18 de maio de 2021

Israel criou os refugiados em Gaza que agora está bombardeando

A fundação violenta do Estado de Israel em 1948 forçou centenas de milhares de palestinos a fugirem para a estreita faixa costeira de Gaza. A expulsão criou o ''maior campo de refugiados do mundo'' - e Israel o bombardeia impiedosamente

Seraj Assi

Créditos da foto: Palestinos protestam contra a ocupação de Israel e sua campanha aérea na faixa de Gaza, perto do assentamento de Beit El e Ramallah, na Cisjordânia, ocupada em 18 de maio de 2021. (Abbas Momani/AFP via Getty Images)

Tradução / As forças israelenses martelaram Gaza com diversos ataques aéreos, matando centenas, ferindo milhares e desalojando outros mais. Poucas semanas após a Human Rights Watch finalmente rotular Israel como um Estado de apartheid, Israel faz o máximo para provar tal designação em meio a acusações de crimes de guerra.

Gaza não é um Estado em guerra com Israel. Uma faixa estreita de terra subjugada à um cerco brutal por mais de 15 anos, Gaza é também chamada de maior campo de refugiados do mundo e de maior prisão a céu aberto do mundo. Relatórios da ONU a descrevem como “inabitável”. A maior parte das duas milhões de pessoas que moram lá está em campos de refugiados lotados.

A ironia é que a situação difícil em Gaza foi criada por Israel no ápice da guerra.

"Transformamos suas terras e vilarejos em nossos lares"

Começou com a Nakba: a expulsão em massa que seguiu após a fundação de Israel em 1948. Cerca de 750.000 palestinos foram forçados a sair de suas casas; 250.000 daqueles arrancados de suas terras foram para Gaza, triplicando a população do dia para a noite. Gaza se tornou um enorme campo de refugiados – uma cidade gigante de tendas entre o mar e o deserto.

A calamidade moral não passou despercebida mesmo entre oficiais israelenses importantes. Em abril de 1956, o líder militar Moshe Dayan confessou: “O que podemos dizer contra seu terrível ódio contra nós? Por oito anos, eles ficaram em campos de refugiados em Gaza, e nos assistiram, diante de seus olhos, transformar suas terras e vilarejos, onde eles e seus antepassados habitavam, em nossos lares”.

Os fundadores de Israel, notoriamente David Ben-Gurion, previram o risco de concentrar dezenas de milhares de refugiados em uma faixa costeira onde obstáculos naturais impediam sua dispersão. Eles temiam o espetáculo de “ondas de refugiados marchando de Gaza para Israel”.

A ONU, enquanto isso, montou uma agência especial para fornecer assistência a refugiados palestinos (a Agência de Assistência aos Refugiados Palestinos no Próximo Oriente) e aprovou uma resolução que pedia a Israel para garantir que os refugiados palestinos pudessem retornar às suas casas.

Ainda assim, apelos internacionais não foram ouvidos por Israel, e o destino dos refugiados de Gaza foi selado. Nas sete décadas que seguiram a guerra de 1948, os portões de Gaza foram fechados para sua população deslocada. Seus campos empobrecidos e lotados se tornaram permanentes. E Israel tentou resolver o problema dizimando-os.

Invasão e ocupação

Em novembro de 1956, Israel marchou para Gaza. Primeiro lançando batidas militares nos campos de refugiados, Israel então ocupou Gaza por quatro meses, culminando em dois massacres nos campos Khan Yunis e Rafah. O custo humano foi tão alto que E. L. M. Burns, o chefe da missão especial da ONU em Gaza, disse que as ações de Israel mostraram que pretendia se livrar da população refugiada de Gaza.

Em 1967, outra guerra irrompeu e Israel invadiu Gaza pela segunda vez. Não foi tarefa fácil: levaram seis dias para ganhar o conflito, mas quatro anos para tomar posse de Gaza. A batalha provocou um segundo êxodo, enquanto dezenas de milhares de refugiados, ainda traumatizados pela memória da primeira invasão, saíram da faixa costeira e foram para a Jordânia e para o Egito, para nunca mais retornar.

A população refugiada de Gaza continuou a preocupar os líderes israelenses após 1967. Planos de transferência eram abundantes. Durante a prolongada ocupação de Gaza – que colocou os refugiados sob o controle das mesmas forças que os arrancaram de suas casas duas décadas atrás – políticos israelenses, notoriamente Levi Eshkol e Moshe Dayan, contemplaram a transferência dos refugiados de Gaza para a Cisjordânia ou para o Sinai, ou para um país árabe no norte da África. (Um plano, em última instância rejeitado como custoso e pouco prático, teria enviado os refugiados para a América Latina).

Até mesmo a paz provou ser custosa para os refugiados de Gaza. Os Acordos de Camp David de 1979 fecharam a fronteira de Gaza com o Egito, dividindo famílias com arames farpados, causando deslocamentos populacionais ainda maiores e demolições de casas ao longo da nova fronteira, e tirando dos pescadores de Gaza o acesso tradicional às águas egípcias. A destruição de assentamentos israelenses no Monte Sinai foi compensada mais tarde por um aumento na atividade de assentamentos em Gaza.

Nas próximas duas décadas, os destituídos se rebelaram.

Em 1987, o primeiro levante palestino, ou intifada, irrompeu no campo de refugiados Jabalaya em Gaza (apelidado de “campo Vietnam”), liderado por jovens palestinos que cresceram sob o controle israelense. Em 2000, Gaza se tornou o campo de batalha simbólico da segunda intifada quando, em 30 de setembro, em uma encruzilhada perto do campo Bureij em Gaza, o menino de 12 anos Muhammad al-Dura foi alvejado e morto nos braços de seu pai, a icônica imagem do levante.

Depois de quase quatro décadas de ocupação prolongada, Israel saiu de Gaza em 2005, deixando para trás quase um milhão de refugiados acampados. Quando suas forças deixaram a faixa costeira, líderes israelenses estavam confiantes de que haviam finalmente varrido a crise em Gaza para debaixo do tapete do “desinteresse”.

Para Israel era uma vitória de todo jeito: eles continuaram controlando os postos fronteiriços de Gaza, o espaço aéreo e os territórios marítimos e – declarando a Faixa como um “território hostil” – continuaram a subjugá-la a operações militares e punição coletiva. Ao mesmo tempo, a retirada de Israel foi vista como uma solução para as obrigações de Israel com Gaza e seus refugiados.

Nos últimos 15 anos, Israel manteve um bloqueio total à Gaza, enquanto rotineiramente assalta sua população, matando milhares. Bombardeados e cercados, os refugiados de Gaza, presos e sem chance de escapar, perceberam a profundidade da sua tragédia: tem uma coisa pior que o deslocamento, a impossibilidade de ir embora.

"Aparando a grama"

A política israelense agressiva em relação a Gaza nas últimas sete décadas viu o início de duas ocupações, batidas e ofensivas militares intermináveis (Jean-Pierre Filiu, historiador francês, contou doze guerras israelenses em Gaza desde 1948), e um embargo de 15 anos. As Forças de Defesa Israelenses (IDF) descrevem sua tática em Gaza como “aparando a grama”; Benny Gantz, ex-líder militar da IDF, se referiu à invasão de Gaza em 2014 por Israel, se gabou de “bombardear Gaza de volta para a Idade da Pedra”.

Israel continua a ver o território empobrecido e impotente como uma ameaça de segurança de proporções “existenciais” que exige medidas extraordinárias e desproporcionais.

Quando os refugiados de Gaza realizaram a “Grande Marcha do Retorno” em 2018 para comemorar o aniversário anual da Nakba, Israel respondeu matando mais de 150 manifestantes e ferindo outros 10.000, incluindo crianças e jornalistas, em um período de seis semanas. Um relatório da ONU depois concluiu que soldados e líderes israelenses cometeram crimes contra a humanidade, e intencionalmente usaram munições reais contra civis.

Se eu comecei com uma ironia – Israel criou o problema dos refugiados que tenta bombardear até a morte – aqui está outra: ao invés de eliminar a população refugiada, as intermináveis ofensivas israelenses somente reforçaram o sentimento de solidariedade entre a população urbana da Faixa de Gaza e a dos campos de refugiados. Talvez a justiça ainda esteja no horizonte.

Colaborador

Seraj Assi é o autor de The History and Politics of the Bedouin.

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