8 de maio de 2021

Não é possível dissociar golpe contra Dilma, Lava Jato e eleição de Bolsonaro

"Direita moderada", em que Joel Pinheiro da Fonseca se inclui, é incapaz de fazer autocrítica de suas ações recentes

Luis Felipe Miguel
Professor da UnB (Universidade de Brasília), é coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades (Demodê) e autor de "O Colapso da Democracia no Brasil" (Expressão Popular), entre outros livros.

Folha de S.Paulo


Depois que o STF carimbou sua parcialidade como juiz, Sergio Moro disse ao Brasil: “Não me arrependo de nada”. Joel Pinheiro da Fonseca evita Édith “Piá”, mas, em texto publicado na Ilustríssima, expõe o mesmo sentimento.

É significativo que, hoje, este tipo de explicação se faça necessária. O governo de Jair Bolsonaro (sem partido) se revela a cada dia mais criminoso e, para muitos à direita, é preciso renegá-lo. Ao mesmo tempo, tentam apagar a linha de continuidade entre o passado bem recente —o golpe de 2016 e a conspiração judicial conhecida como Operação Lava Jato— e a situação dramática que atravessamos hoje.

Fonseca se inclui na “direita moderada” —curiosa definição para alguém que se construiu como vulgarizador de uma versão extrema do fundamentalismo de mercado. É uma doutrina que reduz todos os direitos ao direito de propriedade (ao ponto de achar que a venda de órgãos é uma ideia digna de atenção) e nega que a solidariedade e a justiça social sejam valores legítimos para orientar a organização do mundo social. Em qualquer tipologia razoável das correntes políticas, seu lugar está na ponta direita.

As diferenças em relação a Bolsonaro não são irrelevantes. Aqueles que se definem como direita moderada, quando não centro, condenam a insanidade no combate à pandemia, a apologia aberta da violência e, vários deles, também as demonstrações mais agressivas de racismo, sexismo e homofobia.

Porém, estão à vontade com o retrocesso nos direitos, com o desmonte do Estado social e com a redução do espaço do dissenso. Portanto, as confluências também são importantes.

O que o governo Bolsonaro mostra é que, ainda que separáveis em abstrato, na prática concreta o discurso hidrófobo e as políticas antipovo andam juntos. Mesmo que o golpe de 2016 e a Lava Jato não tenham tido o objetivo de levar o bolsonarismo ao poder, eles promoveram deliberadamente seu crescimento e o aceitaram, primeiro como instrumento, depois como parceiro menor, enfim como mal necessário. A eleição do ex-capitão não estava determinada de antemão, mas chamá-la de consequência imprevisível é simular um desconhecimento total dos fatos.

É como colocar um bêbado no volante de um automóvel. O acidente não é obrigatório, mas tampouco é imprevisível.

A narrativa do colunista da Folha tem como marco zero as manifestações populares de 2013. Adere a uma leitura simplória e mistificadora, que tem uma chave única, a “profunda desconexão entre o brasileiro médio [sic] e a classe política”. É tão equivocada quanto a de alguns círculos petistas, que entendem que as jornadas de junho teriam sido a preparação do golpe, quem sabe sob orientação da CIA.

Dois mil e treze foi um fenômeno complexo, por múltiplos motivos. Foi uma mobilização efêmera, mas que se metamorfoseou incessantemente: os primeiros protestos na cidade de São Paulo, capitaneados pelo Movimento Passe Livre, certamente foram diversos de atos posteriores, aqueles praticamente convocados pela Globo.

A mobilização se desenrolou em muitos pontos do país, sem comando centralizado e com perfis de participação diferenciados localmente. À medida que os atos cresceram, mostraram-se sem uma liderança capaz de verbalizar sua pauta. O discurso das ruas tomou a forma de uma cacofonia, que diversos agentes políticos organizados tentaram capturar e redefinir de acordo com seus interesses.

As manifestações marcaram, em primeiro lugar, a cesura entre o governo Dilma Rousseff (PT) e uma parcela de sua base social esperada (a “nova classe C”, beneficiária da modesta ascensão social permitida pelas políticas petistas). As pautas iniciais sinalizavam uma crítica pela esquerda. A reivindicação de melhores serviços socializados indicava o limite da inclusão pelo consumo, privilegiada pelo projeto lulista como forma de garantir a continuidade da apropriação privada do fundo público (e, assim, minimizar o confronto com o capital).

No entanto, os grupos à esquerda do PT, pequenos e com reduzida base social, não conseguiram dotar o movimento de uma condução à altura de seus sonhos. Acabaram, muitas vezes, apenas com a memória romantizada daquele breve momento.

A direita usou seus muitos recursos, a começar pelos meios de comunicação de massa, para ressignificar as manifestações, separar o joio dos “vândalos black blocs” do trigo dos “cidadãos de bem” e, enfim, instrumentalizá-las a seu favor. Ela percebeu que havia uma brecha a ser explorada. Subitamente, a não reeleição de Dilma, cujo governo até então mantinha altos índices de popularidade, tornava-se uma hipótese palpável.

A liderança permanecia nas mãos da direita tradicional. O objetivo não era a derrubada da presidente por um ato de força, era a vitória do então senador Aécio Neves (PSDB-MG) no ano seguinte. Os temas tornados centrais nos protestos, contudo, já eram favoráveis ao extremismo.

O combate à corrupção assumia a forma do punitivismo, que anatematiza as garantias individuais como proteção de bandidos. A defesa da “meritocracia” abre a porta para a naturalização das hierarquias sociais e a recusa das políticas sociais e das ações afirmativas. A antipolítica leva à condenação do dissenso e, enfim, à criminalização da esquerda.

Ou seja, o comando está nas mãos da direita tradicional (é ela a antagonista de Dilma nas eleições de 2014, é ela que chega à Presidência com o golpe de 2016), mas são os extremistas que definem o discurso. São os movimentos de proveta surgidos após 2013, como Revoltados Online ou o MBL (Movimento Brasil Livre), do qual Fonseca se diz próximo; os olavistas e outros saudosos da ditadura militar; os cristãos ultraconservadores; os procuradores e juízes da Lava Jato e a coorte de comentaristas políticos e econômicos da grande mídia que os aplaude.

A vitória de Dilma nas eleições de 2014 foi um balde de água fria. Ao se ver batida pela quarta vez seguida, a direita se desiludiu da via das urnas. Rompeu-se o consenso procedimental, aquele que diz que não há alternativa a não ser jogar o jogo democrático —e, se os resultados são frustrantes, o jeito é envidar esforços para melhorar a própria posição na próxima rodada. Esse consenso, que parecia ser uma grande conquista do regime que emergiu das ruínas da ditadura militar, mostrou-se frágil diante do revés de 2014.

Nem toda a direita embarcou de imediato no projeto de derrubar Dilma. Após a eleição, o PSDB ingressou com o pedido de cassação da chapa vitoriosa, mas a intenção era —nas imortais palavras de Aécio— encher o saco. Quando um impeachment começou a ser aventado, seu candidato a vice, o também senador Aloysio Nunes Ferreira (PSDB-SP), afirmou que o objetivo não era substituir a presidente, mas fazê-la sangrar.

No empresariado, uma Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo) cada vez menos relevante e a serviço das malogradas ambições eleitorais de seu presidente, Paulo Skaf, esteve desde o começo comprometida com a derrubada de Dilma. Mas não os banqueiros, que até bem perto do desfecho sinalizavam que preferiam vê-la no cargo, enfraquecida e incapaz de enfrentá-los.

O golpe de 2016 só ocorreu graças à pressão dos grupos radicais de direita, com pouca presença parlamentar, mas com a capacidade de empurrar seus aliados mais moderados para além de seus planos iniciais. Diversos entre si, esses grupos tinham, no entanto, pontos de contato significativos, em particular um discurso de recusa à solidariedade e de negação de direitos.

Estavam na contramão dos valores assumidos pela Constituição de 1988, como a disputa política organizada pela linguagem dos direitos e o combate à desigualdade profunda. A nova extrema direita entendeu que o consenso em relação à ordem constitucional era superficial ou mesmo ilusório e que havia um filão a ser explorado na agitação contrária a ele.

Foi um golpe alimentado por um discurso regressista. Sua deflagração mostrou que, no Brasil, deixavam de vigorar os dois pilares básicos da compreensão mais minimalista de democracia: o respeito aos resultados eleitorais e o império da lei. Uma presidente legitimamente eleita foi retirada do cargo com base em pretextos frágeis. O artigo de Fonseca serve, inadvertidamente, de comprovação, ao fazer uma empolgada defesa da derrubada de Dilma, mas passando ao largo dos motivos que pretensamente embasariam um impeachment.

O governo de Michel Temer (PMDB) pôs em marcha o programa que mobilizava a burguesia e a elite política tradicional: a ampliação da taxa de exploração, com o desmantelamento dos instrumentos de proteção da classe trabalhadora e a redução brutal do gasto social. Esse objetivo só se consegue com o aniquilamento da resistência popular.

O articulista não tem pudor de dizer que o período Temer “primou pela normalidade democrática”. Ele foi marcado, no entanto, pelo severo cerceamento do debate público e pela intimidação sistemática dos setores populares. Medidas tão graves como a aprovação do teto de gastos, que na prática revogava o pacto consignado na Constituição de 1988, foram aprovadas a toque de caixa, como imposição unilateral dos grupos que haviam amealhado o poder.

Este foi, em suma, o objetivo do golpe: impedir que o campo popular continuasse a ser admitido como interlocutor legítimo do jogo político.

Imaginava-se talvez, que, com a esquerda desmoralizada por anos de “lawfare” e unânime perseguição midiática, em 2018 um tucano qualquer ganharia a Presidência e o trabalho do golpe receberia uma demão de legitimidade democrática. Não foi assim. Foram necessários novos atos de força, em particular o veto à candidatura de Lula, incluindo uma participação cada vez menos discreta da cúpula militar.

Fonseca faz uma única referência ambígua a Sergio Moro —o ex-juiz está passando à condição de esqueleto a ser mantido no armário—, mas defende seu legado como se não estivesse, hoje, mais que provado o caráter desonesto do julgamento contra o ex-presidente Lula e o papel da Lava Jato na vinculação entre a derrubada de Dilma e o triunfo do bolsonarismo.

Mesmo com Lula vetado, a candidatura de Geraldo Alckmin (PSDB) naufragou. Assim, as eleições de 2018 levaram a direita tradicional à sua hora da verdade. O segundo turno teria sido uma “escolha difícil” —ou, nas palavras mais rebuscadas que Fonseca usou na época, uma farsa extremista.

Não é surpresa, contudo, constatar que toda a direita tradicional optou por Bolsonaro. Afinal, não era razoável ter percorrido todo esse caminho —a agitação de 2013, a Lava Jato, o golpe de 2016, a destruição do Estado de Direito— para permitir um novo governo da esquerda moderada.

Bolsonaro, afinal, comprometeu-se com a continuidade do serviço do golpe. Não é à toa que o grande ausente da narrativa de Fonseca seja o ministro da Economia, Paulo Guedes, seu irmão de armas no fundamentalismo de mercado. Guedes é tosco, truculento e está em casa no governo atual, mas é também um apóstolo do livre mercado, da desigualdade e do Estado falsamente chamado de “mínimo” —pois pode ser mínimo na proteção social, mas tem que ser forte na capacidade repressiva, para manter uma ordem baseada na exclusão.

Para esse projeto, a democracia, na qual bate um coração igualitário, é sempre um problema a ser contornado. O desgosto com a democracia é coerente com a opção doutrinária de Fonseca.

Qualquer que seja o guru escolhido (Friedrich Hayek, Milton Friedman, Ludwig von Mises, Robert Nozick), o ultraliberalismo tem como marca a perene desconfiança com as regras democráticas, que colocariam em risco uma “liberdade” que, por definição, só se manifesta no jogo desregulado do mercado.

Os excessos de Bolsonaro incomodam o colunista da Folha, mas a democracia também o incomoda. Incapaz de fazer a autocrítica de suas opções no passado recente, ele permanece preso à fantasia impraticável de um governo antipovo, mas “limpinho”, capaz de exacerbar a exploração sem ampliar a repressão e sufocar a cidadania.

Não faltam motivos para condenar Bolsonaro, mas, se um deles inclui o apreço à democracia e ao Estado de Direito, não é possível deixar de condenar igualmente a Operação Lava Jato e o impeachment fraudulento da presidente Dilma Rousseff.

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