15 de maio de 2021

El Salvador: Bukele avança sobre o poder judicial

Nayib Bukele e uma nova elite salvadorenha assumiram o controle do estado com tambores, botas de polícia e agitando os fantasmas do autoritarismo.

César Saravia

Jacobin


O dia 1º de maio, que já configurava uma jornada atípica da classe trabalhadora no contexto da pandemia, teve como pano de fundo em El Salvador a chegada da nova Assembleia Legislativa, com maioria de deputados da aliança governamental.

Fiel ao seu estilo de comunicação, Novas Ideias, o partido de Nayib Bukele, implantou toda uma estratégia nas redes sociais que incluiu a mudança na logomarca dos prefeitos que passariam a governar a partir de sábado com uma estética semelhante à que o próprio Bukele usou durante seu tempo como prefeito de San Salvador. No que diz respeito ao palácio legislativo, um gesto que antecipou o que estava por vir foi que, nas cadeiras dos deputados e deputados, apenas colocassem os nomes próprios dos que pertenciam à aliança governamental, enquanto os adversários eram nomeados com o nome de seu partido.

A primeira decisão da nova Assembleia foi eleger o conselho de administração, que passaria de 11 para 8 deputados e que inclui apenas os representantes do partido no poder, especificamente quatro partidos. Além de Novas Idéias, a aliança governante acrescentou o GANA, de direita, o PCN (partido militar histórico) e a Democracia Cristã (que agora mantém apenas o nome do que foi).

A expectativa de como se desenrolaria o primeiro plenário do novo bloco legislativo era grande. Como antecipamos em nota anterior, a vitória de Bukele nas últimas eleições permitiria a ele destituir os magistrados da Sala Constitucional, o Procurador-Geral da República, o Procurador para a Defesa dos Direitos Humanos e o Tribunal de Contas, entre outros.

Nem lenta nem preguiçosa, a nova Assembleia decidiu avançar na tomada do Judiciário. O argumento era que durante a pandemia a Câmara não seguiu as medidas do presidente, que incluíam a restrição de movimento por decreto presidencial, o confinamento em "centros de contenção" de pessoas que violaram a quarentena e o uso das forças armadas para restringir a circulação, algo para o qual o executivo não tem poderes. A medida, além de descumprir o devido processo, é apresentada como uma espécie de vingança e "limpeza" (como o próprio presidente definiu em sua conta no Twitter) de instituições que não atendem aos interesses "do povo".

A ação foi rejeitada por grande parte da sociedade civil organizada. É que, com o controle do Judiciário e do Ministério Público, Bukele pode bloquear as investigações contra seu governo, em especial aquelas relacionadas à corrupção ou violência de gênero. Também põe em risco o desenvolvimento de julgamentos históricos, como o Massacre de El Mozote, em que o presidente já havia se recusado a entregar os arquivos e repetidamente agredido o juiz do caso.

Legalidade e legitimidade

Embora a nova Assembleia tenha poderes legais para executar as medidas, o governo não cumpriu o devido processo. Sobre isso consultamos o advogado Jacobo Cruz, que apontou que as falhas no processo se devem principalmente a três pontos estabelecidos na Constituição salvadorenha. A primeira delas é que a destituição de magistrados só pode ocorrer se houver causa legal previamente estabelecida, algo que foi violado; também foi negado aos magistrados a possibilidade de se defenderem, pois perante um processo de impeachment, a Constituição estabelece a obrigação de criar uma audiência; finalmente, o processo de “dispensa de tramitação”, mecanismo utilizado para agilizar um projeto de lei em El Salvador, não estava devidamente documentado, de acordo com o regulamento da Assembleia.

Destaca-se o fato de, no próprio sábado, a Polícia Nacional Civil ter entrado nos gabinetes da Sala Constitucional, escoltando os novos magistrados eleitos poucas horas antes. Este cenário, para além de toda legalidade e protocolo, foi também uma prova do apoio das forças repressivas, tanto formais como paraestatais, com que conta o governo. O que lhe confere um poder que poucos presidentes tiveram nas últimas décadas em El Salvador.

Para dispersar as críticas, Bukele usou como justificativa o raciocínio de que, ao receber a maioria na Assembleia, o povo o havia capacitado a realizar essa ação. Em várias ocasiões foi o presidente quem foi agraciado com a ação, apesar de ela ter sido executada pelo corpo legislativo, mostrando que, atualmente, as leis de El Salvador são elaboradas a partir da presidência. Esse raciocínio, sem base legal, foi amplamente aceito por grande parte da população que depositou sua confiança no atual governo e que, pelo menos por enquanto, não consideram um problema o controle dos três órgãos do Estado pela mesma pessoa.

Durante o dia de sábado, também circulou que o governo se preparava para mudar o Procurador para a Defesa dos Direitos Humanos, os magistrados do Tribunal Superior Eleitoral e do Tribunal de Contas, algo que parece, neste momento, ter sido interrompido devido a pressões internacionais. Durante o dia de quarta-feira, 5 de maio, a Assembleia aprovou uma Lei que isentava o Ministro da Saúde de responsabilidade criminal por qualquer compra durante os últimos meses da pandemia. Isso se soma ao bloqueio de informações publicitárias e às limitações impostas de fato ao Instituto de Acesso à Informação Pública. Em última análise, Bukele não controla apenas as instituições, mas também as informações públicas.

Bukele e populismo pragmático

As ações de Bukele durante seus quase dois anos no cargo foram acompanhadas por muita confusão. Que projeto social, econômico e estadual ele está perseguindo? Em princípio, parece que a atual aliança de governo avança de forma um tanto instável e, portanto, movimentos estão ocorrendo dentro dela que aprofundam o caráter confuso e contraditório do discurso do presidente. Esse cenário de pouca consistência entre dizer e fazer (mudando o discurso, em muitas ocasiões, de uma semana para a outra ou de um tweet para outro) não parece, no entanto, afetar sua popularidade.

Para ganhar o apoio necessário para concentrar o poder, Bukele e sua equipe começaram a construir um épico discursivo em torno de ideias como a "refundação" da República, o "poder do povo" e até citações de Oscar Arnulfo Romero. Uma linguagem que trabalha com elementos do marketing político aliados à estética dos populismos latino-americanos, tanto de direita quanto de esquerda.

Neste ponto, é importante deixar algo claro: Bukele não é nem esquerdista nem progressista. E isso não é uma opinião ou uma análise; O próprio Bukele afirmou em várias ocasiões que "não acredita" em ideologias. Apesar disso, também é difícil considerá-lo dentro do esquema tradicional de direita, no estilo Macri ou Piñera. É em grande parte um populismo pragmático. Assim, em um mesmo caráter podem coexistir, por um lado, a idealização dos militares, o conservadorismo religioso, a rejeição dos direitos humanos e das organizações feministas, os ataques à Venezuela e, por outro, a reivindicação da saúde pública ou da vontade e poder popular.

Outros ingredientes de confusão acrescentam seu relacionamento tenso com o governo de Joe Biden. É um segredo de polichinelo que o governo Biden vê o jovem presidente salvadorenho com suspeita. De fato, figuras importantes de seu governo, como a subsecretária para Assuntos do Hemisfério Ocidental, Julie Chung, o secretário de Estado, Antony Blinken, e até a vice-presidente, Kamala Harris, se manifestaram contra a destituição dos magistrados. Isto porque Bukele, por um ano e meio, entregou sua política da cabeça aos pés ao governo Trump, apoiando-o em suas políticas de imigração e em votos importantes como a eleição do presidente do BID, Mauricio Claver, ou na condenação da Venezuela na OEA. Da Casa Branca, eles veem o presidente da geração millenial como uma ameaça e parecem não querer se vincular a nada que cheire a Trump.

Nesse cenário, um ator que entrou na equação é a República Popular da China, que, como outros países, enviou vacinas da Sinovac para El Salvador, garantindo assim que Bukele pode se orgulhar de ser o governo centro-americano com o maior percentual da população vacinada. Paradoxalmente, foi durante o último governo da FMLN que El Salvador decidiu romper as relações com Taiwan e estabelecê-las com a China, decisão criticada pela direita e pelo atual presidente.

Embora ainda seja muito cedo para saber, tudo parece indicar que a China será o carro alegórico a que Bukele se agarrará diante da maior pressão dos Estados Unidos, principalmente no que diz respeito às investigações de corrupção, em um cenário semelhante ao vivido pela Guatemala quando Jimmy Morales desafiou à ONU e ao governo dos Estados Unidos depois que a comissão instalada de combate à corrupção começou a investigar seu filho. A diferença mais relevante é a presença do gigante asiático na equação.

Essa aproximação com a China e o aumento da tensão com os Estados Unidos fizeram com que alguns setores do progressismo latino-americano, pouco informados sobre a situação salvadorenha ou enviesados ​​por cálculos geopolíticos, passassem a dar a Bukele o benefício da dúvida. Porém, não há nada parecido com o progressismo no atual presidente salvadorenho: nem em termos de política redistributiva, nem em uma agenda de direitos das mulheres ou da comunidade LGBTIQ +, muito menos em relação às perspectivas anti-extrativista e descolonial.

A mera evocação do poder do povo de modificar uma Constituição nada indica, já que tal processo pode emanar de diversos setores, desde a rebelião no Chile e o processo de mudança na Bolívia ao promovido por JOH em Honduras ou Uribe na Colômbia. Parafraseando Gramsci, um governo com apoio popular não é necessariamente um governo popular. Ou, o que é igual, nem todos os populismos são de esquerda, nem toda mudança na estrutura do Estado representa necessariamente uma extensão de direitos.

Longe de qualquer ensaio progressista, a realidade é que com o que aconteceu no sábado El Salvador entra em um cenário em que uma nova elite assume o controle do Estado e o faz com tambores, botas de polícia e balançando os fantasmas do autoritarismo.

Sobre o autor

Pesquisador em políticas territoriais. Comunicador popular. Membro do coletivo editorial Marcha Noticias e do Movimiento Centroamericano 2 de Marzo.

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