16 de maio de 2021

Os colombianos não querem apenas um novo governo - Eles querem o fim do neoliberalismo

Por semanas, os colombianos permaneceram nas ruas desafiando o violento modelo social e econômico de seu país

Uma entrevista com
Forrest Hylton

Entrevistado por
Nicolas Allen


Os manifestantes não estão apenas pedindo uma reforma policial, eles estão pedindo o fim de um sistema desigual na Colômbia que só pode ser mantido sob a mira de uma arma. (LUIS ROBAYO / AFP via Getty Images).

Tradução / Enquanto a Colômbia entra em sua terceira semana de greve geral, os manifestantes não dão sinais que querem sair das ruas. Desde 28 de abril, um dia de protesto contra uma reforma tributária regressiva, a onda de greves cresceu e se alastrou por todo o país, à medida que os grevistas formavam uma frente comum contra o governo do presidente de direita Iván Duque e a máquina política do ex-presidente Álvaro Uribe.

As manchetes internacionais têm se concentrado na repressão sangrenta dos manifestantes pela polícia e pelas forças armadas da Colômbia. O New York Times, por exemplo, relata que a polícia antes engajada na guerra contra “guerrilheiros de esquerda e paramilitares” agora está voltando seu poder de fogo contra os civis.

A mídia internacional, no entanto, tem esquecido que o Estado colombiano está em guerra contra a esquerda, organizações de trabalhadores, camponeses e movimentos sociais há décadas. Desde o início dos anos 2000, quando a guerra contra-insurgente se tornou uma peça central do governo de Uribe, o terrorismo liderado pelo Estado tem sido o método escolhido para gerenciar a crescente desigualdade da Colômbia e a desintegração social provocada pelo neoliberalismo.

Nesse mesmo sentido, os manifestantes não estão apenas pedindo uma reforma policial, eles estão pedindo o fim de um sistema desigual que só pode ser mantido sob a mira de uma arma.

Forrest Hylton, professor da Universidad de Medellín e colunista da London Review of Books, escreve e faz reportagens sobre a política colombiana há mais de 25 anos. Ele conversou com o editor contribuinte da Jacobin, Nicolas Allen, sobre as demandas dos grevistas, a erosão da legitimidade do uribismo e sobre as implicações mais amplas que os protestos podem ter para a política colombiana e para o retorno da esquerda colombiana.

Nicolas Allen

Estamos agora na terceira semana de greve na Colômbia. Você pode começar nos dando uma ideia do que desencadeou a primeira ação nacional em 28 de abril e o que manteve os manifestantes nas ruas desde então?

Forrest Hylton

Tudo começou com a introdução de um pacote tributário regressivo pelo ex-ministro da Fazenda Alberto Carrasquilla, que teria acrescentado um imposto de 19% sobre toda uma gama de bens e serviços básicos para as necessidades cotidianas e de subsistência das pessoas como água, eletricidade, gás natural, gasolina e alimentos básicos como farinha, grãos, macarrão, sal, leite e café. Esse pacote tributário regressivo veio na esteira de uma proposta semelhante em 2019, que também desencadeou uma greve geral em todo o país. Em 2019, a reforma proporcionou às empresas e ao setor bancário uma série de incentivos e isenções fiscais, o que é um dos motivos do atual déficit fiscal.

A principal diferença entre as duas greves gerais é a pandemia. Estatísticas da agência nacional de estatística da Colômbia sugerem que a pobreza aumentou 7% no último ano, e é seguro dizer que é consideravelmente maior do que isso. As estatísticas oficiais dizem que 42,5% da população da Colômbia vive na pobreza – novamente, o número é considerado o mais alto. E algo entre 50-60% dos colombianos estão trabalhando no setor informal.

A Colômbia teve um dos lockdowns mais longos e rígidos do mundo, sem nenhuma renda básica universal implementada. Portanto, foi realmente uma espécie de queda livre para a metade inferior da população. Mas é importante também enfatizar o quão precária é a situação para a classe média colombiana, que foi duramente atingida pela pandemia. Para muitos, o emprego assalariado secou. Em termos de casos e mortes per capita de COVID-19, a Colômbia ocupa o décimo lugar no mundo, respectivamente. O sistema de saúde colombiano está atualmente em colapso em Bogotá e não tem havido nada além de corrupção e má gestão da pandemia em todo o país.

Nesse contexto, o pacote tributário regressivo tornaria literalmente impossível para mais da metade da população continuar a sobreviver como está agora. Quase impossível por mais um trimestre. Então foi isso que desencadeou essa revolta massiva a partir de 28 de abril, e por que houve uma mobilização nacional com marchas em todas as principais cidades e áreas rurais da Colômbia.

A nova geração da classe trabalhadora, mais adversamente afetada pela pandemia e pelo neoliberalismo militarizado, é o jovem proletariado informal das periferias urbanas e a vanguarda, a espinha dorsal, desses protestos e tem sofrido o impacto da repressão e da militarização. Os jovens estão na linha de frente e as mães e avós cuidam deles, os alimentam e protegem.

Esta é a maior geração da classe trabalhado no país e, até o momento, não tem representação política formal. Isso nos leva de volta à grande greve cívica de 1977, mas em uma escala muito maior. E em vez de os guerrilheiros estarem em ascensão, eles estão quase totalmente ausentes ou eclipsados. Daí o potencial surgimento de uma esquerda urbana, pela primeira vez na história colombiana.

Nicolas Allen

O presidente Iván Duque, desde então, atenuou alguns dos aspectos mais obviamente regressivos da reforma tributária. No entanto, os protestos continuam e, à medida que continuam, estamos começando a ver uma variedade de demandas surgindo, além da retirada da reforma tributária. Quais são essas demandas e quem são os grupos envolvidos nos protestos?

Forrest Hylton

A reforma tributária foi revogada quase imediatamente após o início dos protestos porque eram muito maiores do que o governo esperava ou para o qual estava preparado. Mas, apesar da renúncia do ministro das Finanças e da revogação do pacote tributário, os protestos, na verdade, aumentaram em vez de diminuir. E isso em parte porque o governo também quer introduzir reformas na saúde e previdência – que atingiriam ainda mais a classe média e o proletariado informal.

Policiais prendem um manifestante durante um protesto contra o governo em Cali, Colômbia, em 10 de maio de 2021. (LUIS ROBAYO / AFP via Getty Images)

Vale a pena mencionar que apenas 4,5% dos trabalhadores colombianos pertencem a sindicatos. Portanto, mesmo que tenham sido as principais centrais sindicais e o sindicato dos professores que convocaram a greve, a esta altura, o Comitê Nacional de Greve – que atualmente está negociando com o governo – tem alcance limitado em termos do que realmente está acontecendo nas ruas.

Nas ruas você tem uma grande variedade de setores mobilizados, tanto no sentido social quanto geográfico, e há uma grande diversidade de demandas, além de uma descentralização generalizada. Quase todo mundo que pertence a qualquer tipo de organização está mobilizado, e muitos jovens que não pertencem a nenhuma organização também estão nas ruas. A greve dos caminhoneiros foi muito importante para bloquear o fluxo de mercadorias para dentro e para fora das cidades. O movimento estudantil provavelmente tem o maior número do que qualquer movimento organizado. E isso em parte porque as medidas de reforma neoliberal mercantilizaram o ensino superior, endividando um grande número de alunos no processo e multiplicando o número daqueles que vão para a universidade.

A outra coisa que a maioria dos manifestantes exige é o que poderia ser chamado de orçamento de paz: um movimento para frear o investimento nas Forças Armadas e na polícia e o tipo de estado de contra-insurgência hipermilitarizado que a Colômbia há muito mantém com o apoio dos EUA.

Além dos setores que mencionei, há, é claro, o movimento indígena, principalmente de Cauca e do sudoeste, que tem sido extremamente importante, pois eles se mobilizaram desde suas terras natais para a cidade de Cali. Pelo menos nos últimos 15 anos ou mais, o movimento em Cauca, embora relativamente pequeno, muitas vezes foi uma espécie de detonador para os movimentos populares nacionais. E isso incluiria também o movimento afro-colombiano, que está amplamente concentrado na costa do Pacífico e cujas demandas dizem respeito à pesca, direitos à terra, mineração, ecologia, paz e devolução de terras roubadas.

Os movimentos feministas – que estiveram profundamente envolvidos no amplo movimento pela paz no governo anterior – foram essenciais para o surgimento de uma política urbana progressista de massa na Colômbia nos últimos tempos. Agora, os movimentos feministas, LGBTQ e a maioria dos setores progressistas (como as minorias indígena e afro-colombiana) votaram em Gustavo Petro em 2018, onde ele obteve 42% dos votos – muito mais do que qualquer candidato de esquerda na Colômbia já conseguiu.

Isso levou seus críticos a alegar que Petro está de alguma forma liderando esses protestos ou que os manifestantes estão seguindo sua liderança – embora ele tenha se afastado o máximo que pode e convocado os manifestantes para suspender os bloqueios.

Em outras palavras, os protestos não vêm da esquerda política organizada. As associações de aposentados têm sido muito ativas, assim como estudantes do ensino médio, profissionais de saúde, associações de bairros urbanos e muito mais. As organizações de bairro estão ajudando especialmente a tornar essa resistência altamente descentralizada, realizando reuniões noturnas, assembléias e protestos nos próprios bairros.

Finalmente, o setor cultural – artistas, músicos, atores, comediantes, acadêmicos – está fortemente envolvido. A pura criatividade juvenil dos protestos foi uma de suas características mais marcantes. Desde a assinatura dos acordos de paz no final de 2016, mais de mil líderes de movimentos sociais colombianos foram assassinados.

O Comitê Nacional de Greve tem 18 demandas. Seria difícil dizer o quão representativos elas são dos movimentos como um todo, ou quantos ativistas locais – as bases, se preferir – aceitam o papel negociador do Comitê como legítimo. E dentro de cada movimento, também existem tensões entre a liderança e as bases.

De qualquer forma, os manifestantes veem os acordos de paz assinados em 2016 entre o governo colombiano e os rebeldes das FARC implementados. Eles querem o fim da corrupção sistêmica; que a tropa de choque militarizada seja completamente dissolvida; que o governo cumpra os acordos que assinou com os alunos em 2019; um novo tipo de reforma tributária que seria progressista em vez de regressiva; investimento público em saúde (o sistema de saúde da Colômbia é inteiramente privatizado como o modelo dos EUA); o fim do assassinato de lideranças de movimentos, que até agora acontecia quase que exclusivamente no campo.

Outra demanda é fazer valer a igualdade de gênero. A pobreza anual entre as mulheres aumentou 20% desde a pandemia e, claro, as mulheres são discriminadas em termos de salário e vencimentos, para não mencionar todo o trabalho não remunerado que acompanha o cuidado das famílias, bem como a violência contra as mulheres, que destacaram nos protestos, já que a tropa de choque molestou e estuprou manifestantes.

Outra demanda central é a proteção da fauna e do meio ambiente. A Colômbia é um dos países com maior biodiversidade do planeta, junto com o México e o Brasil. O Brasil leva todas as manchetes de destruição ambiental, mas a Colômbia não fica muito atrás. Em relação a esses pontos ambientais, os manifestantes exigem que as empresas de mineração e energia sejam regulamentadas, uma vez que operam essencialmente sem restrições e mantêm seu próprio conjunto de leis extraterritoriais nas zonas onde operam.

Os manifestantes estão pedindo uma reforma progressista da previdência, em vez de medidas de privatização regressivas. Eles querem um orçamento mais participativo e uma reforma progressista na legislação trabalhista, em oposição às medidas regressivas da legislação que o governo está tentando introduzir no Congresso. Outra demanda importante é a restituição de terras roubadas: algo como 5 ou 6 milhões de hectares foram roubados dos camponeses, principalmente por forças paramilitares em nome da derrota das guerrilhas comunistas.

Existem muitas outras demandas e, como os diferentes grupos mobilizados, são bastante heterogêneas. Mas apesar de toda a diversidade – talvez até da fragmentação – a demanda subjacente é que o Estado colombiano forneça um compromisso básico com o bem-estar social, conforme descrito na constituição de 1991. Assim, seria justo caracterizar isso como uma revolução democrática de cidadãos contra o Estado autoritário, oligárquico e neoliberal contra-insurgente e a sociedade construída ao longo dos últimos 30 ou 40 anos.

Nicolas Allen

Você mencionou a participação inédita da classe média nos protestos. Já vimos pichações em bairros abastados de Bogotá pedindo a renúncia de Duque. Tem-se a sensação de que o apoio do governo entre a classe média urbana está realmente diminuindo.

Forrest Hylton

Eu estive envolvido com a greve de 2019 como professor na principal universidade pública do país, e acho que é justo dizer que lá, como agora, há um tipo semelhante de manifestação por parte da classe média urbana. Especialmente em Bogotá, em 2019, em bairros onde você não esperava, vimos assembleias de cidadãos ocorrendo em toda a capital. Mas é muito mais massivo desta vez em termos de participação tanto da classe média quanto do proletariado informal.

Parte do que torna esses protestos históricos é que já se passaram mais de duas semanas consecutivas de greve. O fluxo de bens e serviços foi interrompido em um grau completamente diferente de tudo que vimos nos últimos anos.

Como em 2019, o fato de a classe média urbana estar fora de casa com tanta força é muito importante em termos de representação na mídia. Ao contrário do proletariado informal, a classe média urbana tem meios para contestar as narrativas oficiais do governo, afirmando que os protestos são motivados por vândalos e guerrilheiros do narcotráfico. Como tem feito desde a revolta urbana nacional em 1948, conhecida erroneamente como Bogotazo, o governo afirma que é uma grande conspiração comunista.

O roteiro da Guerra Fria na Colômbia, equiparando os manifestantes civis aos guerrilheiros, nunca muda. Mas a própria realidade mudou – e dramaticamente. Graças aos esforços de seus membros mais jovens, a classe média urbana educada da Colômbia simplesmente não acredita mais na narrativa da Guerra Fria que moldou e continua a moldar grande parte da política colombiana.

Nicolas Allen

E, no entanto, a julgar pelas medidas repressivas que o governo está praticando, certamente parece que eles acham que essa narrativa pode vencer. O tipo de terror que está sendo implementado – com o uso revivido de “falsos positivos” – sugere que Duque quer impor a narrativa da Guerra Fria aumentando a violência e reformulando o conflito como parte da guerra contra o comunismo. Quais são as chances de que isso funcione?

Forrest Hylton

Após a assinatura dos acordos de paz em 2016, as FARC mantiveram sua parte no acordo e o governo não. Todos na Colômbia sabem disso – tornou-se conhecimento geral que o governo fez todo o possível para inviabilizar os acordos de paz e que de alguma forma precisa que o conflito continue se é para justificar a repressão de protestos não violentos.

Durante a greve geral de 2019, o governo tentou estigmatizar e criminalizar os manifestantes estudantis, alegando que eles estavam associados a organizações terroristas (ou seja, guerrilheiras). Mas essa linha não funcionou, em parte porque os alunos conseguiram contestar com sucesso essa narrativa na mídia colombiana. A percepção popular mudou completamente, e a circulação de vídeos de cidadãos sobre a brutalidade policial – incluindo assassinato – contribui para isso.

Nos últimos anos, o governo não desencadeou o tipo de repressão mortal contra a classe média urbana e os trabalhadores da periferia urbana da forma que costuma fazer nas áreas rurais. No entanto, especialmente dada a escala dos protestos, a teoria operacional do governo é que, se conseguir atingir os manifestantes com artilharia pesada, tanques e helicópteros, as pessoas ficarão eventualmente apavoradas até a submissão. É importante ressaltar que, se os protestos se arrastarem, a estratégia do governo pode funcionar.

A estratégia deles não depende de uma grande dose de legitimidade, mas sim da necessidade: significa essencialmente matar de fome as pessoas, permitindo que a escassez de alimentos se acumule – ignorando a acumulação e a especulação – até que as cidades precisem de caravanas militares para trazer comida. A ideia é que, à medida que a escassez aumenta, as pessoas se voltem contra os protestos por cansaço e resignação, momento em que o governo pode desencadear uma repressão ainda maior contra os manifestantes.

Nesse ínterim, o governo tenta negociar setorialmente. Eles tentarão negociar com os comitês regionais de greve e passarão por um diálogo com o Comitê Nacional de Greve. Todos sabem que esses diálogos não serão sérios, mas podem tentar subornar os comitês regionais de greve. Mas, novamente, o Comitê Nacional de Greve não é necessariamente tão representativo, então ainda não está claro como uma solução negociada poderia ser elaborada.

Nicolas Allen

Pode ser útil recuar para olhar a situação da economia política colombiana. A principal motivação para a reforma tributária regressiva é enfrentar a profunda crise fiscal do país. E a solução dessa crise é especialmente crítica para os planos do governo de atualizar a rede de infraestrutura, o que atrairia capital estrangeiro e aumentaria as receitas de exportação – tudo isso enquanto expandia as fronteiras extrativas. Visto dessa forma, você acha que os protestos têm o potencial de conectar demandas aparentemente díspares, como consumo popular e bem-estar social, proteção ambiental e direitos indígenas?

Forrest Hylton

Se você olhar para os pontos que estão sendo negociados pelo Comitê Nacional de Greve, há uma série de questões em torno de mineração, energia, contaminação ambiental, desmatamento, vida selvagem, território indígena e assim por diante. Assim, quase uma em cada quatro das demandas tem a ver com a reforma do modelo econômico atual baseado na mineração, extrativismo energético e agronegócio. Isso não foi contemplado nos acordos de paz de 2016 entre o governo e as FARC. Claro, esse modelo é dominado por multinacionais e é basicamente intermediado por redes clientelistas de políticos, bem como de neoparamilitares, que garantem direitos de propriedade sobre mineração, energia e fronteiras agrárias.

Recentemente, algo interessante está acontecendo: cidades historicamente conservadoras do interior têm votado maciçamente em plebiscitos contra o extrativismo em seus territórios. Há uma sensação crescente de que o repúdio a essa atividade extrativa não é apenas sobre danos ambientais – o modelo econômico subjacente está cada vez mais sendo questionado.

O modelo neoliberal colombiano, associado às reformas econômicas implementadas no início dos anos 1990, está em julgamento. Esse sistema é protegido por um estado contra-insurgente inchado apoiado pelos EUA – um estado de segurança nacional com policiais e forças militares massivas que são lançadas contra a população civil para fazer cumprir o modelo neoliberal. E à medida que esse sistema se torna cada vez mais regressivo, as pessoas – especialmente os jovens – estão cada vez mais dizendo que este não pode ser o futuro da Colômbia – porque esse não é um futuro para ninguém.

Portanto, sim, não podemos separar a demanda por um estado de bem-estar social liberal de uma reorientação em larga escala da economia política colombiana. Na verdade, a Colômbia começou a construir uma base de manufatura nacional durante a Frente Nacional dos anos 1950 aos anos 1970, com mercados internos que conectavam várias cidades e territórios.

As pessoas não estão pedindo um retorno a esse modelo de desenvolvimento anterior, ou à política de consenso bipartidário da Guerra Fria que veio com ele, mas algum tipo de modelo orientado mais para o desenvolvimento nacional, a criação de um mercado nacional, alguma redistribuição de riqueza e renda, e mitigação da desigualdade na cidade e no campo. O repúdio ao modelo neoliberal pode ainda não ser total. Mas certamente a maioria dos principais elementos e plataformas desse modelo em relação à saúde, educação, pensões, legislação trabalhista e uma série de outros tipos de bens públicos estão sendo contestados.

A Colômbia é perenemente um dos países mais desiguais da América Latina, que por sua vez é a região mais desigual do mundo. Nesse sentido, o estado contra-insurgente da Guerra Fria na Colômbia foi necessário para provar um modelo econômico incrivelmente exclusivo. E a única coisa que Duque fez desde que chegou ao poder foi aprofundar esse modelo das formas mais obscenas e escandalosas, em meio a escândalos de corrupção em cascata.

Pessoas protestam contra o governo no Monumento aos Heróis em Bogotá em 15 de maio de 2021. (RAUL ARBOLEDA / AFP via Getty Images)

Certamente há uma longa distância a percorrer a fim de desmantelar tanto o estado de segurança nacional contra-insurgente quanto o tipo de modelo econômico neoliberal à prova de bala que ele garantiu. Mas, a julgar pelas recentes greves em todo o país, parece que a juventude colombiana está decidida a fazer uma luta de longo prazo. Esta geração de colombianos experimentou uma politização incrivelmente ampla e profunda.

Falo de longo prazo porque, se há alguma força na política colombiana com os dias contados é o uribismo e a influência política duradoura do ex-presidente de extrema direita Álvaro Uribe. As forças de Uribe no Centro Democrático podem ter mais munição armazenada, mas acho que podem estar se esgotando.

Nicolas Allen

Por falar em Uribe, você poderia falar um pouco sobre quem ele é e o que o uribismo representa na política colombiana? E uma questão relacionada, até que ponto você acha que essa crise é terminal para o regime político que ele instalou no início dos anos 2000?

Forrest Hylton

Álvaro Uribe foi presidente da Colômbia de 2002 a 2010. Atualmente, está sendo investigado pela Suprema Corte por suborno e adulteração de testemunhas. Embora seja muito difícil atribuir qualquer coisa a Uribe, há evidências consideráveis que sugerem que ele pode ser considerado um criminoso de guerra quando presidiu o país de 2006 a 2010.

O escândalo dos “falsos positivos” a que você se referiu anteriormente foi um acontecimento importante: o exército fez desaparecer cerca de dez mil jovens civis de bairros periféricos urbanos em um esforço para aumentar a contagem de cadáveres e dizer que estavam travando uma campanha bem-sucedida contra os rebeldes das FARC. A guerra de contra-insurgência foi maciçamente financiada pelos Estados Unidos por meio do Plano Colômbia, Plano Patriota e seus sucessores sob Clinton, Bush e Obama.

Uribe está associado à ideia de que não se pode ser neutro em um conflito armado contra subversivos terroristas comunistas: os cidadãos precisam estar a bordo do estado contra-insurgente e devem colaborar ativamente com o exército e a polícia. Nesse esforço, o uribismo viu todas as táticas como legítimas, incluindo deslocamento forçado, desaparecimento de pessoas, assassinato extrajudicial, tortura, narcotráfico, compra de votos, ameaças a funcionários judiciais e juízes da Suprema Corte.

Quando Uribe era governador de Antioquia, a região mais populosa da Colômbia, de 1995 a 1997, ele basicamente legalizou o paramilitarismo; mais tarde, quando ele era presidente, o paramilitarismo foi em grande medida institucionalizado dentro ou ao lado do Estado, especialmente nas regiões fronteiriças além da soberania do Estado, que foram postas sob controle por meio do terrorismo militar, misturando paramilitar e policia.

Uribe lançou uma longa sombra sobre quase todos os aspectos da política colombiana nos últimos 20 anos. Sob o governo de Juan Manuel Santos – que, apesar de ser ministro da defesa de Uribe, representava um neoliberalismo um pouco mais moderado e esclarecido – teve início o processo de paz com as FARC, e Uribe se tornou a mais importante figura de oposição ao governo santista.

Já falamos sobre jovens, estudantes universitários e estudantes do ensino médio. Eles são os que mais rejeitam a influência que este Estado mafioso e corrupto e contra-insurgente exerce sobre a sociedade colombiana. Eles realmente querem um Estado de bem-estar e uma sociedade progressista, e estão dispostos a lutar sem violência – e até mesmo morrer – para conseguir isso. Há algo de geracional acontecendo aqui, onde os jovens estão basicamente expressando uma rejeição indiscriminada contra Uribe e a política que ele representa. Sua capacidade de coragem e heroísmo é difícil de exagerar e se destaca até mesmo no contexto latino-americano, onde a repressão estatal tende a ser em ordens de magnitude maior do que no Norte Global.

Nicolas Allen

Você já mencionou o conturbado processo de paz e explicou como a contínua justificativa da contra-insurgência agiu como uma barreira para uma mudança social mais ampla na Colômbia. Você pode falar um pouco mais sobre como os grupos paramilitares foram reativados nos últimos anos?

Forrest Hylton

Os acordos de paz assinados no final de 2016 entre o governo e os rebeldes das FARC continham toda uma série de questões. Eles não tocaram nas questões urbanas – foram projetados para melhorar a vida no campo e patrocinar cooperativas e empregos produtivos para soldados desmobilizados das FARC. Mas, em vez disso, comandantes de nível médio e soldados rasos foram caçados um a um por esses grupos neoparamilitares. Enquanto isso, um dos negociadores das FARC deve ser extraditado para os Estados Unidos sob acusações de narcotráfico.

Antes, quando era presidente, Uribe negociou a chamada desmobilização dos paramilitares. Alguns líderes paramilitares começaram a falar sobre seus laços com políticos, empresários e oficiais militares, incluindo o então presidente Uribe, então ele rapidamente os extraditou para os Estados Unidos em 2008. Mesmo assim, a maioria saiu impune e continuou com seus negócios normalmente – sejam drogas, armas e controle de território, ou controle de obras públicas, sistemas de saúde privatizados, até mesmo algumas universidades públicas e privadas. Então, os paramilitares se transformaram – seu pão com manteiga ainda é o comércio de drogas, mas eles estavam mais interessados ​​em aumentar os lucros e o controle territorial depois de 2008 e traduzir seus ganhos econômicos em ganhos políticos. E eles têm tido um sucesso incrível nisso, especialmente nas fronteiras da mineração, energia e agronegócio.

Essa é uma das razões pelas quais os ativistas dos movimentos sociais nas áreas rurais foram eliminados em uma escala tão massiva desde que os acordos de paz foram assinados. A população rural tem sido mais organizada e militante do que seus semelhantes nas cidades, que testemunharam as greves agrárias nacionais que travaram no governo Santos.

Acho que uma das coisas interessantes sobre os movimentos estudantis e indígenas é que eles continuam insistindo em seu direito constitucional de protestar – eles estão tocando no nervo e denunciando a natureza autoritária do Estado contra-insurgente, que responde com força desproporcional e assassina a qualquer sinal de inconformidade social. Se os protestos continuarem por muito mais tempo, vamo ver se o uso mais aberto da força paramilitar é reativado.

Vimos muitas evidências de policiais à paisana atirando contra manifestantes, muitas vezes de veículos sem placas. Há uma linha tênue entre o que antes eram conhecidos como paramilitares e o tipo de terror de Estado que estamos vendo. Mas até agora, guerrilheiros e paramilitares estão visivelmente ausentes. O mesmo vale para o exército. Mas isso pode mudar. No entanto, para repetir, o uribismo é uma força muito diminuta e uma sombra do que era em seu apogeu.

Nicolas Allen

Quanto as eleições presidenciais de 2022 pesam sobre os protestos? Você já mencionou que o candidato de esquerda Gustavo Petro, que atualmente é o favorito, é erroneamente visto como líder dos manifestantes.

Forrest Hylton

Ainda há muita fumaça no ar para dizer com convicção como a revolta afetará as pesquisas eleitorais na Colômbia. Mas acho que o ponto mais amplo tem a ver com uma possível articulação entre a esquerda política no Senado, nas prefeituras, nas câmaras municipais e assim por diante, e os próprios movimentos sociais. Os movimentos agora parecem ser muito mais amplos do que qualquer coisa que a esquerda seja capaz de abranger, e muito mais descentralizados do que qualquer coisa que um programa popular nacional poderia canalizar.

Quando era senador em 2006, Petro, que mais tarde se tornou prefeito de Bogotá, lançou uma série de denúncias e investigações sobre os laços históricos entre Uribe e os paramilitares em sua região natal, Antioquia e Córdoba. Petro foi uma figura eletrizante da oposição em uma época em que se opor a Uribe era quase como uma sentença de morte, especialmente quando se tratava de expor seus laços com forças paramilitares. E, como prefeito de Bogotá, Petro mostrou-se disposto a enfrentar alguns dos interesses mais arraigados da máfia na capital. O establishment político da Colômbia tentou expulsá-lo da política por meio da justiça, mas até agora eles falharam.

Petro era membro do M-19, que era o movimento guerrilheiro mais urbano da Colômbia e também o mais nacionalista. Ele se desmobilizou para participar da Assembleia Constitucional que conduziu à elaboração da constituição de 1991. Então, ele é um político profissional desde o início dos anos 90. E seu histórico como oponente do neoliberalismo contra-insurgente está fora de questão.

O programa de Petro é basicamente uma social-democracia bastante moderada, projetada para alinhar o país com os aspectos progressistas da Constituição de 1991 e dos acordos de paz de 2016. Ao ser entrevistado durante a campanha em 2018, Petro disse: “Eles continuam tentando me pintar como um seguidor comunista raivoso de Fidel Castro e Hugo Chávez. Mas em qualquer país um pouco menos conservador do que a Colômbia, as pessoas reconheceriam imediatamente que estou tentando aprovar reformas liberais progressistas que deveriam ter sido aprovadas na Colômbia no século XX”.

Pode haver algum poder simbólico real em termos de reivindicar um legado de progressismo não realizado no passado político da Colômbia. Houve tentativas – sem sucesso – da ala progressista do Partido Liberal da Colômbia para transformar o país. Então, nesse sentido, acho que os protestos podem redundar em benefício de Petro. Há muito tempo a Colômbia é vista como uma semicolônia dos Estados Unidos – se Petro vencer, seria realmente dramático em termos do equilíbrio de forças eleitorais na América do Sul.

Nicolas Allen

Isso é interessante porque, como você observou, a Colômbia é um país notoriamente conservador. Ela continua sendo o portadora regional do Consenso de Washington e, de certa forma, desempenha um papel ainda maior do que o Brasil de Jair Bolsonaro para inclinar a balança política na América Latina para a direita. Mas, como você acabou de aludir com a formação de Petro na organização guerrilheira M-19 e na ala progressista do Partido Liberal, a Colômbia tem uma história realmente rica politicamente na esquerda que remonta a Jorge Gaitán na década de 1940. Independentemente do que se possa pensar sobre as FARC ou o ELN, essas duas organizações são umas das mais antigas formações de esquerda no hemisfério ocidental. Você acha que com os protesto podemos começar a ver a política de esquerda ressurgir na sociedade colombiana?

Forrest Hylton

A questão está correta: seria difícil encontrar um país onde houvesse um esforço mais pesado para eliminar o “comunismo” e os “comunistas” do mapa. Por “comunismo”, estou me referindo aqui à ampla faixa do espectro político que tem sido perseguido pelo Estado colombiano no curso de guerras de contra-insurgência sem fim.

Mas os esforços para erradicar a esquerda e o liberalismo progressista em nome do anticomunismo nunca tiveram sucesso. O próprio Petro simboliza essa capacidade de sobrevivência e renovação, uma capacidade que vários movimentos e organizações têm demonstrado década após década em face de um terror razoavelmente sustentado.

Aqui, acho que é realmente necessário falar sobre a importância do movimento feminista e dos papéis de liderança das mulheres na tentativa de criar um lugar para a sociedade civil no processo de paz. O trabalho realizado por grupos feministas estabeleceu muitas das bases para o que está acontecendo hoje, e a presença de mulheres – especialmente mulheres jovens – como líderes do movimento é realmente evidente.

O papel das mulheres na política urbana tornou-se evidente desde a greve geral de 1977. Há uma maneira de esse ciclo se fechar hoje. Estamos mais uma vez vendo as mulheres desempenharem um papel decisivo em todos os níveis de liderança e, como os jovens – permitindo uma sobreposição considerável entre as duas categorias -, elas parecem estar nisso por muito tempo.

Portanto, ao mesmo tempo em que observamos a tragédia do terrorismo de Estado contra o povo colombiano, devemos também buscar esperança em sua surpreendente coragem, firmeza e resiliência. Eles não serão silenciados noite adentro.

Sobre o entrevistado

Forrest Hylton ensina história e política na Universidad Nacional de Colombia-Medellín e, com Sinclair Thomson, é co-autor de Revolutionary Horizons: Past and Present in Bolivian Politics.

Sobre o entrevistador

Nicolas Allen é editor contribuinte da Jacobin e editor-chefe da Jacobin América Latina.

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