16 de outubro de 2022

Entenda o discurso de Xi Jinping e o que ele representa para a China

Pronunciamento do dirigente é ponto alto do Congresso do Partido Comunista e lista frentes mais importantes para Pequim

Igor Patrick

Folha de S.Paulo

O discurso que abre o Congresso Nacional do Partido Comunista Chinês —realizado a cada cinco anos e destinado a escolher a nova liderança do país— é um dos momentos mais importantes do encontro. Na ocasião, o líder nacional faz um apanhado das conquistas ao longo do mandato, estabelece o roteiro dos trabalhos ao longo da semana e indica como a China se portará no próximo quinquênio.

Xi Jinping não fugiu à tradição e ao longo de 1 hora e 24 minutos na manhã de domingo (16), usou a tribuna no Grande Salão do Povo em Pequim para mandar recados e dar várias pistas sobre quais serão suas prioridades de agora em diante. O discurso é uma versão condensada do chamado "relatório de trabalho", cuja íntegra oficial ainda não foi disponibilizada.

Líder da China, Xi Jinping, fala durante sessão de abertura do 20º Congresso do Partido Comunista Chinês no Grande Salão do Povo, em Pequim - Noel Celis -16.out.22/AFP

TÓPICOS DO DISCURSO DE XI JINPING

Prosperidade comum

Covid zero


Iniciativa de Cinturão e Rota (ou "Niva Rota da Seda")


Meio ambiente


"Implementamos completamente a filosofia de desenvolvimento centrado nas pessoas e continuamos a fazer esforços para garantir que as crianças sejam nutridas, o aprendizado seja ensinado, o trabalho seja recompensado, os doentes sejam tratados, os idosos recebam abrigo e os fracos sejam apoiados. Construímos o maior sistema educacional, sistema de segurança social e sistema médico e de saúde do mundo. A sensação de ganho, felicidade e segurança das pessoas é mais substancial, segura e sustentável, e novas conquistas foram feitas no campo da prosperidade comum. [Nos próximos anos] aumentaremos a renda dos mais pobres, expandiremos a classe média, regularemos a distribuição de renda e o mecanismo de acumulação de riqueza."

O termo "prosperidade comum" não é novo, mas entrou de vez no linguajar do Partido ao ser empregado em mais de uma ocasião por Xi Jinping desde o ano passado. Em resumo, trata-se de promover redistribuição de riquezas e priorizar o bem-estar social, embora os caminhos para alcançar tal feito sempre tenham sido alvo de disputa e de debates internos: recorrendo a analogias, oficiais do partido insistiam que era necessário "fazer o bolo crescer antes de dividi-lo".

Ao menos para Xi, o bolo já cresceu o suficiente e o discurso traz pistas de como a divisão acontecerá ao longo dos próximos anos. Ele fala em regular a distribuição de renda e os mecanismos de acumulação de riqueza e descreve a prosperidade comum como "característica definidora do socialismo com características chinesas" e "um longo processo histórico."

Espere aumento em taxas para investimentos, maior atenção à disparidade abismal entre ricos e pobres e políticas sociais focadas no barateamento dos serviços básicos como educação, moradia e saúde.

COVID ZERO

"Diante do surto repentino do novo coronavírus, aderimos primeiro às pessoas, colocando a vida em primeiro lugar. Insistimos na política dinâmica de Covid zero, realizamos a guerra popular, a guerra geral e a guerra defensiva contra a pandemia, protegendo a vida, a segurança e a saúde física das pessoas. Alcançamos importantes resultados positivos na prevenção e controle geral da epidemia e no desenvolvimento socioeconômico."

A prioridade de Xi em 2022 era manter o país estável o suficiente para pavimentar uma recondução tranquila rumo ao seu terceiro mandato. Por causa disso, ninguém contava com mudanças radicais nas políticas de controle à Covid pelo menos até a realização do congresso.

Havia leve esperança de flexibilização após o fim da reunião em virtude das perdas econômicas causadas por sucessivos lockdowns e fechamento das fronteiras, mas manifestações oficiais ao longo da última semana contradiziam a expectativa. O editorial publicado no início da semana pelo People's Daily —que funciona como porta-voz do partido—, já indicava que isso não aconteceria. O periódico descrevia a política de Covid zero como "sustentável" e clamava por esforços contínuos na prevenção de surtos causados pelo novo coronavírus.

Ao destacar o sucesso da Covid zero (e atrelar a "guerra à pandemia" ao seu próprio legado como líder) no discurso, Xi sacramenta a continuidade da estratégia. Lockdowns localizados, testagem em massa e rastreio de contatos continuarão a fazer parte do cotidiano na China, mesmo com possíveis repercussões para a economia.

INICIATIVA DE CINTURÃO E ROTA (OU "NOVA ROTA DA SEDA")

"Como um esforço colaborativo, a Iniciativa do Cinturão e Rota foi acolhida pela comunidade internacional como um bem público e uma plataforma de cooperação. A China tornou-se um importante parceiro comercial para mais de 140 países e regiões, lidera o mundo em volume total de comércio de mercadorias e é um importante destino para investimentos globais e um país líder em investimentos de saída (...). Promoveremos o desenvolvimento de alta qualidade da Iniciativa do Cinturão e Rota."

Com um orçamento previsto de US$ 1 trilhão, a Iniciativa do Cinturão e Rota (informalmente conhecida como "Nova Rota da Seda") financiou obras bilionárias em África, Ásia e América Latina. Ao longo de nove anos, promoveu investimentos e aproximou Pequim do mundo em desenvolvimento, constituindo um dos principais pontos de atenção no mundo ocidental que ainda insistia em condicionar ajuda financeira à agenda de direitos humanos e reformas econômicas e políticas.

Desde 2020, porém, com a economia global desacelerando, inflação crescente e aumento nas taxas de juros, a iniciativa perdeu espaço na lista de prioridades da gestão. Vários projetos foram paralisados e os beneficiários se viram às voltas com dívidas altíssimas com Pequim, virtualmente impossíveis de serem quitadas nos prazos acordados.

Bancos chineses passaram a ser mais cautelosos no empréstimos a países de baixa renda e precisaram iniciar renegociações de débito. O próprio Xi chegou a declarar em novembro de 2021 que seria necessário fortalecer os mecanismos de risco para atender a um panorama "cada vez mais complexo."

Mencionar a Iniciativa de Cinturão e Rota na lista de feitos e prioridades certamente dará sobrevida ao projeto e algum fôlego novo para continuar avançando. Ainda assim, é pouco provável que ela permaneça inalterada: a despeito da discussão sobre a chamada "armadilha da dívida" (teoria que versa sobre a estratégia em endividar países menores para arrancar benefícios), as instituições financeiras da China não estão dispostas a cometerem arroubos e perderem bilhões de dólares em um cenário econômico mais difícil interna e externamente.

MEIO AMBIENTE

"Com base nas dotações de energia e recursos da China, avançaremos iniciativas para atingir o pico de emissões de carbono de maneira bem planejada e faseada, de acordo com o princípio de ‘construir o novo antes de descartar o velho’. (...) Devemos promover uma revolução energética profunda, fortalecer o uso limpo e eficiente do carvão, acelerar o planejamento e a construção de um novo sistema de energia e participar ativamente da abordagem das mudanças climáticas e da governança global."

Desde 2008, a China lidera a lista dos maiores emissores de dióxido de carbono e polui mais do que todas as nações desenvolvidas juntas. Mas este dado isolado conta apenas parte da história. Quando se dividem as emissões pelo total de habitantes, Estados Unidos e Europa lideram isolados a lista e representam sozinhos mais de 58% de todo o CO2 já despejado na atmosfera —a China vem bem atrás, com 13,7% da conta no período mencionado.

Pequim tem liderado políticas firmes de combate às mudanças climáticas, e o esforço deve continuar se quiser cumprir a promessa feita por Xi Jinping à ONU em 2020: neutralidade de carbono até 2060, uma ambição que demandaria investimentos na casa dos US$ 14,7 trilhões nos próximos 30 anos.

A China ainda depende largamente da queima de carvão mineral na sua matriz energética e não conseguirá fazer a transição do dia para a noite. Já prevendo o problema, Xi menciona a necessidade de "construir o novo antes de descartar o velho" precisamente acenando para o uso de energia poluente nos próximos anos enquanto exploram novas alternativas.

RECADO AOS ESTADOS UNIDOS

"Promovemos de forma abrangente a diplomacia de grandes países com características chinesas (...) e nos opomos inabalavelmente a qualquer unilateralismo, protecionismo e intimidação. Promovemos a construção de um novo tipo de relações internacionais, participamos ativamente da reforma e construção do sistema de governança global. A influência internacional da China, seu apelo e seu poder de formação foram significativamente melhorados (...) A China se posiciona firmemente contra todas as formas de hegemonismo e política de poder, mentalidade de Guerra Fria, interferência nos assuntos internos e duplos padrões."

Como de praxe, nenhum país estrangeiro foi mencionado ao longo do discurso, mas os recados aos Estados Unidos foram claros. Desde a ascensão de Donald Trump, Pequim tem usado com cada vez mais frequência o termo "mentalidade de Guerra Fria" para se referir à forma como os americanos reagem aos avanços chineses.

A resposta pode estar justamente na diluição do poder norte-americano através da reforma de um sistema de governança global que Pequim avalia favorecer desproporcionalmente os EUA. O caminho para isso é incerto: ao longo das últimas décadas, a China se engajou mais na fundação e consolidação de órgãos internacionais às margens de instituições tradicionais (como o foco no Brics e a fundação do Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura), mas se mostra apática na reforma do Conselho de Segurança da ONU por temer a entrada de Índia e Japão, por exemplo.

TAIWAN

"Face às atividades secessionistas das forças da independência de Taiwan e à séria provocação por forças externas, lutamos resolutamente contra o separatismo e a interferência, demonstrando nossa forte determinação e capacidade em salvaguardar a soberania nacional e a integridade territorial e de nos opor à 'independência de Taiwan' (...). Persistimos em lutar pela perspectiva de uma reunificação pacífica com a maior sinceridade. No entanto, não nos comprometemos a renunciar ao uso da força e à opção de tomar todas as medidas necessárias [para recuperar o território]. (...) A reunificação completa da Pátria deve ser realizada e certamente pode ser realizada."

As palavras de Xi neste tópico podem soar mais duras do que a intenção original. Com a aproximação de taiwaneses e americanos e a visita da presidente da Câmara dos EUA, Nancy Pelosi, à ilha, esperava-se que o trecho sobre Taiwan traria decisões mais resolutas sobre como lidar com o problema.

Não foi o caso. Xi repetiu praticamente palavra por palavra o que vem dizendo há anos: não vai tolerar a independência, se preocupa com a interferência de países estrangeiros e está preparado para usar a força se necessário. A China se esquivou de acalorar o debate, e não há sinalização de conflito bélico no horizonte no curto prazo.

Neste tópico, chamou mais atenção o que não foi dito ao vivo. Na versão completa do relatório de trabalho, a reunificação aparece como "requisito natural para o rejuvenescimento da nação chinesa". O termo rejuvenescimento é parte central do léxico de Xi Jinping e versa sobre a construção de um país próspero e totalmente desenvolvido até 2049, ano que marca o centenário da fundação da China comunista. Se a reunificação é um requisito para alcançar tal feito, pode-se interpretar 2049 como um prazo para que Taiwan volte à soberania de Pequim.

HONG KONG

"As instituições e mecanismos para implementar a política de 'Um País, Dois Sistemas' em Hong Kong e Macau não estavam bem desenvolvidos e a China enfrentou sérios desafios à sua segurança nacional. (...) Ajudamos Hong Kong a entrar numa nova fase em que se restaurou a ordem e a prosperidade, e vimos Hong Kong e Macau manterem um bom impulso para a estabilidade e o desenvolvimento a longo prazo. (...) [No futuro] veremos Hong Kong e Macau administrados por patriotas, implementando as leis e mecanismos de fiscalização para salvaguardar a segurança nacional."

Hong Kong foi mencionada 27 vezes no relatório completo de Xi e não era pra menos. Em seu segundo mandato, o líder chinês imprimiu mudanças substanciais na forma como a cidade funcionava e em três anos pós-manifestações em massa viu praticamente desaparecer as liberdades de imprensa, associação e expressão.

Respondendo aos protestos que chacoalharam a cidade em 2019, Xi implementou uma lei de segurança nacional com ampla abrangência, coibindo movimentos separatistas, mas ao mesmo tempo sufocando a mídia independente. No ano passado, também aprovou uma emenda eleitoral à Lei Básica (espécie de Constituição local) que garantiu a maioria das cadeiras no Legislativo a um grupo selecionado por um comitê pró-Pequim. Quem quiser se candidatar agora também passa por uma rigorosa investigação por agentes de segurança nacional que atestam quão "patriota" é o postulante.

As medidas foram eficientes no que se propunham e a cidade viveu um êxodo de ativistas, muitos com destino à Europa, Estados Unidos e Austrália. Se havia alguma dúvida, a constatação com o discurso é uma só: para os próximos anos, a tendência é que Hong Kong se pareça ainda mais com a China continental e não o contrário, como esperavam líderes do Ocidente.

NOVA FILOSOFIA DO DESENVOLVIMENTO

"Devemos aplicar plena e fielmente a nova filosofia de desenvolvimento em todas as frentes, continuar as reformas para desenvolver a economia de mercado socialista, promover a abertura de alto padrão e acelerar os esforços para promover um novo padrão de desenvolvimento."

A nova filosofia de desenvolvimento é uma política relativamente recente —apareceu no ano passado, quando a China discutia o 14º Plano Quinquenal que orientará as estratégias governamentais até 2025. Quando reportou sobre o tema, a rede de televisão estatal CGTN o descreveu como a resposta para "resolver o desequilíbrio no desenvolvimento, enfatizando a promoção da equidade e justiça social (...) sem meta numérica de crescimento do PIB, mas com foco no desenvolvimento sustentável tendo o mercado interno como esteio."

Na prática, representará um afastamento dos preceitos econômicos promovidos desde Deng Xiaoping, orientada ao mercado (não por acaso, o termo "economia de mercado" apareceu apenas cinco vezes no discurso, contra 31 referências a "segurança nacional"). Também é um reconhecimento de que, diante de um cenário externo cada vez mais hostil e incerto, a China talvez encontre dificuldades para alcançar metas anuais de crescimento e precisará reforçar o peso do consumo interno nos indicadores macroeconômicos.

É bastante provável que, ao final deste Congresso, a nova filosofia de desenvolvimento seja incorporada à Constituição do Partido.

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