Este ensaio foi adaptado e atualizado de Polemics, traduzido por Steve Corcoran (Londres: Verso, 2006). As novas seções foram traduzidas por James Membrez.
Alain Badiou
Monthly Review Volume 73, Number 1 (May 2021) |
Tradução / Em 1871, Karl Marx apresentou um relato da Comuna de Paris que está totalmente marcado pela questão do Estado. Para ele, trata-se do primeiro caso histórico em que o proletariado assume sua função transitória de direção, ou administração, de toda a sociedade. A partir das iniciativas e impasses da Comuna, Marx chega à conclusão de que a máquina estatal não deve ser “tomada” ou “ocupada”, mas dissolvida .
Notemos de passagem que a principal falha da análise provavelmente reside na noção de que, entre março e maio de 1871, a questão do poder estava na ordem do dia. Dessa forma, surgem “críticas” tenazes que se tornaram lugar-comum: O que faltava supostamente à Comuna era capacidade de tomada de decisão; se tivesse marchado imediatamente sobre Versalhes; se tivesse apreendido o ouro do Banco da França; e assim por diante. Em minha opinião, esses ses carecem de conteúdo real. Na verdade, à Comuna faltavam tanto os meios para abordá-los adequadamente, quanto, provavelmente, os meios para chegar até eles.
O relato de Marx, de fato, é ambíguo. Por um lado, elogia tudo o que parece conduzir à dissolução do Estado e, mais especificamente, do Estado-nação. Nesse sentido, ele observa: a recusa de um exército profissional pela Comuna, em favor de armar diretamente o povo; todas as medidas tomadas em relação à eleição e revogabilidade dos servidores públicos; o fim imposto à separação de poderes em prol de uma função decisiva e executiva; e seu internacionalismo (o delegado financeiro da Comuna era alemão, os líderes militares poloneses, etc.). Mas, por outro lado, ele deplora incapacidades que, na verdade, são incapacidades estatistas [incapacités ètatiques]: sua fraca centralização militar; sua incapacidade de definir prioridades financeiras; e suas deficiências em relação à questão nacional, sua abordagem de outras cidades, o que disse e não disse sobre a guerra com a Prússia e sua mobilização das massas provinciais.
É chocante perceber que, vinte anos depois, em seu prefácio de 1891 a uma nova edição do texto de Marx, Friedrich Engels formaliza as contradições da Comuna da mesma maneira. Ele demonstra, com efeito, que as duas forças políticas dominantes do movimento de 1871, os proudhonianos e os blanquistas, acabaram fazendo exatamente o oposto do que sua ideologia manifesta. Os blanquistas eram partidários da centralização em excesso e de conspirações armadas, onde um pequeno número de homens resolutos tomariam o poder, a fim de exercê-lo com autoridade em benefício das massas trabalhadoras. Mas, em vez disso, eles foram levados a proclamar uma federação livre de comunas e a destruição da burocracia estatal. Os proudhonianos eram hostis a qualquer apropriação coletiva dos meios de produção e promoviam pequenas empresas autogeridas. Mesmo assim, acabaram apoiando a formação de vastas associações de trabalhadores com o propósito de dirigir a grande indústria. Engels conclui, de forma bastante lógica, que a fraqueza da Comuna reside no fato de que suas formas ideológicas eram inadequadas à tomada de decisões de Estado. E, além disso, que o resultado dessa oposição polar é simplesmente o fim do blanquismo e do proudhonismo, abrindo caminho para um único “marxismo”.
Mas qual é a adequação das ideias de Marx e Engels representadas em 1871, e mesmo muito mais tarde, para a situação? Por quais meios extras sua suposta hegemonia teria colaborado para a Comuna?
O fato é que a ambigüidade do relato de Marx será apropriada [sera levée] tanto pela disposição social-democrata quanto por sua radicalização leninista, isto é, na temática fundamental do partido, por mais de um século.
De fato, o partido “social-democrata”, o partido da “classe operária” — ou o partido “proletário” — e depois ainda o partido “comunista”, é simultaneamente livre em relação ao Estado e ordenado para o exercício de poder. É um órgão puramente político constituído pelo suporte subjetivo — pela ruptura ideológica — e, como tal, exterior ao Estado. Com relação à dominação, é livre; carrega a temática da revolução ou da destruição do Estado burguês. Mas o partido é também o organizador de uma capacidade centralizada e disciplinada, inteiramente voltada para a tomada do poder estatal. Traz a temática de um novo Estado, o Estado da ditadura do proletariado.
Pode-se dizer, então, que o partido percebe a ambigüidade do relato marxista da Comuna, e lhe dá corpo. Torna-se o local político de uma tensão fundamental entre o caráter não estatal, até mesmo anti-estado, de uma política de emancipação, e o caráter estatista da vitória e duração dessa política. Além disso, este é o caso independentemente de a vitória ser insurrecional ou eleitoral: a mentalidade é a mesma.
É por isso que o partido vai engendrar (particularmente à partir de Joseph Stálin) a figura do partido-estado. O partido-estado é dotado de capacidades destinadas a resolver problemas que a Comuna deixou por resolver: a centralização da polícia e da defesa militar; a destruição completa das decisões econômicas burguesas anteriores; a mobilização e submissão dos camponeses à hegemonia operária; a criação de uma Internacional poderosa, etc. Não é à toa que, como diz a lenda, V. I. Lênin dançou na neve no dia em que o poder bolchevique alcançou e superou os setenta e dois dias em que todo o destino da Comuna de Paris chegou ao fim.
No entanto, embora possa ter fornecido uma solução para os problemas de estado, os quais Comuna não foi capaz de resolver, resta saber se, ao resolvê-los, o partido-estado não suprimiu uma série de problemas políticos que, para seu mérito, a Comuna tinha sido capaz de discernir.
O que surpreende, de toda maneira, é que, se pensada retroativamente através do partido-estado, a Comuna se reduz a dois parâmetros: primeiro, à sua determinação social (trabalhadores); segundo, a um exercício de poder heróico, porém, defeituoso.. Como resultado, a Comuna é esvaziada de todo conteúdo político propriamente dito. Certamente é comemorada, celebrada e reivindicada, mas apenas como um ponto claro para articulação da natureza social do poder estatal. Mas se isso é tudo de que consiste, então a Comuna é politicamente obsoleta. Pois é assim definida pelo que Sylvain Lazarus propôs chamar de modo político stalinista, para o qual o lugar único da política é o partido.
É por isso que sua comemoração também acontece para proibir sua reativação.
Neste ponto, há uma história interessante sobre Bertolt Brecht.
Após a guerra, Brecht retorna com prudência à Alemanha “socialista”, na qual as tropas soviéticas estabelecem a lei. Ele parte no ano de 1948, parando na Suíça para receber notícias do exterior sobre a situação. Durante sua estada, ele escreve, com a ajuda de Ruth Berlau, sua amante na época, uma peça histórica intitulada Os Dias da Comuna. Esta é uma obra solidamente documentada, em que figuras históricas são combinadas com heróis populares. É uma peça mais lírica e cômica do que épica; é uma boa peça, a meu ver, embora raramente apresentada.
Agora, ao chegar à Alemanha, Brecht sugere às autoridades encenar Os Dias da Comuna. Pois bem, no ano de 1949, as autoridades em questão declaram tal performance inoportuna! Como o socialismo está em processo de se estabelecer vitoriosamente na Alemanha Oriental, não haveria razão para retornar a um episódio difícil e antiquado de consciência proletária como a Comuna. Brecht, em suma, não havia escolhido um bom cartão de visitas. Ele não havia entendido que, uma vez que Stálin havia definido o “leninismo’’ — reduzido ao culto do partido — como “o marxismo da época das revoluções vitoriosas”, regredir às revoluções derrotadas era inútil.
Isso posto, qual é a interpretação de Brecht da Comuna? Para julgá-la, vamos ler as três últimas estrofes da canção intitulada “Resolução dos Communards”:
Considerando que não vamos persuadi-los
A pagar-nos um salário digno
Resolvemos que vamos lhes tirar as fábricas
Considerando que sua perda será nosso ganho
Considerando que não podemos depender de
Todas as promessas que nossos governantes fazem
Decidimos para nós que a vida boa começa com liberdade
Nosso futuro deve ser construído por nossa ordem
Considerando que o rugido dos canhões
São as únicas palavras que lhes falam
Provamos que aprendemos nossa lição
No futuro, voltaremos contra vocês nossas armas
Claramente, o quadro geral aqui permanece o da interpretação clássica. A Comuna é apresentada como uma combinação do social e do poder, da satisfação material e dos canhões.
A reativação chinesa
Durante a Revolução Cultural, e especialmente entre 1966 e 1972, a Comuna de Paris é relembrada e muitas vezes mencionada pelos maoístas chineses, como se, presos nas garras da rígida hierarquia do partido-estado, buscassem novas referências fora da revolução de 17 de outubro e do “leninismo” oficial. Assim, na Decisão de Dezesseis Pontos de agosto de 1966, qual é um texto provavelmente escrito, em sua maioria, pelo próprio Mao Zedong, uma recomendação é dada para que se busque inspiração na Comuna de Paris, particularmente no que diz respeito à eleição e destituição dos líderes das novas organizações emergindo dos movimentos de massa. Após a derrubada do município de Xangai por trabalhadores e estudantes revolucionários em janeiro de 1967, o novo órgão do poder adota Comuna de Xangai como seu nome, mirando o fato de que alguns dos maoístas estavam tentando se conectar politicamente às questões de poder e Estado de um modo diferente daquele que havia sido canonizado pela forma stalinista do partido.
No entanto, essas tentativas são precárias. Isto pode ser observado no fato de que, conforme o poder havia sido “apreendido”, e era imperativo instalar novos órgãos daquele poder provincial e municipal, o nome Comuna é rapidamente abandonado e substituído pelo título muito mais indistinto Comitê Revolucionário. Isso também pode ser testemunhado na comemoração do centenário da Comuna na China, em 1971.
Que essa comemoração envolveu mais do que apenas comemorar, que ainda continha os elementos de uma reativação, é evidente na magnitude das manifestações. Milhões de pessoas marcham por toda a China. Mas paulatinamente se fecha o parêntese revolucionário, o que se mostra evidente no texto oficial publicado para a ocasião, um texto que alguns de nós lemos na época, e que um número bem menor de nós conservou e pode reler (o que provavelmente se tornou muito difícil para os chineses). O texto em questão é: Viva a Vitória da Ditadura do Proletariado! Em Comemoração do Centenário da Comuna de Paris.
E é totalmente ambivalente.
Significativamente, contém, em sua epígrafe, uma fórmula escrita por Marx na época da própria Comuna: “Se a Comuna fosse destruída, a luta seria apenas adiada. Os princípios da Comuna são eternos e indestrutíveis; eles se apresentarão repetidamente até que a classe trabalhadora seja libertada.”
Essa escolha confirma que, mesmo em 1971, os chineses consideram que a Comuna não é simplesmente um episódio glorioso (mas obsoleto) da história das insurreições operárias, mas uma exposição histórica de princípios, que devem ser reativados. Ouçamos, também, uma declaração que ecoa a declaração de Marx, possivelmente de Mao: “Se a Revolução Cultural falhar, seus princípios permanecerão na ordem do dia.” O que indica, mais uma vez, que a Revolução Cultural estende um fio que está mais ligado à Comuna do que à Revolução de Outubro de 1917.
A relevância da Comuna também é evidenciada pelo conteúdo de sua celebração, na qual os comunistas chineses se opõem aos líderes soviéticos. Por exemplo:
Durante a Revolução Cultural, e especialmente entre 1966 e 1972, a Comuna de Paris é relembrada e muitas vezes mencionada pelos maoístas chineses, como se, presos nas garras da rígida hierarquia do partido-estado, buscassem novas referências fora da revolução de 17 de outubro e do “leninismo” oficial. Assim, na Decisão de Dezesseis Pontos de agosto de 1966, qual é um texto provavelmente escrito, em sua maioria, pelo próprio Mao Zedong, uma recomendação é dada para que se busque inspiração na Comuna de Paris, particularmente no que diz respeito à eleição e destituição dos líderes das novas organizações emergindo dos movimentos de massa. Após a derrubada do município de Xangai por trabalhadores e estudantes revolucionários em janeiro de 1967, o novo órgão do poder adota Comuna de Xangai como seu nome, mirando o fato de que alguns dos maoístas estavam tentando se conectar politicamente às questões de poder e Estado de um modo diferente daquele que havia sido canonizado pela forma stalinista do partido.
No entanto, essas tentativas são precárias. Isto pode ser observado no fato de que, conforme o poder havia sido “apreendido”, e era imperativo instalar novos órgãos daquele poder provincial e municipal, o nome Comuna é rapidamente abandonado e substituído pelo título muito mais indistinto Comitê Revolucionário. Isso também pode ser testemunhado na comemoração do centenário da Comuna na China, em 1971.
Que essa comemoração envolveu mais do que apenas comemorar, que ainda continha os elementos de uma reativação, é evidente na magnitude das manifestações. Milhões de pessoas marcham por toda a China. Mas paulatinamente se fecha o parêntese revolucionário, o que se mostra evidente no texto oficial publicado para a ocasião, um texto que alguns de nós lemos na época, e que um número bem menor de nós conservou e pode reler (o que provavelmente se tornou muito difícil para os chineses). O texto em questão é: Viva a Vitória da Ditadura do Proletariado! Em Comemoração do Centenário da Comuna de Paris.
E é totalmente ambivalente.
Significativamente, contém, em sua epígrafe, uma fórmula escrita por Marx na época da própria Comuna: “Se a Comuna fosse destruída, a luta seria apenas adiada. Os princípios da Comuna são eternos e indestrutíveis; eles se apresentarão repetidamente até que a classe trabalhadora seja libertada.”
Essa escolha confirma que, mesmo em 1971, os chineses consideram que a Comuna não é simplesmente um episódio glorioso (mas obsoleto) da história das insurreições operárias, mas uma exposição histórica de princípios, que devem ser reativados. Ouçamos, também, uma declaração que ecoa a declaração de Marx, possivelmente de Mao: “Se a Revolução Cultural falhar, seus princípios permanecerão na ordem do dia.” O que indica, mais uma vez, que a Revolução Cultural estende um fio que está mais ligado à Comuna do que à Revolução de Outubro de 1917.
A relevância da Comuna também é evidenciada pelo conteúdo de sua celebração, na qual os comunistas chineses se opõem aos líderes soviéticos. Por exemplo:
No momento em que o proletariado e o povo revolucionário do mundo marcam o grande centenário da Comuna de Paris, a camarilha renegada revisionista soviética está agindo, falando levianamente sobre “lealdade aos princípios da comuna”, se posicionando como a sucessora da Comuna de Paris. Sem nenhum sentimento de vergonha. Que direitos têm os renegados revisionistas soviéticos de falar sobre a Comuna de Paris?
É no quadro dessa oposição ideológica entre o marxismo revolucionário criativo e o estatismo retrógrado que o texto situa tanto a contribuição de Mao quanto, singularmente, a própria Revolução Cultural, em continuidade com a Comuna:
As salvas da Grande Revolução Cultural Proletária iniciada e liderada pelo próprio Presidente Mao destruíram a sede burguesa chefiada pelo traidor e covarde renegado Liu Shao-chi, e explodiram o sonho dos imperialistas e revisionistas modernos de restaurar o capitalismo na China.
O Presidente Mao resumiu de forma abrangente os aspectos positivos e negativos da experiência histórica da ditadura do proletariado, herdou, defendeu e desenvolveu a teoria marxista-leninista da revolução proletária e da ditadura do proletariado e resolveu, na teoria e na prática, a questão mais importante do nosso tempo: a questão de consolidar a ditadura do proletariado e prevenir a restauração do capitalismo.
A fórmula capital é “consolidar a ditadura do proletariado”. Invocar a Comuna de Paris aqui é entender que a ditadura do proletariado não pode ser uma simples fórmula estatista, e que prosseguir na marcha em direção ao comunismo requer o recurso a uma mobilização revolucionária das massas. Em outras palavras, assim como os trabalhadores parisienses de 18 de março de 1871 fizeram pela primeira vez na história, considerou-se necessário inventar dentro de uma experiência revolucionária contínua — sempre uma decisão um tanto precária e imprevisível — novas formas de um Estado proletário. Além disso, no início da peça, os maoístas já haviam declarado que a Revolução Cultural era “a forma finalmente descoberta de ditadura do proletariado”.
No entanto, a concepção geral que articula política e Estado permanece inalterada. A tentativa de reativação revolucionária da Comuna de Paris permanece inscrita no relato anterior e, em particular, ainda é dominada pela figura tutelar do partido. Isso é claramente mostrado na passagem sobre as deficiências da Comuna:
No entanto, a concepção geral que articula política e Estado permanece inalterada. A tentativa de reativação revolucionária da Comuna de Paris permanece inscrita no relato anterior e, em particular, ainda é dominada pela figura tutelar do partido. Isso é claramente mostrado na passagem sobre as deficiências da Comuna:
A causa fundamental do fracasso da Comuna de Paris foi que, devido às condições históricas, o marxismo ainda não havia alcançado uma posição dominante no movimento dos trabalhadores, e um partido revolucionário proletário com o marxismo como seu pensamento condutor ainda não havia surgido. ... A experiência histórica mostra que, onde existe uma situação revolucionária muito favorável e entusiasmo revolucionário por parte das massas, ainda é necessário ter um núcleo forte de liderança do proletariado, ou seja, “um partido revolucionário... construído sobre a teoria revolucionária marxista-leninista e no estilo revolucionário marxista-leninista.”
Embora a citação final sobre o partido seja de Mao, poderia facilmente ter sido de Stálin. É por isso que, apesar de seu ativismo e militância, a visão maoísta da Comuna, em última análise, permaneceu presa à estrutura do partido-estado e, portanto, do que chamei de “primeiro relato”.
No final deste esboço da interpretação clássica, e daquela que a faz exceção, podemos dizer que, hoje, a visibilidade política da Comuna de Paris não é de todo evidente. Ou seja, se o que queremos dizer com “hoje” é o momento em que devemos aceitar o desafio de pensar a política fora de sua sujeição ao Estado e fora do quadro de partidos ou partido.
E, no entanto, a Comuna foi uma sequência política que, precisamente, não se situou em tal sujeição ou em tal quadro.
O método consistirá, portanto, em deixar de lado a interpretação clássica e abordar os fatos e as determinações políticas da Comuna com um método completamente diferente.
No final deste esboço da interpretação clássica, e daquela que a faz exceção, podemos dizer que, hoje, a visibilidade política da Comuna de Paris não é de todo evidente. Ou seja, se o que queremos dizer com “hoje” é o momento em que devemos aceitar o desafio de pensar a política fora de sua sujeição ao Estado e fora do quadro de partidos ou partido.
E, no entanto, a Comuna foi uma sequência política que, precisamente, não se situou em tal sujeição ou em tal quadro.
O método consistirá, portanto, em deixar de lado a interpretação clássica e abordar os fatos e as determinações políticas da Comuna com um método completamente diferente.
O que é a “Esquerda”?
Para começar, observemos que, antes da Comuna, havia uma série de movimentos populares e operários mais ou menos armados na França, em dialética com a questão do poder do Estado. Podemos passar pelos terríveis dias de junho de 1848, quando se pensa que a questão do poder não havia sido apresentada: os trabalhadores, acuados e expulsos de Paris após o encerramento das oficinas nacionais, combateram em silêncio, sem liderança, sem perspectiva. Desespero, fúria, massacres. Mas houve as Trois Glorieuses de julho de 1830 e a queda de Carlos V; houve fevereiro de 1848 e a queda de Luís Filipe; e, por último, houve 4 de setembro de 1870, e a queda de Napoleão III. No espaço de quarenta anos, jovens republicanos e trabalhadores armados provocaram a queda de duas monarquias e de um império. É exatamente por isso que, considerando a França como a “terra clássica da luta de classes”, Marx escreveu aquelas obras-primas As Lutas de Classes na França, O 18 de Brumário de Luís Napoleão Bonaparte e A Guerra Civil na França.
No que diz respeito a 1830, 1848 e 1870, devemos notar que eles compartilham um traço fundamental, que é tanto mais fundamental quanto ainda hoje é relevante. O movimento político de massa é amplamente proletário. Mas há uma aceitação geral de que o resultado final do movimento envolverá a chegada ao poder de camarilhas de políticos republicanos ou orleanistas. A lacuna entre política e Estado é tangível aqui: a projeção parlamentar do movimento político atesta, com efeito, uma incapacidade política quanto ao Estado. Mas é também perceptível que esta incapacidade é vivida a médio prazo [vécu] como uma falha do próprio movimento e não como o preço de um vão estrutural entre o Estado e a invenção política. No fundo, prevalece a tese, subjetivamente, dentro do movimento proletário, de que há ou deveria haver uma continuidade entre um movimento político de massa e seus resultados estatistas. Daí o tema recorrente da “traição” (ou seja, os políticos no poder traem o movimento político. Mas eles tiveram alguma outra intenção, na verdade, alguma outra função?). E sempre essa temática incorrigível da traição leva à liquidação do movimento político, muitas vezes por longos períodos.
Isso é do maior interesse. Lembremos de que o movimento popular de maio de 1968 e sua sequência “esquerdista” se desgastaram pelo apoio a François Mitterrand já bem antes de 1981. Ainda mais longe, a novidade radical e a expectativa política dos movimentos de resistência entre 1940 e 1945 vieram pouco depois da libertação, quando os velhos partidos foram devolvidos ao poder sob o disfarce de Charles de Gaulle.
Hoje, o “movimentismo” ambiental — desde a mobilização dos sindicatos contra a reforma previdenciária, o movimento nuit debout contra a reforma do direito do trabalho, os Coletes Amarelos — só dá origem aos François Hollandes, Emmanuel Macrons ou Jean-Luc Mélenchons de nosso tempo. Todas essas criaturas continuam o trabalho dos sabotadores da Comuna, e ainda celebrados fundadores da República, os Jules Favres, os Jules Simons, os Jules Ferrys (aqueles a quem Henri Guillemin chama de “a república dos Jules”), com os Adolphe Thiers e Ernest Picards esperando nos bastidores. E hoje ainda são chamados a “reconstruir a esquerda”. Que farsa!
É verdade que a memória da Comuna também atesta as constantes táticas de ajuste que os vigaristas parlamentares empreendem em relação às erupções da política de massa: O Mur des fédérés, minguado símbolo dos operários martirizados, não fica ao lado da grande avenida Léon Gambetta, aquele parlamentar combatente e fundador, junto com “os Jules”, da Terceira República?
Mas a tudo isso a Comuna é uma exceção. Pois a Comuna é aquilo que rompeu, pela primeira vez, e até hoje na França, pela única vez, com o destino parlamentar e “democrático” dos movimentos políticos populares e operários.
Na noite da resistência nos bairros operários, em 18 de março de 1871, quando as tropas se retiraram sem poder levar os canhões, poderia ter havido um apelo pelo restabelecimento da ordem, para que se negociasse com o governo e para fazer com que um novo grupo de oportunistas fosse tirado da manga da história. Desta vez, não haveria nada disso.
Tudo se concentra na declaração do Comitê Central da Guarda Nacional, amplamente difundida no dia 19 de março: “Os proletários de Paris, em meio aos fracassos e traições das classes dominantes, compreenderam que chegou a hora de salvar a situação, tomando em suas próprias mãos a direção dos assuntos públicos.”
Desta vez, desta vez ímpar, o destino não foi devolvido às mãos de políticos competentes. Desta vez, desta única vez, a traição foi invocada como um estado de coisas a evitar e não como o simples resultado de uma escolha infeliz.
Desta vez, desta vez única, a proposta era lidar com a situação unicamente com base nos recursos do movimento proletário.
Aqui está uma verdadeira declaração política. A tarefa é pensar seu conteúdo.
Mas, primeiramente, é essencial uma definição estrutural: Chamemos de “esquerda” o conjunto de políticos parlamentares que se proclamam os únicos aptos a arcar com as consequências gerais de um movimento político singular. Ou, em termos mais contemporâneos, que eles são os únicos capazes de fornecer aos “movimentos sociais” uma “perspectiva política”.
Assim, podemos descrever a declaração de 19 de março de 1871, justamente como uma declaração de ruptura com a esquerda.
Isso é obviamente aquilo pelo que os Communards tiveram que pagar com seu próprio sangue. Porque, desde pelo menos 1830, a “esquerda” tem sido o único recurso na ordem estabelecida durante movimentos de grande magnitude. Mais uma vez, em maio de 1968, como Georges Pompidou logo percebeu, apenas o Partido Comunista Francês foi capaz de restabelecer a ordem nas fábricas. A Comuna é o único exemplo de ruptura com a esquerda em tal escala. Isso, de passagem, é o que lança luz sobre a virtude excepcional, sobre a contribuição paradigmática — muito maior do que 17 de outubro — que ela teve para os revolucionários chineses entre 1965 e 1968, e para os maoístas franceses entre 1966 e 1976: períodos em que a tarefa era precisamente romper com toda sujeição a esse emblema fundamental, a “esquerda”, um emblema no qual — quer estivessem no poder ou na oposição (mas, de forma profunda, um “grande” partido comunista está sempre no poder) — os partidos comunistas tinha se transformado.
É verdade que, depois de esmagada, a “memória” da esquerda absorveu a Comuna. A mediação dessa incorporação paradoxal assumiu a forma de um combate parlamentar pela anistia para os Comunardos exilados ou ainda presos. Por meio desse combate, a esquerda esperava uma consolidação sem riscos de seu poder eleitoral. Depois veio a época — sobre a qual eu disse algumas palavras — das comemorações.
Hoje, a visibilidade política da Comuna deve ser restaurada por um processo de desincorporação: nascida da ruptura com a esquerda, deve-se extraí-la da hermenêutica de esquerda, que a oprimiu por tanto tempo. Com isso, aproveitemos o fato de que a esquerda, cuja baixeza é constitutiva, caiu tanto que não é mais necessária para manter o que chamo de ordem capital-parlamentar. A fidelidade à Comuna de Paris não é uma questão de lembrança, mas de um novo pensamento e futura invenção política.
Para começar, observemos que, antes da Comuna, havia uma série de movimentos populares e operários mais ou menos armados na França, em dialética com a questão do poder do Estado. Podemos passar pelos terríveis dias de junho de 1848, quando se pensa que a questão do poder não havia sido apresentada: os trabalhadores, acuados e expulsos de Paris após o encerramento das oficinas nacionais, combateram em silêncio, sem liderança, sem perspectiva. Desespero, fúria, massacres. Mas houve as Trois Glorieuses de julho de 1830 e a queda de Carlos V; houve fevereiro de 1848 e a queda de Luís Filipe; e, por último, houve 4 de setembro de 1870, e a queda de Napoleão III. No espaço de quarenta anos, jovens republicanos e trabalhadores armados provocaram a queda de duas monarquias e de um império. É exatamente por isso que, considerando a França como a “terra clássica da luta de classes”, Marx escreveu aquelas obras-primas As Lutas de Classes na França, O 18 de Brumário de Luís Napoleão Bonaparte e A Guerra Civil na França.
No que diz respeito a 1830, 1848 e 1870, devemos notar que eles compartilham um traço fundamental, que é tanto mais fundamental quanto ainda hoje é relevante. O movimento político de massa é amplamente proletário. Mas há uma aceitação geral de que o resultado final do movimento envolverá a chegada ao poder de camarilhas de políticos republicanos ou orleanistas. A lacuna entre política e Estado é tangível aqui: a projeção parlamentar do movimento político atesta, com efeito, uma incapacidade política quanto ao Estado. Mas é também perceptível que esta incapacidade é vivida a médio prazo [vécu] como uma falha do próprio movimento e não como o preço de um vão estrutural entre o Estado e a invenção política. No fundo, prevalece a tese, subjetivamente, dentro do movimento proletário, de que há ou deveria haver uma continuidade entre um movimento político de massa e seus resultados estatistas. Daí o tema recorrente da “traição” (ou seja, os políticos no poder traem o movimento político. Mas eles tiveram alguma outra intenção, na verdade, alguma outra função?). E sempre essa temática incorrigível da traição leva à liquidação do movimento político, muitas vezes por longos períodos.
Isso é do maior interesse. Lembremos de que o movimento popular de maio de 1968 e sua sequência “esquerdista” se desgastaram pelo apoio a François Mitterrand já bem antes de 1981. Ainda mais longe, a novidade radical e a expectativa política dos movimentos de resistência entre 1940 e 1945 vieram pouco depois da libertação, quando os velhos partidos foram devolvidos ao poder sob o disfarce de Charles de Gaulle.
Hoje, o “movimentismo” ambiental — desde a mobilização dos sindicatos contra a reforma previdenciária, o movimento nuit debout contra a reforma do direito do trabalho, os Coletes Amarelos — só dá origem aos François Hollandes, Emmanuel Macrons ou Jean-Luc Mélenchons de nosso tempo. Todas essas criaturas continuam o trabalho dos sabotadores da Comuna, e ainda celebrados fundadores da República, os Jules Favres, os Jules Simons, os Jules Ferrys (aqueles a quem Henri Guillemin chama de “a república dos Jules”), com os Adolphe Thiers e Ernest Picards esperando nos bastidores. E hoje ainda são chamados a “reconstruir a esquerda”. Que farsa!
É verdade que a memória da Comuna também atesta as constantes táticas de ajuste que os vigaristas parlamentares empreendem em relação às erupções da política de massa: O Mur des fédérés, minguado símbolo dos operários martirizados, não fica ao lado da grande avenida Léon Gambetta, aquele parlamentar combatente e fundador, junto com “os Jules”, da Terceira República?
Mas a tudo isso a Comuna é uma exceção. Pois a Comuna é aquilo que rompeu, pela primeira vez, e até hoje na França, pela única vez, com o destino parlamentar e “democrático” dos movimentos políticos populares e operários.
Na noite da resistência nos bairros operários, em 18 de março de 1871, quando as tropas se retiraram sem poder levar os canhões, poderia ter havido um apelo pelo restabelecimento da ordem, para que se negociasse com o governo e para fazer com que um novo grupo de oportunistas fosse tirado da manga da história. Desta vez, não haveria nada disso.
Tudo se concentra na declaração do Comitê Central da Guarda Nacional, amplamente difundida no dia 19 de março: “Os proletários de Paris, em meio aos fracassos e traições das classes dominantes, compreenderam que chegou a hora de salvar a situação, tomando em suas próprias mãos a direção dos assuntos públicos.”
Desta vez, desta vez ímpar, o destino não foi devolvido às mãos de políticos competentes. Desta vez, desta única vez, a traição foi invocada como um estado de coisas a evitar e não como o simples resultado de uma escolha infeliz.
Desta vez, desta vez única, a proposta era lidar com a situação unicamente com base nos recursos do movimento proletário.
Aqui está uma verdadeira declaração política. A tarefa é pensar seu conteúdo.
Mas, primeiramente, é essencial uma definição estrutural: Chamemos de “esquerda” o conjunto de políticos parlamentares que se proclamam os únicos aptos a arcar com as consequências gerais de um movimento político singular. Ou, em termos mais contemporâneos, que eles são os únicos capazes de fornecer aos “movimentos sociais” uma “perspectiva política”.
Assim, podemos descrever a declaração de 19 de março de 1871, justamente como uma declaração de ruptura com a esquerda.
Isso é obviamente aquilo pelo que os Communards tiveram que pagar com seu próprio sangue. Porque, desde pelo menos 1830, a “esquerda” tem sido o único recurso na ordem estabelecida durante movimentos de grande magnitude. Mais uma vez, em maio de 1968, como Georges Pompidou logo percebeu, apenas o Partido Comunista Francês foi capaz de restabelecer a ordem nas fábricas. A Comuna é o único exemplo de ruptura com a esquerda em tal escala. Isso, de passagem, é o que lança luz sobre a virtude excepcional, sobre a contribuição paradigmática — muito maior do que 17 de outubro — que ela teve para os revolucionários chineses entre 1965 e 1968, e para os maoístas franceses entre 1966 e 1976: períodos em que a tarefa era precisamente romper com toda sujeição a esse emblema fundamental, a “esquerda”, um emblema no qual — quer estivessem no poder ou na oposição (mas, de forma profunda, um “grande” partido comunista está sempre no poder) — os partidos comunistas tinha se transformado.
É verdade que, depois de esmagada, a “memória” da esquerda absorveu a Comuna. A mediação dessa incorporação paradoxal assumiu a forma de um combate parlamentar pela anistia para os Comunardos exilados ou ainda presos. Por meio desse combate, a esquerda esperava uma consolidação sem riscos de seu poder eleitoral. Depois veio a época — sobre a qual eu disse algumas palavras — das comemorações.
Hoje, a visibilidade política da Comuna deve ser restaurada por um processo de desincorporação: nascida da ruptura com a esquerda, deve-se extraí-la da hermenêutica de esquerda, que a oprimiu por tanto tempo. Com isso, aproveitemos o fato de que a esquerda, cuja baixeza é constitutiva, caiu tanto que não é mais necessária para manter o que chamo de ordem capital-parlamentar. A fidelidade à Comuna de Paris não é uma questão de lembrança, mas de um novo pensamento e futura invenção política.
Sobre o autor
Alain Badiou is a French philosopher, formerly chair of philosophy at the École normale supérieure and founder of the faculty of philosophy of the Université de Paris VIII. He is the author of numerous books and essays.
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