9 de maio de 2021

As soviéticas que queriam moda para todos

Nos anos posteriores à revolução, designers russos repensaram o estilo. Dentre eles, estava Varvara Stepanova, cujo objetivo era tirar a moda do âmbito do luxo e torná-la acessível a todos.

Chris Randle


Varvara Stepanova e Lyubov Popova, fotografadas por Alexander Rodchenko em 1924.

Tradução / Em outubro de 1923, enquanto Vladimir Lenin, de seu leito de morte, pairava como sombra sobre a recém-formada União Soviética, uma das maiores fábricas de Moscou tornou-se domínio de duas artistas determinadas a conquistar o estilo para a população.

A experiência tinha um quê de desespero. Após o colapso do regime imperial da Rússia durante o clímax da Primeira Guerra Mundial, suas facções políticas engajaram em batalhas internas, até que o Exército Vermelho finalmente derrotou uma desagradável leva de monarquistas, latifundiários e generais que aspiravam ao cargo de Líder Supremo. Milhões de russos pereceram por assassínio ou fome; a produção industrial caiu a uma fração de seu nível pré-guerra.

Poucas coisas poderiam ainda dar errado na Primeira Fábrica Estatal de Impressão em Algodão, para usar seu título pós-revolucionário. Mas o diretor da fábrica não convidou Liubov Popova e Varvara Stepanova, respectivamente uma pintora rica e outra proletária, para vir trabalhar ali dando de ombros. Ele acreditava em seu movimento, que argumentava que os artistas soviéticos tinham que reimaginar as facilidades da vida diária — coletivizar a economia do desejo. Os trabalhadores mereciam tanto pão, quanto cetim.
A pintora e estilista da classe trabalhadora russa Varvara Stepanova com seu esposo, o vanguardista Alexander Rodchenko, em 1920. (TASS via Getty Images)

“Eu queria produzir objetos reais,“ contou Stepanova em uma entrevista ao jornal teatral Zrelishcha, “um ambiente totalmente material sobre qual o material vivo humano pudesse agir.” Muitos dos seus companheiros construtivistas chegaram a essa revelação pelo mesmo caminho, que permeava a vanguarda de Moscou no final da década de 1910, brincando com a abstração. Agora, queriam “destruir o valor sagrado” do trabalho artístico individual.

Arte de Varvara Stepanova, 1921.

Os construtivistas exaltavam pôsteres, fotomontagens e a luz ondulante do cinema, todos objetos de produção em massa. Em seu livro Imagine No Possessions: The Socialist Objects of Russian Constructivism (Imagine Não Haver Posses: Os Objetos Socialistas do Construtivismo Russo, em livre tradução), Christina Kiaer escreve: “A estética construtivista foi uma tentativa de enriquecer o corpo do sujeito socialista através de formas mais apropriadas de objetos modernos — usar a tecnologia industrial para ampliar a experiência sensorial, ao invés de sedá-la ou amortecê-la, como se fez durante o capitalismo… o amortecimento dos sentidos que era a resposta natural ao choque sensorial da fábrica, da ferrovia, da metrópole.”

Diferentemente das pinturas de sua amiga mais velha Popova, as de Stepanova eram recebidas com frieza: o artista modernista franco-russo Marc Chagall havia descrito sua única exposição em galeria, na exibição estatal de Moscou em 1920, como “desequilibrada” e “desgovernada”. Ao ver uma dessas telas no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque alguns anos atrás, eu amei o movimento que sugeria com algumas linhas curvas, como as cores se agitavam dentro da figura dançante. A despeito da indiferença da crítica à pintura de Stepanova, ela tinha renome pelos figurinos que produzia para peças de teatro experimentais — ela achava que cada profissão deveria ter seu uniforme customizado, numa ode ao trabalho.

Esse sonho não se realizou, mas os trajes que ela chegou a fazer transformaram a função em espetáculo. As roupas de Stepanova enfatizavam materiais leves e cortes confortáveis, enquanto os tecidos entrelaçavam as formas em geometrias radiantes. A gerência da fábrica rejeitou um deles por parecer “um metrô”, como o efeito zootrópico de um túnel de metrô passando sob os olhos.

Sob a Longa Sombra do Luxo

O luxo jamais esteve apartado da história, especialmente quando parecer fora de moda era uma preocupação nacional. Achando seu domínio tsarista muito cafona, e ambicionando um império mais moderno, Pedro, o Grande decretou, em 1701, que todos os moscovitas usassem roupas germânicas; qualquer um pego vendendo estilos tradicionais encararia “punições terríveis”, uma promessa sinistra, já que Pedro havia torturado seu próprio filho até a morte.

Christine Ruane, em seu livro de 2009, The Empire’s New Clothes (As Novas Roupas do Império, em tradução livre), registra como a moda ditava a política russa durante esse período imperial: o governo inicialmente permitia o comércio livre de roupas estrangeiras, esperando encorajar seu uso, mas mais tarde impôs altas taxações para tentar apoiar a indústria doméstica. Como o resto da imprensa, revistas do tipo da Vogue eram vistas com suspeita; em uma ocasião, censores chegaram a declarar um conto sobre a Revolução Francesa “inapropriado” para tais publicações.
Designs de Stepanova para um conjunto unissex de esporte, 1923.

Enquanto a monarquia dos Romanov perdia força em 1905, centenas de vendedores de lojas de varejo andavam pelas ruas do centro de Moscou, as mesmas ruas nas quais rebeldes construiriam barricadas apenas alguns meses depois. The Empire’s New Clothes nota que os trabalhadores da moda frequentemente representavam “o lado radical” dos grupos de esquerda: os estágios como aprendizes faziam com que tivessem intimidade com a cidade, e quando seus mestres os enviavam para fazer alguma entrega, eles confrontavam a burguesia em suas próprias casas.

Um protesto trabalhista dos cortadores e costureiros de São Petersburgo transformou-se em uma greve maior, a qual o Estado tentou reprimir exilando os líderes sindicais. “Talvez como retaliação,” escreve Ruane, “ladrões arrombaram a loja de roupas Viennese Chic... Roubaram milhares de rublos em roupas e destruíram as mercadorias deixadas para trás.” Imagine trabalhadores posando em peles roubadas, os príncipes e condessas de uma aristocracia invertida.

Muitos conservadores russos consideravam a moda em si uma depravação moral porque dava liberdade às mulheres. Christine Ruane cita de Epidemic Insanity: Toward the Overthrow of the Yoke of Fashion (Epidemia de Insanidade: Em Direção à Destruição do Jugo da Moda, em livre tradução), um texto de 1914 da autora direitista Iulii Elets:

Esse livro sobre a mais premente e dolorosa questão na vida social moderna e familiar parece um grito de desespero a respeito de como as mulheres desfiguram seus corpos com roupas feias e absurdas, como são extorquidas quantias absurdas de dinheiro, como a libidinagem e a desintegração são introduzidas nas famílias pelos constantes desejos pelo mais recente apelo sem sentido da moda, como trapos coloridos cultivam o vazio nos corações e mentes femininos, como muitos crimes são cometidos por causa das leis impensadas da moda e sobre quantas pessoas perecem por causa disso!

Socialismo, Mas na Moda

A opulência imperial saiu de moda com a revolução, mas a pergunta permaneceu: O que substituirá cada blusa ou rádio cobiçados depois que o mercado desaparecer? Artistas como Stepanova apartaram-se dos comunistas mais ascetas para propor um novo tipo de materialismo. Ela faria coisas que respondessem à vida em seu entorno — companheiros de viagem, não bugigangas acumuladas. Socialismo, mas na moda.
Stepanova posa em roupas de seu design, 1923.

“A luz do Leste não é somente a libertação dos trabalhadores,” escreveu o amigo de Stepanova, Alexander Rodchenko. “A luz do Leste é a nova relação com a pessoa, com a mulher, com as coisas. Nossas coisas e nossas mãos devem ser iguais, camaradas, e não esses escravos enlutados.”

Os construtivistas tinham um aliado estrangeiro no crítico Walter Benjamin, que acreditava que uma cultura de massas continha potencial revolucionário; ele descreveu tais revelações lindamente como “aquilo contido no que foi une-se em um instante com o que é para formar uma nova constelação.” Benjamin atribuiu à moda um poder quase místico:

Cada coleção traz, em suas novas criações, vários sinais secretos do porvir. Quem entender como ler esses semáforos saberá antecipadamente não apenas sobre as novas correntes nas artes, mas também sobre os novos códigos legais, guerras e revoluções. Nisto, certamente, encontra-se o maior charme da moda, mas também a dificuldade em tornar o que é charmoso em algo frutífero.

Dentro do interminado Arcades Project, a colagem literário-histórico-marxista de Benjamin sobre passar tempo no shopping center, lê-se: “O eterno é, em qualquer instância, muito mais a prega de um vestido do que alguma ideia.” O ciclo do estilo pode colapsar a história ao momento imediato.
Um exemplo dos designs têxteis de Stepanova.

Ao obscurecer a dominação que o dirige, o capitalismo esconde essas colisões entre passado e presente, reduzindo o mais belo enfeite a um cadáver rígido. Desconecta os objetos de seu contexto social, do mundo sensual. Nós os liberamos brevemente, como o sonhador não atingido pela gravidade: amigos passando um isqueiro, amantes dividindo roupas. A maioria dos meus trajes favoritos — um suéter com estampa de flores negras da Commes des Garçons, uma jaqueta cor de sangue com dourado da Haider Ackermann — vieram de segunda mão, e constantemente penso nas pessoas que as desenharam, costuraram e vestiram.

A vasta riqueza e a ruína ecológica causadas pelas redes de fast-fashion dependem de um trabalho obscurecido e exaustivo: essas companhias só podem criar seus estoques tão rápida e lucrativamente por causa dos trabalhadores que exploram. A socióloga Madison Van Oort já descreveu como é trabalhar nesse tipo de loja, incapaz de reconhecer as mudanças na disposição dos objetos: “Eu perambulava em círculos no meu departamento, tentando incessantemente encontrar uma blusa que sabia ter recém visto.” A lógica do pesadelo capitalista faz o vendedor se perder dentro da própria butique.

Os próprios construtivistas notaram a hesitação de seu país em escapar desse sistema integralmente; durante os anos de 1920, a União Soviética encorajava empreendimentos privados limitados por puro desespero econômico, permitindo que financistas ganhassem montanhas de dinheiro. A liderança bolchevique concedeu a todos esses antigos pintores uma tolerância divertida, mas pouco financiamento. (“Gostos variam”, disse Lênin a um grupo de artistas vanguardistas. “Sou um homem velho.”)

O arquiteto construtivista Vladimir Tatlin propôs seu Monumento à Terceira Internacional, uma hélice dupla idealizada para transmitir todas as formas de mídia, girando sem parar em torno de seu eixo. Nunca se tornou mais que um modelo em escala, e mesmo este teve notadamente que usar madeira. A maioria das ideias de seu movimento tiveram o mesmo destino, permanecendo plantas e protótipos. Dos escombros, os construtivistas imaginaram motores enormes, paisagens de vidro e aço, manifestos refletidos no céu: uma fantasia da modernidade. Quando vestiam um vestido de melindrosa desenhado por Popova ou Stepanova, as pessoas comuns podiam tocá-la.

Os resultados do Primeiro Plano Quinquenário, uma fotomontagem de Stepanova, 1932.

É tentador pensar naquele mundo como um paraíso negado, mas também seria uma traição política. Os construtivistas queriam enfatizar o presente, mesmo enquanto o desafiavam. Eram os mais práticos dos utópicos: após sua torre não ser erguida, Vladimir Tatlin dedicou-se a construir um fogão melhor. “O vestido de hoje precisa ser visto em ação, “ escreveu Stepanova. “Para além disso, não há vestido, assim como uma máquina que não pode ser concebida para além do trabalho que deve desempenhar.”

Ela também argumentou que a emancipação da mulher era evidenciada pela moda. Com suas formas andróginas, suas espirais e grades escandalizantes, as roupas de Stepanova eram um motim às convenções. (Parece injusto que ela nunca tenha conhecido Rick Owens.) Sem nenhum desleixo, Popova uma vez produziu uma estampa com martelos e foices pequenos e elegantes. De acordo com o crítico, Iakov Tugendkhol’d, elas “romperam a Bastilha do conservadorismo fabril.”

Uma Fatia do Tempo
Stepanova com um compasso e cigarro.

A experiência da Primeira Fábrica Estatal de Impressão em Algodão durou apenas um ou dois anos. Embora Popova e Stepanova quisessem se juntar aos processo industrial, não conseguiam nenhum horário no laboratório de pesquisa; a gerência da fábrica ainda relutava em aceitar duas forasteiras por completo. Mas as designers se popularizaram, sendo vistas por toda a Moscou e mais além.

Atingida pela febre escarlate em 1924, uma doença que já havia matado seu filho, Popova disse que nunca sentiu-se mais satisfeita como artista do que quando via uma camponesa ou trabalhadora usando uma de suas estampas. Em Imagine No Possessions, Kiaer tenta resumir a profecia socialista de Stepanova: “As roupas sairiam de moda, não porque começassem a parecer estranhas quando o mercado gerasse uma nova moda, mas pelas condições do byt [o dia-a-dia, principalmente no sentido de trabalho enfadonho] terem mudado, necessitando de novas formas de vestimenta.” Nesse sentido, ela passou a costura.¹

A fotografia mais conhecida de Stepanova a mostra posando com seu compasso, cigarro entre os lábios. Os construtivistas gostavam de brincar com sua própria imagem heróica, mas aqui o conselho da fábrica o fez em lugar dela: acharam hilário que uma artista precisasse de tais ferramentas para passar uma linha, sem se dar conta que Stepanova queria desenhar de forma não natural. Uma outra foto dela me cativa: Stepanova fumando outro cigarro, o braço cruzado atrás da cabeça, meio sorrindo para a câmera. Percebe-se logo que foi tirada por seu amante. A foto tem cem anos, mas poderia ter sido tirada uma hora atrás.

“A moda oferece de forma acessível um conjunto de linhas e formas predominantes de uma dada fatia de tempo,” escreveu Stepanova, “os sinais externos de uma época. Nunca repete as formas que já encontrou.” Suas próprias roupas estão perdidas da memória, junto com a utopia construtivista que ela almejava decorar, mas podemos usá-las como um buraco de minhoca, entrando na história por novos ângulos. Uma vida de apocalipse permanente, fazendo compras no abismo — isso tudo nunca foi inevitável. O que é o glamour sem o império a acumulá-lo? Que uniformes usaremos depois que as classes forem abolidas? Discretamente, podemos reconhecer a sofisticação de um mundo ainda porvir.

Sobre a autora

Chris Randle é jornalista de Toronto e já escreveu para o Globe and Mail, o National Post, o Comics Journal, Social Text, o Village Voice e The Awl.

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