Luiz Fernando de Paula
Pedro Lange Netto Machado
Folha de S.Paulo
O ministro da Economia, Paulo Guedes, no Fórum Econômico Mundial em Davos. Walter Duerst/World Economic Forum |
No dia 28 de outubro de 2018, Jair Bolsonaro foi eleito presidente do Brasil. Neste dia, mais de 57 milhões de brasileiros chancelaram um projeto de país que, embora ainda fosse pouco claro, travestia-se de verde e amarelo.
O principal slogan do governo eleito —“Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”— acenava a um nacionalismo conservador e parecia responder aos anseios dos que clamavam por uma mudança disruptiva nos rumos do país.
Nada mais condizente com o cenário de ascensão internacional de uma extrema direita hostil aos movimentos de globalização.
O principal slogan do governo eleito —“Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”— acenava a um nacionalismo conservador e parecia responder aos anseios dos que clamavam por uma mudança disruptiva nos rumos do país.
Nada mais condizente com o cenário de ascensão internacional de uma extrema direita hostil aos movimentos de globalização.
Na esteira de anos de baixo crescimento, progressiva concentração de renda e encolhimento das classes médias, a segunda década do século 21 vem assistindo à retomada de impulsos nacionalistas em países outrora propagadores do globalismo —que pouco têm usufruído dos benefícios prometidos por esse processo. É nesse contexto que se situam a eleição de Donald Trump, nos EUA, e a opção do Reino Unido pelo brexit.
No Brasil, o panorama que se configurava até 2018 indicava também um terreno fértil para mudanças na condução da política econômica ortodoxa que vinha sendo implementada desde 2015 —e que estava em sintonia com as demandas da globalização. Reascendendo ao poder no segundo mandato de Dilma Rousseff, a agenda neoliberal fora democraticamente rejeitada nas eleições de 2014. Mas como reação à crise que se desenhou após a gestão econômica vacilante de seu primeiro mandato, voltou a orientar os rumos do país através do estelionato eleitoral.
Em meados de 2016, no contexto do aprofundamento das crises política e econômica, que se transmutaram em uma crise de governabilidade, o golpe parlamentar que destituiu Dilma e conduziu seu vice Michel Temer à Presidência consolidou a adesão do país à agenda econômica ortodoxa e liberal.
Entretanto, a longa recessão de 2015 e 2016 e o clima de permanente crise e incerteza política —ambos potencializados pela Operação Lava Jato— dariam origem, em 2018, a um ambiente de ampla insatisfação popular com os rumos da economia e com as instituições de representação democrática no país.
Nesse contexto, segundo relatório do Latinobarómetro de 2018, para 90% dos brasileiros “se governava para uns poucos”. Apenas 6% declararam que havia no país uma boa situação econômica. Quando perguntados se se governava para o bem do povo, apenas 7% responderam positivamente.
Paralelamente, o pano de fundo incluía mais de 12 milhões de desempregados, majoritariamente jovens de até 29 anos, e medidas de austeridade que resultaram em cortes de investimentos públicos e perda de direitos sociais —a exemplo da Emenda Constitucional 95 e da flexibilização da legislação trabalhista.
É em meio a esse cenário que a retórica nacionalista de Bolsonaro pareceu, ao eleitor desavisado, ecoar a tendência global de retração da globalização. Entretanto, durante seu primeiro ano como presidente, as cores verde e amarela que marcaram sua campanha eleitoral desbotariam gradativamente.
Isso porque o governo Bolsonaro não promoveu qualquer alteração nos fundamentos da política econômica que já vinha sendo implementada nos anos que o antecederam, o que relegou ao plano discursivo os eventuais espasmos nacionalistas que restaram.
Pelo contrário, capitaneada pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, e pelo presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, a agenda neoliberal se radicalizou, dando prosseguimento à adesão incondicional aos mercados globalizados, tanto no plano do comércio internacional quanto no da integração financeira global.
Nesse sentido, reformas liberalizantes seguem sendo implementadas, em meio a anúncios de privatizações e de mais cortes de gastos públicos, com o claro objetivo de diminuir a presença do Estado na economia e com efeitos duvidosos sobre uma retomada sustentada do crescimento econômico.
Somado a isso, observa-se o alinhamento automático do Brasil aos interesses dos EUA, fazendo com que o país assuma um papel subalterno nesta relação bilateral, que já se refletiu na venda da Embraer, uma das poucas empresas nacionais de alta tecnologia com inserção internacional, para a norte-americana Boeing.
Em outras palavras, é difícil não perceber que a agenda econômica bolsonarista nada tem de nacionalista e que conflita diretamente com o que parecia ser propagado no plano da retórica.
Como explicar, então, essa contradição? No plano do discurso, o governo Bolsonaro, tanto no período eleitoral quanto já depois de eleito, parecia inclinado ao nacionalismo que se espalha mundo afora. Sua agenda econômica, no entanto, não deixa dúvidas de que qualquer vestígio nacionalista é mera ilusão: os interesses do mercado são (e serão) sempre, ao fim e ao cabo, privilegiados.
Para responder à pergunta acima, cabe, em nossa avaliação, compreender as origens e o propósito do nacionalismo bolsonarista, que parece emanar de dois planos que se retroalimentam.
Um deles, como já discutido, é o do discurso, mas que, diante da incompatibilidade com o que vem de fato sendo implementado, deve perder força no decorrer de anos de políticas neoliberais. Já a outra fonte do nacionalismo de Bolsonaro foi gestada estrategicamente durante o período eleitoral e, tal como o discurso, deve encontrar dificuldades para permanecer legítima.
Trata-se da ideologia populista instrumentalizada em favor de sua vitória eleitoral, que lhe permitiu explorar o suposto conflito moral entre nossas elites, rotuladas como corruptas, e o povo, que teria suas vontades impedidas de se realizar por conta das ações de governantes corrompidos.
Vejamos alguns dados que parecem respaldar o uso desta noção de populismo que vem sendo debatida na literatura acadêmica. Já em novembro de 2015, 67% dos brasileiros creditavam à corrupção a crise econômica que então se acentuava. Em 2018, segundo o Latinobarómetro, para 16% a corrupção era, efetivamente, o maior problema brasileiro a ser combatido.
Em 2018, o Brasil apresentava sua pior nota, desde 2012, no Índice de Percepção da Corrupção, figurando na posição 105 do ranking da Transparência Internacional. Nesse contexto, apenas 9% se declaravam satisfeitos com a democracia. Sintomaticamente, os partidos políticos gozavam da confiança de apenas 6% da população, que, por outro lado, depositava maior fé nas Forças Armadas (58%) e no Judiciário (33%). Tratava-se de um ambiente favorável para que aventuras populistas fossem bem-sucedidas.
Da alienação de nossas elites, portanto, parece ter-se forjado a outra face do nacionalismo ostentado pelo governo Bolsonaro. Não à toa o descrédito aos partidos políticos permanece como estratégia bolsonarista, assim como a incorporação ao governo do ex-juiz Sergio Moro, prócer do combate à corrupção segundo maior parte da opinião pública, e de membros das Forças Armadas.
No Brasil, o panorama que se configurava até 2018 indicava também um terreno fértil para mudanças na condução da política econômica ortodoxa que vinha sendo implementada desde 2015 —e que estava em sintonia com as demandas da globalização. Reascendendo ao poder no segundo mandato de Dilma Rousseff, a agenda neoliberal fora democraticamente rejeitada nas eleições de 2014. Mas como reação à crise que se desenhou após a gestão econômica vacilante de seu primeiro mandato, voltou a orientar os rumos do país através do estelionato eleitoral.
Em meados de 2016, no contexto do aprofundamento das crises política e econômica, que se transmutaram em uma crise de governabilidade, o golpe parlamentar que destituiu Dilma e conduziu seu vice Michel Temer à Presidência consolidou a adesão do país à agenda econômica ortodoxa e liberal.
Entretanto, a longa recessão de 2015 e 2016 e o clima de permanente crise e incerteza política —ambos potencializados pela Operação Lava Jato— dariam origem, em 2018, a um ambiente de ampla insatisfação popular com os rumos da economia e com as instituições de representação democrática no país.
Nesse contexto, segundo relatório do Latinobarómetro de 2018, para 90% dos brasileiros “se governava para uns poucos”. Apenas 6% declararam que havia no país uma boa situação econômica. Quando perguntados se se governava para o bem do povo, apenas 7% responderam positivamente.
Paralelamente, o pano de fundo incluía mais de 12 milhões de desempregados, majoritariamente jovens de até 29 anos, e medidas de austeridade que resultaram em cortes de investimentos públicos e perda de direitos sociais —a exemplo da Emenda Constitucional 95 e da flexibilização da legislação trabalhista.
É em meio a esse cenário que a retórica nacionalista de Bolsonaro pareceu, ao eleitor desavisado, ecoar a tendência global de retração da globalização. Entretanto, durante seu primeiro ano como presidente, as cores verde e amarela que marcaram sua campanha eleitoral desbotariam gradativamente.
Isso porque o governo Bolsonaro não promoveu qualquer alteração nos fundamentos da política econômica que já vinha sendo implementada nos anos que o antecederam, o que relegou ao plano discursivo os eventuais espasmos nacionalistas que restaram.
Pelo contrário, capitaneada pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, e pelo presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, a agenda neoliberal se radicalizou, dando prosseguimento à adesão incondicional aos mercados globalizados, tanto no plano do comércio internacional quanto no da integração financeira global.
Nesse sentido, reformas liberalizantes seguem sendo implementadas, em meio a anúncios de privatizações e de mais cortes de gastos públicos, com o claro objetivo de diminuir a presença do Estado na economia e com efeitos duvidosos sobre uma retomada sustentada do crescimento econômico.
Somado a isso, observa-se o alinhamento automático do Brasil aos interesses dos EUA, fazendo com que o país assuma um papel subalterno nesta relação bilateral, que já se refletiu na venda da Embraer, uma das poucas empresas nacionais de alta tecnologia com inserção internacional, para a norte-americana Boeing.
Em outras palavras, é difícil não perceber que a agenda econômica bolsonarista nada tem de nacionalista e que conflita diretamente com o que parecia ser propagado no plano da retórica.
Como explicar, então, essa contradição? No plano do discurso, o governo Bolsonaro, tanto no período eleitoral quanto já depois de eleito, parecia inclinado ao nacionalismo que se espalha mundo afora. Sua agenda econômica, no entanto, não deixa dúvidas de que qualquer vestígio nacionalista é mera ilusão: os interesses do mercado são (e serão) sempre, ao fim e ao cabo, privilegiados.
Para responder à pergunta acima, cabe, em nossa avaliação, compreender as origens e o propósito do nacionalismo bolsonarista, que parece emanar de dois planos que se retroalimentam.
Um deles, como já discutido, é o do discurso, mas que, diante da incompatibilidade com o que vem de fato sendo implementado, deve perder força no decorrer de anos de políticas neoliberais. Já a outra fonte do nacionalismo de Bolsonaro foi gestada estrategicamente durante o período eleitoral e, tal como o discurso, deve encontrar dificuldades para permanecer legítima.
Trata-se da ideologia populista instrumentalizada em favor de sua vitória eleitoral, que lhe permitiu explorar o suposto conflito moral entre nossas elites, rotuladas como corruptas, e o povo, que teria suas vontades impedidas de se realizar por conta das ações de governantes corrompidos.
Vejamos alguns dados que parecem respaldar o uso desta noção de populismo que vem sendo debatida na literatura acadêmica. Já em novembro de 2015, 67% dos brasileiros creditavam à corrupção a crise econômica que então se acentuava. Em 2018, segundo o Latinobarómetro, para 16% a corrupção era, efetivamente, o maior problema brasileiro a ser combatido.
Em 2018, o Brasil apresentava sua pior nota, desde 2012, no Índice de Percepção da Corrupção, figurando na posição 105 do ranking da Transparência Internacional. Nesse contexto, apenas 9% se declaravam satisfeitos com a democracia. Sintomaticamente, os partidos políticos gozavam da confiança de apenas 6% da população, que, por outro lado, depositava maior fé nas Forças Armadas (58%) e no Judiciário (33%). Tratava-se de um ambiente favorável para que aventuras populistas fossem bem-sucedidas.
Da alienação de nossas elites, portanto, parece ter-se forjado a outra face do nacionalismo ostentado pelo governo Bolsonaro. Não à toa o descrédito aos partidos políticos permanece como estratégia bolsonarista, assim como a incorporação ao governo do ex-juiz Sergio Moro, prócer do combate à corrupção segundo maior parte da opinião pública, e de membros das Forças Armadas.
Mas essa conjugação entre populismo e neoliberalismo tende a ser insustentável no médio prazo. Isto porque uma agenda que, em última instância, procura invariavelmente privilegiar os interesses das elites econômicas e que atenta contra direitos sociais históricos da população não deve tardar em comprometer o caráter populista do governo.
Tudo isso parece sustentar a hipótese de que a agenda econômica neoliberal deve sobrepujar e descredenciar qualquer impulso nacionalista remanescente, independentemente de sua origem. Este efeito deve ainda ser potencializado pelo comportamento titubeante de um governo que ziguezagueia entre ideologia e pragmatismo, a exemplo do que se observa no contraste entre seu alinhamento com os EUA em diversas áreas e a revisão da postura conflituosa com a China e o Mercosul.
Tudo isso parece sustentar a hipótese de que a agenda econômica neoliberal deve sobrepujar e descredenciar qualquer impulso nacionalista remanescente, independentemente de sua origem. Este efeito deve ainda ser potencializado pelo comportamento titubeante de um governo que ziguezagueia entre ideologia e pragmatismo, a exemplo do que se observa no contraste entre seu alinhamento com os EUA em diversas áreas e a revisão da postura conflituosa com a China e o Mercosul.
Esclarecedora nesse sentido pode ser a declaração do próprio Bolsonaro de que Paulo Guedes é seu patrão, e não o contrário. Assim, diante do aprofundamento de uma estratégia econômica que ascendeu ao poder por meio do estelionato eleitoral, lá se consolidou através de um golpe parlamentar e enfim se elegeu nas urnas sob o verniz nacionalista, a crescente perda de confiança no governo não deve surpreender, tampouco sua dificuldade em recuperar o crescimento econômico.
Resta saber se as cores da bandeira nacional permanecerão sendo instrumentalizadas pelos interesses do mercado ou se serão recuperadas pelos que defendem um projeto de desenvolvimento verdadeiramente nacionalista para o país.
Sobre os autores
Luiz Fernando de Paula é professor do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IE/UFRJ) e coordenador do Grupo de Estudos de Economia e Política do Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP/Uerj). É autor de “Sistema Financeiro, Bancos e Financiamento da Economia” (Campus).
Pedro Lange Netto Machado é doutorando em ciência política do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Uerj.
Pedro Lange Netto Machado é doutorando em ciência política do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Uerj.
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