Eoghan Gilmartin e Tommy Greene
Jacobin
Um dos líderes de esquerda mais talentosos de sua geração, Pablo Iglesias liderou o Podemos em sua campanha eleitoral histórica de 2015. (Pablo Blazquez Dominguez / Getty Images) |
Tradução / “Quando o seu papel dentro de sua organização e sua tarefa para melhorar a democracia neste país se tornam muito limitados e mobilizam os piores elementos daqueles que te odeiam, certas decisões devem ser tomadas sem hesitação.” Estas foram as palavras do co-fundador do Podemos, Pablo Iglesias, ao anunciar sua decisão chocante de recuar não apenas da organização que ele havia liderado 7 anos, mas de linha de frente política como um todo.
No início de março, ele surpreendeu os círculos políticos espanhóis ao anunciar que estava deixando o cargo de vice-primeiro-ministro do país, apenas 14 meses após a coligação Unidas Podemos entrar em coalizão com o Partido Socialista de centro-esquerda (PSOE). Em um vídeo bombástico divulgado nas redes sociais, ele explicou que estava fazendo isso para liderar a força regional de seu partido nas eleições antecipadas de Madrid realizadas 4 de maio – com a esperança de que sua presença na campanha revertesse a sorte do Unidas nas urnas.
No entanto, quando os votos finais foram contados, já era óbvio que a candidatura de Iglesias tinha se exaurido após vários ciclos eleitorais, entre outros fatores. “Esses resultados deixam claro que no momento não sou uma figura que possa ajudar o partido a obter ganhos significativos e contribuir para que ele consolide seu peso institucional”, afirmou. A campanha do Unidas Podemos melhorou ligeiramente a posição da coligação em relação ao resultado de 2019 – garantindo pouco mais de 7% dos votos e dez cadeiras no parlamento – enquanto o PSOE sofreu seu pior resultado na capital em benefício, ao que parecia, do conjunto do partido Más Madrid durante uma divisão do Podemos em 2019.z
A direita estava altamente mobilizada, com a candidata trumpista do Partido Popular (PP), Isabel Díaz Ayuso, que quase conseguiu maior absoluta – o que agora lhe permitirá governar sozinha com o apoio externo de Vox.
Com o dramático anúncio de Iglesias ocorrendo poucos dias antes do décimo aniversário do movimento 15-M, sua renúncia também marca o fim de um capítulo na política espanhola e europeia. Um dos mais talentosos líderes de esquerda de sua geração, incomparável em suas habilidades comunicativas, ele liderou o Podemos em sua campanha eleitoral histórica de 2015, na qual o partido chegou perto de ultrapassar o PSOE. Mas, como ocorreu com as “esquerdas populistas” construídas em outros lugares na última década, o projeto não conseguiu manter seu ímpeto inicial após o declínio gradual das ondas de protestos anti-austeridade que se espalharam pelo país após a crise financeira.
Estreitando os horizontes
O terreno político que, rapidamente foi tão hospitaleiro para um então insurgente Podemos, parecia cada vez mais distante durante esta campanha em Madri. O clima tem sido dominado por uma série de provocações de extrema direita, vindas não apenas do extremista Vox, mas também do crescente movimento neofascista de rua na Espanha.
Poucas horas depois de deixar o cargo de vice-primeiro-ministro, Iglesias se viu olhando para um grupo de cinco skinheads neonazistas em um confronto dramático fora de um evento Podemos. Isso foi seguido, uma semana depois, por um ataque com bomba incendiária na sede do Podemos, na região sul de Murcia – enquanto, na reta final da campanha, Iglesias recebeu ameaças de morte e balas com a marca do exército. Após anos de constantes ataques da mídia, numerosas investigações policiais com motivação política, bem como prolongadas lutas internas entre facções políticas, esse foi preço claramente cobrado sobre a segurança e o bem-estar de Iglesias e de sua família.
No entanto, Iglesias também foi a força motriz por trás da aposta estratégica para entrar no cargo como parceiro júnior do PSOE, um partido que é ostensivamente social-democrata, mas profundamente enraizado nos circuitos do regime neoliberal espanhol. O resultado desastroso da esquerda em Madrid em grande parte reflete um sentimento crescente de frustração com o governo PSOE-Unidas Podemos, com os partidos da coalizão apenas sendo capazes de apontar para um conjunto bastante limitado de avanços até este ponto.
Na sequência de duas eleições gerais em 2019, e da crescente exaustão para formar governo, a perspectiva de entrar na coalizão foi vista pelo Unidas Podemos como uma aliança de esquerda focada na renovação após um período de facciosismo vicioso, bem como uma forma de evitar o tipo de implosão que o projeto Corbyn sofreu na Grã-Bretanha. Apesar de ter de aceitar a retirada de muitas de suas pautas mais transformadoras do programa de governo, a aposta da coalizão era que, ao entrar no cargo, poderia garantir uma série de concessões substantivas à sua agenda legislativa, especialmente em torno da moradia, direitos trabalhistas e gastos sociais.
Com a pandemia da COVID-19 atingindo a Espanha apenas seis semanas após o início do mandato da coalizão, no entanto, os ministros rapidamente se depararam com uma série de limites para governar, o que marcou os parâmetros para os primeiros 15 meses. Alguns deles foram estruturais. O Estado cada vez mais fraco na Espanha, que viu suas capacidades e recursos erodidos durante a década anterior de violentos cortes e terceirizações, não era adequado para responder a uma emergência social e sanitária. Como um Estado da zona do euro dependente de financiamento da UE, a Espanha teve uma autonomia limitada para desenvolver seu plano de recuperação econômica, tendo que aceitar um quadro semelhante em toda a UE fortemente voltado para iniciativas público-privadas.
Outro fator que restringe os elementos mais progressistas da coalizão é como o próprio PSOE passou a agir, barrando a implementação das políticas acordadas no programa de governo. Ao longo do ano passado, ministérios estratégicos administrados pelo PSOE repetidamente bloquearam e atrasaram as prioridades legislativas de seu aliado júnior – devido a rivalidades pessoais e políticas, mas de forma mais geral porque muitas dessas medidas iriam colidir com os interesses do setor corporativo e dos aparato de segurança do Estado. Repetidamente, o progressismo de Pedro Sánchez parou antes de implementar medidas que exigiriam impor perdas às elites econômicas ou desafiar as relações de poder existentes.
Um acúmulo de tensões
Nos últimos meses de Iglesias no governo, as tensões entre os parceiros da coalizão haviam chegado ao ponto de quase ruptura com uma série de conflitos sobre controles de aluguel, reforma trabalhista e previdenciária, legislação de direitos trans e a revogação da lei da mordaça do PP. A “deslealdade” do PSOE com o acordo de coalizão se tornou uma crítica comum dentro da coligação Unidas Podemos, enquanto a ministra da Igualdade, Irene Montero, afirmou no início de março que o atrito no governo só se dissiparia “se o PSOE cumprir seus compromissos com o programa de governo”.
Provavelmente, o exemplo mais claro dessa deslealdade é com relação à proposta de nova lei de habitação da coalizão. Com muitas das principais figuras do Podemos vindo do movimento anti-despejo PAH e com o eleitorado do partido fortemente sufocado com “aumento abusivo dos alugueis“, Iglesias escolheu alavancar uma parte importante de seu capital político para introduzir controles de aluguel e um imposto sobre unidades habitacionais vazias (ambas incluídas no programa do governo). Desde o final do verão passado, ele pressionou fortemente para que a lei habitacional fosse finalizada como parte das negociações orçamentárias, insistindo em mecanismos legais para reduzir os preços em zonas de alta demanda e limitar novos aumentos por meio de um índice de preços de aluguel.
Mas com o PSOE fazendo corpo mole até concordar com a proibição de despejo durante a pandemia (algo que só foi finalizado em dezembro), Iglesias teve que se contentar com um compromisso assinado por Sánchez para apresentar a lei de controle de aluguel ao governo até fevereiro deste ano. No entanto, para garantir esse compromisso por escrito, Iglesias ameaçou bloquear o orçamento na noite anterior ao seu anúncio no final de novembro. Como nos disse o porta-voz econômico da Izquierda Unida, Carlos Sánchez Mato: “O PSOE não deseja confrontar aqueles que possuem milhares de unidades habitacionais, como os fundos abutres, ou mesmo a classe de locatários menor que vive da renda gerada por dez ou quinze apartamentos.”
No início de fevereiro, o maior proprietário de terras da Espanha, Blackstone, ameaçou sair do país enquanto entidades financeiras faziam lobby nos bastidores contra a lei. À medida que o prazo para o projeto de lei se aproximava, o ministro dos Transportes e Habitação, José Luis Ábalos, sinalizou que o PSOE não poderia mais aceitar a “imposição” de limites ao capital imobiliário, insistindo que seria mais eficaz garantir reduções de aluguel oferecendo “incentivos fiscais” (ou seja, incentivos fiscais aos proprietários). “A moradia é um direito, mas também uma mercadoria”, afirmou ele como um meio de explicar a cínica reviravolta de seu partido.
Iglesias rebateu: “O compromisso está no papel. Pedro Sánchez não pode se dar ao luxo de mentir para seus eleitores”. Mesmo assim, com o ex-líder do Podemos deixando o cargo sem um acordo, um projeto de lei de habitação foi adiado até outubro do ano que vem. Fontes importantes dentro da coligação Unidas Podemos insistiram que o partido entrará em colapso com o governo se a legislação não for aprovada. Mesmo assim, a coligação foi forçada a lutar na campanha eleitoral de Madri sem ter garantido uma de suas reformas essenciais.
Isso não foi um caso isolado. Um imposto sobre a riqueza para lidar com a COVID-19 também foi outra proposta ousada de Iglesias. Mas, junto com outras grandes reformas tributárias progressivas, as negociações foram adiadas até o orçamento do próximo ano – com a ortodoxa chefe econômica do governo, Nadia Calviño, já indicando que ela se oporia a qualquer aumento significativo de imposto. Como observa Carlos Sánchez Mato, a suspensão das regras orçamentárias da UE até 2022 “deu fôlego para a coalizão respirar”, mas se “a Espanha quiser evitar uma nova rodada de austeridade em 2023, terá de usar esse tempo para aumentar sua base tributária, com medidas como um imposto sobre riqueza significativo e tributação das empresas”.
Da mesma forma, a revogação da lei da mordaça do PP e outros crimes de censura deveriam ser reformas expressas concluídas nos primeiros meses de mandato da coalizão. Mas o ministro do Interior, Fernando Grande-Marlaska, não ofereceu um cronograma para a remoção dessas leis, apesar de mais de uma semana de protestos em massa contra a prisão do rapper Pablo Hasél em fevereiro. “Ativamente ou por passividade, o PSOE jogou bem suas cartas – não apenas evitando os aspectos mais progressistas do programa acordado, mas também atrasando reformas e diluindo seu conteúdo”, observa o ex-Podemos Manolo Monereo.
Conquistas qualificadas
Neste contexto, as realizações políticas da coligação Unidas Podemos centrou-se mais em garantir o aumento dos compromissos de gastos sociais. Segundo o acordo de orçamento nacional de 2021, as despesas direcionadas ao fortalecimento de áreas estratégicas dos serviços públicos esvaziados na Espanha foram enquadradas por Iglesias como uma ruptura com o programa de austeridade da década anterior: € 5 bilhões em financiamento adicional foram reservados para o sistema nacional de saúde da Espanha – indiscutivelmente a parte mais afetada do setor público espanhol, após anos de terceirização e má gestão, além das pressões da pandemia.
Mais de € 1 bilhão deve ir para o setor de assistência social sob o acordo orçamentário, ajudando a reconstruí-lo em locais que cuida de menores, e outro € 1 bilhão a ser injetado na rede de centros de cuidados primários. Em outros lugares, os fundos foram alocados para o programa de desenvolvimento da pré-escola universal gratuita, enquanto um aumento de 44% nos fundos de bolsas de estudo de universidades públicas é projetado para fornecer apoio a alunos de baixa renda.
Indiscutivelmente, a conquista mais clara para mostrar durante seu tempo no cargo foi a gestão da nova vice-primeira-ministra Yolanda Díaz no ERTE (mecanismo que garante parte do salário a trabalhadores afastados), juntamente com seus esforços para uma mitigação mais ampla na perda de empregos. O ministro do Trabalho – e indiscutivelmente o destacado executor ministerial da Unidas Podemos em 2020 – recebeu elogios por garantir um número considerável de empregos ameaçados por meio de conversas sindicatos e empregadores.
Soma-se a isso a nova legislação impulsionada por Díaz que reconhece os entregadores de alimentos como funcionários das plataformas digitais e aplicativo para as quais trabalham (em oposição ao seu status até então autônomo), após uma decisão da Suprema Corte em setembro. A legislação obriga essas plataformas a compartilhar os algoritmos que usam com os sindicatos, para que os funcionários e seus representantes tenham uma noção clara de como eles afetam as condições de trabalho. Díaz também negociou o aumento inicial do salário mínimo em janeiro de 2020, que o viu subir de € 900 para € 950, e tem sido a principal proponente do governo para um novo aumento este ano, enquanto tenta fazer com que os socialistas cumpram a promessa da coalizão de aumentar o salário mínimo líquido para 60% do salarial médio mensal (€ 1.200) no final do seu mandato de quatro anos.
No entanto, a entrega de um dos principais ganhos da Unidas Podemos até o momento também mostrou algumas limitações com os compromissos de gastos combinados na coalizão. O esquema de renda mínima garantida da Espanha, que Iglesias vendeu ao público como a principal política dos primeiros 6 meses de seu partido no cargo, foi até agora minado pela má administração, em parte causada pela falta de capacidade e vontade dos burocratas do Estado – apesar dos esforços recentes para ampliar os critérios de acesso e fortalecer a rede de segurança social.
Liderado como uma política por Iglesias, mas administrado por um ministério controlado pelo PSOE, o programa inscreveu apenas uma fração dos pedidos até o momento – com uma série de grupos de beneficiários, incluindo grupos de migrantes, aqueles sem contas bancárias e locais de residência fixa, e aqueles menores de 23 anos, sendo excluídos. Tendo inicialmente estimado o número de prováveis beneficiários em 850.000 famílias, 10 meses após sua introdução, apenas 210.000 famílias conseguiram acessar o pagamento, criando uma enorme frustração entre centenas de milhares de requerentes de baixa renda que ficaram de fora.
Em um sentido mais amplo, também, os níveis de gastos atuais estão longe do que poderia ser considerado adequado para começar a enfrentar a o agravamento da crise social na Espanha. O desemprego juvenil é de 40%, enquanto um relatório recente da Oxfam estima que aqueles que vivem na pobreza aumentaram de 20,7% da população antes da pandemia para 23% (ou 10,9 milhões de pessoas) no final de 2020. Com uma estimativa de 7 euros perdidos pelos 10% mais pobres da população para cada 1 euro que os 10% mais ricos perdem no novo clima econômico, fica claro que, mesmo que os níveis de gastos fossem consideravelmente mais altos, isso por si só não seria uma solução abrangente para a crise espanhola – por causa de problemas estruturais historicamente enraizados.
Mudando a dinâmica
A eleição de Madrid deve servir de alerta para os partidos da coligação. Após 3 anos como primeiro-ministro, Pedro Sánchez tem muito pouco a mostrar em termos de legislação progressista e avanços políticos e enfrenta uma base desmoralizada (seu partido perdeu 300 mil votos nesta última eleição). Para Unidas Podemos, a saída rápida de Iglesias acelerou uma transição de liderança já planejada, com Díaz sendo agora o provável candidato para liderar o partido na próxima eleição nacional. Advogada trabalhista e membro do Partido Comunista, ela estava longe de ser uma figura conhecida nacionalmente antes de assumir o Ministério do Trabalho. No ano passado, no entanto, ela foi considerada uma das ministras mais populares do governo – mesmo entre os eleitores do PSOE.
Nesse sentido, um ganho político-partidário dos 15 meses de mandato da formação foi facilitar essa renovação de sua liderança, permitindo que personalidades como Díaz e a nova ministra dos Assuntos Sociais, Ione Belarra, construíssem perfis políticos nacionais. No entanto, a preocupação daqui para frente é a possível ameaça que o novo partido Más País, criado pelo ex-deputado do Podemos, Íñigo Errejón, poderia representar em nível nacional após seu sucesso na capital. Resta ver que tipo de cooperação é possível entre as duas formações, agora que o Podemos está sob uma nova liderança, com muitas das principais diferenças separando as duas plataformas centradas em diferenças pessoais.
Além disso, os próximos 6 a 9 meses serão definitivos para a coalizão – e em particular para qualquer avanço da agenda da Unidas Podemos. A liderança do partido ainda acredita que a correlação de forças existente no parlamento pode funcionar a seu favor. O cenário político fragmentado, mas polarizado, não deixa o PSOE com outra opção a não ser olhar para o seu flanco esquerdo a fim de garantir a maioria no governo, especialmente após o rápido colapso do apoio ao partido liberal Ciudadanos. A ascensão de Díaz visa reforçar a relação com a Unidas Podemos nas próximas negociações, dando-lhe maior poder enquanto prepara a formação para qualquer potencial eleição geral no próximo inverno se a coalizão colapsar.
Somado aos impasses nos controles de aluguéis e tributação, uma das batalhas decisivas nos próximos 12 meses será em torno da revogação das reformas trabalhistas da era PP – que colocarão Díaz em confronto com a chefona econômica do PSOE, Nadia Calviño, por direitos sindicais e trabalhistas. Estas representam o tipo de setor onde a coligação Unidas Podemos deve garantir avanços para justificar sua presença contínua no governo. Como o PSOE está sob pressão da oligarquia do país para resistir até mesmo a um conjunto tão básico de reformas, qualquer um desses pontos, juntamente com o compromisso de perdoar os prisioneiros políticos catalães, pode levar à queda da coalizão.
Consequentemente, após a saída de Iglesias, não está claro por quanto tempo a primeira coalizão de esquerda da Espanha em 80 anos pode sobreviver.
Sobre os autores
Eoghan Gilmartin é escritor, tradutor e colaborador da Jacobin baseado em Madri.
No início de março, ele surpreendeu os círculos políticos espanhóis ao anunciar que estava deixando o cargo de vice-primeiro-ministro do país, apenas 14 meses após a coligação Unidas Podemos entrar em coalizão com o Partido Socialista de centro-esquerda (PSOE). Em um vídeo bombástico divulgado nas redes sociais, ele explicou que estava fazendo isso para liderar a força regional de seu partido nas eleições antecipadas de Madrid realizadas 4 de maio – com a esperança de que sua presença na campanha revertesse a sorte do Unidas nas urnas.
No entanto, quando os votos finais foram contados, já era óbvio que a candidatura de Iglesias tinha se exaurido após vários ciclos eleitorais, entre outros fatores. “Esses resultados deixam claro que no momento não sou uma figura que possa ajudar o partido a obter ganhos significativos e contribuir para que ele consolide seu peso institucional”, afirmou. A campanha do Unidas Podemos melhorou ligeiramente a posição da coligação em relação ao resultado de 2019 – garantindo pouco mais de 7% dos votos e dez cadeiras no parlamento – enquanto o PSOE sofreu seu pior resultado na capital em benefício, ao que parecia, do conjunto do partido Más Madrid durante uma divisão do Podemos em 2019.z
A direita estava altamente mobilizada, com a candidata trumpista do Partido Popular (PP), Isabel Díaz Ayuso, que quase conseguiu maior absoluta – o que agora lhe permitirá governar sozinha com o apoio externo de Vox.
Com o dramático anúncio de Iglesias ocorrendo poucos dias antes do décimo aniversário do movimento 15-M, sua renúncia também marca o fim de um capítulo na política espanhola e europeia. Um dos mais talentosos líderes de esquerda de sua geração, incomparável em suas habilidades comunicativas, ele liderou o Podemos em sua campanha eleitoral histórica de 2015, na qual o partido chegou perto de ultrapassar o PSOE. Mas, como ocorreu com as “esquerdas populistas” construídas em outros lugares na última década, o projeto não conseguiu manter seu ímpeto inicial após o declínio gradual das ondas de protestos anti-austeridade que se espalharam pelo país após a crise financeira.
Estreitando os horizontes
O terreno político que, rapidamente foi tão hospitaleiro para um então insurgente Podemos, parecia cada vez mais distante durante esta campanha em Madri. O clima tem sido dominado por uma série de provocações de extrema direita, vindas não apenas do extremista Vox, mas também do crescente movimento neofascista de rua na Espanha.
Poucas horas depois de deixar o cargo de vice-primeiro-ministro, Iglesias se viu olhando para um grupo de cinco skinheads neonazistas em um confronto dramático fora de um evento Podemos. Isso foi seguido, uma semana depois, por um ataque com bomba incendiária na sede do Podemos, na região sul de Murcia – enquanto, na reta final da campanha, Iglesias recebeu ameaças de morte e balas com a marca do exército. Após anos de constantes ataques da mídia, numerosas investigações policiais com motivação política, bem como prolongadas lutas internas entre facções políticas, esse foi preço claramente cobrado sobre a segurança e o bem-estar de Iglesias e de sua família.
No entanto, Iglesias também foi a força motriz por trás da aposta estratégica para entrar no cargo como parceiro júnior do PSOE, um partido que é ostensivamente social-democrata, mas profundamente enraizado nos circuitos do regime neoliberal espanhol. O resultado desastroso da esquerda em Madrid em grande parte reflete um sentimento crescente de frustração com o governo PSOE-Unidas Podemos, com os partidos da coalizão apenas sendo capazes de apontar para um conjunto bastante limitado de avanços até este ponto.
Na sequência de duas eleições gerais em 2019, e da crescente exaustão para formar governo, a perspectiva de entrar na coalizão foi vista pelo Unidas Podemos como uma aliança de esquerda focada na renovação após um período de facciosismo vicioso, bem como uma forma de evitar o tipo de implosão que o projeto Corbyn sofreu na Grã-Bretanha. Apesar de ter de aceitar a retirada de muitas de suas pautas mais transformadoras do programa de governo, a aposta da coalizão era que, ao entrar no cargo, poderia garantir uma série de concessões substantivas à sua agenda legislativa, especialmente em torno da moradia, direitos trabalhistas e gastos sociais.
Com a pandemia da COVID-19 atingindo a Espanha apenas seis semanas após o início do mandato da coalizão, no entanto, os ministros rapidamente se depararam com uma série de limites para governar, o que marcou os parâmetros para os primeiros 15 meses. Alguns deles foram estruturais. O Estado cada vez mais fraco na Espanha, que viu suas capacidades e recursos erodidos durante a década anterior de violentos cortes e terceirizações, não era adequado para responder a uma emergência social e sanitária. Como um Estado da zona do euro dependente de financiamento da UE, a Espanha teve uma autonomia limitada para desenvolver seu plano de recuperação econômica, tendo que aceitar um quadro semelhante em toda a UE fortemente voltado para iniciativas público-privadas.
Outro fator que restringe os elementos mais progressistas da coalizão é como o próprio PSOE passou a agir, barrando a implementação das políticas acordadas no programa de governo. Ao longo do ano passado, ministérios estratégicos administrados pelo PSOE repetidamente bloquearam e atrasaram as prioridades legislativas de seu aliado júnior – devido a rivalidades pessoais e políticas, mas de forma mais geral porque muitas dessas medidas iriam colidir com os interesses do setor corporativo e dos aparato de segurança do Estado. Repetidamente, o progressismo de Pedro Sánchez parou antes de implementar medidas que exigiriam impor perdas às elites econômicas ou desafiar as relações de poder existentes.
Um acúmulo de tensões
Nos últimos meses de Iglesias no governo, as tensões entre os parceiros da coalizão haviam chegado ao ponto de quase ruptura com uma série de conflitos sobre controles de aluguel, reforma trabalhista e previdenciária, legislação de direitos trans e a revogação da lei da mordaça do PP. A “deslealdade” do PSOE com o acordo de coalizão se tornou uma crítica comum dentro da coligação Unidas Podemos, enquanto a ministra da Igualdade, Irene Montero, afirmou no início de março que o atrito no governo só se dissiparia “se o PSOE cumprir seus compromissos com o programa de governo”.
Provavelmente, o exemplo mais claro dessa deslealdade é com relação à proposta de nova lei de habitação da coalizão. Com muitas das principais figuras do Podemos vindo do movimento anti-despejo PAH e com o eleitorado do partido fortemente sufocado com “aumento abusivo dos alugueis“, Iglesias escolheu alavancar uma parte importante de seu capital político para introduzir controles de aluguel e um imposto sobre unidades habitacionais vazias (ambas incluídas no programa do governo). Desde o final do verão passado, ele pressionou fortemente para que a lei habitacional fosse finalizada como parte das negociações orçamentárias, insistindo em mecanismos legais para reduzir os preços em zonas de alta demanda e limitar novos aumentos por meio de um índice de preços de aluguel.
Mas com o PSOE fazendo corpo mole até concordar com a proibição de despejo durante a pandemia (algo que só foi finalizado em dezembro), Iglesias teve que se contentar com um compromisso assinado por Sánchez para apresentar a lei de controle de aluguel ao governo até fevereiro deste ano. No entanto, para garantir esse compromisso por escrito, Iglesias ameaçou bloquear o orçamento na noite anterior ao seu anúncio no final de novembro. Como nos disse o porta-voz econômico da Izquierda Unida, Carlos Sánchez Mato: “O PSOE não deseja confrontar aqueles que possuem milhares de unidades habitacionais, como os fundos abutres, ou mesmo a classe de locatários menor que vive da renda gerada por dez ou quinze apartamentos.”
No início de fevereiro, o maior proprietário de terras da Espanha, Blackstone, ameaçou sair do país enquanto entidades financeiras faziam lobby nos bastidores contra a lei. À medida que o prazo para o projeto de lei se aproximava, o ministro dos Transportes e Habitação, José Luis Ábalos, sinalizou que o PSOE não poderia mais aceitar a “imposição” de limites ao capital imobiliário, insistindo que seria mais eficaz garantir reduções de aluguel oferecendo “incentivos fiscais” (ou seja, incentivos fiscais aos proprietários). “A moradia é um direito, mas também uma mercadoria”, afirmou ele como um meio de explicar a cínica reviravolta de seu partido.
Iglesias rebateu: “O compromisso está no papel. Pedro Sánchez não pode se dar ao luxo de mentir para seus eleitores”. Mesmo assim, com o ex-líder do Podemos deixando o cargo sem um acordo, um projeto de lei de habitação foi adiado até outubro do ano que vem. Fontes importantes dentro da coligação Unidas Podemos insistiram que o partido entrará em colapso com o governo se a legislação não for aprovada. Mesmo assim, a coligação foi forçada a lutar na campanha eleitoral de Madri sem ter garantido uma de suas reformas essenciais.
Isso não foi um caso isolado. Um imposto sobre a riqueza para lidar com a COVID-19 também foi outra proposta ousada de Iglesias. Mas, junto com outras grandes reformas tributárias progressivas, as negociações foram adiadas até o orçamento do próximo ano – com a ortodoxa chefe econômica do governo, Nadia Calviño, já indicando que ela se oporia a qualquer aumento significativo de imposto. Como observa Carlos Sánchez Mato, a suspensão das regras orçamentárias da UE até 2022 “deu fôlego para a coalizão respirar”, mas se “a Espanha quiser evitar uma nova rodada de austeridade em 2023, terá de usar esse tempo para aumentar sua base tributária, com medidas como um imposto sobre riqueza significativo e tributação das empresas”.
Da mesma forma, a revogação da lei da mordaça do PP e outros crimes de censura deveriam ser reformas expressas concluídas nos primeiros meses de mandato da coalizão. Mas o ministro do Interior, Fernando Grande-Marlaska, não ofereceu um cronograma para a remoção dessas leis, apesar de mais de uma semana de protestos em massa contra a prisão do rapper Pablo Hasél em fevereiro. “Ativamente ou por passividade, o PSOE jogou bem suas cartas – não apenas evitando os aspectos mais progressistas do programa acordado, mas também atrasando reformas e diluindo seu conteúdo”, observa o ex-Podemos Manolo Monereo.
Conquistas qualificadas
Neste contexto, as realizações políticas da coligação Unidas Podemos centrou-se mais em garantir o aumento dos compromissos de gastos sociais. Segundo o acordo de orçamento nacional de 2021, as despesas direcionadas ao fortalecimento de áreas estratégicas dos serviços públicos esvaziados na Espanha foram enquadradas por Iglesias como uma ruptura com o programa de austeridade da década anterior: € 5 bilhões em financiamento adicional foram reservados para o sistema nacional de saúde da Espanha – indiscutivelmente a parte mais afetada do setor público espanhol, após anos de terceirização e má gestão, além das pressões da pandemia.
Mais de € 1 bilhão deve ir para o setor de assistência social sob o acordo orçamentário, ajudando a reconstruí-lo em locais que cuida de menores, e outro € 1 bilhão a ser injetado na rede de centros de cuidados primários. Em outros lugares, os fundos foram alocados para o programa de desenvolvimento da pré-escola universal gratuita, enquanto um aumento de 44% nos fundos de bolsas de estudo de universidades públicas é projetado para fornecer apoio a alunos de baixa renda.
Indiscutivelmente, a conquista mais clara para mostrar durante seu tempo no cargo foi a gestão da nova vice-primeira-ministra Yolanda Díaz no ERTE (mecanismo que garante parte do salário a trabalhadores afastados), juntamente com seus esforços para uma mitigação mais ampla na perda de empregos. O ministro do Trabalho – e indiscutivelmente o destacado executor ministerial da Unidas Podemos em 2020 – recebeu elogios por garantir um número considerável de empregos ameaçados por meio de conversas sindicatos e empregadores.
Soma-se a isso a nova legislação impulsionada por Díaz que reconhece os entregadores de alimentos como funcionários das plataformas digitais e aplicativo para as quais trabalham (em oposição ao seu status até então autônomo), após uma decisão da Suprema Corte em setembro. A legislação obriga essas plataformas a compartilhar os algoritmos que usam com os sindicatos, para que os funcionários e seus representantes tenham uma noção clara de como eles afetam as condições de trabalho. Díaz também negociou o aumento inicial do salário mínimo em janeiro de 2020, que o viu subir de € 900 para € 950, e tem sido a principal proponente do governo para um novo aumento este ano, enquanto tenta fazer com que os socialistas cumpram a promessa da coalizão de aumentar o salário mínimo líquido para 60% do salarial médio mensal (€ 1.200) no final do seu mandato de quatro anos.
No entanto, a entrega de um dos principais ganhos da Unidas Podemos até o momento também mostrou algumas limitações com os compromissos de gastos combinados na coalizão. O esquema de renda mínima garantida da Espanha, que Iglesias vendeu ao público como a principal política dos primeiros 6 meses de seu partido no cargo, foi até agora minado pela má administração, em parte causada pela falta de capacidade e vontade dos burocratas do Estado – apesar dos esforços recentes para ampliar os critérios de acesso e fortalecer a rede de segurança social.
Liderado como uma política por Iglesias, mas administrado por um ministério controlado pelo PSOE, o programa inscreveu apenas uma fração dos pedidos até o momento – com uma série de grupos de beneficiários, incluindo grupos de migrantes, aqueles sem contas bancárias e locais de residência fixa, e aqueles menores de 23 anos, sendo excluídos. Tendo inicialmente estimado o número de prováveis beneficiários em 850.000 famílias, 10 meses após sua introdução, apenas 210.000 famílias conseguiram acessar o pagamento, criando uma enorme frustração entre centenas de milhares de requerentes de baixa renda que ficaram de fora.
Em um sentido mais amplo, também, os níveis de gastos atuais estão longe do que poderia ser considerado adequado para começar a enfrentar a o agravamento da crise social na Espanha. O desemprego juvenil é de 40%, enquanto um relatório recente da Oxfam estima que aqueles que vivem na pobreza aumentaram de 20,7% da população antes da pandemia para 23% (ou 10,9 milhões de pessoas) no final de 2020. Com uma estimativa de 7 euros perdidos pelos 10% mais pobres da população para cada 1 euro que os 10% mais ricos perdem no novo clima econômico, fica claro que, mesmo que os níveis de gastos fossem consideravelmente mais altos, isso por si só não seria uma solução abrangente para a crise espanhola – por causa de problemas estruturais historicamente enraizados.
Mudando a dinâmica
A eleição de Madrid deve servir de alerta para os partidos da coligação. Após 3 anos como primeiro-ministro, Pedro Sánchez tem muito pouco a mostrar em termos de legislação progressista e avanços políticos e enfrenta uma base desmoralizada (seu partido perdeu 300 mil votos nesta última eleição). Para Unidas Podemos, a saída rápida de Iglesias acelerou uma transição de liderança já planejada, com Díaz sendo agora o provável candidato para liderar o partido na próxima eleição nacional. Advogada trabalhista e membro do Partido Comunista, ela estava longe de ser uma figura conhecida nacionalmente antes de assumir o Ministério do Trabalho. No ano passado, no entanto, ela foi considerada uma das ministras mais populares do governo – mesmo entre os eleitores do PSOE.
Nesse sentido, um ganho político-partidário dos 15 meses de mandato da formação foi facilitar essa renovação de sua liderança, permitindo que personalidades como Díaz e a nova ministra dos Assuntos Sociais, Ione Belarra, construíssem perfis políticos nacionais. No entanto, a preocupação daqui para frente é a possível ameaça que o novo partido Más País, criado pelo ex-deputado do Podemos, Íñigo Errejón, poderia representar em nível nacional após seu sucesso na capital. Resta ver que tipo de cooperação é possível entre as duas formações, agora que o Podemos está sob uma nova liderança, com muitas das principais diferenças separando as duas plataformas centradas em diferenças pessoais.
Além disso, os próximos 6 a 9 meses serão definitivos para a coalizão – e em particular para qualquer avanço da agenda da Unidas Podemos. A liderança do partido ainda acredita que a correlação de forças existente no parlamento pode funcionar a seu favor. O cenário político fragmentado, mas polarizado, não deixa o PSOE com outra opção a não ser olhar para o seu flanco esquerdo a fim de garantir a maioria no governo, especialmente após o rápido colapso do apoio ao partido liberal Ciudadanos. A ascensão de Díaz visa reforçar a relação com a Unidas Podemos nas próximas negociações, dando-lhe maior poder enquanto prepara a formação para qualquer potencial eleição geral no próximo inverno se a coalizão colapsar.
Somado aos impasses nos controles de aluguéis e tributação, uma das batalhas decisivas nos próximos 12 meses será em torno da revogação das reformas trabalhistas da era PP – que colocarão Díaz em confronto com a chefona econômica do PSOE, Nadia Calviño, por direitos sindicais e trabalhistas. Estas representam o tipo de setor onde a coligação Unidas Podemos deve garantir avanços para justificar sua presença contínua no governo. Como o PSOE está sob pressão da oligarquia do país para resistir até mesmo a um conjunto tão básico de reformas, qualquer um desses pontos, juntamente com o compromisso de perdoar os prisioneiros políticos catalães, pode levar à queda da coalizão.
Consequentemente, após a saída de Iglesias, não está claro por quanto tempo a primeira coalizão de esquerda da Espanha em 80 anos pode sobreviver.
Sobre os autores
Eoghan Gilmartin é escritor, tradutor e colaborador da Jacobin baseado em Madri.
Tommy Greene é jornalista e tradutor freelancer baseado em Madri.
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