24 de janeiro de 2020

Compras governamentais

Será que risco de corrupção só existe na contratação de empresas brasileiras?

Nelson Barbosa

Folha de S.Paulo

O Fórum Econômico Mundial tentou, neste ano, escapar das acusações de "hipocrisia climática". Denis Balibouse/Reuters

Nesta semana houve o Fórum Econômico Mundial, aquele evento privado em Davos, com palestras interessantes e outras nem tanto.

Em sua passagem por lá, nosso ministro da Economia disse que o Brasil assinará o acordo internacional de compras governamentais (GPA em inglês), dando tratamento isonômico às empresas domésticas e estrangeiras.

Segundo Guedes, assinar o GPA aumentará a concorrência, reduzirá preços e evitará corrupção nas compras do governo. Os dois primeiros objetivos estão corretos, mas o ministro acha mesmo que risco de corrupção só existe na contratação de empresas brasileiras? Sugiro mais informação sobre o tema e menos preconceito em relação ao Brasil, mas vamos em frente.

Até agora o acordo foi assinado por 48 países ou áreas, dos quais 29 na União Europeia. Japão e EUA também são signatários, a China é observadora (somente a jurisdição de Hong Kong está incluída) e os demais membros dos BRICS não fazem parte do acordo.

Devemos aderir? A resposta não é simples.

De um lado, mais liberal, a abertura das compras do governo terá os dois primeiros efeitos apontados por Guedes, melhorando a eficiência da economia. Porém, de outro lado, mais desenvolvimentista, o Brasil renunciará a um instrumento importante para gerar inovação e empregos de alta qualificação no país.

Todo instrumento pode ser bem ou mal gerido. Um automóvel pode ser meio de transporte ou máquina mortífera, dependendo de como é guiado. O mesmo se aplica a várias ações de governo e, na história econômica, muitos países utilizam compras governamentais para o seu desenvolvimento.

O caso dos EUA é emblemático. O “Buy American Act” permite ao governo de lá dar preferência a produtos domésticos. A prática já mudou bastante desde que foi criada, em 1933, mas mesmo sendo signatário do GPA, o governo norte-americano recentemente usou margem de preferência doméstica em alguns setores.

Para ser eficiente no desenvolvimento econômico, a margem de preferência deve ser temporária, baseada em estudos técnicos, e seus efeitos averiguados de modo transparente. Esta foi exatamente a proposta aprovada durante o governo Lula, Lei 12.349/2010, mas pouco utilizada desde então.

E quando não devemos usar margem de preferência? Voltando aos EUA, por lá isto não se aplica em três casos: interesse público, preço doméstico não razoável e ausência de produção doméstica na quantidade e qualidade adequadas.

Como é praxe nos EUA, os três critérios são vagos, deixando o gestor público utilizar o instrumento com pragmatismo, prestação de contas e reavaliação periódica.

E no Brasil? Para produtos não comercializáveis, como obras de construção civil, não faz muito sentido dar margem de preferência. A atividade será realizada aqui, com trabalhadores e insumos na sua maioria brasileiros.

Já em produtos intensivos em pesquisa e desenvolvimento, margens de preferência podem impulsionar a criação de capacidades produtivas no país (exemplo: Embraer), o que dificilmente ocorreria sob livre concorrência.

A chave é saber usar o instrumento e, mesmo assinando o GPA, vários países continuam aplicando preferência doméstica em algumas modalidades de compras governamentais, para estimular o desenvolvimento tecnológico e preservar a segurança nacional.

Em vez de ficar empacado no debate ideológico, o ideal é discutirmos onde, quando e como devemos utilizar o instrumento. É difícil o atual Ministério da Economia desapegar de ideologias, mas como o acordo terá que passar pelo Senado, a discussão ainda vai longe.

Sobre o autor

Professor da FGV e da UnB, ex-ministro da Fazenda e do Planejamento (2015-2016). É doutor em economia pela New School for Social Research.

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