Um estudo do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra do Brasil é rico em lições para socialistas que querem usar o estado sem serem capturados por ele.
Crianças reunidas em uma sala de aula em maio de 2013, na aldeia de Kamayurá, no Mato Grosso. Foto: Ezra Shaw / Getty |
Resenha do livro de Rebecca Tarlau, Occupying Schools, Occupying Land: How the Landless Workers' Movement Transformed Brazilian Education (Oxford University Press, 2019)
E então, meio que de repente, pareceu ocorrer uma epifania generalizada de que você pode protestar até o inferno congelar, mas não vai mudar o mundo desse jeito. Essa epifania veio durante o curto período conectando as ocupações das praças em Madrid e Atenas e os rápidos avanços eleitorais do Syriza e do Podemos, em meados da década. Também semeou as insurgências de Corbyn e Sanders dentro dos partidos de centro-esquerda dominantes no Reino Unido e nos Estados Unidos.
A obra de John Holloway Mudar o Mundo Sem Tomar o Poder, inspirado pelo movimento Zapatista no México, resumiu de maneira famigerada o humor anterior na esquerda. Outro livro importante, inspirado por outro exemplo latinoamericano muito diferente capturou o contraste com o zeitgeist posterior: “Ocupando Escolas, Ocupando Terras: Como o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra Transformou a Educação Brasileira” de Rebecca Tarlau.
Tarlau é uma militante do Socialistas Democráticos da América e professora na Universidade Estadual da Pensilvânia, além de filha de Jimmy Tarlau, por muito tempo líder sindical no Trabalhadores de Comunicação da América (Communications Workers of America – CWA). Ela apresenta em vívidos detalhes a “longa marcha pelas instituições” do movimento dentro do sistema educacional brasileiro, da escola primária até as universidades, e do Rio Grande do Sul até o Pernambuco, recorrendo mais à sua graduação em antropologia na Universidade de Michigan Ann Arbor do que nos seus estudos de pós-graduação em pedagogia na Universidade da Califórnia em Berkeley. O resultado é uma das análises mais profundas já escritas sobre o que significa estar “dentro e contra o Estado” como uma prática estratégica.
Forjados nas dificuldades da luta contra o regime militar brasileiro durante a década de 70, os quadros do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) estavam alinhados bem de perto com aqueles do novo Partido dos Trabalhadores (PT). A distinta orientação estratégica do PT na época poderia ser expressa da seguinte forma: “nós somos militantes de organização, é nisso que somos bons. Mas precisamos entrar no Estado. Quando o fizermos, teremos que continuar sendo militantes de organização. Nós temos que usar os recursos estatais para ajudar a organizar aqueles que permanecem desorganizados.”
Foi essa orientação que inspirou o famoso experimento de Porto Alegre de elaboração de orçamento participativo, onde um prefeito do PT já tinha sido eleito no final da década de 80. Como posso atestar pessoalmente, quando ativistas que frequentavam os Fóruns Sociais Mundiais na virada do milênio ouviam sobre as conquistas desse experimento, a maioria deles retornavam de Porto Alegre soando muito como o jornalista Lincoln Steffens depois de sua ida a URSS em 1919 e voltavam declarando, “eu vi o futuro, e ele funciona.”
Na verdade, o processo de orçamento participativo estava repleto de contradições e limitações, como já estava bem nítido para aqueles que tinham lançado o experimento uma década antes — não menos no sentido de que os participantes na base nunca tiveram a oportunidade de decidir nas questões estratégicas mais importantes com as quais o governo local do PT teve que lidar. Sim, os representantes das favelas tinham permissão para escolher colocar recursos na construção de um esgoto ou de uma estrada, mas eles nunca foram envolvidos na abordagem de questões estratégicas sobre como lidar com os proprietários de terras que reivindicavam aquela terra, tão logo essas estradas e esgotos estivessem construídos.
Por contraste, o MST se engajou ativamente no desenvolvimento de competências políticas e estratégicas em seus acampamentos e assentamentos (bem como em sua escola nacional de quadros, no sul de São Paulo). Militantes do MST também se dedicavam, como tão bem mostra Rebecca Tarlau, para nutrir tais competências através do sistema público de educação.
Quando o PT elegeu seus primeiros prefeitos no final da década de 80, o partido descobriu que enfrentaria acusações de “clientelismo” se contratava um ônibus para levar manifestantes à Brasília para desafiar o modo como as despesas federais em serviços públicos estavam sendo direcionadas para as cidades. Já que os líderes partidários se comprometeram a acabar com as práticas clientelistas, eles não sabiam como responder a essa crítica, então eles simplesmente pararam de fazer isso. O MST não teve que enfrentar a mesma contradição política. No entanto, sua própria longa marcha pelas fracas estruturas educacionais do Estado clientelista e dos governos municipais logo deixou esses governos dependendo do MST para ajudar a administrar as escolas, mesmo que o MST tenha conseguido radicalizar muitos dos professores que inicialmente tinham suspeitas em relação ao movimento.
O que nesse quesito tornava o MST distinto como movimento social era, e continua sendo, seu status explícito como um movimento de classe — e, não menos explicitamente, um movimento socialista. A maior parte da literatura sobre movimentos sociais nas décadas recentes tomou forma em hostilidade à análise de classe, sem falar na hostilidade contra a “grande narrativa” de substituição do capitalismo pelo socialismo. A façanha de Tarlau é direcionar a análise de movimentos sociais de volta para a análise de classe. Ela também enfatiza o tipo de estratégia socialista que envolve trabalhar “dentro e contra” as instituições do Estado para transformá-las — ao invés de meramente protestar por fora delas, ou ainda menos de “esmagá-las”, no velho sentido insurrecional.
Contudo, esse livro incrivelmente sóbrio não é, de jeito nenhum, um exercício de tietagem. De fato, o estudo de Tarlau sobre o envolvimento do MST na “co-governança em disputa” nas instituições educacionais brasileiras oferece um contraste ríspido com grande parte da literatura existente sobre as experiências brasileiras com instituições de orçamento participativo, que tão frequentemente as apresentavam como "utopias reais". O MST não transformou todo o sistema educacional brasileiro, mudou apenas aqueles aparatos em proximidade aos seus próprios espaços de ocupação e assentamento, e as instituições de ensino superior diretamente envolvidas no treinamento de professores para áreas rurais.
Como mostra Tarlau, o Ministério da Educação em si praticamente não foi afetado.Isso levanta mais perguntas sobre o que significaria ir além da transformação de estruturas estatais que estão primariamente envolvidas na reprodução social, trazendo em questão aquelas instituições que estão centralmente envolvidas na reprodução econômica capitalista, como bancos centrais e departamentos de finanças ou comércio.
Além disso, na medida em que fala sobre as experiências muito diferentes do MST e do PT no Brasil, o estudo levanta ainda outra pergunta: ou seja, quais competências estratégicas um partido político de massas deve tentar desenvolver, se seu objetivo é ocupar todo o terreno do Estado a fim de transformá-lo? Essa é a pergunta chave encarando a esquerda socialista em nossos tempos. Que o importante livro de Rebecca Tarlau nos induza a refletir a esse respeito é mais uma de suas consideráveis conquistas.
Colaborador
Leo Panitch foi professor de ciência política na Universidade de Iorque e co-editor da revista Socialist Register. Seu último livro, junto de Sam Gindin, foi The Making of Global Capitalism.
A obra de John Holloway Mudar o Mundo Sem Tomar o Poder, inspirado pelo movimento Zapatista no México, resumiu de maneira famigerada o humor anterior na esquerda. Outro livro importante, inspirado por outro exemplo latinoamericano muito diferente capturou o contraste com o zeitgeist posterior: “Ocupando Escolas, Ocupando Terras: Como o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra Transformou a Educação Brasileira” de Rebecca Tarlau.
Tarlau é uma militante do Socialistas Democráticos da América e professora na Universidade Estadual da Pensilvânia, além de filha de Jimmy Tarlau, por muito tempo líder sindical no Trabalhadores de Comunicação da América (Communications Workers of America – CWA). Ela apresenta em vívidos detalhes a “longa marcha pelas instituições” do movimento dentro do sistema educacional brasileiro, da escola primária até as universidades, e do Rio Grande do Sul até o Pernambuco, recorrendo mais à sua graduação em antropologia na Universidade de Michigan Ann Arbor do que nos seus estudos de pós-graduação em pedagogia na Universidade da Califórnia em Berkeley. O resultado é uma das análises mais profundas já escritas sobre o que significa estar “dentro e contra o Estado” como uma prática estratégica.
Forjados nas dificuldades da luta contra o regime militar brasileiro durante a década de 70, os quadros do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) estavam alinhados bem de perto com aqueles do novo Partido dos Trabalhadores (PT). A distinta orientação estratégica do PT na época poderia ser expressa da seguinte forma: “nós somos militantes de organização, é nisso que somos bons. Mas precisamos entrar no Estado. Quando o fizermos, teremos que continuar sendo militantes de organização. Nós temos que usar os recursos estatais para ajudar a organizar aqueles que permanecem desorganizados.”
Foi essa orientação que inspirou o famoso experimento de Porto Alegre de elaboração de orçamento participativo, onde um prefeito do PT já tinha sido eleito no final da década de 80. Como posso atestar pessoalmente, quando ativistas que frequentavam os Fóruns Sociais Mundiais na virada do milênio ouviam sobre as conquistas desse experimento, a maioria deles retornavam de Porto Alegre soando muito como o jornalista Lincoln Steffens depois de sua ida a URSS em 1919 e voltavam declarando, “eu vi o futuro, e ele funciona.”
Na verdade, o processo de orçamento participativo estava repleto de contradições e limitações, como já estava bem nítido para aqueles que tinham lançado o experimento uma década antes — não menos no sentido de que os participantes na base nunca tiveram a oportunidade de decidir nas questões estratégicas mais importantes com as quais o governo local do PT teve que lidar. Sim, os representantes das favelas tinham permissão para escolher colocar recursos na construção de um esgoto ou de uma estrada, mas eles nunca foram envolvidos na abordagem de questões estratégicas sobre como lidar com os proprietários de terras que reivindicavam aquela terra, tão logo essas estradas e esgotos estivessem construídos.
Por contraste, o MST se engajou ativamente no desenvolvimento de competências políticas e estratégicas em seus acampamentos e assentamentos (bem como em sua escola nacional de quadros, no sul de São Paulo). Militantes do MST também se dedicavam, como tão bem mostra Rebecca Tarlau, para nutrir tais competências através do sistema público de educação.
Quando o PT elegeu seus primeiros prefeitos no final da década de 80, o partido descobriu que enfrentaria acusações de “clientelismo” se contratava um ônibus para levar manifestantes à Brasília para desafiar o modo como as despesas federais em serviços públicos estavam sendo direcionadas para as cidades. Já que os líderes partidários se comprometeram a acabar com as práticas clientelistas, eles não sabiam como responder a essa crítica, então eles simplesmente pararam de fazer isso. O MST não teve que enfrentar a mesma contradição política. No entanto, sua própria longa marcha pelas fracas estruturas educacionais do Estado clientelista e dos governos municipais logo deixou esses governos dependendo do MST para ajudar a administrar as escolas, mesmo que o MST tenha conseguido radicalizar muitos dos professores que inicialmente tinham suspeitas em relação ao movimento.
O que nesse quesito tornava o MST distinto como movimento social era, e continua sendo, seu status explícito como um movimento de classe — e, não menos explicitamente, um movimento socialista. A maior parte da literatura sobre movimentos sociais nas décadas recentes tomou forma em hostilidade à análise de classe, sem falar na hostilidade contra a “grande narrativa” de substituição do capitalismo pelo socialismo. A façanha de Tarlau é direcionar a análise de movimentos sociais de volta para a análise de classe. Ela também enfatiza o tipo de estratégia socialista que envolve trabalhar “dentro e contra” as instituições do Estado para transformá-las — ao invés de meramente protestar por fora delas, ou ainda menos de “esmagá-las”, no velho sentido insurrecional.
Contudo, esse livro incrivelmente sóbrio não é, de jeito nenhum, um exercício de tietagem. De fato, o estudo de Tarlau sobre o envolvimento do MST na “co-governança em disputa” nas instituições educacionais brasileiras oferece um contraste ríspido com grande parte da literatura existente sobre as experiências brasileiras com instituições de orçamento participativo, que tão frequentemente as apresentavam como "utopias reais". O MST não transformou todo o sistema educacional brasileiro, mudou apenas aqueles aparatos em proximidade aos seus próprios espaços de ocupação e assentamento, e as instituições de ensino superior diretamente envolvidas no treinamento de professores para áreas rurais.
Como mostra Tarlau, o Ministério da Educação em si praticamente não foi afetado.Isso levanta mais perguntas sobre o que significaria ir além da transformação de estruturas estatais que estão primariamente envolvidas na reprodução social, trazendo em questão aquelas instituições que estão centralmente envolvidas na reprodução econômica capitalista, como bancos centrais e departamentos de finanças ou comércio.
Além disso, na medida em que fala sobre as experiências muito diferentes do MST e do PT no Brasil, o estudo levanta ainda outra pergunta: ou seja, quais competências estratégicas um partido político de massas deve tentar desenvolver, se seu objetivo é ocupar todo o terreno do Estado a fim de transformá-lo? Essa é a pergunta chave encarando a esquerda socialista em nossos tempos. Que o importante livro de Rebecca Tarlau nos induza a refletir a esse respeito é mais uma de suas consideráveis conquistas.
Colaborador
Leo Panitch foi professor de ciência política na Universidade de Iorque e co-editor da revista Socialist Register. Seu último livro, junto de Sam Gindin, foi The Making of Global Capitalism.
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