus de Zelensky). Resta saber se uma potência industrial como a Rússia pode ser derrotada por forças substitutas. Ideologicamente, a coragem dos ucranianos e as atrocidades amplamente divulgadas cometidas pelas forças de Putin no campo de batalha galvanizaram o apoio a Kiev nos EUA e na Europa com muito mais eficácia do que os sermões sobre democracia e autocracia do fantasma sorridente na Casa Branca poderiam ter feito. A ideologia oficial depende, é claro, da manutenção da farsa de que "a Ucrânia decidirá". Na realidade, a Ucrânia é uma suplicante no cenário internacional, dependente de armas e inteligência americanas. Zelensky foi colocado em seu lugar por tuitar ruidosamente que os EUA deveriam fazer mais — sendo severamente advertido por Biden de que não deveria parecer ingrato por toda a ajuda americana que está recebendo. Nota de rodapé 20 Zelensky moderou devidamente seus tuítes. Sua demanda por adesão acelerada à OTAN em setembro — recebida com gritos de alegria de Riga, Tallinn e da pequena e corajosa Ottawa — foi friamente reprimida pelo Conselheiro de Segurança Nacional Jake Sullivan, e Zelensky foi publicamente repreendido por um ex-embaixador dos EUA em Kiev.

O caráter do conflito do governo Biden com a Rússia é inequivocamente "imperialista", no sentido de que visa à mudança de regime e à afirmação da hegemonia americana sobre o continente eurasiano. Mas não está claro se Biden tem um caminho para seguir adiante. Seu governo não planejou uma guerra dessa escala: é um presente inesperado, como a invasão do Kuwait por Saddam Hussein em 1990; No entanto, a mudança de regime no Iraque levou quase treze anos, com resultados evidentes. Em muitos aspectos, a invasão russa foi uma bênção para Biden, mesmo que o impulso doméstico não tenha se refletido em seus índices de aprovação, e um grande ganho na consolidação da Europa com Washington. Em outro sentido, a guerra na Ucrânia é uma enorme distração da verdadeira prioridade dos democratas: a revitalização doméstica para garantir a primazia americana na rivalidade estratégica com a China, onde os EUA também esperam ver outro tipo de regime instalado no devido tempo. Aqui, o espectro de um quinto tipo de conflito intervém, superdeterminando as reações de Washington à Ucrânia: a iminente batalha com Pequim. Os paralelos entre Ucrânia e Taiwan foram traçados incessantemente no inverno de 2021 e nos primeiros meses de 2022 como razões para não negociar com Putin. Autoridades de Biden usaram o argumento de que "a China estará observando" como base para uma resposta dura dos EUA: qualquer "saída" para Putin seria interpretada por Pequim como um sinal de que o poder americano estava se erodindo. Uma das principais preocupações de Biden tem sido limitar os custos, tanto em termos de atenção da Casa Branca quanto de baixas americanas, enquanto ele prossegue com sua agenda de política interna e externa. A perspectiva de um conflito sino-americano, o verdadeiro foco dos últimos três governos em Washington, é o fator decisivo que determina a dinâmica da guerra na Ucrânia.

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A interação entre esses diferentes tipos de conflito — civil, revanchista defensivo, resistência nacional, primazia imperial, sino-americano — impulsionou uma dinâmica de escalada implacável. Após a militarização do conflito civil em 2014, Washington e Moscou alimentaram as forças de cada lado da Linha de Contato. A invasão de Putin, a escalada decisiva, foi então enfrentada pela mobilização militar e econômica de um bloco muito maior, orquestrado do outro lado do Atlântico, com um olho no conflito do Pacífico que se aproximava. Instigada pelos belicistas de trinta Estados não combatentes, essa dinâmica pode ser impossível de reverter.

O caráter instável dos objetivos de guerra dos combatentes é um produto dessa escalada. Em março, a posição de Kiev nas negociações de paz de Istambul era a favor da neutralidade (hipergarantida) e da retirada das forças de Moscou para as linhas pré-invasão. Em abril, os EUA puxaram o tapete das negociações russo-ucranianas, transmitindo a mensagem de que, para o Ocidente, Putin não seria um parceiro de negociação. Nota de rodapé 21 Hoje, Kiev exige a ucranianização total da Crimeia. Moscou queria um tratado com a OTAN e acabou em uma guerra devastadora. Washington almejava a extensão indolor de sua hegemonia por toda a Europa Oriental e, em vez disso, teve que lidar com os preços inflacionários dos combustíveis, à medida que eleições importantes para o Congresso se aproximavam. Observando as abstenções e os votos contra sobre a Ucrânia na ONU em outubro, Brzezinski poderia ter apontado que Washington está precisamente perdendo apoio na Eurásia – Índia, Paquistão e Sri Lanka, bem como nas repúblicas da Ásia Central, China, Irã, Vietnã e Laos – e em dois terços da África, da Argélia, Sudão e Etiópia à República Democrática do Congo, Uganda, Tanzânia, Moçambique, Zimbábue e África do Sul. Os EUA ficaram com a OTAN e os estados da ASEAN, além da (maior parte) da América Latina.

O resultado da dinâmica de escalada foi, em primeiro lugar, um aprofundamento desastroso do conflito civil ucraniano. Os desenvolvimentos sociais ali desencadeados foram profundamente regressivos, o oposto da Segunda Guerra Mundial. A principal legislação pré-guerra de Zelensky foi um ato de privatização de terras, profundamente impopular. Agora, em meio a uma crise econômica crescente, na qual mais de um milhão de trabalhadores foram demitidos e 7% do parque habitacional foi destruído — e com o desemprego chegando a 35%, embora milhões de pessoas em idade produtiva tenham deixado o país —, a direita no governo Zelensky, a maioria, aproveitou a oportunidade para aprovar um projeto de lei que exclui até 70% da força de trabalho das proteções trabalhistas existentes, uma medida bloqueada pela oposição sindical antes da guerra. O conflito civil continua nas zonas reconquistadas, em meio à morte e à desolação, enquanto os "colaboradores" da ocupação russa são presos para punição.

A autodefesa de Moscou contra a OTAN e as tentativas de forçar um acordo com Washington foram decisivamente derrotadas. Qualquer que seja o status formal do país, a OTAN será implantada na Ucrânia em um futuro próximo. Com a adesão da Suécia e da Finlândia, a Rússia terá uma nova fronteira de 1.288 quilômetros com o bloco e o Báltico será um lago da OTAN, com Kaliningrado sendo uma anomalia isolada. A menos que haja novos desenvolvimentos dramáticos antes do inverno, a guerra de conquista territorial da Rússia parece destinada a se transformar em um atrito defensivo que acabará por ter um alto custo econômico. Ao mesmo tempo, a menos que os EUA mudem radicalmente seu jogo, a Ucrânia não parece ter uma estratégia militar para recuperar o quinto perdido de seu território. Se, como Zelensky agora afirma, seu objetivo é a reconquista da Crimeia, a guerra de Kiev também assumirá um caráter neoimperial, subjugando regiões rebeldes. Até agora, a única tática do governo Biden para alcançar a mudança de regime na Rússia é prolongar a guerra. Enquanto isso, o documento verdadeiramente assustador da OTAN, o "Conceito Estratégico" de 2022, reúne seus cerca de trinta estados-membros atrás de Washington no impasse contra Pequim.

Em teoria, os principais Estados europeus poderiam ter se equilibrado com a Rússia contra os EUA após o fim da Guerra Fria, insistindo em uma estrutura globalmente multiculturalista mais flexível, que teria aberto espaço para potências emergentes, como alguns estrategistas americanos sugeriam. Bloquear esse resultado não se deveu apenas à convicção da elite da política externa americana de que a alternativa ao seu domínio era o caos global. Após cinquenta anos de soberania minada, os Estados europeus carecem dos recursos materiais e imaginativos para um projeto contra-hegemônico. A Alemanha, em particular, tem sido ainda mais acorrentada ao atlantismo a cada nova crise: a Iugoslávia, o colapso financeiro, a Ucrânia. "Sonâmbulos" foi o termo indelével cunhado por Christopher Clark para a descida das grandes potências à Primeira Guerra Mundial. Na década de 2020, os europeus estão bem despertos, sorrindo e comemorando, exultando com sua "autonomia estratégica" enquanto marcham em direção ao próximo conflito global pela primazia dos EUA.

1 Ernest Mandel, O Significado da Segunda Guerra Mundial, Londres e Nova York, 1986.
2 Mandel, Significado da Segunda Guerra Mundial, p. 156.
3 Mandel, Significado da Segunda Guerra Mundial, p. 45.
4 Para uma discussão anterior sobre a guerra na Ucrânia, na qual esta se baseia, veja Watkins, ‘Uma Guerra Evitável?’, Volodymyr Ishchenko, ‘Rumo ao Abismo’ e Tony Wood, ‘Matrix of War’, nlr 133/134, jan-abril de 2022.
5 ‘Sovok’: um termo russo depreciativo para aqueles que ainda mantêm uma perspectiva e valores soviéticos, tendo falhado em se adaptar à sociedade capitalista. Veja Anna Arutunyan, Guerreiros Híbridos: Proxies, Freelancers e a Luta de Moscou pela Ucrânia, Londres 2022, p. 19. Arutunyan, jornalista liberal russo, ex-editor político do Moscow News, atualmente residente em Londres, viajou extensivamente pelo leste e sul da Ucrânia nos primeiros meses de 2014 e fornece uma rara etnografia do Donbass na época dos levantes anti-Maidan.
6 O ex-assassino do FSB Igor Girkin e sua milícia de 50 homens, financiada pelo ultra-piedoso bilionário russo de extrema direita Konstantin Malofeyev, chegaram ao Donbass em 12 de abril de 2014, uma semana após a proclamação da República Popular de Donetsk. Somente em meados de maio, o relações-públicas de Malofeyev, Alexander Borodai, foi "eleito" primeiro-ministro da RPD, sendo substituído três meses depois por Alexander Zakharchenko, nascido em Donetsk, líder de extrema direita de uma organização local de veteranos. As próprias milícias eram compostas, em grande parte, por combatentes nascidos no Donbass, com "turistas russos" representando menos de um terço delas.
7 Ivan Katchanovski, "A Origem Oculta do Conflito Ucrânia-Rússia em Escalada", Canadian Dimension, 22 de janeiro de 2022.
8 Arutunyan, Hybrid Warriors, pp. 14–16 (Mariupol), 68–75 (Odessa).
9 Pesquisa do Instituto Internacional de Sociologia de Kiev, abril de 2014, citado em Arutunyan, Hybrid Warriors, p. 123.
10 Volodymyr Ishchenko, ‘Russia’s Military Keynesianism’, Al-Jazeera, 26 de outubro de 2022.
11 ‘Conflict with Ukraine: September 2022’, Levada Centre, 7 de outubro de 2022.
12 Rating Group, ‘Seventeenth National Survey: Identity, Patriotism, Values’, Kiev, 23 de agosto de 2022.
13 Yaroslav Trofimov e Matthew Luxmoore, ‘Ukraine’s Zelensky Says a Cease-Fire with Russia, without Reclaiming Lost Lands, Will Only Prolong War’, wsj, 22 de julho de 2022. O índice de aprovação de Zelensky era de 30% antes da guerra; agora, está acima de 90%.
14 Rating Group, ‘Seventeenth National Survey’.
15 Ver ‘Ukraine Support Tracker’, IfW/Kiel Institute for the World Economy, outubro de 2022; nem todos os montantes comprometidos foram desembolsados.
16 Por exemplo, Dan Sabbagh, ‘Surprise Counterattack Wrong-Foots Invaders and Shows Sophisticated Battlefield Tactics’, Guardian, 9 de setembro de 2022; Patrick Wintour, ‘Battle of Nerves: How Advances on the Field Are Helping Europe Recover Its Resolve’, Guardian, 14 de setembro de 2022. Sobre o planejamento da operação pelos EUA, veja Julian Barnes, Eric Schmitt e Helene Cooper, ‘The Critical Moment Behind Ukraine’s Rapid Advance’, NYT, 13 de setembro de 2022.
17 Leon Panetta, ‘It’s a proxy war with Russia, whether we say so or not’, Bloomberg tv, 17 de março de 2022.
18 ‘Are Sanctions on Russia Working?’, Economist, 25 de agosto de 2022.
19 Para uma avaliação crítica, veja Perry Anderson, American Foreign Policy and Its Thinkers, Londres e Nova York 2015, pp. 197–208.
20 Yasmeen Abutaleb e John Hudson, ‘Biden luta para evitar rachaduras na coalizão pró-Ucrânia’, Washington Post, 11 de outubro de 2022.
21 Roman Romaniuk, ‘Da “rendição” de Zelensky à rendição de Putin: como estão as negociações com a Rússia’, Ukrainska Pravda, 5 de maio de 2022.

Entrevista: "Ato em defesa da democracia foi uma fala de setores fora da esquerda contra autoritarismo", diz Carlos Fico

Segundo o professor de História do Brasil da UFRJ, resultado é "choque de realidade", e a restauração da normalidade democrática deve ser a prioridade de Lula

André Duchiade


Bolsonaristas lamentam a derrota nas urnas, reunidos em frente ao condomínio de luxo onde vive o presidente Alexandre Cassiano/Agência O Globo

Muitas vezes, se diz que o país sai dividido de uma eleição. Este caso se aplica mais a esta eleição do que a outras?

Este muitas vezes é um lugar-comum, mas neste caso se aplica inteiramente. Foi a eleição mais acirrada da História do Brasil desde 1945. Houve uma diferença de sete pontos percentuais em 89 entre Collor e Lula, três pontos entre Dilma e Aécio, e, em 1955, cinco pontos entre Juscelino e Juárez Távora, mais por causa do bom desempenho do terceiro colocado [Ademar de Barros]. As eleições de 2022 têm um ineditismo por esse acirramento total, com a divisão sendo quase meio a meio.

Uma grande coalizão democrática se uniu atrás de Lula contra Bolsonaro. Fazer a gestão dessa coalizão será o principal desafio do governo?

É impressionante que, para derrotar Bolsonaro, tenha sido importante um esforço de união sem precedentes. Essa é a mais ampla frente de que tenho notícia. Isso tem dois aspectos. O primeiro é que foi preciso um esforço gigantesco, o que mostra a força eleitoral de Bolsonaro e do bolsonarismo. O segundo é que há realmente um grande desafio de governabilidade. A pergunta que fica é se o presidente eleito governará com essa frente. A meu ver, é a única solução possível para minimizar os prejuízos do governo Bolsonaro para a democracia brasileira.

Carlos Fico, historiador e professor titular da UFRJ — Foto: Fernando Souza 13-03-2020

Quais podem ser os pontos de convergência da coalizão?

O grande ponto de convergência é a restauração plena da democracia e da governabilidade em bases democráticas. Não houve uma polarização, mas, sim, uma divisão de antípodas, entre autoritarismo e democracia. O governo Bolsonaro se caracterizou não só pelo autoritarismo, mas pelo desmanche de várias estruturas de governabilidade democráticas: pelo desmanche dos órgãos colegiados, pela presença de muitos militares em cargos de governo, e pelo desprezo por certas agendas que caracterizam um país democrático. A necessidade de um governo que expresse essa frente ampla em defesa da democracia me parece fundamental diante dos prejuízos gerados pelo governo Bolsonaro. A questão principal que deveria preocupar a composição do governo, os seus primeiros atos e a composição do Ministério é a restauração da governabilidade democrática.

O que a votação tão forte de Bolsonaro nos diz?

A eleição de Lula em condições tão difíceis, sendo necessário esse esforço de união de uma frente ampla e por uma margem tão reduzida, é uma espécie de choque de realidade para as pessoas que entendiam que a sociedade brasileira se caracterizava majoritariamente por um perfil progressista. Afinal, quase metade do eleitorado optou por um candidato autoritário, antivacina, armamentista, misógino, homofóbico, que não defende os direitos humanos e fez declarações racistas. Então, isso não se deve a uma manipulação, não se deve a fake news. Isso se deve a uma adesão eleitoral, que eu chamo de adesão por afeto. É muito preocupante. Considero o resultado um grande choque de realidade para quem não percebia esse caráter, vamos dizer, muito de direita e com um viés muito preconceituoso de uma parcela tão significativa do eleitorado brasileiro.

Como Lula pode lidar com esses setores radicalizados?

Há o radicalismo, mas também situações que são criminosas. O outro ineditismo destas eleições foi a ocorrência das transgressões eleitorais mais diversas, o que mostra como Bolsonaro conseguiu intimidar a Justiça Eleitoral, que não reagiu em diversos casos. As transgressões eleitorais incluem a emenda que instituímos um estado de emergência que nem existe no estatuto legal brasileiro, a PEC Kamikaze, pois não se pode instituir benefícios no período eleitoral, o uso do Sete de Setembro como comício, as diversas ameaças, o uso de prédios públicos, e, hoje [ontem] mesmo, a ação da Polícia Rodoviária Federal. Então, é preciso distinguir o que são posições de uma direita extremamente conservadora e o que são estratégias criminosas do bolsonarismo. Foram muitos casos.

Lula disse que não será candidato em 2026. Por onde pode se dar a renovação da esquerda?

Não só esquerda e o PT, mas também os bolsonaristas terão muitas dificuldades para lançar candidatos em 2026. Porque pela primeira vez na História do Brasil tivemos uma competição entre dois candidatos extremamente carismáticos cujos eleitorados aderiu a eles com uma fidelidade afetiva, como se fossem times de futebol. Isso nunca tinha acontecido. Agora temos um eleitorado que se caracteriza pela adesão por afeto, e por isso será muito difícil substituir e encontrar uma renovação tanto para Lula quanto para Bolsonaro. Pela direita, talvez Tarcísio de Freitas ou [o governador de Minas, Romeu] Zema, caso Bolsonaro não volte a se candidatar. No caso do PT, o nome que ocorre a muitos é o de Haddad, mas com a derrota em São Paulo fica difícil. A renovação do sistema político é muito difícil, porque houve competição entre candidatos extremamente carismáticos com adesão do eleitorado por afeto

Bolsonaro é o líder natural desta direita? Ele é indispensável a ela?

Do ponto de vista eleitoral, Bolsonaro é incontestavelmente a grande liderança dessa direita e vai permanecer assim. No entanto, não creio que tenha muita capacidade de articulação para se constituir como uma liderança política capaz de estabelecer diretrizes e organizar o setor. Há que se considerar também o seguinte: até recentemente, a direita no Brasil não tinha partidos bem organizados. Os eleitores de direita votavam no PSDB e em outras siglas. Agora eles contam com partidos organizados, do PL ao União Brasil. Isso também é um componente novo. Até muito recentemente, ninguém se declarava propriamente um conservador de direita no páis, e, nos últimos anos, muitos passaram orgulhosamente a assim se assumirem. Então agora há uma estrutura partidária de direita, uma coisa relativamente nova no Brasil, há uma liderança eleitoral incontestável e muito popular, e há a mudança de um perfil político e cultural. Vamos ter que verificar agora se vai haver, por exemplo, um esforço de união dessas agremiações de direita.

A centro-direita é uma das grandes derrotadas das eleições. O senhor vê alguma saída para a crise do setor?

O chamado centro democrático e também a direita democrática saem enfraquecidos. Os setores conservadores mais democráticos, a direita não radicalizada e os liberais não conseguiram viabilizar a chamada terceira via, e tiveram de se associar a Lula em defesa da democracia. Esses setores vão ter de se repensar e de lutar inclusive pela hegemonia nesses partidos de direita. É incerto se esses partidos vão tender a uma posição mais extremada ou se vão se situar no contexto da democracia.

Qual deve ser a posição do Supremo a partir de agora?

Bolsonaro deu aquela declaração de que não proporia um aumento do número de ministros do Supremo, mas não disse que seus parlamentares não poderiam fazer isso. Com a vitória do Lula, felizmente essa proposta cai por terra. Mas outras possibilidades de provocação ou de agressão ao Supremo Tribunal Federal não podem ser descartadas. É possível que haja outras agressões no Congresso, como a questão das decisões monocráticas ou mesmo a proposta de impeachment de ministros do Supremo. Vale lembrar que um pedido de impeachment de ministro do STF depende de dois terços do Senado, mas se a denúncia é recebida pela Mesa, e então é considerada pertinente pela maioria simples, e implica na suspensão do exercício das funções de juiz.

O que prever da relação de Lula com os militares?

Segundo o TCU, são mais de 6 mil militares em cargos comissionados. Se ele quiser esse número, que é uma coisa exageradíssima, ele vai enfrentar resistências. Haverá resistências também se quiser modificar o regime Previdenciário dessa categoria, que foi muito beneficiada pela Reforma da Previdência do governo Bolsonaro. Inclusive alguns militares já deram sinais de que não esperam que isso se altere. Essas são as duas grandes dificuldades, o número excessivo de militares em cargos para os quais não têm vocação e a questão da Previdência, Do ponto de vista do relacionamento mais institucional do PT, sobretudo de Lula, com os militares, não creio qu venham a ocorrer problemas, porque Lula já passou por dois governos. Não só ele, mas várias pessoas do seu entorno têm boas relações com os militares.

Qual papel devemos esperar do Centrão?

Tradicionalmente, o Centrão é negociável. Há uma quantidade grande, em torno de 160, de deputados que não são exatamente independentes, mas que não fizeram uma declaração clara de apoio a nenhum dos candidatos nessa eleição presidencial; Lula pode contar com 138 da base do PT e da esquerda, e há em torno de 240 bolsonaristas. Ele vai ter de negociar com esses outros 160. Essa situação se repete no Senado, onde há mais ou menos 40 deputados alinhados com Bolsonaro, mas nem todos são inteiramente afinados, há cerca de 13 com perfil mais neutro. Lula vai ter de fazer essa negociação, que será uma negociação dura e problemática. Prevejo que possa construir maiorias ad hoc, caso a caso.

Nestas eleições, as acusações não pegaram nos candidatos, com posições muito marcadas. O que isto diz sobre a política brasileira?

Este é um fenômeno da História política quando ocorre competição entre dois candidatos que tem adesão por afeto, como chamamos em psicologia política. O eleitorado desses candidatos é extremamente fiel e imune a escândalos e erros de campanha, de modo que a porcentagem das pesquisas se mantinha sempre mais ou menos estável, mesmo quando aconteciam eventos que, em uma campanha eleitoral normal, teriam uma afetação tremenda. A campanha de Bolsonaro enfrentou escândalos chocantes e mesmo assim as pesquisas não foram afetadas. Getúlio Vargas pode ter sido pode ser considerado um candidato com adesão por afeto, e Jânio Quadros também. Mas dois candidatos com esse perfil carismático concorrendo na mesma eleição é algo inédito.

Como o senhor avalia o papel dos evangélicos nestas eleições?

Setores vinculados ao fundamentalismo cristão vão buscar avançar pauta de costumes em funçaõ da bancada expressiva que vão ter no Congresso. Essa pauta de costumes não prosperou muito no primeiro mandato, mas temas como aborto e ideologia de gênero certamente vão prosseguir. certamente isso vai prosseguir, muito ruim que a política esteja permeada por essa questão da religiosidade, o que é muito negativo, não deveria ser assim

Lula fez campanha prometendo aumentar gastos, e o Orçamento de 2023 já está estourado devido às medidas de Bolsonaro. O quão séria é esta questão?

Será um grande desafio, junto com a questão da recomposição da governabilidade da gestão pública democrática. Porque houve esse aumento de gastos em 2022, e foram feitas promessas nesse sentido. Isso torna muito preocupante o futuro das contas públicas e o eventual impacto inflacionário decorrente. Haverá uma relação tensa entre a necessidade óbvia de um ajuste fiscal, do qual Lula não poderá correr, e a demanda dos eleitores cobrando as promessas de campanha. Isso certamente vai ser um enorme problema par sobretudo no primeiro ano do governo Lula.

Alguns diziam que a Nova República acabou. Como o senhor vê estes comentários agora?

Chamo isto de retórica da iminência. É muito comum nesses eventos dramáticos entenderem que estamos à beira do abismo, diante de um país paralisado, da eleição mais importante da História, essas coisas. Penso que devemos ter cuidado com esse tipo de retórica. Minha impressão é que estamos com uma sociedade muito cansada do histrionismo, da violência. Um pouco de tranquilidade não faz mal para ninguém. É claro que a eleição tem muitos ineditismos, mas é de todo recomendável que busquemos mais tranquilidade e rotina.

A grande apropriação pós-fascista italiana de Tolkien

Giorgia Meloni, como muitos na extrema-direita italiana, é uma obcecada por O Senhor dos Anéis - levantando questões sobre o que há na obra de Tolkien que parece atrair os fascistas.

Angelo Boccato


A primeira-ministra italiana Giorgia Meloni participa da cerimônia de posse no Palácio do Quirinal em 22 de outubro de 2022 em Roma, Itália. (Antonio Masiello / Getty Images)

Tradução / Em 22 de setembro, o ator italiano Pino Insegno (que dubla Viggo Mortensen nos filmes de Peter Jackson, a trilogia O Senhor dos Anéis) deu boas vindas à Giorgia Meloni, antes que ela encerrasse a campanha eleitoral da coalizão de extrema em Roma, utilizando um discurso adaptado de Aragorn, que aparece em O Retorno do Rei. Um sentimento de desconforto se espalhou entre todos os tolkienistas italianos que não se identificam com a apropriação fascista do autor britânico.

A história dessa apropriação pela extrema direita italiana começou na década de 1970. O Senhor dos Anéis foi traduzido para o italiano pela primeira vez em 1971. No contexto dos “anos de chumbo”, o Movimento Social Italiano (MSI) somou-se às forças que impulsionaram a ascensão da Nouvelle Droite, um movimento político e cultural da Nova Direita, e vislumbrou nos elementos tradicionalistas do trabalho de Tolkien uma fonte de inspiração política e cultural, levando ao lançamento do primeiro Acampamento Hobbit em 1977. A experiência também desencadeou o lançamento de revistas como a Éowin, batizada com o nome da princesa de Rohan pelas mulheres ativistas do MSI.

“Todos podem amar Tolkien. O Senhor dos Anéis é uma das obras primas mais grandiosas do século vinte”, afirma Loredana Lipperini, autora e apresentadora de rádio do programa de literatura Fahrenheit na Radio 3, da emissora estatal RAI. “Estamos presos no discurso literário da crítica marxista que repele qualquer coisa que não se conecte ao realismo. Uma grande parte dessa crítica, para os intelectuais italianos, enxerga que toda a literatura fantástica, da fantasia ao horror, passando pela ficcção científica, é ou algo infantil ou algo que pertence à direita.” Elementos biográficos também influenciaram na forma como essas obras foram recebidas. Tolkien era católico e um discreto apoiador do nacionalismo de Francisco Franco durante a Guerra Civil Espanhola — mas também recusou que seus livros fossem traduzidos para a Alemanha do terceiro Reich, quando a editora Rütten & Loening solicitou a certificação da sua ancestralidade ariana e que confirmasse que ele não possuía origens judaicas.

Conforme Lipperini enfatiza, tem ocorrido uma mudança geracional em termos de crítica literária da esquerda, algo comprovado pelo trabalho e pesquisa de autores como Wu Ming. Mas como a história sobre diferentes raças que se unem apesar de suas diferenças contra um inimigo comum, com um herói improvável, Frodo Bolseiro, que ama suas canecas de cerveja, ficar chapado com charutos de maconha e a paz da natureza, se tornou em um simbolo de narrativas racistas e de extrema direita?

A recepção de Tolkien variou muito de país a país, algo notado por Craig Franson, professor associado de literatura britânica, drama e escrita em La Salle University, na Philadelphia, e co-anfitrião do podcast American ID. “Na Inglaterra da década de 1980 havia uma crítica muito forte, também um pouco mais cedo com Raymond Williams, Fredric Jameson e outros, que o enxergavam dessa forma (como um fascista ou um criptofascista)”. “Contudo, nos Estados Unidos havia uma visão diferente de Tolkien, parcialmente em razão dele ter chegado na década de 1960 no grande momento hippie e logo foi adotado por eles em 1965”, explica Frason. “O período entre 1965 e 1971 é um momento em que ele se torna realmente parte da cultura pop e, ao longo dos próximos cinco ou dez anos, a popularidade dele afunda e desaparece novamente da esfera pública.”

O divisor de águas veio com o lançamento da trilogia de Peter Jackson, O Senhor dos Anéis. A Sociedade do Anel chegou ao cinema em dezembro de 2001 e essa adaptação tolkienista emaranhou-se com a conversa política e cultural no auge da guerra ao terror. A atenção que Tolkien recebeu na cultura pop global também abriu o caminho, nos Estados Unidos, com as guerras no Afeganistão e Iraque, para o interesse pelas obras de Tolkien pela extrema direita norte americana, expressamente em ambientes como o site que disseminam ódio como Stormfront, conforme a explicação de Franson. “As conversas no Stormfront se iniciaram a partir de discussões sobre a guerra no oriente médio e conspirações judaicas, e escalaram, descrevendo judeus como Naxgûl e chamando pessoas de cor de Orcs. Isso se deu no Stormfront e no decorrer do tempo se tornou uma norma por toda as redes sociais. Assim, quando o Breitbart foi lançado em 2007, ele estava repleto dessa linguagem.”

A reação extrema experienciada pelos atores de Os Anéis de Poder, Ismael Cruz Cordova, Sophie Nomvete, Lenny Henry e Cynthia Addai-Robinson tem suas raízes ali e ela se estende, na verdade, para muito além da ideia de fãs tóxicos. Franson estabelece um paralelo entre a nova extrema direita (alt-right) dos Estados Unidos e Giorgia Meloni. “Para mim, o que é crucial nessa história é que os fascistas estão, mais uma vez, usando a cultura popular para criar grandes estímulos de engajamento e isso é algo que sempre funciona para eles. Meloni é um tipo de garota propaganda disso: ela era exatamente a pessoa que eles imaginavam; ela é como se fosse um caso de sucesso daquilo que as pessoas que organizaram o Acampamento Hobbit tinham em mente no princípio.”

“Ela era uma criança que amava Tolkien, que se fantasiava de Hobbit e ia para as escolas recrutar pessoas para o fascismo e fazia isso tendo nascido durante as ondas de terrorismo [da década de 1970]. Houve mais de 1.000 pessoas assassinadas durante os ‘anos de chumbo’, a maior parte delas pelo terrorismo de extrema direita, inclusive o massacre de Bolonha em 1980 [que teve 85 mortos, 200 feridos, o maior massacre de civis na Itália desde a Segunda Guerra Mundial]. No despertar de toda aquela violência, ela pensou que seria uma boa ideia se juntar a um movimento neofascista e se vestir como Hobbit, visitando escolas para recrutar outros jovens”. Outra questão enfatizada por Frason é o quão pouco esses fãs e personalidades da extrema direita mudaram suas estratégias — para manter as pessoas de cor, não-cristãs e queers fora de “sua” Terra Média.

Parte do sucesso da extrema direita em preservar um tipo de hegemonia cultural sobre o gênero fantástico também tem a ver, de acordo com Silvia Costantino, da editora italiana Effequ, com o confuso caldeirão de temas e influências da fantasia, que tende a colocar na mesma cesta Tolkien, Michael Ende (o encontro nacional do grupo Irmãos de Itália é chamado “Atreju” por causa do protagonista de História Sem Fim) e mitos nórdicos. Conforme demonstra Constantino, “há um elemento de tradição com os Acampamentos Hobbit, a revista Éowyn… É relativamente fácil entender a razão pela qual Giorgia Meloni acabou lendo O Senhor dos Anéis e interpretando daquela forma. E então há o elemento da figura feminina. O personagem de Éowyn apresente fortes componentes revolucionários”.

As obras de Tolkien podem ser vistas como telas em branco. Através de lentes internacionalistas é possível ver diferentes raças buscando união; para a extrema direita, Orcs e os homens do sul (Southrons) são os alvos ficcionais para o racismo vil e a xenofobia deles. Independentemente disso, a tomada de Tolkien pela extrema direita e a literatura fantástica já dura muito tempo. É hora da literatura fantástica trilhar uma jornada mais justa, mais verde e mais igualitária.

Colaborador

Angelo Boccato é um jornalista freelance que mora em Londres e seu trabalho apareceu em diferentes publicações, incluindo a Columbia Journalism Review, The Independent e o Open Democracy. Ele twitta em @Ang_Bok e é coapresentador do podcast Post Brexit News Explosion.

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