A socióloga, professora e ex-deputada argentina Alcira Argumedo faleceu no último domingo. Lembrar-se dela não deve ser um ato melancólico, mas um convite para recuperar seu legado como intelectual orgânica da classe trabalhadora.
Claudia Korol
O que me lembro de Alcira? Muitas coisas, mas principalmente seu sorriso imbatível.
Rosarina de nascença, latino-americana de vocação, Alcira Argumedo foi uma daquelas intelectuais com quem se gostaria de ficar horas, talvez dias, a falar do país, do continente, do mundo e do seu entorno, da sua história e das suas projecções para o mundo futuro. Em seus diálogos, ela combinou o rigor de suas reflexões com um aguçado senso de humor, a intensidade da análise fundamentada e o calor pessoal.
Lembro-me dela em entrevistas e em intervenções públicas como defensora apaixonada das possibilidades de criação de um projeto popular, latino-americanista, antiimperialista, amiga das revoluções do Terceiro Mundo que a marcaram ao longo de seus 80 anos de vida (neste dia 7 de maio completaria 81 anos).
Talvez na juventude, como atleta e como nadadora do Jockey Clube de Rosário, tenha formado algo de sua capacidade de resistência que, mais tarde, ao mudar de atividades, trincheiras políticas, cidades, se expandiu e lhe permitiu enfrentar dolorosos trechos de sua vida pessoal e política.
Grande parte da sua ação política foi realizada em conjunto com Pino Solanas, no âmbito do Projeto Sul, e na última etapa como integrante da Frente de Todos, à qual aderiu com a convicção de que era necessário criar uma força política com capacidade de derrotar a direita política no país (Macri e amigos) e no continente (os Bolsonaros, Uribes, Duques e Piñeras).
Vale ressaltar expressamente que, ao ingressar nesse espaço político, não renunciou ao seu olhar crítico e à possibilidade de expressá-lo publicamente. Ela nunca foi uma intelectual obediente ao poder da época. Nunca deixou de se solidarizar ativamente com aqueles que defendem terras, biodiversidade e direitos, em Andalgalá ou em território Mapuche.
Uma de suas últimas batalhas, justamente, foi pela Hidrovia Paraná Paraguai. Em um tweet feito em abril deste ano, ela alertou:
Hidrovia. Rodovia do contrabando. As decisões tomadas com a Hidrovía e os portos privatizados marcarão o destino da Frente de Todos. É a oportunidade de fechar o ciclo diabólico de saques iniciado com a ditadura e promovido por Cavallo e o poder eco-financeiro.
Em uma das inúmeras entrevistas realizadas com base nesses tweets - neste caso na publicação La Tinta - acrescentou:
Não estamos discutindo apenas a Hidrovía. Discutimos um modelo de país, após 40 anos de hegemonia neoliberal na Argentina. A privatização dos portos e da hidrovia foi o culminar do plano de Cavallo, o controle de grandes portos privados por empresas agroexportadoras de grãos ou por mineradoras da hidrovia, que é a saída de 80% das exportações argentinas, permitiu o desenvolvimento dessa impunidade. O que denunciamos é a magnitude do contrabando que essas corporações estão gerando e que chega a 30 bilhões de dólares anuais.
Ela concluiu: "O Hidrovía é uma veia aberta que sangra."
Ao lermos tantas mensagens de condolências pela partida de Alcira, podemos pensar que a melhor homenagem seria ouvir com atenção as suas análises e corrigir os rumos políticos que estão a sangrar o país. Mas também, ao ler as variadas expressões de dor, é possível perceber a grandeza do seu modo de encarar a vida, com a capacidade de debater posições e projetos com grande profundidade, com enorme capacidade pedagógica e eloquência na forma de se expressar, descrer dos discursos intelectuais feitos apenas para os “iniciados” na linguagem específica e, ao mesmo tempo, sem perder espaço para amizades e respeito pela diversidade de opiniões ao longo do caminho.
Alcira foi uma das primeiras sociólogas do país - graduada de número 28 -, excelente professora e pesquisadora do CONICET. Como estudante, teve uma visão crítica da Sociologia hegemônica na Academia, levando a uma “greve de metodologia da pesquisa” junto com seus colegas, para protestar contra os conteúdos e metodologias vigentes na época. Posteriormente foi uma das promotoras das "Cátedras Nacionais", com colegas como Roberto Carri e Horacio González, entre tantos outros brilhantes intelectuais de sua época. Ele nunca se deslumbrou com o academicismo individualizante e pós-moderno que busca definir a propriedade privada de cada ideia. Ela pensava na criação intelectual como um ato coletivo.
Sua primeira formação política passou entre a militância na Universidade e a militância territorial no peronismo, experiência na qual aprendeu a reconhecer e valorizar o saber popular que “não entra no meio acadêmico”. Foi companheira de Marcos Schlachter, falecido na guerrilha Masetti em março de 1963, e seu primeiro professor de leitura de O capital. Posteriormente integrou o grupo de estudos sobre a América Latina coordenado por José Luis Romero e Gregorio Selser, onde participaram Gunnar Olsson (seu companheiro na época e pai de seus filhos), Susana Checa (sua grande amiga de longa data) e outros intelectuais de formação diversa.
Alcira compartilhou com sua geração o impacto da Revolução Cubana, a Revolução Chinesa, o triunfo na Guerra do Vietnã, a libertação da África e da Ásia, o encontro com a Teologia da Libertação e, em particular, com o padre sociólogo-guerrilheiro Camilo Torres a quem ela conheceu em um encontro de Sociologia que a marcou profundamente. “Para nós foi uma pausa quando Camilo Torres começou a nos contar o que era e o que deveria ser a sociologia”, lembrou.
Naqueles anos de Resistência participou de um movimento político-cultural que ia desde o grupo Cine Liberación (com Pino Solanas e Octavio Getino, entre outros), o Grupo Cultural (Piero, Marilina Ros, Juan Carlos Gené), ao Movimento de Padres para o terceiro mundo. Em 1973, durante a "primavera campista" participou na criação e foi Diretora do Instituto "Manuel Ugarte" do Terceiro Mundo, dependente da carreira de Filosofia e Letras, e posteriormente da Reitoria da Universidade. Entre 1973 e 1974, foi Secretária de Cultura da Província de Buenos Aires.
Após um exílio no México durante a ditadura, Alcira retornou à Argentina em 1983. Foi deputada nacional em 2009 pelo Projeto Sul e reeleita em 2013 até 2017. Contribuiu com sua rigorosa pesquisa para documentários de Pino Solanas, como Memoria del Saqueo, La Dignidad de los Nadies e Argentina Latent.
Nos diferentes espaços políticos que habitou, foi sempre ela, Alcira, com as suas convicções, as suas polêmicas, as suas paixões, os seus apelos aos adversários e também aos colegas.
Autora de vários livros, entre os quais os mais reconhecidos: "Los silencios y las voces en América Latina: notas sobre el pensamiento nacional y popular", e também outros como "Monopólios e o Terceiro Mundo", "O Terceiro Mundo: histórias, problemas e perspectivas", "Os labirintos da crise”,“ Um horizonte sem certezas: a América Latina antes da revolução científico-técnica”. Também investigou e estudou questões relacionadas à informação e comunicação social, e fez parte da comissão encarregada de promover a carreira de Comunicação Social da UBA.
Lembrar de Alcira não é um ato melancólico. É um convite a estudar sua obra e a resgatar seu legado de intelectual orgânica, Gramsciana, ceramista de senso comum contra-hegemônico, que esculpe a pedra dura da formação acadêmica e a coloca como alicerce de um coletivo, criativo e solidário. É sempre pensar em nós mesmos do lado da esperança e não do medo. É questionar o tempo de silêncio e isolamento, demolir os castelos do pensamento erguidos pelos pesados tanques das potências mundiais, e continuar construindo de baixo e sem permissão, entrelaçando saberes e com um sorriso argumentativo e sábio, contagiante e pleno, o subterrâneo da liberdade e das revoluções que nos faltam.
Sobre a autora
Comunicadora, feminista e integrante da equipe de educação popular Pañuelos en Rebeldía. Membro do Conselho Consultivo da Jacobina América Latina.
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