31 de outubro de 2022

A vitória de Lula traz um sopro de esperança para a democracia

Lula derrotou o presidente da extrema direita, Jair Bolsonaro, na eleição mais acirrada da história do país. O veterano de esquerda enfrentará enormes desafios ao tomar posse, mas seu triunfo sobre Bolsonaro deu à política brasileira uma nova chance após uma presidência catastrófica.

Olavo Passos de Souza

Jacobin

O presidente eleito do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, cumprimenta apoiadores após vencer a eleição presidencial, São Paulo, Brasil, 30 de outubro. (Caio GUATELLI / AFP via Getty Images)

Tradução / No domingo, 30 de outubro, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva conseguiu uma vitória histórica sobre o atual presidente Jair Bolsonaro. Na disputa mais acirrada desde a redemocratização brasileira na década de 1980, Bolsonaro se tornou o primeiro presidente em exercício a perder a reeleição.

A eleição dividiu o Brasil entre a defesa da democracia e um retorno à política civil de um lado, e o autoritarismo e a política reacionária do outro. A vitória de Lula, com 50,9% dos votos contra os 49,1% de Bolsonaro, provocou comemorações nas maiores avenidas do Brasil, onde o grito popular pediu o fim da crise social que assolar o país.

O jornalista brasileiro Fernando Gabeira, que lutou como guerrilheiro contra a ditadura militar, chamou a eleição de “uma vitória para o Brasil, e uma vitória para a humanidade. Agora podemos respirar de novo”. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, um rival de longa data de Lula, enviou a ele uma mensagem de felicitações proclamando que “a democracia venceu”.

Vitória para a democracia

Em 2018, o total de votos de Bolsonaro no segundo turno foi um pouco mais alto: 58,2 milhões em comparação com 57,7 há quatro anos. Mas Lula conseguiu também conseguiu um aumento na votação frente a Fernando Haddad, seu correligionário do Partido dos Trabalhadores (PT), principal oponente de Bolsonaro em 2018, aumentando de 47 milhões de votos há quatro anos para 60 milhões de votos desta vez.

Lula fez campanha com uma mensagem de democracia e pragmatismo, defendendo a unidade política, e uma valorização dos direitos humanos e civis. Para seu candidato a vice, Lula escolheu Geraldo Alckmin, outro antigo rival, que foi seu oponente presidencial em 2006. A frente ampla de Lula, composta de figuras que vão dos socialistas aos neoliberais, denunciou o desprezo de Bolsonaro pelo povo brasileiro, pela economia e pelo meio ambiente, prometendo um retorno à estabilidade e ao progresso em oposição aos quatro anos de caos de Bolsonaro.

No discurso de vitória, Lula incluiu a seguinte proclamação:

Esta não é uma vitória do PT, não é uma vitória dos partidos políticos, mas uma vitória do movimento democrático, do povo brasileiro que deseja mais do que aquilo que lhe foi dado. Democracia é mais do que uma palavra bonita a ser jogada pelo ar – é algo que temos que sentir na pele.

É a terceira vitória presidencial na carreira de Lula, após dois mandatos consecutivos, entre 2002 e 2010, consolidando sua posição como o político vivo mais popular do Brasil.

Entretanto, a eleição de Lula é um momento amargo e doce, pois as eleições legislativas e governamentais do último mês foram em grande parte vencidas por candidatos conservadores ou de extrema direita que apoiaram Bolsonaro. Lula enfrentará uma hostilidade sem precedentes como presidente, já que seus opositores políticos controlarão o Congresso brasileiro, bem como seus maiores e mais ricos Estados.

Além disso, Bolsonaro afirmou repetidamente no passado que a única maneira que ele poderia perder seria no caso de fraude. Com sua base cada vez mais radicalizada e disposta a agir violentamente, resta saber o que os próximos meses significarão para a democracia brasileira.

Uma campanha sem igual

No período que antecedeu a eleição, Bolsonaro se apresentou como um campeão de estabilidade e progresso, alegando que o Brasil estava em uma condição próspera com uma economia forte, desafiando todas as evidências contrárias. Uma de suas principais ferramentas de campanha foi o uso do Auxilio Brasil, um programa social destinado aos cidadãos de baixa renda, através de transferências financeiras diretas. Inicialmente criado como um programa emergencial durante a pandemia da COVID-19, ele provou ser uma das poucas ferramentas que Bolsonaro teve para elevar seus níveis desastrosos de aprovação.

Com isto em mente, o presidente fez pressão para manter o programa vivo até outubro e turbinar a campanha presidencial. Bolsonaro afirmou que o Auxilio Brasil foi mais bem-sucedido que o Bolsa Família de Lula, o histórico programa de apoio às pessoas de baixa renda do ex-presidente que ajudou a tirar dezenas de milhões de pessoas da pobreza nos anos 2000. Enquanto a política parecia estar em desacordo com a posição econômica neoliberal de Bolsonaro, ele usou o Auxilio Brasil para se retratar como um ótimo líder humanitário.

Seus críticos, por outro lado, o chamaram de o maior ato de compra de votos em massa da história do Brasil. Entretanto, é inegável que o programa emergencial de Bolsonaro, introduzido após quatro anos de desordem econômica e social, pelo qual seu próprio governo foi responsável, aumentou sua popularidade e ajudou a mantê-lo competitivo nas urnas.

Lula, por sua vez, trabalhou duro para se apresentar como a única escolha democrática. Lembrou de seu próprio governo como uma era próspera para o país, enquanto se defendia de uma oposição amargamente hostil que o enchia de acusações falsas relacionadas à mentiras, ao comunismo e até mesmo ao satanismo.

Mesmo estando à frente nas pesquisas eleitorais, Lula não estava tão acostumado a fazer campanha na era digital quanto Bolsonaro, cujos apoiadores inundaram as redes com a narrativa reacionária. O ex-presidente, que concorreu pela primeira vez às eleições nos anos 1980 e hoje nem sequer possui um telefone celular, utilizou locais de comunicação mais tradicionais. Isto fez um forte contraste com Bolsonaro, um usuário ativo do Twitter que implantou uma máquina de notícias falsas incrivelmente eficaz.

Em uma campanha eleitoral repleta de hostilidade e violência, os dois candidatos permaneceram acirrados nas urnas durante todo o mês de outubro.

Democracia em perigo

As eleições desde o retorno da democracia nos anos 1980 têm sido marcadas pela relativa civilidade e pela transição pacífica do poder. Esta tendência começou a enfraquecer em 2010, pois a polarização transformou as campanhas do país cada vez mais hostis, fazendo com que as campanhas presidenciais de 2014, 2018 e agora 2022 fossem cada vez mais agressivas que as últimas.

O Tribunal Superior Eleitoral (TSE), a instituição que regulamenta as eleições, aplica regras rígidas de campanha para garantir que o processo democrático possa prosseguir pacificamente. A todos os candidatos é garantido um tempo de propaganda nos canais de televisão e rádio proporcional à força legislativa de seu partido. A campanha na véspera das eleições ou dentro das áreas eleitorais é ilegal, e propagandas falsas podem ser denunciadas e retiradas de circulação.

Este sistema, juntamente com as urnas eletrônicas de votação que têm se mostrado consistentemente confiáveis, fizeram das eleições brasileiras uma referência de eficiência e representação no mundo democrático. Porém, a nova era de desinformação e polarização testou estas medidas de proteção eleitoral até o limite de suas possibilidades.

Os aplicativos de comunicação como o WhatsApp são focos de notícias falsas e extremamente difíceis de monitorar. Isto tornou quase impossível evitar que a desinformação fosse enviada de um lado para o outro. As autoridades eleitorais removeram de circulação um número recorde de anúncios de TV e rádio que eram considerados agressivos, mas somente depois de seu efeito já ter sido divulgado. Os candidatos de extrema direita cresceram mais confiantes e revitalizados em seus ataques, já que a marca do conservadorismo reacionário de Bolsonaro retratava a esquerda brasileira como um inimigo mortal.

É o caso do governo Bolsonaro e seus aliados, que desempenharam um papel ativo nesta investida. O presidente constantemente atacou o processo eleitoral e respondeu aos esforços para sancionar seu comportamento antidemocrático com gritos de perseguição. Bolsonaro apresentou o TSE, a Suprema Corte (STF), os institutos de votação e a mídia em geral como parte de uma conspiração para retirá-lo do poder.

Violência da extrema direita

Esta demonização das bases democráticas alimentou um clima perigoso entre os seguidores de Bolsonaro. Os trabalhadores que fazem pesquisas eleitorais foram atacados nas ruas e apoiadores de extrema direita assassinaram várias pessoas, incluindo um homem que foi morto com um facão por expressar seu apoio a Lula. Os apelos para que a STF fosse dissolvida se tornaram comuns entre os eleitores bolsonaristas.

O mês de outubro, que culminou na eleição de domingo, foi um campo de batalha de desinformação, extremismo político e até violência aberta. Em 23 de outubro, Roberto Jefferson, um político ligado historicamente com a direita e agora com Bolsonaro, que uma vez empregou seu filho como estagiário, atacou a Polícia Federal (PF). Os ataques virtuais de Jefferson ao STF haviam violado os termos de sua prisão domiciliar e provocaram uma ação para prendê-lo, o que Bolsonaro tentou evitar.

Quando os policiais federais se aproximaram da casa de Jefferson, o ex-político respondeu com tiros e granadas, antes de ser finalmente detido. Em qualquer outra eleição, este evento teria dominado o ciclo de notícias. Entretanto, a campanha de Bolsonaro conseguiu desviar a atenção dela, direcionando a conversa para uma suposta fraude nas inserções das campanhas na rádio.

Em outro incidente, desta vez em 29 de outubro, a deputada de direita Carla Zambelli sacou uma arma em público e perseguiu um homem em uma rua de São Paulo. Zambelli alegou que o homem a estava perseguindo por sua posição política e a tinha agredido fisicamente, embora provas em vídeo desmascaram essas acusações. Transportar armas de fogo, escondidas ou não, no dia anterior a uma eleição é ilegal no país.

No entanto, Zambelli desafiou abertamente a lei, declarando em uma entrevista na TV após o incidente que ela não reconheceu a decisão da STF sobre o assunto. Esta injeção de violência armada e intimidação na cena política mostra como os esforços de Bolsonaro corroeram o discurso público e a confiança nas instituições democráticas.

A fase final

Após o desempenho surpreendentemente forte de Bolsonaro no primeiro turno e as vitórias esmagadoras dos candidatos bolsonaristas nas eleições do Congresso, Senado e Governo, a campanha do presidente foi para a ofensiva, na esperança de que eles pudessem alcançar uma surpresa. Durante a primeira quinzena de outubro, o número de votos dos bolsonaristas aumentou continuamente.

Isto serviu como um alerta para a campanha de Lula e o ex-presidente fez uma série de movimentos para garantir que ele mantivesse sua vantagem sobre Bolsonaro. Talvez o mais polêmico de todos foi sua abordagem ao bloco evangélico.

Pastores evangélicos, que constituem uma poderosa força conservadora na política e na sociedade em sua maioria apoiaram Bolsonaro e sua postura moralista “pró-família”. A direita religiosa pregou ativamente contra todas as formas de política de esquerda e alegou que Lula fecharia as igrejas. O multimilionário televangelista Silas Malafaia ficou ao lado do presidente Bolsonaro em muitos de seus comícios de campanha e até viajou com ele para o funeral da Rainha Isabel II na Inglaterra.

Lula tentou afastar a base religiosa de seu oponente, incluindo referências a Deus em seus discursos e escrevendo uma “carta aos evangélicos” na qual ele procurava dissipar seus medos. Esta carta lembrava sua “Carta ao povo brasileiro” de 2002, na véspera de sua primeira vitória presidencial, que tentou combater as alegações de seus oponentes de que ele era um comunista disfarçado. O apelo pragmático aos valores tradicionais por Lula desanimou alguns de sua base, enquanto outros o viam como uma necessidade em uma eleição apertada.

Nos debates presidenciais de outubro, Bolsonaro também mudou de tática. Afastando-se de sua retórica agressiva e explosiva bem conhecida, Bolsonaro tentou cultivar a imagem de uma figura calma e civilizada, elogiando seu próprio mandato como presidente enquanto acusava Lula de tentar prejudicar sua reputação. Esta surpreendente mudança de tática funcionou bem para o presidente em exercício, colocando Lula na posição de defender a si mesmo e suas políticas.

A reorientação foi em grande parte o trabalho do chefe de campanha de Bolsonaro e seu segundo filho, Carlos, que por muitos anos foi o formador da imagem pública de seu pai. Junto com seus dois irmãos, Carlos se tornou um político de sucesso por mérito próprio. Ele é um parceiro do aliado de Donald Trump, Steve Bannon, e da empresa Cambridge Analytica, e tem se mostrado um mestre da desinformação nas redes sociais.

A derrota de Jair Bolsonaro pode trazer um fim à sua própria carreira política. Entretanto, seus filhos continuam ativos e influentes, e sua marca de autoritário reacionário e protofascista tem crescido mais forte desde sua vitória eleitoral em 2018.

A resposta de Bolsonaro

Odesprezo de Bolsonaro pelo processo democrático é bem conhecido. Ele forjou sua carreira política como apologista da ditadura militar e de seus torturadores. A cada passo, Bolsonaro tentou barrar as medidas democráticas a fim de garantir sua reeleição.

Ao longo de 2022, ele fez campanha para a instauração do voto por cédulas de papel no lugar das comprovadas e testadas urnas eletrônicas, alegando que essas urnas seriam inevitavelmente invadidas. Ele alegou ter provas de irregularidades (mas nunca as apresentou) e pediu aos militares que fizessem sua própria contagem dos votos.

Quando os governos estaduais liberaram o transporte público no dia da eleição para garantir maior comparecimento no primeiro turno, Bolsonaro tentou detê-los. No segundo turno, a Polícia Federal Rodoviária realizou blitz no trânsito perto das áreas de votação no nordeste, o reduto político de Lula. Isto constituiu um movimento de obstrução legal para a interferência ilegal.

O STF tornou oficial a vitória de Lula, proclamando que não há “nenhum risco de que os resultados sejam ameaçados”. O presidente da Câmara dos Deputados, aliado de Bolsonaro, Arthur Lira, também reconheceu publicamente o resultado. Estes pronunciamentos certamente tornarão mais difícil para Bolsonaro desafiar sua derrota.

No entanto, as eleições estabeleceram uma forte união de políticos bolsonaristas que fizeram campanha ativa em favor do presidente. Sua base se mostrou mais do que disposta a ignorar o processo democrático a fim de proteger seu líder. Será que o Brasil ainda pode enfrentar algo semelhante aos tumultos de 6 de janeiro no Capitólio, nos Estados Unidos?

Desafio e esperança

Em seu discurso de vitória, Lula comemorou seu retorno político: “Eles tentaram me enterrar, mas aqui estou eu”. Eleito pela primeira vez em 2002, Lula teve que moderar suas posturas de esquerda para governar um país tão diverso politicamente como o Brasil. Seu tempo no cargo foi altamente bem-sucedido e terminou com uma taxa de aprovação de 87%.

Na década de 2010, Lula viu seu partido, o PT, demonizado pela investigação tendenciosa de Sergio Moro. Moro prendeu Lula sob falsas acusações em 2018, bem a tempo de impedi-lo de concorrer à presidência contra Bolsonaro. O STF anulou sua condenação em 2019, permitindo que ele voltasse ao meio político, e agora ele conseguiu um terceiro mandato, vinte anos após sua primeira vitória presidencial.

No entanto, o Lula que saiu vitorioso ontem não é a mesma figura que se tornou presidente em 2002, e o país que ele irá governar também mudou. A fim de derrotar Bolsonaro, Lula se moveu cada vez mais em direção ao centro para ampliar seu apelo. Seu vice-presidente, Geraldo Alckmin, é um oponente ideológico da esquerda, junto com muitos de seus outros aliados. O apelo de Lula aos evangélicos também tem servido para fortalecer o lugar da religião na vida política brasileira.

O Congresso que o novo presidente irá presidir é muito mais conservador e hostil do que aquele com o qual ele trabalhou nos anos 2000. Lula enfrenta uma série de desafios assustadores, tais como reverter os danos causados à Amazônia, reconstruir as entidades sociais e ambientais que Bolsonaro destruiu, e combater a cultura de ódio e preconceito que o seu antecessor cultivava. Mas quaisquer que sejam as provações que possam surgir, sua vitória deu à democracia e ao debate público uma nova chance em um país que precisava desesperadamente de esperança.

Colaborador

Olavo Passos de Souza é doutorando em história pela Stanford University.

Bolsonaro perdeu, mas seguirá ditando ritmo da política

Presidente articulou melhor que outros políticos valores emergentes da sociedade

Miguel Lago

Cientista político, professor da Escola de Assuntos Públicos da Sciences Po (Paris) e da Escola de Assuntos Internacionais e Públicos da Universidade de Columbia (Nova York) e diretor do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS)

Folha de S.Paulo

Eleições costumam ser encaradas como forma de premiar ou punir o governo. O governante que melhora a vidas das pessoas seria reeleito ou elegeria seu sucessor. Aquele que piorasse a vida da população, não.

Em que pese a derrota, é surpreendente o sucesso eleitoral de Jair Bolsonaro (PL). A economia piorou, a fome voltou, as políticas públicas foram desmanteladas, milhares de pessoas morreram na pandemia por causa do comportamento do presidente e o futuro foi hipotecado. Em circunstâncias normais, não estaria sequer no segundo turno.

De onde vem a força de Bolsonaro? Alguns dirão que a sociedade brasileira é intrinsecamente conservadora e, portanto, preocupada com a preservação dos valores cristãos e da família. O capitão reformado seria aquele que melhor representa esse ideário.

Apoiadores de Bolsonaro acompanham a apuração das urnas na Esplanada dos Ministérios, em Brasília - Gabriela Biló/Folhapress

A conclusão me parece apressada e superficial. Bolsonaro não é conservador, muito menos representa os valores cristãos.

O conservadorismo político se construiu integralmente em oposição à ruptura e à revolução. Mudanças radicais são seu pesadelo, e toda a força política conservadora busca suavizar as mudanças, impedir os arroubos, as rupturas. O conservadorismo é, por essência, contrarrevolucionário.

Bolsonaro é um revolucionário de extrema direita. Nada em seu discurso se relaciona à tradição conservadora brasileira. Ao contrário, ele articula forças emergentes e insurgentes presentes em nossa sociedade: a religiosidade neopentecostal, a estética do agro e a sociabilidade de perfil.

O Brasil é o maior país católico do mundo, mas a força religiosa preponderante é a neopentecostal. Para grande parte dos fiéis católicos, a identidade católica não é definidora das escolhas do dia a dia, como é a neopentecostal.

Esta identidade condiciona todas as decisões, desde a forma de se vestir, se comportar, consumir e votar. Sua influência no comportamento dos brasileiros é muito maior. Ainda que minoritária do ponto de vista estatístico, ela pesa muito mais do que a grande maioria silenciosa e desarticulada.

Sobre o segundo ponto, o Brasil depende cada vez mais do agronegócio. Seu peso na economia tem sido crescente e acompanha a desindustrialização do país. Essa força econômica emergente articula uma estética própria.

A vestimenta de gaúchos e sertanejos, tão típica de nossa tradição rural, foi substituídas pela de caubói. O rodeio se tornou o grande festival do país, e a música que mais toca nas rádios brasileiras é uma espécie de country music cantada em português.

A posse e o porte de arma completam a composição deste novo "homem do campo". A promoção dessa nova estética é articulada pelo setor e difundida pelo país inteiro sob os slogans "o agro é pop", "o agro é tech" e daí por diante…

Quanto ao último ponto, a população brasileira está entre as maiores consumidoras de redes sociais do mundo. A sociabilidade de grande parte de nossos compatriotas se dá primordialmente através dos perfis de redes sociais. Somos aquilo que desejamos projetar em nossos perfis. O conhecimento foi substituído pela opinião, e o encontro na praça deu lugar à aventura narcísica.

Bolsonaro soube articular muito bem esse novo ambiente comunicacional com a identidade neopentecostal e a estética do agro. Seu movimento se tornou o fio condutor dessas forças propulsoras e a partir delas o capitão reformado construiu uma nova gramática política desprendida da lógica do "bom governo".

O que está em jogo é derrubar a tradição brasileira e substituí-la por uma nova visão de mundo. Para tanto é necessário eliminar o "inimigo" —nomeado como "a esquerda", mas, na realidade, o bolsonarismo tem como alvo as construções sociais e institucionais de décadas da sociedade brasileira.

O bolsonarismo representa uma ruptura política e cultural com a tradição brasileira. Quem vota em Bolsonaro não o faz por acreditar racionalmente que ele representará melhor seus interesses, mas por representar suas opiniões. Trata-se de um voto exclusivamente identitário.

Enquanto essas forças forem as identidades políticas preponderantes no país, o bolsonarismo seguirá ditando o ritmo da política. Bolsonaro perdeu neste domingo (30) nas urnas, mas o trabalho para derrotar o bolsonarismo na sociedade será imenso.

Opções golpistas encolhem e Bolsonaro encara abismo isolado

Se apostar na bagunça dos caminhoneiros, presidente enfrentará reação quase unânime

Folha de S.Paulo

Quando apareceu rapidamente em frente às câmaras para saudar o fim do processo eleitoral e abrir caminho para manter seu quinhão de poder no terceiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), Arthur Lira (PP) disparou a mais importante sinalização institucional da noite do domingo (30).

O presidente Jair Bolsonaro (PL) está mais isolado do que nunca, mesmo contando seu padrão insular de articulação política. O presidente da Câmara foi seguidos pelo do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD), e por toda a litania dos Poderes no reconhecimento do resultado das urnas.

Bolsonaro deixa o Palácio da Alvorada rumo ao Planalto na manhã desta segunda (31) - Evaristo Sá/AFP

Ninguém apareceu para gritar que houve fraude fora das redes robotizadas do bolsonarismo. Nenhuma Damares, nenhum Moro, nenhuma Zambelli. E os líderes mundiais rapidamente parabenizaram Lula, Joe Biden (EUA) à frente.

Ato contínuo, o mandatário máximo se comportou como criança que perdeu a partida e foi correndo para casa se trancar em um silêncio vexatório, digno de um João Figueiredo saindo do Planalto para não passar a faixa a José Sarney em 1985. E não pôde levar consigo a bola do jogo.

Ela ficou com seus aliados, após quase quatro anos de ameaças de ruptura de ordens diversas. Não que o potencial disruptivo do presidente tenha se exaurido por completo, como o silêncio que mantém até a confecção destas linhas indica e as barricadas em mais de 240 pontos de estradas federais provam.

Mas tudo indica que, ao contemplar o abismo em sua solidão, Bolsonaro se veja na posição descrita por Friedrich Nietzsche em 1886 e seja encarado de volta. E o que ele verá é uma pletora de ameaças a quaisquer manifestações golpistas daqui em diante.

Um importante presidente de partido de centro dizia nesta manhã que, se tentar amplificar a bagunça ensaiada desde domingo por seus aliados caminhoneiros, Bolsonaro irá encarar nada menos que a sugestão para que renuncie. Impeachment, se houvesse tempo hábil, estaria à mão também.

Outro líder, este do centrão que reabsorveu Bolsonaro e aproveitou-se de sua musculatura eleitoral para engordar a ponto de dominar de vez a Câmara e o Senado, diz que esforços estão sendo feitos para que o presidente entre em modo de resignação e entenda que só isso o salva de uma saraivada imediata de questionamentos jurídicos.

Pois o emprego da Polícia Rodoviária Federal na evidente tentativa de intimidar eleitores nordestinos, e na relatada inação em alguns pontos de bloqueio de estradas, configura crime de responsabilidade claro, mesmo na visão deste aliado. Não seria o primeiro para o qual o establishment fecharia os olhos em nome de não balançar ainda mais o barco.

Mas aqui voltamos ao abismo, ou seja, qual a contemplação que Bolsonaro faz. Nos delírios bolsonaristas, amparados no forte apoio a seus atos antidemocráticos, particularmente os feriados de 7 de Setembro de 2021 e neste ano, uma derrota para Lula implicaria um movimento de rua imediato em favor do presidente.

Até aqui, o que se vê são crimes contra o direito de ir e vir praticados por uma minoria importante e organizada, mas uma minoria. E todo o mundo político, salvo talvez os filhos de Bolsonaro, o áulico Walter Braga Netto e alguns generais do bolsonarismo, ex-usuários de farda ou não, já avisou que não entrará no jogo.

Emparedados ficam os militares, que foram instrumentalizados por Bolsonaro ao servir à sua campanha contra as urnas eletrônicas: como a Folha mostrou domingo, há pressão interna no Planalto para um relatório sugerindo fraudes a ser assinado pela Defesa.

Se não há nenhum indício de que apoiariam uma contestação com armas na mão, a movimentação nas estradas enseja o temor de uma querela institucional: algum governador pede para o Exército fazer o que a PRF não está fazendo e liberar estrada, e Bolsonaro nega a autorização, forçando a entrada do Supremo na discussão.

Mas essa hipótese extrema, com suas variantes, já se mostrou rejeitada pelo entorno ampliado de Bolsonaro, para não falar em seus adversários percebidos. Mais importante, há a posição do serviço ativo. O Alto-Comando do Exército, principal colegiado militar do país, sinalizou ao governo que não irá aderir a nenhuma contestação da eleição.

Um dos movimentos centrais nesse balé foi dado pelo assertivo presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Alexandre de Moraes. Ele matou no peito, para usar a expressão de gosto em Brasília, a cartada dada pela PRF no domingo. Chamou seu comandante para uma conversinha, conseguiu desmoralizar o processo golpista e, de quebra, não escalou a crise ao manter o cronograma das eleições.

Sem adiamento do pleito, tudo transcorreu com tensão, mas com formatação de naturalidade democrática. Resta saber se a tática do domingo seguirá a mesma, ou se o ministro irá usar o arsenal que tem à disposição para enquadrar o que resta do governo Bolsonaro.

Essa munição é outro componente do abismo à frente do presidente, que de resto sempre trabalhou com a hipótese de que poderia ser preso assim que perdesse o foro privilegiado. Agora a data está estabelecida, e o modelo Roberto Jefferson ou Carla Zambelli de reação ronda conversas de adversários e aliados.

Bolsonaro vende a ideia de que algum tipo de imunidade para si e sua família garantiria a estabilidade pós-derrota. O problema, para ele, é a credibilidade de sua tática mesmo entre quem lhe dá sustentação.

Entrevista: "Ato em defesa da democracia foi uma fala de setores fora da esquerda contra autoritarismo", diz Carlos Fico

Segundo o professor de História do Brasil da UFRJ, resultado é "choque de realidade", e a restauração da normalidade democrática deve ser a prioridade de Lula

André Duchiade


Bolsonaristas lamentam a derrota nas urnas, reunidos em frente ao condomínio de luxo onde vive o presidente Alexandre Cassiano/Agência O Globo

Muitas vezes, se diz que o país sai dividido de uma eleição. Este caso se aplica mais a esta eleição do que a outras?

Este muitas vezes é um lugar-comum, mas neste caso se aplica inteiramente. Foi a eleição mais acirrada da História do Brasil desde 1945. Houve uma diferença de sete pontos percentuais em 89 entre Collor e Lula, três pontos entre Dilma e Aécio, e, em 1955, cinco pontos entre Juscelino e Juárez Távora, mais por causa do bom desempenho do terceiro colocado [Ademar de Barros]. As eleições de 2022 têm um ineditismo por esse acirramento total, com a divisão sendo quase meio a meio.

Uma grande coalizão democrática se uniu atrás de Lula contra Bolsonaro. Fazer a gestão dessa coalizão será o principal desafio do governo?

É impressionante que, para derrotar Bolsonaro, tenha sido importante um esforço de união sem precedentes. Essa é a mais ampla frente de que tenho notícia. Isso tem dois aspectos. O primeiro é que foi preciso um esforço gigantesco, o que mostra a força eleitoral de Bolsonaro e do bolsonarismo. O segundo é que há realmente um grande desafio de governabilidade. A pergunta que fica é se o presidente eleito governará com essa frente. A meu ver, é a única solução possível para minimizar os prejuízos do governo Bolsonaro para a democracia brasileira.

Carlos Fico, historiador e professor titular da UFRJ — Foto: Fernando Souza 13-03-2020

Quais podem ser os pontos de convergência da coalizão?

O grande ponto de convergência é a restauração plena da democracia e da governabilidade em bases democráticas. Não houve uma polarização, mas, sim, uma divisão de antípodas, entre autoritarismo e democracia. O governo Bolsonaro se caracterizou não só pelo autoritarismo, mas pelo desmanche de várias estruturas de governabilidade democráticas: pelo desmanche dos órgãos colegiados, pela presença de muitos militares em cargos de governo, e pelo desprezo por certas agendas que caracterizam um país democrático. A necessidade de um governo que expresse essa frente ampla em defesa da democracia me parece fundamental diante dos prejuízos gerados pelo governo Bolsonaro. A questão principal que deveria preocupar a composição do governo, os seus primeiros atos e a composição do Ministério é a restauração da governabilidade democrática.

O que a votação tão forte de Bolsonaro nos diz?

A eleição de Lula em condições tão difíceis, sendo necessário esse esforço de união de uma frente ampla e por uma margem tão reduzida, é uma espécie de choque de realidade para as pessoas que entendiam que a sociedade brasileira se caracterizava majoritariamente por um perfil progressista. Afinal, quase metade do eleitorado optou por um candidato autoritário, antivacina, armamentista, misógino, homofóbico, que não defende os direitos humanos e fez declarações racistas. Então, isso não se deve a uma manipulação, não se deve a fake news. Isso se deve a uma adesão eleitoral, que eu chamo de adesão por afeto. É muito preocupante. Considero o resultado um grande choque de realidade para quem não percebia esse caráter, vamos dizer, muito de direita e com um viés muito preconceituoso de uma parcela tão significativa do eleitorado brasileiro.

Como Lula pode lidar com esses setores radicalizados?

Há o radicalismo, mas também situações que são criminosas. O outro ineditismo destas eleições foi a ocorrência das transgressões eleitorais mais diversas, o que mostra como Bolsonaro conseguiu intimidar a Justiça Eleitoral, que não reagiu em diversos casos. As transgressões eleitorais incluem a emenda que instituímos um estado de emergência que nem existe no estatuto legal brasileiro, a PEC Kamikaze, pois não se pode instituir benefícios no período eleitoral, o uso do Sete de Setembro como comício, as diversas ameaças, o uso de prédios públicos, e, hoje [ontem] mesmo, a ação da Polícia Rodoviária Federal. Então, é preciso distinguir o que são posições de uma direita extremamente conservadora e o que são estratégias criminosas do bolsonarismo. Foram muitos casos.

Lula disse que não será candidato em 2026. Por onde pode se dar a renovação da esquerda?

Não só esquerda e o PT, mas também os bolsonaristas terão muitas dificuldades para lançar candidatos em 2026. Porque pela primeira vez na História do Brasil tivemos uma competição entre dois candidatos extremamente carismáticos cujos eleitorados aderiu a eles com uma fidelidade afetiva, como se fossem times de futebol. Isso nunca tinha acontecido. Agora temos um eleitorado que se caracteriza pela adesão por afeto, e por isso será muito difícil substituir e encontrar uma renovação tanto para Lula quanto para Bolsonaro. Pela direita, talvez Tarcísio de Freitas ou [o governador de Minas, Romeu] Zema, caso Bolsonaro não volte a se candidatar. No caso do PT, o nome que ocorre a muitos é o de Haddad, mas com a derrota em São Paulo fica difícil. A renovação do sistema político é muito difícil, porque houve competição entre candidatos extremamente carismáticos com adesão do eleitorado por afeto

Bolsonaro é o líder natural desta direita? Ele é indispensável a ela?

Do ponto de vista eleitoral, Bolsonaro é incontestavelmente a grande liderança dessa direita e vai permanecer assim. No entanto, não creio que tenha muita capacidade de articulação para se constituir como uma liderança política capaz de estabelecer diretrizes e organizar o setor. Há que se considerar também o seguinte: até recentemente, a direita no Brasil não tinha partidos bem organizados. Os eleitores de direita votavam no PSDB e em outras siglas. Agora eles contam com partidos organizados, do PL ao União Brasil. Isso também é um componente novo. Até muito recentemente, ninguém se declarava propriamente um conservador de direita no páis, e, nos últimos anos, muitos passaram orgulhosamente a assim se assumirem. Então agora há uma estrutura partidária de direita, uma coisa relativamente nova no Brasil, há uma liderança eleitoral incontestável e muito popular, e há a mudança de um perfil político e cultural. Vamos ter que verificar agora se vai haver, por exemplo, um esforço de união dessas agremiações de direita.

A centro-direita é uma das grandes derrotadas das eleições. O senhor vê alguma saída para a crise do setor?

O chamado centro democrático e também a direita democrática saem enfraquecidos. Os setores conservadores mais democráticos, a direita não radicalizada e os liberais não conseguiram viabilizar a chamada terceira via, e tiveram de se associar a Lula em defesa da democracia. Esses setores vão ter de se repensar e de lutar inclusive pela hegemonia nesses partidos de direita. É incerto se esses partidos vão tender a uma posição mais extremada ou se vão se situar no contexto da democracia.

Qual deve ser a posição do Supremo a partir de agora?

Bolsonaro deu aquela declaração de que não proporia um aumento do número de ministros do Supremo, mas não disse que seus parlamentares não poderiam fazer isso. Com a vitória do Lula, felizmente essa proposta cai por terra. Mas outras possibilidades de provocação ou de agressão ao Supremo Tribunal Federal não podem ser descartadas. É possível que haja outras agressões no Congresso, como a questão das decisões monocráticas ou mesmo a proposta de impeachment de ministros do Supremo. Vale lembrar que um pedido de impeachment de ministro do STF depende de dois terços do Senado, mas se a denúncia é recebida pela Mesa, e então é considerada pertinente pela maioria simples, e implica na suspensão do exercício das funções de juiz.

O que prever da relação de Lula com os militares?

Segundo o TCU, são mais de 6 mil militares em cargos comissionados. Se ele quiser esse número, que é uma coisa exageradíssima, ele vai enfrentar resistências. Haverá resistências também se quiser modificar o regime Previdenciário dessa categoria, que foi muito beneficiada pela Reforma da Previdência do governo Bolsonaro. Inclusive alguns militares já deram sinais de que não esperam que isso se altere. Essas são as duas grandes dificuldades, o número excessivo de militares em cargos para os quais não têm vocação e a questão da Previdência, Do ponto de vista do relacionamento mais institucional do PT, sobretudo de Lula, com os militares, não creio qu venham a ocorrer problemas, porque Lula já passou por dois governos. Não só ele, mas várias pessoas do seu entorno têm boas relações com os militares.

Qual papel devemos esperar do Centrão?

Tradicionalmente, o Centrão é negociável. Há uma quantidade grande, em torno de 160, de deputados que não são exatamente independentes, mas que não fizeram uma declaração clara de apoio a nenhum dos candidatos nessa eleição presidencial; Lula pode contar com 138 da base do PT e da esquerda, e há em torno de 240 bolsonaristas. Ele vai ter de negociar com esses outros 160. Essa situação se repete no Senado, onde há mais ou menos 40 deputados alinhados com Bolsonaro, mas nem todos são inteiramente afinados, há cerca de 13 com perfil mais neutro. Lula vai ter de fazer essa negociação, que será uma negociação dura e problemática. Prevejo que possa construir maiorias ad hoc, caso a caso.

Nestas eleições, as acusações não pegaram nos candidatos, com posições muito marcadas. O que isto diz sobre a política brasileira?

Este é um fenômeno da História política quando ocorre competição entre dois candidatos que tem adesão por afeto, como chamamos em psicologia política. O eleitorado desses candidatos é extremamente fiel e imune a escândalos e erros de campanha, de modo que a porcentagem das pesquisas se mantinha sempre mais ou menos estável, mesmo quando aconteciam eventos que, em uma campanha eleitoral normal, teriam uma afetação tremenda. A campanha de Bolsonaro enfrentou escândalos chocantes e mesmo assim as pesquisas não foram afetadas. Getúlio Vargas pode ter sido pode ser considerado um candidato com adesão por afeto, e Jânio Quadros também. Mas dois candidatos com esse perfil carismático concorrendo na mesma eleição é algo inédito.

Como o senhor avalia o papel dos evangélicos nestas eleições?

Setores vinculados ao fundamentalismo cristão vão buscar avançar pauta de costumes em funçaõ da bancada expressiva que vão ter no Congresso. Essa pauta de costumes não prosperou muito no primeiro mandato, mas temas como aborto e ideologia de gênero certamente vão prosseguir. certamente isso vai prosseguir, muito ruim que a política esteja permeada por essa questão da religiosidade, o que é muito negativo, não deveria ser assim

Lula fez campanha prometendo aumentar gastos, e o Orçamento de 2023 já está estourado devido às medidas de Bolsonaro. O quão séria é esta questão?

Será um grande desafio, junto com a questão da recomposição da governabilidade da gestão pública democrática. Porque houve esse aumento de gastos em 2022, e foram feitas promessas nesse sentido. Isso torna muito preocupante o futuro das contas públicas e o eventual impacto inflacionário decorrente. Haverá uma relação tensa entre a necessidade óbvia de um ajuste fiscal, do qual Lula não poderá correr, e a demanda dos eleitores cobrando as promessas de campanha. Isso certamente vai ser um enorme problema par sobretudo no primeiro ano do governo Lula.

Alguns diziam que a Nova República acabou. Como o senhor vê estes comentários agora?

Chamo isto de retórica da iminência. É muito comum nesses eventos dramáticos entenderem que estamos à beira do abismo, diante de um país paralisado, da eleição mais importante da História, essas coisas. Penso que devemos ter cuidado com esse tipo de retórica. Minha impressão é que estamos com uma sociedade muito cansada do histrionismo, da violência. Um pouco de tranquilidade não faz mal para ninguém. É claro que a eleição tem muitos ineditismos, mas é de todo recomendável que busquemos mais tranquilidade e rotina.

A grande apropriação pós-fascista italiana de Tolkien

Giorgia Meloni, como muitos na extrema-direita italiana, é uma obcecada por O Senhor dos Anéis - levantando questões sobre o que há na obra de Tolkien que parece atrair os fascistas.

Angelo Boccato


A primeira-ministra italiana Giorgia Meloni participa da cerimônia de posse no Palácio do Quirinal em 22 de outubro de 2022 em Roma, Itália. (Antonio Masiello / Getty Images)

Tradução / Em 22 de setembro, o ator italiano Pino Insegno (que dubla Viggo Mortensen nos filmes de Peter Jackson, a trilogia O Senhor dos Anéis) deu boas vindas à Giorgia Meloni, antes que ela encerrasse a campanha eleitoral da coalizão de extrema em Roma, utilizando um discurso adaptado de Aragorn, que aparece em O Retorno do Rei. Um sentimento de desconforto se espalhou entre todos os tolkienistas italianos que não se identificam com a apropriação fascista do autor britânico.

A história dessa apropriação pela extrema direita italiana começou na década de 1970. O Senhor dos Anéis foi traduzido para o italiano pela primeira vez em 1971. No contexto dos “anos de chumbo”, o Movimento Social Italiano (MSI) somou-se às forças que impulsionaram a ascensão da Nouvelle Droite, um movimento político e cultural da Nova Direita, e vislumbrou nos elementos tradicionalistas do trabalho de Tolkien uma fonte de inspiração política e cultural, levando ao lançamento do primeiro Acampamento Hobbit em 1977. A experiência também desencadeou o lançamento de revistas como a Éowin, batizada com o nome da princesa de Rohan pelas mulheres ativistas do MSI.

“Todos podem amar Tolkien. O Senhor dos Anéis é uma das obras primas mais grandiosas do século vinte”, afirma Loredana Lipperini, autora e apresentadora de rádio do programa de literatura Fahrenheit na Radio 3, da emissora estatal RAI. “Estamos presos no discurso literário da crítica marxista que repele qualquer coisa que não se conecte ao realismo. Uma grande parte dessa crítica, para os intelectuais italianos, enxerga que toda a literatura fantástica, da fantasia ao horror, passando pela ficcção científica, é ou algo infantil ou algo que pertence à direita.” Elementos biográficos também influenciaram na forma como essas obras foram recebidas. Tolkien era católico e um discreto apoiador do nacionalismo de Francisco Franco durante a Guerra Civil Espanhola — mas também recusou que seus livros fossem traduzidos para a Alemanha do terceiro Reich, quando a editora Rütten & Loening solicitou a certificação da sua ancestralidade ariana e que confirmasse que ele não possuía origens judaicas.

Conforme Lipperini enfatiza, tem ocorrido uma mudança geracional em termos de crítica literária da esquerda, algo comprovado pelo trabalho e pesquisa de autores como Wu Ming. Mas como a história sobre diferentes raças que se unem apesar de suas diferenças contra um inimigo comum, com um herói improvável, Frodo Bolseiro, que ama suas canecas de cerveja, ficar chapado com charutos de maconha e a paz da natureza, se tornou em um simbolo de narrativas racistas e de extrema direita?

A recepção de Tolkien variou muito de país a país, algo notado por Craig Franson, professor associado de literatura britânica, drama e escrita em La Salle University, na Philadelphia, e co-anfitrião do podcast American ID. “Na Inglaterra da década de 1980 havia uma crítica muito forte, também um pouco mais cedo com Raymond Williams, Fredric Jameson e outros, que o enxergavam dessa forma (como um fascista ou um criptofascista)”. “Contudo, nos Estados Unidos havia uma visão diferente de Tolkien, parcialmente em razão dele ter chegado na década de 1960 no grande momento hippie e logo foi adotado por eles em 1965”, explica Frason. “O período entre 1965 e 1971 é um momento em que ele se torna realmente parte da cultura pop e, ao longo dos próximos cinco ou dez anos, a popularidade dele afunda e desaparece novamente da esfera pública.”

O divisor de águas veio com o lançamento da trilogia de Peter Jackson, O Senhor dos Anéis. A Sociedade do Anel chegou ao cinema em dezembro de 2001 e essa adaptação tolkienista emaranhou-se com a conversa política e cultural no auge da guerra ao terror. A atenção que Tolkien recebeu na cultura pop global também abriu o caminho, nos Estados Unidos, com as guerras no Afeganistão e Iraque, para o interesse pelas obras de Tolkien pela extrema direita norte americana, expressamente em ambientes como o site que disseminam ódio como Stormfront, conforme a explicação de Franson. “As conversas no Stormfront se iniciaram a partir de discussões sobre a guerra no oriente médio e conspirações judaicas, e escalaram, descrevendo judeus como Naxgûl e chamando pessoas de cor de Orcs. Isso se deu no Stormfront e no decorrer do tempo se tornou uma norma por toda as redes sociais. Assim, quando o Breitbart foi lançado em 2007, ele estava repleto dessa linguagem.”

A reação extrema experienciada pelos atores de Os Anéis de Poder, Ismael Cruz Cordova, Sophie Nomvete, Lenny Henry e Cynthia Addai-Robinson tem suas raízes ali e ela se estende, na verdade, para muito além da ideia de fãs tóxicos. Franson estabelece um paralelo entre a nova extrema direita (alt-right) dos Estados Unidos e Giorgia Meloni. “Para mim, o que é crucial nessa história é que os fascistas estão, mais uma vez, usando a cultura popular para criar grandes estímulos de engajamento e isso é algo que sempre funciona para eles. Meloni é um tipo de garota propaganda disso: ela era exatamente a pessoa que eles imaginavam; ela é como se fosse um caso de sucesso daquilo que as pessoas que organizaram o Acampamento Hobbit tinham em mente no princípio.”

“Ela era uma criança que amava Tolkien, que se fantasiava de Hobbit e ia para as escolas recrutar pessoas para o fascismo e fazia isso tendo nascido durante as ondas de terrorismo [da década de 1970]. Houve mais de 1.000 pessoas assassinadas durante os ‘anos de chumbo’, a maior parte delas pelo terrorismo de extrema direita, inclusive o massacre de Bolonha em 1980 [que teve 85 mortos, 200 feridos, o maior massacre de civis na Itália desde a Segunda Guerra Mundial]. No despertar de toda aquela violência, ela pensou que seria uma boa ideia se juntar a um movimento neofascista e se vestir como Hobbit, visitando escolas para recrutar outros jovens”. Outra questão enfatizada por Frason é o quão pouco esses fãs e personalidades da extrema direita mudaram suas estratégias — para manter as pessoas de cor, não-cristãs e queers fora de “sua” Terra Média.

Parte do sucesso da extrema direita em preservar um tipo de hegemonia cultural sobre o gênero fantástico também tem a ver, de acordo com Silvia Costantino, da editora italiana Effequ, com o confuso caldeirão de temas e influências da fantasia, que tende a colocar na mesma cesta Tolkien, Michael Ende (o encontro nacional do grupo Irmãos de Itália é chamado “Atreju” por causa do protagonista de História Sem Fim) e mitos nórdicos. Conforme demonstra Constantino, “há um elemento de tradição com os Acampamentos Hobbit, a revista Éowyn… É relativamente fácil entender a razão pela qual Giorgia Meloni acabou lendo O Senhor dos Anéis e interpretando daquela forma. E então há o elemento da figura feminina. O personagem de Éowyn apresente fortes componentes revolucionários”.

As obras de Tolkien podem ser vistas como telas em branco. Através de lentes internacionalistas é possível ver diferentes raças buscando união; para a extrema direita, Orcs e os homens do sul (Southrons) são os alvos ficcionais para o racismo vil e a xenofobia deles. Independentemente disso, a tomada de Tolkien pela extrema direita e a literatura fantástica já dura muito tempo. É hora da literatura fantástica trilhar uma jornada mais justa, mais verde e mais igualitária.

Colaborador

Angelo Boccato é um jornalista freelance que mora em Londres e seu trabalho apareceu em diferentes publicações, incluindo a Columbia Journalism Review, The Independent e o Open Democracy. Ele twitta em @Ang_Bok e é coapresentador do podcast Post Brexit News Explosion.

A liberdade de expressão é importante demais para ser confiada a Elon Musk

Os liberais que minimizam a importância da liberdade de expressão no Twitter estão completamente errados. Mas não devemos esperar que um bilionário com histórico de reprimir seus críticos cumpra sua retórica de liberdade de expressão.

Ben Burgis

Jacobin

O logotipo do Twitter e a conta do Twitter de Elon Musk exibidos em uma tela em 30 de outubro de 2022, após a compra da plataforma por Musk. (Jakub Porzycki / NurPhoto via Getty Images)

Agora que a tão esperada aquisição do Twitter por Elon Musk finalmente foi aprovada, muitos liberais estão com raiva pelos motivos errados. Eles parecem estar preocupados que Musk permita muita liberdade de expressão na plataforma e que isso permita intolerância e desinformação.

Como socialista democrata, rejeito essa visão na sua raiz. Capacitar pessoas comuns para administrar a sociedade em seus próprios interesses é o ponto principal do projeto socialista – e isso é totalmente incompatível com a visão tecnocrática liberal de que não se pode confiar nas pessoas comuns para decidir por si mesmas em que acreditar.

Os socialistas obviamente rejeitam a visão de que a liberdade de expressão se aplica apenas aos governos e que as empresas privadas devem poder fazer o que quiserem. Se eu não achasse que regimes privados de poder podem ser perigosos, eu não seria um socialista em primeiro lugar.

Uma preocupação maior sobre o Twitter se tornar propriedade pessoal de Musk é que ele não pode ser confiável para praticar o que prega. Musk tem um histórico de tentar calar seus próprios críticos. Ele também está profundamente conectado ao estado de segurança nacional, dando-lhe um interesse em habilitar o gigantesco regime de vigilância dos Estados Unidos – historicamente uma das maiores ameaças à liberdade de expressão no mundo.

Permitir que bilionários comprem e vendam fontes de informação de vital importância é ruim para a democracia. Também é uma aposta arriscada para as normas de liberdade de expressão que Musk afirma venerar. A maneira mais eficaz de proteger essas normas nas grandes empresas de rede social seria removê-las do controle de pessoas ricas cujas políticas de “moderação de conteúdo” não são restritas pela Primeira Emenda. Precisamos transformar nossa praça pública digital em propriedade pública.

A liberdade de expressão causou “morte e sofrimento incalculáveis”?

Aescritora e “analista de defesa” Brynn Tannehill passa muito tempo soando o alarme sobre o autoritarismo conservador. Isso é uma coisa razoável para se preocupar. A direita é perturbadoramente autoritária.

No entanto, quando se trata da aquisição do Twitter por Musk, a crítica de Tannehill é que ele não será autoritário o suficiente. Em um artigo na New Republic, Tannehill afirmou que “a ideia de liberdade de expressão de Musk” vai “ajudar a arruinar a América”. Essa “ideia de liberdade de expressão” parece ser simplesmente que as normas de liberdade de expressão são importantes nas redes sociais, e as pessoas devem ser livres para fazer afirmações controversas – incluindo aquelas que podem ser ofensivas ou imprecisas.

Ela afirma que “a liberdade de expressão causou morte e sofrimento incalculáveis quando usada para disseminar ódio ou espalhar desinformação” e cita a popularidade de Mein Kampf e The Protocols of the Elders of Zion em Weimar, Alemanha. De acordo com Tannehill, esses livros foram “principais contribuintes para a queda da democracia alemã, a ascensão do Terceiro Reich e o próprio Holocausto”.

A compreensão de alguns dos fatos históricos citados por Tannehill é, na melhor das hipóteses, instável. Por exemplo, Mein Kampf não estava nem perto de ser popular o suficiente na Alemanha de Weimar para ser um contribuinte “chave” para a ascensão de Adolf Hitler ao poder. Como observa William Shirer em A Ascensão e Queda do Terceiro Reich, o livro Mein Kampf foi tão mal escrito que até mesmo muitos nazistas admitiam em particular que, por mais que tentassem lê-lo, não conseguiam “chegar até o fim das suas 782 páginas túrgidas”. Os números de vendas foram minúsculos nos primeiros anos após a publicação, e só se tornou um best-seller depois que Hitler ascendeu ao poder, e possuir uma cópia – embora não necessariamente a leitura – era uma maneira de sinalizar entusiasmo pelo novo regime.

Devemos confiar em censores benevolentes para acabar com a “desinformação”?

Aparentemente desconhecendo a longa história de defesa da liberdade de expressão da esquerda, desde os dias de Karl Marx como editor de jornal, que trava uma verdadeira cruzada lutando contra os censores na Alemanha, até o “Movimento de Liberdade de Expressão” na Universidade Berkeley, que ajudou a dar origem à Nova Esquerda, Tannehill associa essa “ideia de liberdade de expressão” com o libertarianismo. Ela chama a visão de que “a verdade inevitavelmente conquistará narrativas comprovadamente falsas” de “fantasia libertária”.

É verdade que tais alegações de inevitabilidade são tolas. Mas, como os defensores da liberdade de expressão de esquerda sempre reconheceram, essa é uma questão muito diferente de saber se as consequências de confiar em censores benevolentes para determinar quais narrativas são falsas, serão melhores ou piores do que as consequências de deixar o resto de nós decidir por nós mesmos.

É fácil dizer, nas palavras de Tip O’Neill, que todos têm direito à sua “própria opinião”, mas não “aos seus próprios fatos”, mas na prática todo debate político é pelo menos parcialmente um debate sobre fatos. Pense nas divergências entre apoiadores e opositores de um salário mínimo mais alto, sobre se o aumento do salário mínimo levaria ao aumento do desemprego, ou as divergências entre apoiadores e opositores da invasão do Iraque, sobre armas de destruição em massa.

Se o Twitter existisse em 2002 e 2003 – e tivesse o tipo de política agressiva de “moderação de conteúdo” defendida por Tannehill – quem você acha que teria mais probabilidade de ser censurado por “difundir informações erradas”? Usuários que concordaram com o governo dos EUA (e com o New York Times) que o Iraque tinha armas de destruição em massa, ou usuários que acusaram funcionários do governo Bush de conspirar para enganar o público?

Ou imagine que em poucos anos algum equivalente do fundador do sindicato “Amazon Labor Union”, Chris Smalls, consiga organizar uma das fábricas Tesla, de Musk. Esta pessoa acusa Tesla de alguma prática de trabalho particularmente horripilante e perigosa. Tesla acusa o líder sindical de espalhar desinformação.

Você esperaria, nessa situação, que as políticas de “moderação de conteúdo” do Twitter dessem à Tesla ou aos sindicalistas o poder de reprimir duramente a “desinformação” – ou que o Twitter tivesse saído do negócio de tentar julgar quais narrativas eram verdadeiras e quais eram falsas?

Musk pode ser confiável para proteger a liberdade de expressão?

Uma quantidade deprimente de discurso de compra de Musk no Twitter consiste em fãs de Musk comemorando o retorno da liberdade de expressão à plataforma, por um lado, e por outro, detratores de Musk comparando a perspectiva dele em instituir normas mais flexíveis, como na cena do filme Ghostbusters, onde todos os fantasmas são libertados para causar estragos. O que fica de fora de tudo isso é que muito pouco sobre o histórico de Musk deve nos dar qualquer razão para ter certeza de que ele será fiel à sua palavra.

Por um lado, como Yasha Levine apontou, a reputação de Musk como um “forasteiro” da liberdade de expressão não sobrevive a uma olhada em suas atividades comerciais como empreiteiro militar. Este é um cara que tem “recebido centenas de milhões de dólares equipando as agências de inteligência mais secretas e ‘estrategicamente importantes’ da América”. Ele está sendo pago pela Agência dos EUA para o Desenvolvimento Internacional (USAID) para equipar a Ucrânia com terminais da Starlink durante a guerra com a Rússia. Ele tentou passar por caridade, mas a USAID parece ter pago US$ 900 por peça acima do valor de mercado pelos terminais. Ele tem um “contrato militar de quase US$ 300 milhões para lançar um satélite espião norte-americano confidencial”. Ele “assinou um acordo de US$ 149 milhões para rastrear mísseis – também conhecido como espionar o céu”. E, claro, sua empresa SpaceX está fazendo bilhões em negócios com a NASA.

Se você confia em alguém na posição de Musk para dizer “não” quando o estado de segurança nacional o encoraja a censurar denunciantes, e jornalistas investigativos que os estão constrangendo, tudo o que posso dizer é que você tem um nível de confiança fofo sobre a moral do caráter de um oligarca.



Há a história pessoal de Musk de – para ser gentil – não lidar bem com as críticas. Ele pagou a um investigador particular US$ 50.000 para desenterrar sujeira de alguém que cometeu o “grave crime” de dizer que Musk estava envolvido em um “golpe de relações públicas” idiota. Ele demitiu ilegalmente organizadores sindicais – e demitiu, hackeou e espionou denunciantes corporativos que o confrontaram. Ele tentou enganar os críticos. Ele até pediu ao governo chinês que censurasse as postagens nas mídias sociais que criticam a Tesla.

Além de todas as razões para desconfiar desse oligarca em particular, há uma questão muito maior aqui sobre permitir que um único indivíduo rico tenha tanto controle sobre o fluxo de informações. Quando o Twitter aceitou a oferta de Musk pela primeira vez em abril, eu disse: “É um absurdo que vivamos no tipo de inferno capitalista onde a única esperança de normas razoáveis que protegem a liberdade de expressão online é que tenhamos sorte e o tipo certo de bilionário compre a nossa praça pública digital”.

A verdadeira solução é transformar nossa praça pública digital em propriedade pública. Isso não significaria que o Twitter seria livre para todos, onde você poderia postar literalmente qualquer coisa a qualquer momento – mais do que você pode se aproximar do microfone na reunião do conselho local e começar a gritar obscenidades a plenos pulmões. Mas isso significaria que os administradores do Twitter teriam a obrigação legal de provar que não estavam reprimindo o conteúdo político do discurso de maneiras que – no contexto de um Twitter de propriedade pública – violariam a Primeira Emenda.

Como Edward Snowden apontou, muitos problemas de moderação de conteúdo poderiam ser resolvidos pelos próprios usuários se empresas como o Twitter lhes dessem ferramentas melhores para filtrar o conteúdo que veem. Mas mesmo os críticos das empresas tão apaixonados pelo valor da liberdade de expressão quanto eu podem admitir que elaborar regras razoáveis para evitar assédio, doxing, abuso de crianças e assim por diante, pode representar desafios reais e complicados.

Em um futuro em que as grandes empresas de mídia social fossem colocadas sob propriedade pública, eu esperaria que batalhas confusas fossem travadas sobre essas questões, tanto nos tribunais quanto no “tribunal” da opinião pública. Mas, por mais confuso que seja, eu preferiria infinitamente isso a deixar essas questões para os caprichos de um único bilionário. A liberdade de expressão é muito importante para ser confiada à Elon Musk.

Colaborador

Ben Burgis é professor de filosofia e autor de Give Them An Argument: Logic for the Left. Ele faz um quadro semanal chamado "The Debunk", no The Michael Brooks Show.

Lula sacramenta vitória sobre Bolsonaro com avanço no Sudeste e fortaleza no Nordeste

Petista reduziu diferença em regiões que deram vitória em 2018 ao atual presidente, sobretudo em SP

Italo Nogueira
Júlia Barbon

Folha de S.Paulo

O avanço sobre o eleitorado do Sudeste e a manutenção de uma fortaleza no eleitorado nordestino foram os principais resultados, comparados à disputa de 2018, que garantiram a vitória no domingo (30) a Luiz Inácio Lula da Silva (PT) sobre Jair Bolsonaro (PL).

A margem mais estreita na história da disputa presidencial, porém, mostrou que a obtenção de novos votos em outras regiões bolsonaristas, como Sul e Centro-Oeste, ainda que em menor quantidade, também foram essenciais para o retorno do petista à Presidência.

Caminhada de Lula (PT) com Geraldo Alckmin e o candidato derrotado a Governador por SP, Fernando Haddad, na avenida Paulista, na véspera do segundo turno - Mathilde Missioneiro - 29.out.2022 / Folhapress

Lula teve 2,1 milhões de votos a mais que Bolsonaro, que havia vencido Fernando Haddad (PT) há quatro anos com uma diferença de 10,7 milhões de votos. Mais da metade da virada de 12,8 milhões no resultado em favor do PT neste ano se deu no Sudeste.

Na região que concentra a maior parte do eleitorado, o presidente eleito conseguiu reduzir em 9,1 milhões de votos a diferença para Bolsonaro. Lula obteve 7,8 milhões a mais para o partido, enquanto o atual presidente reduziu em 1,3 milhão a votação em relação à disputa de quatro anos atrás.

Boa parte desse avanço se deu em São Paulo, onde Haddad nacionalizou a disputa estadual, tendo sido derrotado pelo ex-ministro bolsonarista Tarcísio de Freitas (Republicanos). No estado, a candidatura do PT teve 4,3 milhões de votos a mais que em 2018, enquanto o atual presidente perdeu 1,1 milhão de votos.

Foi no Sudeste também que Lula conseguiu avançar mais no percentual de votos válidos. Ele obteve 11,1 pontos percentuais a mais do que em 2018. Ainda assim foi derrotado por Bolsonaro na região por 53,3% a 45,7%.

Em menor intensidade, a redução na diferença também aconteceu no Sul e no Centro-Oeste, regiões em que Bolsonaro havia obtido 68,3% e 66,6% dos votos válidos, respectivamente.

No Sul, Bolsonaro teve uma redução de 144 mil votos, associada a uma ampliação de 1,6 milhões de votos na candidatura do PT, todos em comparação com 2018.

No maior eleitorado da região, Rio Grande do Sul, o governador eleito Eduardo Leite (PSDB) optou pela neutralidade na disputa contra o ex-ministro bolsonarista Onyx Lorenzoni (PL). O PT-RS defendeu voto crítico no tucano, fazendo um movimento de aproximação que pode ter contribuído para a melhoria na disputa presidencial para o PT.

Lula obteve 628 mil votos a mais entre os gaúchos que Haddad, enquanto Bolsonaro teve 160 mil a menos do que em 2018.

No Centro-Oeste, os dois ampliaram suas votações, com vantagem para o petista. Lula obteve 928 mil votos a mais para o PT, enquanto o atual presidente conseguiu 168 mil eleitores a mais que há quatro anos.

Um dos trunfos do petista na região foi a forte mobilização da senadora Simone Tebet (MDB-MS) na campanha ao longo do segundo turno. A campanha de Lula avalia que ela ajudou a reduzir resistência entre alguns empresários e trabalhadores do agronegócio.

Ainda assim, Bolsonaro manteve-se à frente de Lula na região, obtendo 60,2% dos votos válidos, uma queda de 6,3 pontos percentuais em relação a 2018.

Enquanto o atual presidente viu a candidatura do PT reduzir a diferença nos seus nichos regionais, Lula conseguiu manter a fortaleza petista no Nordeste.

O presidente eleito obteve 69,3% dos votos válidos na região, uma discreta queda em relação aos 69,7% obtidos por Haddad em 2018.

Bolsonaro investiu forte para tentar enfraquecer o domínio petista no Nordeste com o anúncio de benefícios sociais ao longo do segundo turno.

A votação indica que o presidente teve parcial sucesso na empreitada, pois conseguiu 1,1 milhão de votos a mais na região do que em 2018. Contudo, Lula também ampliou a votação obtida por Haddad em 2,2 milhões de votos, mantendo a distância percentual semelhante.

Bolsonaro teve dificuldades em obter palanques na região no segundo turno. Os candidatos que disputaram o cargo de governador no domingo optaram ou pela neutralidade ou pelo apoio a Lula, temendo desgaste com o eleitorado petista de seus estados.

No cômputo geral do país, Lula venceu o pleito em 13 estados. Já o candidato derrotado à reeleição ficou na frente em 14, contando o Distrito Federal. O presidente eleito teve 50,9% dos votos válidos, contra 49,1% do adversário.

Evangélicos podem ser fiel de balança que pesará contra esquerda no futuro

Parte dos pastores reforçou tese de que o mal venceu por ora, enquanto outros baixaram o tom

Anna Virginia Balloussier

Folha de S.Paulo

É provável que, em alguns anos, evangélicos sejam a maioria da população. José Eustáquio Alves, doutor em demografia aposentado do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), projetou que isso aconteceria em 2032.

Se a democracia passar bem depois desta eleição, sem golpismos prósperos, teremos mais dois pleitos presidenciais até lá. Não é preciso dizer que a já expressiva polpa eleitoral desse bloco vai dar mais suco daqui para frente. Um refresco, claro, para o bolsonarismo.

Lula se reúne com evangélicos em São Paulo - Marlene Bergamo - 19.out.22/Folhapress

Dá para cravar que Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ganhou esta eleição apesar dos evangélicos, e não com eles. Todas as pesquisas às vésperas do segundo turno mostravam uma ampla preferência do grupo pelo presidente Jair Bolsonaro (PL).

O peso da identidade religiosa fica mais evidente quando lembramos que a face média do crente é negra, pobre e feminina. Nichos que tendem a Lula, e mesmo assim a onda pró-Bolsonaro nos templos foi avassaladora. Neles, Lula é o demônio que vai trazer comunismo, aborto, drogas e toda a sorte de males aos olhos do povo evangélico. Não precisa ser verdade, precisa convencer. E a máquina bolsonarista é boa nisso.

Alguns dos pastores que assumiram a linha de frente contra o petismo reforçaram a tese da batalha espiritual, com um mal que por ora triunfou, após o anúncio da vitória lulista contra Bolsonaro.

André Valadão, o membro mais barulhento do clã à frente da Igreja Batista Lagoinha, postou uma montagem do rosto de Lula como dom Pedro 1º. "Dom Preso Primeiro –se for para roubar, diga ao povo que volto!"

Apontado como sucessor do bispo Edir Macedo na Igreja Universal, seu genro Renato Cardoso pediu numa live que seus seguidores orem por Bolsonaro e sugeriu que o momento é de provação. "Tudo isso aí simplesmente vai fortalecer aqueles que já são da fé. Vamos ver daqui pra frente uma distinção cada vez maior entre o bem e o mal."

De João Vitor Ota, pregador de 13 anos com 1 milhão de seguidores no Instagram: "Infelizmente a minha geração não pode definir o futuro, mas se prepare, daqui a quatro anos, chegará a nossa vez. Glória a Deus".

Outra parte expressiva da liderança abaixou o tom. O pastor Silas Malafaia diz que orou por Lula em culto noturno neste domingo (30), porque a Bíblia manda que todos orem pelas autoridades constituídas. Ele como pessoa física pode ser Bolsonaro, mas "a vontade soberana do povo se estabeleceu", afirma.

O deputado Marco Feliciano seguiu trilha parecida. "Vi o discurso de Lula. Começou agradecendo a Deus. Falou de Deus em vários momentos. Reafirmou compromisso pela liberdade religiosa, evitou temas que causam divergências com o segmento evangélico e terminou agradecendo a Deus. Aprendeu a nos respeitar? Tenho dúvidas. O tempo dirá", disse em rede social.

Depois de anos sob uma campanha bolsonarista intensa, com cismas internos que provocaram expurgo de pastores à esquerda e fuga de fiéis, as igrejas devem se reorientar para entender como marcharão sob o futuro governo Lula.

Uma coisa é certa: será muito difícil para futuros candidatos abrir mão da força política que se tornaram.

O sociólogo Paul Freston, que estuda essa parcela religiosa desde 1989, sintetizou assim o horizonte: "A cada eleição, o crescimento evangélico é um problema crônico para o campo, pois representa uma porcentagem maior do eleitorado. A dificuldade de se conectar com esse segmento implica um preço cada vez maior. Não vai ser fatal nesta eleição, mas, na próxima, volta a ser um problema, como quase foi em 2014, como foi em 2018." E como não foi por um triz em 2022, podemos agora acrescentar.

Seria um erro da esquerda, contudo, deixar que essa predileção por Bolsonaro a afaste de vez do segmento. Há muito ressentimento de ambos os lados, e em algum momento alguém vai ter que estender a mão em busca do diálogo. Se o campo progressista se acastelar no alto de sua torre de marfim, vendo apenas fundamentalismo no lado de lá, e não uma rede complexa de quereres, quem vai perder a médio e longo prazo é ele.

Os acenos até aqui são tímidos, até atabalhoados. Lula não colocou um pastor pentecostal para falar no dia em que lançou uma carta aos evangélicos. Aliás, só se decidiu pela missiva de última hora, o que foi explorado como oportunismo eleitoral por seus detratores.

A esquerda parece se apegar a poucas e legítimas lideranças progressistas que, no entanto, falam mais para uma bolha secular do que para as igrejas. Como vai fazer para alcançar as massas crentes?

O sequestro ideológico existe, mas é um erro promover uma versão às avessas da guerra entre o bem e o mal que Bolsonaro tentou vender ao longo da campanha, com ajuda dos pastores amigos. Mais importante é tentar entender como o projeto bolsonarista conseguiu cooptar num tempo relativamente curto uma fatia tão larga do evangelicalismo nacional.

E aqui há um tanto de viés de confirmação, que atinge fiéis e líderes. É quando a pessoa dá um peso desproporcionalmente alto a tudo o que confirma o que ela já acredita, e inconscientemente desdenha evidências que contrariam suas teses. Se eu creio que Bolsonaro é o melhor para o país, e todos em volta fazem o mesmo, acabo ignorando o que possa causar fissuras nessa aparente unanimidade.

A questão armamentista é um bom exemplo. Quase nenhum desses pastores de maior expressão se anima com ela, mas ninguém vê a necessidade de se contrapor abertamente à causa agora.

Uma pastora que não morre de amores pelo presidente, ex-católica convertida há quase 25 anos, viu o bolsonarismo aflorar em todo o seu entorno. É verdade que seus colegas nunca foram petistas roxos, diz. No máximo, deixaram-se contagiar pela empolgação que tomou o segmento quando Lula chegou ao poder em 2002, rodeado de pastores que hoje o espinafram.

Uma leitura possível para o fisiologismo que norteia boa parte desses líderes é o que ela chama de síndrome do cachorro correndo atrás do caminhão de mudança. Evangélicos se sentiam vira-latas em pleitos passados, ganhando quando muito alguns biscoitos eleitorais. Fechadas as urnas, voltavam a dormir ao relento, longe do aconchego do Palácio do Planalto.

Com Bolsonaro, isso mudou. Evangélicos entraram na Esplanada, até no STF (Supremo Tribunal Federal), representados pelo pastor presbiteriano André Mendonça. Pela primeira vez, um presidente inclui em seu calendário a Marcha para Jesus, evento que atravessou três décadas e seis mandatários. O simbolismo aqui é forte. Eles sentem que alguém se importa com eles agora e acabam cegos e surdos para excessos patentes do bolsonarismo, diz essa pastora.

Se a esquerda continuar demonstrando que não está nem aí para eles, evangélicos poderão ser o fiel da balança que devolverá o país à direita bolsonarista daqui a quatro anos. Não vai dar para dizer que ninguém a avisou.

30 de outubro de 2022

Lula como contrapeso à ultradireita

Vitória é apenas o primeiro passo na reconstrução de instituições democráticas

Jorge Chaloub

Folha de S.Paulo

Professor de ciência política da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFJF (Universidade Federal de Juiz de Fora)

O segundo turno da eleição mais disputada do pós-1988 decidiu mais do que o novo presidente do Brasil. Em um pleito marcado pela sombra de práticas golpistas, como o uso eleitoral da Polícia Rodoviária Federal e o claro desrespeito a decisões judiciais, a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) oferece um horizonte para a sobrevivência da ordem democrática de 1988.

Se o primeiro turno institucionalizou a ultradireita, fortaleceu o lugar dos aliados de Jair Bolsonaro (PL) neste campo e reduziu a força política da direita hegemônica nas últimas décadas, o segundo turno se destaca sobretudo por dois eventos: a impressionante demonstração de força política de Lula e mais uma didática demonstração de que o ataque às instituições democráticas não era apenas uma "cortina de fumaça" farsesca, mas elemento central da ação política do bolsonarismo.

O presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) no discurso da vitória, em São Paulo - Carla Carniel/Reuters

A força política de Lula tem como evidência o ineditismo do seu feito. Trata-se, afinal, do primeiro a derrotar nas urnas um candidato à reeleição no Brasil. Mesmo ante todas as tragédias que marcaram o governo Bolsonaro e em face da sua ampla rejeição, governamental e pessoal, é difícil imaginar que outro líder político pudesse alcançar uma vitória em cenário tão difícil. O domingo de votação deixou bem evidentes algumas das razões dessa suposição. Os cerca de 2 milhões de votos de vantagem, neste sentido, representam um grande feito.

Bolsonaro não respeitou os limites democráticos e republicanos do uso da máquina pública em eleições. Fiel aos momentos em que afirmou "Eu sou a Constituição", ou se referiu às Forças Armadas como sua propriedade, ele utilizou os recursos, os funcionários e as prerrogativas do Estado brasileiro para fins eleitorais de modo nunca visto na Nova República. O candidato derrotado foi, todavia, ainda mais longe.

Com ataques ao sistema eleitoral, ao Judiciário e recorrente criminalização dos adversários, ele sempre transitou em uma fronteira ambígua entre a disputa eleitoral e o golpe de Estado. Por seus discursos e gestos, é razoável imaginar que a saída golpista não foi colocada em prática por razões de oportunidade e apoio político. Toda a atenção para a defesa da democracia é, contudo, necessária até o final do seu mandato, pois suas manifestações públicas tornam difícil imaginar uma transição institucional adequada e sugerem outras possíveis investidas autoritárias.

A terceira vitória de Lula e a quinta do Partido dos Trabalhadores nas eleições presidenciais da Nova República ocorrem, contudo, em condições muito diversas das anteriores.

A coligação vitoriosa, com o apoio oficial de 10 partidos no primeiro turno e 16 no segundo, assumiu a feição de uma efetiva frente ampla, composta por algumas das mais relevantes lideranças políticas dos últimos 30 anos. Compõem a chapa vitoriosa com Lula, ou o apoiam publicamente, por exemplo, seu adversário na última eleição presidencial disputada pelo líder petista, Geraldo Alckmin; o ex-presidente que o derrotou em dois pleitos, Fernando Henrique Cardoso; a candidata no primeiro turno do partido responsável pelo fim do último governo petista, Simone Tebet.

Como o próprio Lula já sinalizou, a chapa indica que, quando comparado ao seu papel entre 2003 e 2015, o PT terá uma atribuição mais modesta no próximo governo. Se, por um lado, o partido chega a impressionantes 5 vitórias em 9 eleições na Nova República, por outro ele terá que lidar com um cenário muito mais duro para algumas das suas pautas históricas. Derrotada nas urnas, a ultradireita foi vitoriosa em tornar corriqueiras muitas das suas pautas no debate público e ao fortalecer consensos conservadores, ou mesmo reacionários. A vitória de Tarcísio de Freitas (Republicanos) na eleição para o governo paulista abre, por sua vez, um importante espaço institucional para a organização política e ação pública de muitos dos quadros bolsonaristas, que certamente farão uma oposição duríssima ao governo eleito.

Os motivos de uma coalizão tão ampla decorrem, em parte, de um inevitável cálculo eleitoral, reafirmado pela apertada vitória, já que era difícil crer em triunfo contra um candidato à reeleição sem a construção de uma ampla gama de apoios. Por outro lado, a frente ampla se tornou necessária e urgente justamente pelas sérias ameaças à ordem democrática brasileira, brevemente descritas acima. Neste sentido, a vitória deste domingo (30) é apenas um primeiro passo para a reconstrução de muitas das instituições democráticas brasileiras, abaladas ou destruídas ao longo dos últimos anos.

Ex-secretário de imprensa de Lula sobre o significado do lulismo

Hoje, Luiz Inácio Lula da Silva pode voltar ao poder e construir um Brasil mais justo e próspero. O ex-secretário de imprensa de Lula, André Singer, conversou com Jacobin sobre o que é possível no poder e o apelo duradouro do lulismo.

Uma entrevista com
André Singer

Jacobin

Luiz Inácio Lula da Silva cumprimenta apoiadores após votar e dar uma entrevista coletiva em 30 de outubro de 2022 em São Bernardo do Campo, Brasil. (Rodrigo Paiva/Getty Images)

Entrevistado por 
Igor Peres

O segundo turno da eleição presidencial do Brasil acontece hoje, colocando o atual presidente de extrema-direita Jair Bolsonaro contra o ex-presidente de esquerda Luiz Inácio Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores (PT). À medida que a disputa chega a uma conclusão tensa, com a liderança de Lula nas pesquisas diminuindo e a retórica política de direita ficando mais extrema, vale a pena dar uma olhada nos dois candidatos.

Após o desempenho inesperadamente forte de Bolsonaro nas eleições gerais de 2 de outubro, quase todos os jornais publicaram um artigo sobre a resiliência da candidatura do direitista e até mesmo a perspectiva de um “Bolsonarismo-além-de-Bolsonaro”: a possibilidade de que, mesmo em derrota, o líder poderia ser sobrevivido pelo movimento reacionário que leva seu nome.

Menos artigos foram escritos sobre o ex-presidente Lula, que a maioria concorda ser uma quantidade conhecida neste momento. No entanto, como André Pagliarini mostrou de forma convincente, não se pode entender nem o passado nem o futuro do Brasil sem também estudar o fenômeno político maior que a vida em torno de Lula.

Esta foi a grande conquista de um dos principais cientistas políticos do Brasil, André Singer, um homem apelidado por Perry Anderson como o “maior pensador” do Partido dos Trabalhadores. Criador do termo “Lulismo” e principal estudioso do modelo de governo “social liberal” de Lula, poucos analistas são mais capazes de dissecar o que está em jogo nesta eleição e o que a vitória de Lula pode significar para o Brasil.

Igor Peres conversou com Singer para ter uma ideia de como o “fenômeno Lula” moldou a história brasileira e o que ela pode ter reservado para o futuro.

Igor Peres

Em Os sentidos do lulismo. Reforma gradual e pacto conservador (Companhia das Letras, 2012), são mencionados os resultados de uma investigação anterior sua sobre as eleições presidenciais de 1989 e 1994 no Brasil. Apresenta então a ideia da “questão setentrional”, definida como uma “estranha monstruosidade política onde os excluídos sustentam a sua própria exclusão”. Como argumentado ali, esse era o empecilho que a esquerda vinha encontrando ao tentar construir uma alternativa de poder no país.

Aliás, você menciona a esse respeito uma declaração do próprio Lula após o revés na disputa de 1989: "a verdade mais crua é que quem nos derrotou foram os setores menos favorecidos da sociedade". Gostaria que comentasse a ideia da “questão setentrional” e sua importância para a compreensão do lulismo.


André Singer

A ideia da questão setentrional tem a ver com o período anterior a 2006, quando foi possível identificar um bloco conservador que tinha forte base no Nordeste e no Norte do Brasil. Essa base é tão importante que permitiu à ditadura derrotar, com votos no Congresso, uma das maiores mobilizações de massa da história recente do país: a campanha pelas "Diretas Já", ocorrida em 1984. Como essa base conservadora foi gestada? Através de uma articulação entre oligarquias regionais e bases eleitorais. Quando falo da "questão setentrional" quero dizer isso. O lulismo transformará essa relação e produzirá uma novidade no processo político brasileiro ao criar uma base fixa no Nordeste.

Por outro lado, após as eleições presidenciais de 1989, Lula diz algo como "fomos derrotados pela periferia, não pelos ricos". Essa periferia também pode estar localizada em grandes cidades brasileiras da região sudeste, como São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte. Acontece que as periferias das grandes cidades são formadas em certa medida por pessoas que vêm da região Nordeste.

Para entender, portanto, a questão setentrional, é fundamental a distinção que faço entre os pobres e as classes trabalhadoras. Os pobres fazem parte da classe trabalhadora, mas são uma fração —que chamei de subproletariado— desta última. Quando comecei a trabalhar a questão eleitoral, o que levantei foi que esse setor é vulnerável e carece do que poderíamos chamar de “cidadania trabalhista”. Essa fração da classe trabalhadora carece de direitos (estamos falando de cerca de metade da força de trabalho que nunca conseguiu se integrar totalmente ao mercado de trabalho).

O lulismo conseguiu começar a integrar parte desse contingente, que nos últimos anos voltou a crescer. Procurei caracterizar esse setor como um setor vulnerável e sugerir que essa vulnerabilidade o impede de participar da "luta de classes", como disse Paul Singer. Não é que você não possa fazer nada; mas, em condições normais, sua participação é difícil. Assim, me ocorreu pensar que essa condição é parte da explicação de por que uma parte da classe trabalhadora tende a não apoiar posições vinculadas aos sindicatos, por exemplo, tendendo a opções políticas que garantam a ordem. Isso é o que muda com a reeleição de Lula em 2006.

Igor Peres

É neste mesmo livro que a ideia de "Lulismo" ganha a estatura de um conceito. Ele nomeia o encontro entre uma ocasião adversa, marcada por denúncias de corrupção na arena legislativa nacional —que mais tarde se chamará Mensalão— e a decisão do Executivo nacional de adotar "políticas públicas para reduzir a pobreza e ativar o mercado interno sem confronto com o capital. Para explicar o que emerge desse encontro, você usa a categoria de "realinhamento eleitoral", movimento que acabaria por dar origem ao lulismo, em 2006. Você poderia reconstruir esse raciocínio?

André Singer

O lulismo é o corolário eleitoral de um programa prático que atende ao subproletariado. Acredito que este programa não foi concebido como tal, mas praticado. Em que consiste? É um programa de combate à pobreza. Não estou me referindo à distribuição de renda, que é um conceito mais complexo. Falo em reduzir a pobreza sem confrontar o capital.

A partir de 2004, já é perceptível a redução da pobreza, alcançada por meio do Programa Bolsa Família e do crédito consignado; em 2005, somou-se a essas duas iniciativas o aumento do salário mínimo. Esse programa prático teve muito sucesso, pois produziu um aumento no nível de consumo de parte da população que ganhava muito pouco, sustentando a situação econômica desse segmento em situação de baixo crescimento. Do meu ponto de vista, isso representou uma invenção. Foi algo que não foi planejado. Insisto, sem confrontar o capital: não foi feito em detrimento de certas diretrizes centrais do neoliberalismo (juros altos, baixos níveis de investimento público e uma estrutura cambial flutuante), e foi isso que permitiu que os dois governos de Lula se movessem dentro de um certa estabilidade. Não houve comoção social como se esperava e foi prenunciada por setores conservadores que diziam que o governo Lula seria um governo tumultuado.

O que chamo de "realinhamento eleitoral" ocorre em 2006 e é composto por dois elementos. O primeiro delas tem a ver com a mudança de posição dos mais pobres em relação a Lula, e o consequente surgimento do lulismo eleitoral. Ou seja, até 2002, o PT tinha um perfil eleitoral mais de classe média. A partir de 2006 houve uma mudança, e é justamente isso que interpreto a partir de uma ideia que vem da ciência política norte-americana, que busca pensar a transição de determinados setores do eleitorado de um bloco para outro. Se olharmos para os números, notamos que em termos de massa de votos, ambas as disputas presidenciais são semelhantes, o que muda é o perfil dos eleitores.

Os mais pobres passaram a votar em massa em Lula, principalmente no Nordeste (e continuam votando até hoje). Por sua vez, a classe média se voltou para o Partido da Social Democracia Brasileira (PSBD). É verdade que esta última sempre esteve relacionada à classe média, mas a classe média estava dividida. O Mensalão, que foi uma crise desencadeada por denúncias de corrupção relacionadas a suposta compra de votos na arena legislativa nacional, unificou a classe média contra o lulismo e contra o PT. Em suma, este foi o realinhamento que o lulismo deu à luz. Os mais pobres de um lado, a classe média do outro; é uma polarização social que persiste até hoje. Acredito que a hipótese do realinhamento sobreviveu até mesmo àquela grande mudança que a eleição de Bolsonaro representou em 2018.

Igor Peres

Em Os sentidos do lulismo você destaca a dificuldade do lulismo em passar de um "reformismo fraco" para um "reformismo forte". Analisa como o "sonho de Roosevelt" que surgiu como horizonte no segundo mandato de Lula está subordinado ao realismo da correlação de forças. E descreve também como a decisão de manter os antagonismos em equilíbrio e a arbitragem acabou sendo imposta como meio e fim de seu segundo mandato presidencial. Você poderia detalhar essa ideia?

André Singer

A questão da passagem de um reformismo fraco para um reformismo forte me dá a oportunidade de fazer alguns ajustes que só a passagem do tempo permite. Ambos os livros — Os sentidos do lullismo. Reforma gradual e pacto conservador e (2012) e O lulismo em crise. Um quebra-cabeça do período Dilma (2011-2016) (2018)— foram escritos quentes, por assim dizer. Nesse sentido, e olhando para trás, eu diria que a segunda presidência de Lula é um mandato em que as grandes diretrizes neoliberais começam, de alguma forma, muito lentamente, a sofrer uma mudança. O investimento público, por exemplo, começa a descongelar. Era limitado e começa a se expandir. Há também algum tipo de contenção das taxas de juros e, além disso, uma pequena mudança em termos de política cambial.

São movimentos que apontam para uma política econômica mais próxima do desenvolvimentismo. Não se torna uma política econômica desenvolvimentista, mas visa a isso. Nesse sentido, acredito que o segundo termo seja diferente do primeiro. Entre outras mudanças importantes, destaco, por exemplo, a troca do primeiro ministro da Fazenda (que havia sido Antonio Palocci) por Guido Mantega. Agora, também é verdade que essa ainda é uma medida bastante homeopática, no sentido de preservar a premissa de não enfrentar o capital —que é o que garante a estabilidade política— mantendo um baixo nível de conflito, mesmo no segundo mandato de Lula.

Esta decisão é baseada em uma avaliação da correlação de forças em cada momento. Esta é uma questão decisiva, e devemos pensá-la de uma perspectiva objetiva e o menos ideológica possível. Como é medida a correlação de forças? Uma primeira maneira é olhar para a Câmara dos Deputados, que é uma expressão (um pouco distorcida, é verdade) do eleitorado de cada estado. Não é a única, mas é uma expressão significativa. O Congresso Nacional, tanto a Câmara dos Deputados quanto o Senado, retiraram, por exemplo, 30 bilhões de reais de investimentos na área da saúde (em valores da época) em 2007.

No Brasil temos o Sistema Único de Saúde (SUS) garantido pela Constituição de 1988, que é como se tivéssemos uma espécie de Sistema Único de Saúde, que na Inglaterra foi fruto de um forte reformismo após a Segunda Guerra Mundial. Mas na verdade isso nunca foi feito no Brasil. O sistema existe, mas não atende a todos e não o faz com a devida qualidade. Em 2007, uma enorme quantidade de investimento é retirada deste sistema. E por que o Congresso fez isso? Porque tem uma maioria conservadora. Poderia ter havido um processo social fora do Congresso? Sim, poderia, mas não houve. Seria preciso pensar em combinar ação institucional e mobilização social.

Igor Peres

Você dedica parte de O lulismo em crise à caracterização do primeiro mandato de quem sucedeu o ex-líder metalúrgico na presidência. Segundo o senhor, "[...] estimulada pelo capital político acumulado por Lula, Dilma levou a sério a ideia de acelerar o ritmo da iniciativa da presidente, dando lugar a uma política econômica desenvolvimentista". Gostaríamos que você resumisse o que você chama de o "ensaio desenvolvimentista" de Dilma.

André Singer

A principal medida que caracteriza o ensaio desenvolvimentista é a redução acentuada da taxa de juros. A taxa de juros havia sido apontada pela esquerda brasileira, antes da chegada do PT ao governo em 2003, como o principal obstáculo ao crescimento (se esse diagnóstico estava correto ou incorreto não posso dizer, porque não sou economista, sou um cientista político e não pretendo ser economista... quando falo de economia é porque entendo que a economia está no centro da política e que a luta de classes está no centro da economia). Toda a esquerda brasileira havia identificado o problema da taxa de juros como fundamental para a questão da distribuição de renda. E faz sentido, pois estamos falando em mudar o perfil de distribuição de renda em um dos países mais desiguais do mundo. Para tanto, todos concordam que a economia tem que crescer, algo assim não se faz com uma economia em recessão.

Nessa linha, Dilma tomou a corajosa decisão de baixar drasticamente a taxa de juros no início de 2012. Ela conseguiu porque travou uma grande e importante luta para mudar os rumos do Banco Central, quando estava apenas começando seu mandato. Ela escolheu um presidente do Banco Central que não veio do mercado financeiro, mas da burocracia do Banco Central, que é bem diferente. Os bancos privados não gostaram da queda das taxas de juros. Com isso, desencadeou-se o que chamo de “guerra do spread”: o Estado baixa sua taxa, mas os bancos privados continuam praticando a sua. Dilma usou os bancos públicos para fazer os bancos privados baixarem as taxas de juros, argumentando que se os bancos privados não fizessem o mesmo, perderiam clientes. Os bancos privados foram forçados a reduzi-la. Isso significa lutar com o cerne do capitalismo, que é o financeiro.

A segunda medida consistia em tratar da questão cambial, que basicamente significava administrar as importações e facilitar as exportações, favorecendo as indústrias brasileiras. Houve uma desvalorização cambial em torno de 20%. Aqui há um debate entre os economistas: há quem diga que essa magnitude de desvalorização não foi suficiente, que com essa desvalorização não foi garantida a competitividade da indústria nacional. Seja como for, é preciso reconhecer que Dilma foi a única que fez isso. E fez isso para favorecer a indústria brasileira.

Se os industriais viram insuficiente a magnitude da desvalorização, por que não fizeram um movimento para apoiar a decisão da presidente? Por que eles não pressionaram por mais desvalorização? O que de fato aconteceu foi que enquanto Dilma tomava essas decisões em questões econômicas, os industriais, paradoxalmente, começaram a mudar de posição em relação ao seu governo. Ela fez tudo para favorecê-los, mas eles se opuseram a ela por razões que não são fáceis de entender. Esse processo, que se inicia em 2012, levará à queda de Dilma em 2016.

Por fim, alterou as regras relativas ao setor de energia elétrica, que era uma demanda dos empresários industriais, principalmente os das indústrias eletrointensivas. Com eletricidade cara, os produtos brasileiros perderam competitividade. Em seguida, houve uma mudança no regulamento que baixou as taxas, incluindo as taxas domésticas, em setembro de 2012.

Em suma, eu diria que essas são as três principais medidas do ensaio desenvolvimentista. Acrescento mais uma informação: há quem acredite que o investimento público feito naquela altura estava longe de ser suficiente. É verdade que em 2011 foi feito um corte nos investimentos públicos, mas penso que, embora a magnitude dos investimentos não tenha sido provavelmente a ideal, há elementos para caracterizar o período de 2011 a 2014 como um "ensaio desenvolvimentista". O governo Dilma foi um avanço em relação ao mandato anterior. É como se ela tivesse dito: “agora vamos pisar no acelerador”. Mas a decisão saiu cara, porque a reação do capital nacional e internacional foi violenta e, mais uma vez, não houve tentativas de mobilização dos trabalhadores para defender esse "ensaio".

Igor Peres

No meio do caminho desenvolvimentista havia uma pedra... Usando uma passagem de Tocqueville, para quem as grandes convulsões sociais eclodem “quando as coisas estão melhores”, em Os sentidos do lulismo prenunciava que o subproletariado começaria a ter suas próprias demandas. No entanto, ao analisar os protestos de 2013, você chega a conclusões diferentes sobre a composição social daqueles que saíram às ruas naquele momento. Gostaríamos que você voltasse à caracterização desse evento decisivo na história recente do Brasil

André Singer

Junho de 2013 representa, como Marx disse em outro contexto, "relâmpagos em um céu sereno". Eu investiguei com base nos dados disponíveis e minha conclusão é que o subproletariado estava ausente das manifestações, que contaram principalmente com a participação dos setores médio e alto. O que aconteceu em 2013 foi uma espécie de transformismo, mas das ruas. Começou como um protesto de esquerda, honesto, de jovens, com uma visão interessante, muito mais radical que o lulismo, sem dúvida. Aquelas pessoas, que não tinham nada a ver com o subproletariado, entenderam que a situação era melhor, mas que precisavam avançar, dar um passo à frente. O que acontece é que eles acordaram um monstro que não podiam controlar.

Em questão de dias, entre 13 e 17 de junho do mesmo mês, as manifestações mudaram completamente de sentido. É incrível. Houve uma sequência de manifestações de esquerda pela redução do preço das passagens de transporte, principalmente em São Paulo. Essas manifestações terminaram em uma grande repressão no dia 13, que foi criticada até pelos jornais mais conservadores, porque a polícia estava realmente fora de controle. Em reação a essa repressão, desencadeou-se uma manifestação que foi aproveitada pela classe média conservadora, que usou o argumento antirrepressivo para iniciar um movimento de massas contra o lulismo, que na cidade de São Paulo foi representado pelo prefeito Fernando Haddad , e contra o governo federal liderado por Dilma Rousseff.

Na época eu não entendia: parecia uma grande manifestação de esquerda, mas não era. Tanto que dois dias depois, em uma terceira manifestação, a esquerda foi expulsa das ruas. Grupos vestidos com camisetas da seleção brasileira de futebol começaram a aparecer. Não se sabia exatamente de onde vinham, mas hoje vemos que esse foi o germe do bolsonarismo. Acho que isso tem a ver com o fenômeno das redes sociais. Tudo isso aconteceu no subsolo. Não teria acontecido cinco anos antes. Foi um "transformismo espontâneo". Muitas pessoas da esquerda participaram das jornadas, que se espalharam pelo país, e não as critico, porque não foi fácil entender o que estava acontecendo. Às vezes, a extrema esquerda e a extrema direita protestavam na mesma avenida. Em São Paulo houve até conflitos entre essas forças, mas não em outros lugares.

Em suma, 2013 é um evento muito especial. Há autores que o relacionam com os casos da Turquia ou do Egito, mas o caso brasileiro é diferente. Mas o que aconteceu em junho de 2013 foi um ponto de virada. Desde então, a direita mudou de posição e partiu para a ofensiva contra o governo, o que impactará no golpe parlamentar de 2016.

Igor Peres

Além do "ensaio desenvolvimentista", em O lulismo em crise você argumenta que Dilma também teria promovido um segundo "ensaio" em seu primeiro mandato, que você chama de "republicano". A tentativa do ex-juiz Sergio Moro de se apresentar como representante da indignação social contra a corrupção pode ter relegado essa iniciativa às sombras, pouco comentada até mesmo por analistas políticos dedicados a esse período. Gostaríamos que você voltasse à ideia de um "ensaio republicano".

André Singer

O que verifiquei em minha pesquisa foi que Dilma, além de realizar o que chamei de "ensaio desenvolvimentista" —que teve mais visibilidade— implementou outras transformações sistemáticas que não chamaram tanta atenção. A ex-presidente implementou uma política sistemática de combate ao que no Brasil chamamos de fisiologismo, ou seja, a ocupação de espaços no Estado em benefício próprio. Dilma tomou decisões muito claras e distintas no sentido de combater o fisiologismo, que lhe custou a maioria no Congresso (especialmente na Câmara dos Deputados) e pelo qual pagou um alto custo.

Por sua decisão de combater a fisiologia, Eduardo Cunha (PMDB), representante por excelência dessa prática, foi eleito presidente da Câmara dos Deputados. Estamos falando de um político extremamente agressivo, com grande capacidade de ação e articulação nessa esfera do poder legislativo. Dilma foi, mais uma vez, muito corajosa. O que acontece é que ela não o fez de forma mobilizadora. Ela incitou bestas; no caso do que chamei de “ensaio republicano”, segundo ensaio de Dilma, estou me referindo a parlamentares ferozes, que ela decidiu enfrentar sem recorrer à mobilização para se sustentar. Ela o fez sem as bases sociais necessárias, e a única maneira de realizá-lo com sucesso seria através da mobilização massiva das forças sociais. É sempre um processo arriscado, mas é uma opção. É como se ela tivesse contado com a força da investidura presidencial, que é grande, mas não onipotente.

Por outro lado, está ocorrendo um processo completamente diferente, do qual participa o juiz Sergio Moro, e que começa em 2014. Estou me referindo à Operação Lava-Jato, que foi um processo extraordinário, que produziu descobertas incríveis, e que foi realizada por uma ação de tipo inédito no Brasil. A operação acabou sendo, em suma, uma manobra faccional cujo objetivo claro era destruir o PT e o ex-presidente Lula. Mesmo assim, ela tem um aspecto republicano por causa do que descobriu. Mas o uso político e partidário da operação era absurdo do ponto de vista democrático. Um juiz tem que ser imparcial, e o juiz Moro demonstrou sua imparcialidade ao aceitar se juntar ao governo Bolsonaro, que foi o principal beneficiário de suas ações. Quando isso aconteceu, sua aura escureceu e a tese da natureza facciosa da operação foi demonstrada.

Então fica claro que o ensaio republicano de Dilma e a operação Lava-Jato são dois processos totalmente diferentes. Onde eles se cruzam? Eles se cruzam quando a Operação Lava-Jato faz suas descobertas sobre a Petrobras. Quando isso aconteceu, fazia mais de um ano que Dilma havia afastado toda a gestão da empresa, sem que sua ação tivesse relação direta com a Lava-Jato. Involuntariamente, então, e em um fato incrível, os processos se cruzam. O processo político brasileiro daqueles anos produziu acontecimentos que deveriam fazer parte de qualquer compêndio da política mundial. Distâncias à parte, é como 2013: fatos fora do roteiro conhecido, processos com direções opostas que se cruzam inesperadamente.

Igor Peres

Fonte de inspiração para o ensaio desenvolvimentista, "o roosevelteanismo surgiu no centro capitalista numa fase de keynesianismo dominante", sustenta em O lulismo em crise. "Aplicado à questão brasileira em tempos de globalização e neoliberalismo, despedaçou o lulismo, levando a sociedade a um lugar distante de qualquer anseio igualitário."

Talvez hoje já estejamos em condições de dar um nome a esse "lugar" que você menciona; podemos chamar de bolsonarismo. Recentemente, você vem analisando o que você caracteriza como um processo de "reativação da direita" no Brasil. Você poderia nos explicar o que quer dizer com isso?


André Singer

Acho que o processo de impeachment foi um golpe parlamentar. Não foi um golpe no sentido clássico do termo, mas um golpe parlamentar típico dos processos de erosão da democracia que estão ocorrendo em todo o mundo. É um processo que ocorre dentro das leis. Não rompe com as constituições, mas usa-as: se faz um uso golpista das leis. O impeachment está previsto na Constituição. Mas a mesma constituição prevê que este instrumento só poderá ser acionado quando houver crime de responsabilidade. E é claro que a presidente Dilma Rousseff não cometeu crime de responsabilidade. Portanto, acho que foi um golpe parlamentar que abriu as portas para o desmonte da democracia brasileira.

O bolsonarismo é uma continuação desse processo. O governo Temer já havia sido um governo de retrocessos sociais e econômicos muito importantes, e o de Bolsonaro segue essa tendência. O importante é que em 2018 houve eleições relativamente representativas. Digo relativamente porque a participação de Lula na disputa foi impedida, e isso foi resultado de uma ação deliberada da Operação Lava-Jato para impedir sua volta ao governo. Mesmo assim, o PT decidiu reconhecer os resultados, e se o PT reconheceu os resultados, eles devem ser analisados.

Examinando os resultados dessas eleições de 2018, percebe-se uma reativação de uma base de direita que é muito forte no eleitorado brasileiro, embora não seja a maioria. A direita tem uma base eleitoral próxima de 30%, o que equivale ao peso que o lullismo tem em condições normais, ou seja, em momentos anteriores ao início das campanhas. Quando estas últimas são ativadas, os eleitores que estão localizados entre os dois extremos tendem a se deslocar.

A dinâmica da reativação funciona, por exemplo, quando Bolsonaro adota uma retórica anticomunista que a princípio pode soar extemporânea para alguns. E isso porque não há ameaça comunista real no Brasil, já que o lulismo, como argumentei, não é comunista. É verdade que houve um processo político e econômico mais forte com Dilma, mas sem mobilização, como também mencionei anteriormente. Podemos pensar também, mesmo no contexto do governo Dilma, nas manifestações de junho de 2013, mas aqui a radicalização foi liderada pela direita, não pela esquerda.

Então, por que a retórica anticomunista tem ressonância? Porque há uma base caracterizada pelo que chamei de "conservadorismo popular". Esse segmento há muito é identificado pela literatura brasileira dedicada ao assunto, mas ao mesmo tempo é um fenômeno ainda pouco compreendido. Essa base é composta por setores da classe média baixa aos quais se somam frações da massa trabalhadora. São setores que não dispõem de muitos recursos, mas que, pela existência de um grande subproletariado, funcionam como classes médias e têm medo de perder o que têm. Os setores vulneráveis ​​—que não têm quase nada— também temem a desordem, pois são o elo mais fraco. Eles querem uma mudança, mas pelo medo com que se alimentam, pedem que qualquer transformação seja feita dentro da ordem.

A combinação de uma situação econômica negativa —que começou em 2015, ainda no governo Dilma— e uma tradição ideológica que tem longa história no país criou as condições para uma reativação da direita, antes adormecida, por Bolsonaro.

Em um estudo recente tentei mostrar que o lulismo neutralizou e desmantelou aquele conservadorismo popular entre 2006 e 2014, mas que o preço a pagar por isso foi a desmobilização. Havia uma espécie de entorpecimento deliberado do conservadorismo causado pela política homeopática do lulismo, que procurava evitar o confronto. Temos que esperar para ver o que acontecerá no processo eleitoral de 2022. Embora com continuidades, estamos hoje diante de uma nova situação devido à presença de fenômenos políticos com componentes fascistas na política nacional e internacional. Isso não fazia parte do cenário global até 2016, nem no Brasil em 2018. Mas é algo que aqui, como talvez também na Argentina, veio para ficar.

Colaboradores

André Singer é um teórico político que atuou como secretário de imprensa do governo de Luiz Inácio Lula da Silva no Brasil.

Igor Peres é sociólogo na Universidade Estadual do Rio de Janeiro, no Brasil.

Nicolas Allen é editor colaborador da Jacobin e editor-chefe da Jacobin América Latina.

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