21 de janeiro de 2020

Afinal, o enredo da "surpresa de outubro" de Ronald Reagan era real

Um lote de documentos divulgados discretamente confirma o que muitos já suspeitavam: a campanha presidencial de Ronald Reagan em 1980 funcionou nos bastidores para atrasar a libertação de reféns dos EUA no Irã, em benefício da campanha eleitoral de Reagan. Isto levanta a questão: quando foi a última vez que um republicano ganhou uma eleição presidencial sem a ajuda de truques sujos?

Branko Marcetic

Ronald e Nancy Reagan no dia de sua primeira posse como presidente em 1981.

Tradução / A década de 2020 começou com uma quantidade tão grande de notícias relacionadas ao Irã que você perdeu provavelmente a revelação bombástica sobre as relações entre os EUA e o Irã que veio ao final da década de 2010. Em vez de uma possível guerra entre os EUA e o Irã hoje, essa história em particular nos transporta de volta a uma época mais inocente, quando a política era baseada em princípios e os presidentes republicanos eram homens decentes: o início da era Reagan.

O que está em questão é a eleição presidencial de 1980 entre Ronald Reagan e Jimmy Carter, especificamente a “surpresa de outubro” que supostamente deu a Reagan a eleição, há muito descartada como uma teoria da conspiração. Toda a história é longa e complicada, mas a alegação principal é a seguinte: no meio da crise dos reféns no Irã, a campanha de Reagan fez um acordo secreto com os novos governantes do Irã para adiar a libertação dos reféns até depois da eleição, condenando as chances de vitória de Carter.

A alegação, perseguida obstinadamente pelo falecido jornalista investigativo Robert Parry, gerou livros e até mesmo uma investigação do congresso em 1992, que determinou que não havia “nenhuma evidência confiável que apoiasse qualquer tentativa ou proposta de tentativa da campanha presidencial de Reagan... de atrasar a libertação dos reféns norte-americanos no Irã". Parry e outros que investigaram o caso foram atacados pela mídia, com grande parte da questão girando em torno do fato de o gerente de campanha de Reagan e (mais tarde) o diretor da CIA William Casey, que odiava a imprensa livre, ter viajado para Madri em uma data específica para se reunir com representantes do governo iraniano.

Bem, quase dezessete anos depois que a House October Surprise Task Force concluiu que toda a ideia era falsa, um meio de comunicação não menos respeitável do que o New York Times virou essa conclusão de cabeça para baixo. A apenas três dias do início de uma nova década, o Times publicou o que em qualquer outra época teria sido uma história bombástica baseada em documentos doados a Yale pelos escritórios de David Rockefeller, ex-presidente da Chase Manhattan Corporation.

Aparentemente uma história sobre como Rockefeller e Chase trabalharam nos bastidores para que seu cliente, o repressivo Xá do Irã, conseguisse um refúgio seguro nos Estados Unidos, esta informação aparece mais ou menos na metade:

A equipe em torno do Sr. Rockefeller, um republicano de longa data com uma visão negativa da política externa dovish do Sr. Carter, colaborou estreitamente com a campanha de Reagan em seus esforços para antecipar e desencorajar o que ele rotulou ironicamente de surpresa de outubro” – uma libertação pré-eleitoral dos reféns norte-americanos, mostram os documentos.

A equipe de Chase ajudou a campanha de Reagan a reunir e espalhar rumores sobre possíveis pagamentos para conseguir a libertação, um esforço de propaganda que, segundo as autoridades do governo Carter, impediu as negociações para libertar os prisioneiros.

"Eu tinha dado tudo de mim” para impedir qualquer esforço das autoridades de Carter “para realizar a tão esperada ‘surpresa de outubro'”, escreveu Reed em uma carta à sua família após a eleição, aparentemente referindo-se ao esforço do Chase para rastrear e desencorajar um acordo de libertação de reféns. Mais tarde, foi nomeado embaixador do Sr. Reagan no Marrocos.

O “Sr. Reed” era Joseph Reed Jr., chefe de gabinete de Rockefeller, que determinou que os documentos permanecessem selados até a morte de Rockefeller, que ocorreu em 2017. Não é difícil entender o motivo.

Os críticos podem argumentar que esses documentos não provam os detalhes reais da tão alegada “surpresa de outubro”. Isso é verdade. De acordo com o Times, eles não mostram Reagan fazendo um acordo com os iranianos para adiar a libertação dos reféns americanos até depois da eleição, mas simplesmente trabalhando nos bastidores para frustrar as negociações para libertá-los. Talvez exista alguém que pense que isso é melhor.

É claro que essas não foram as únicas manobras de Reagan durante aquela eleição. Sua campanha também ficou famosa por ter se apossado dos documentos de estratégia de debate de Carter antes do único debate que tiveram em 1980 e, menos conhecido ainda, por ter supostamente usado funcionários aposentados da CIA e um espião dentro do governo Carter para coletar informações sobre sua política externa – principalmente, conforme relatado pelo Times em 1983, em relação à crise dos reféns no Irã.

Para quem estiver contando, agora são pelo menos quatro dos últimos seis presidentes republicanos que venceram as eleições com a ajuda de algum tipo de trapaça pré-eleitoral, incluindo o fracasso de Richard Nixon na paz no Vietnã, as fraudes da campanha de George W. Bush na Flórida e o uso posterior dos “Swift Boat Veterans for Truth” (Veteranos do Swift Boat pela Verdade) e o impulso de Donald Trump com a invasão russa dos e-mails do Partido Democrata (mesmo que isso não tenha sido coordenado) — sem mencionar o uso da supressão de eleitores que une todos eles. E isso sem contar que George H. W. Bush recebeu ajuda do governo de John Major no Reino Unido em sua tentativa de derrotar Bill Clinton em 1992.

A história também é um exemplo perfeito da forma como os mundos do capital, da política e das relações exteriores se misturam: o chefe de um dos maiores bancos do país ajudando seus aliados políticos de direita a destituir seu oponente e salvando a pele de um ditador estrangeiro lucrativo, tudo isso enquanto conta com a experiência de uma equipe de elites políticas, desde Henry Kissinger e um ex-diretor da CIA até um membro de uma das famílias políticas mais proeminentes do país. As grandes empresas e o establishment político trabalham juntos há muito tempo, mas costumavam fazer isso de forma mais discreta.

Por mais discreta que tenha sido, é notável que essa história tenha recebido tão pouca atenção quanto recebeu — uma marca registrada da era Trump, em que até mesmo a publicação pelo New York Times de arquivos secretos do governo sobre OVNIs quase não é mencionada.

Colaborador

Branko Marcetic é escritor da redação da Jacobin e mora em Toronto, Canada.

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