Viewpoint
Tradução / Durante os onze dias de brutal ataque israelense a Gaza1 – que foi apenas uma intensificação da devastação diária na vida palestina – eu recorri aos escritos do romancista e militante palestino Ghassan Kanafani. Em seu conto “Cartas de Gaza”, o narrador escreve ao seu amigo que foi para a Califórnia para se formar em engenharia. Ele lembra de quando Gaza foi atacada em 1948 pelas forças que viriam a se tornar o Estado de Israel; do quanto ele queria ir embora e deixar Gaza para trás, para se libertar da derrota. Mas algo enfraqueceu seu “entusiasmo pela fuga”. Antes que pudesse partir de vez, ele foi para o hospital visitar sua sobrinha de treze anos, Nadia, que pertencia à “geração que foi criada em meio à derrota e à expropriação de tal maneira que passou a considerar que uma vida feliz é um tipo de disfunção social”. Sua perna foi amputada, após Nadia se jogar em cima de seus irmãos e irmãs para protegê-los do bombardeio. Ela poderia ter se salvado, fugido, mas ela não o fez. Agora, ele também nunca irá partir. Assim, conta a seu amigo:
Esse sentimento obscuro que você sentiu ao deixar Gaza, muito pequeno, precisa crescer e se tornar um abismo gigante dentro de você. Ele deve se expandir e você precisa buscá-lo para se encontrar, aqui, nos escombros da derrota. Eu não irei até você, mas você deve retornar a nós! Volte para aprender com a perna de Nadia, amputada desde o topo de sua coxa, o que a vida significa e o quanto vale a existência.
Depois de ler essas palavras, fui lembrado das de Karl Marx, pronunciadas um século antes dessas, tanto em seu discurso em Londres, em dezembro de 1867, quanto em sua carta aos camaradas de Nova Iorque, em 1870, tratando em ambas da “questão irlandesa”. Um registro do discurso de Marx documentou sua fala de que a questão irlandesa “não é simplesmente uma questão de nacionalidade, mas uma questão de terra e de existência”. Já em sua carta, ele escreveu que “na Irlanda a questão da terra tem sido, até agora, a forma exclusiva da questão social, pois é uma questão de existência, de vida e morte, para a imensa maioria do povo irlandês; pois é, ao mesmo tempo, inseparável da questão nacional”.
Em outras palavras, existe uma relação fundamental entre terra e nação, entre vida e existência. O que Marx chamava de “a questão nacional” era um modo de pensar essa relação. Em sua análise da questão nacional no vindouro “Handbook of Marxism”, Gavin Walker aponta que Marx escrevia em uma época em que as nações se encontravam em fluxo radical – seus limites territoriais eram constantemente redefinidos, diferentes línguas constituíam maiorias e minorias nacionais e o imperialismo produzia um ordenamento hierárquico global. Nesse contexto, portanto, era muito claro para Marx que havia certa volatilidade na categoria de “nação”: era o ponto de contestação que poderia ser levado a direções reacionárias ou emancipatórias.
Em um estudo histórico do período entre 1936 e 19393, Kanafani apresentou uma análise marxista da questão nacional na Palestina, circunscrita pelas relações entre a liderança local reacionária, os regimes Árabes vizinhos e a aliança entre o imperialismo britânico e o sionismo. Para os palestinos que se encontravam sob o cerco dessa aliança, a questão nacional se tornou prioridade dentre as questões sociais, enquanto, simultaneamente, o antagonismo entre o imperialismo e as lideranças feudais-religiosas levaram ao apoio da classe dominante a um certo nível de luta revolucionária. O desenvolvimento do capitalismo deu-se de forma desigual, às custas do povo palestino. A aliança sionista-imperialista deste período, para Kanafani, não havia levado apenas à institucionalização da violência colonial e à derrota da classe trabalhadora palestina, como também “sabotou, com sucesso, o desenvolvimento de um movimento trabalhista judeu progressista e de uma irmandade proletária judaica-arábica”.
A pesquisa de Kanafani foi interrompida por uma bomba plantada em seu carro pelo Mossad4, em 19725, então temos que recorrer às suas obras de ficção para completar as lacunas dessa história. Em “A terra das laranjas tristes”, o narrador lembra de sua família fugindo da Palestina em 1948, refugiados como outras centenas de milhões de pessoas. Ele era muito novo para compreender, inicialmente, o que estava acontecendo, mas tudo ficou mais claro quando viu os adultos de sua família caírem aos prantos ao avistarem laranjas. Ele recorda o momento em que foram parados pela polícia, que confiscava as armas dos refugiados:
Quando chegou nossa vez, eu vi os rifles e metralhadoras sobre a mesa e desviei meu olhar para a longa fila de caminhões entrando no Líbano, desaparecendo nas curvas da estrada e aumentando a distância entre eles mesmos e a terra das laranjas. Eu também derramei um mar de lágrimas.
Algumas laranjeiras foram destruídas e outras foram apropriadas pelo Estado israelense. Esse símbolo da terra natal da Palestina se tornou um símbolo de expropriação, antes de se tornar um símbolo do Estado de Israel. A extirpação das árvores não é apenas um dos mais potentes símbolos da expropriação palestina, mas também de seus efeitos mais devastadores. Estima-se que 2,5 milhões de árvores frutíferas tenham sido arrancadas desde 1967 para construir as colônias israelenses.
É possível compreender perfeitamente porque Marx descreveu a questão nacional como uma questão de terra e de existência, pois este é o caso da Palestina. A agricultura palestina é boicotada pela contínua expropriação de terras por parte da expansão israelense; pelo descarte de lixo doméstico e industrial dessas colônias em terras palestinas; pelas restrições na importação de insumos agrícolas e pela dependência na importação de bens de consumo israelenses; pelo controle do Estado de Israel sobre a água e a eletricidade; e pela destruição da infraestrutura de transporte pelas bombas de Israel.
Segundo o jornal Haaretz6, 99% da água potável de Gaza já era imprópria para consumo devido à contaminação do esgoto ou de níveis de salinidade elevados. O bombardeio recente destruiu sistemas de esgoto e fechou uma importante usina de dessalinização. Um relatório das Nações Unidas8, em 2020, mostrou que Gaza tem “a maior taxa de desemprego do mundo e mais da metade de sua população vive abaixo da linha da pobreza”. O bombardeio recente em Gaza deixou mais de 10.000 pessoas sem casa, desapropriadas.
Deveria ser muito claro que o caráter econômico da opressão palestina é inseparável de seu caráter nacional. Nós poderíamos incorrer em uma análise social do colonialismo israelense e o apoio do imperialismo americano, que demonstraria o papel estruturante da acumulação capitalista global. Mas isso não deveria encobrir o caráter relativamente autônomo da opressão nacional. As atrocidades cometidas por Israel são uma forma de terrorismo que pretende torturar, intimidar e humilhar palestinos, precisamente porque são palestinos. A ocupação que está em curso segue uma lógica niilista, que destrói e polui as terras palestinas, ameaçando a própria existência dos trabalhadores palestinos, que Israel deseja não apenas explorar, mas aniquilar, porque são palestinos. É a tentativa de destruir completamente qualquer coisa que se aproxime do controle palestino sobre sua terra e existência.
Esses temas estiveram profundamente presentes na análise de Marx sobre a questão nacional. É preciso notar que, para Marx, a questão nacional não estava, de modo algum, separada de questões que supostamente seriam puramente econômicas, nem subordinada a elas. Na verdade, Marx tinha acabado de apresentar (alguns meses antes) sua crítica sistemática à economia política no primeiro volume de O Capital, passando a ocupar-se completamente da questão irlandesa, não apenas em sua pesquisa, como também em suas intervenções políticas. Ele se posicionou incessantemente contra as influências do colonialismo na Internacional e se envolveu em campanhas em defesa dos prisioneiros políticos irlandeses depois do Movimento dos Fenianos10, uma tentativa fracassada de formar uma insurreição armada contra a dominação colonial inglesa, que ocorrera três anos antes, na Irlanda. Em suas cartas, Marx e Engels criticavam os fenianos pela incoerência de sua ideologia política e pelo caráter inconsequente e destrutivo de seus bombardeios. Entretanto, nunca expressaram suas críticas publicamente. As razões para tal foram expressas nos escritos de Marx sobre a questão irlandesa.
As condições impostas à Irlanda, relatadas longamente por Marx em O Capital e em seus discursos e cartas subsequentes, são um tanto familiares: despejo, expropriação, dispersão, expulsão das terras, salários baixos, desemprego, fome. Esse era o caráter econômico da questão nacional. Mas Marx também continuou insistindo no seu caráter fundamentalmente político. Ele escreveu para Engels, em 1869, que mesmo que ele tivesse, anteriormente, acreditado que a ascensão da classe trabalhadora inglesa possibilitaria a derrubada da dominação colonial na Irlanda, pesquisas mais aprofundadas o convenceram que o oposto era verdade. Ele, agora, concluía que a independência irlandesa era de “interesse direto e absoluto da classe trabalhadora inglesa” e que, sem ela, eles “nunca iriam conseguir nada”: “a alavanca deve ser puxada na Irlanda”. Utilizando mais uma imagem mecânica em 187011, ele descreveu a Irlanda como o “ponto mais fraco” da Inglaterra – um termo que antecipa as teorias posteriores sobre a Revolução Russa como o "elo mais fraco da corrente imperialista".
A primeira razão para o posicionamento de Marx era que a dominação das classes dominantes inglesas sobre a Irlanda mantinha não apenas a sua riqueza, como também a sua dominação sobre a própria Inglaterra. Se a polícia e o exército ingleses se retirassem da Irlanda, haveria imediatamente uma revolução agrária, que levaria à queda da aristocracia fundiária na Inglaterra. Os capitalistas ingleses se beneficiavam da importação de carne e lã baratas para o mercado inglês e tinha interesse na redução da população irlandesa através de seu despejo e de sua emigração forçada para que fosse possível investir em suas terras com “segurança”. Além disso, o lucro enviado da Irlanda para a Inglaterra reduzia os salários dos trabalhadores ingleses.
Mas “o mais importante de tudo”, escrevia Marx, era que a classe trabalhadora inglesa havia sido dividida em “dois campos hostis”. Os trabalhadores ingleses viam os irlandeses como competidores que diminuíam seu padrão de vida; eles se consideravam membros da nação dominante, transformando-se em armas para aristocratas e capitalistas contra a Irlanda e reforçando a dominação sobre si mesmos. Marx comparava os preconceitos religiosos, sociais e nacionais dos trabalhadores ingleses com o racismo dos “brancos pobres” dos Estados Unidos13. Os trabalhadores irlandeses, por outro lado, viam os trabalhadores ingleses como cúmplices da dominação inglesa na Irlanda e esse antagonismo foi “mantido artificialmente e intensificado pela imprensa, pelo púlpito e pelos jornais satíricos”, ou seja, pelo que passou a ser chamado de aparelhos ideológicos do Estado. Ele escreveu: “Este antagonismo é o segredo da impotência da classe trabalhadora inglesa, apesar de sua organização. É o segredo de como a classe capitalista mantém seu poder”. A tarefa mais importante da internacional era a de levar a cabo uma revolução social na Inglaterra, porque ela era “o único país em que as condições materiais para essa revolução atingiram certo nível de maturidade”. Mas a única forma de fazê-lo era através da conquista da independência da Irlanda. Portanto, era “dever da Internacional, por toda a parte, colocar em primeiro plano o conflito entre Inglaterra e Irlanda e aliar-se abertamente, em todos os momentos, com a Irlanda”, para que “os trabalhadores ingleses percebam que para eles a emancipação da Irlanda não é uma questão de justiça abstrata ou de um sentimento humanitário, mas a condição primeira de sua própria emancipação social”.
Gostaria de observar que Marx expõe dois argumentos a favor do caráter universal da emancipação irlandesa, objetiva e subjetivamente. Em primeiro lugar, ele apresenta uma análise social objetiva, que se apoia sob a premissa de que o nível de maturidade máxima do desenvolvimento capitalista oferece as condições materiais para a revolução. Ainda que este seja o caso, a evolução do processo material objetivo não é linear, pois não é a contradição entre capital e trabalho que inicia a revolução social, mas a contradição entre o colonialismo e a independência nacional. A análise objetiva do colonialismo demonstra não apenas que existe um processo não-linear, mas também que o que parece ser a contradição geral não existe em estado puro. As condições para a revolução são, na verdade, uma acumulação de contradições, que se fundem de tal modo que possibilitam uma ruptura revolucionária.
Isso significa que, especificamente, essas formas e circunstâncias historicamente concretas formam o locus da intervenção subjetiva. Essa é a minha leitura da análise de Marx sobre o antagonismo interno à classe trabalhadora. Também é possível interpretá-la como uma versão da teoria sobre a relação direta entre raça e classe, ou entre racismo e capitalismo. Essa é certamente uma questão interessante, mas tão importante quanto ela é a busca de Marx, aqui, em descrever porque a classe trabalhadora não tem força nem poder apesar de sua organização. Em outras palavras, é possível para a classe trabalhadora se organizar e ser organizada por organizações da luta de classes dentro das condições materiais mais maduras para a revolução e, ainda assim, não constituir um sujeito revolucionário. O sujeito revolucionário não existe a priori; não é simplesmente a classe trabalhadora, como uma categoria sociológica objetiva. O sujeito revolucionário deve ser construído politicamente e isso significa que a questão nacional é a condição política do sujeito revolucionário. Essa condição política, todavia, oferece uma pista para o caráter universal da luta, para além da sua relevância direta no caso da luta de classes na Inglaterra.
Obviamente, a análise historicamente específica de Marx sobre o colonialismo inglês na Irlanda e a composição da classe trabalhadora não pode simplesmente ser transplantada para cada forma de ocupação e de divisão identitária. Ele percebeu, em sua conjuntura, que era necessário superar a hostilidade e desconfiança mútuas entre os diferentes setores das massas trabalhadoras, assim como promover uma "desidentificação" com a nação dominante, algo que requer um comprometimento firme e abrangente com a emancipação anticolonial. Mas essas conclusões baseavam-se na análise concreta de uma situação concreta, que é precisamente o que deve ser feito atualmente. Não precisamos determinar antecipadamente que a Palestina é o ponto mais fraco no capitalismo global, que sua libertação seria a alavanca para uma revolução global ou que o antagonismo ente os palestinos e israelenses é o segredo da impotência da classe trabalhadora e do poder capitalista, para que possamos compreender a universalidade da causa palestina. A relevância permanente do engajamento de Marx é fruto de sua defesa de uma política emancipatória ligada à questão nacional. A importância dessa defesa fica clara quando consideramos que mesmo antes da última leva de bombardeios, o chefe dos direitos humanos das Nações Unidas disse que os habitantes de Gaza estão "enjaulados em uma favela tóxica desde o nascimento até a morte, desprovidos de dignidade, desumanizados pelas autoridades israelenses de tal maneira que parece que os oficiais nem consideram que esses homens e mulheres possuem algum direito ou razão para protestar".
Curiosamente, isso aponta para uma tensão presente na concepção de Marx sobre o processo revolucionário, ilustrada na relação entre a maturidade das condições materiais e o ponto mais fraco. Na análise de Marx, o nível máximo do desenvolvimento capitalista, na verdade, gerou uma situação em que a luta por libertação nacional passou ter prioridade na luta de classes. A própria independência nacional se tornou uma condição política para a revolução. A lógica de Marx do ponto mais fraco mostra que o processo revolucionário não é predeterminado e sua análise da questão nacional mostra que há uma dimensão irredutivelmente política. O que isso significa é que não haverá apenas uma luta, mas também que as diversas lutas possuem um caráter universal. Marx aponta nessa direção quando argumenta que a emancipação nacional é uma condição da emancipação social. Mas se nós defendermos que o processo revolucionário não segue um curso pré-determinado e que possui condicionamentos políticos, então a universalidade de uma luta não é determinada pelo fato de ser ou não a “alavanca” da revolução: situações diferentes, alavancas distintas. Essas lutas são universais por conta de seu próprio caráter emancipatório: porque colocam em jogo um princípio de justiça que atravessa situações locais e se aplica a todos. Esse princípio, mesmo que seja fruto de uma situação local específica, é antagônico a todo o sistema que gera e regenera a dominação e a exploração. Qualquer luta emancipatória precisa andar em direção à destruição desse sistema e à invenção de formas de vida novas, racionais e igualitárias.
Essa não é uma justiça abstrata ou uma lógica humanitária, que olha para a situação colonial e demanda o fim do ódio e da violência, uma variante humanista das formulações comuns da mídia hegemônica, que conecta as mortes dos palestinos ao “conflito” e não ao exército israelense. Nessa situação colonial, a luta por emancipação universal é necessariamente a luta pela autodeterminação da Palestina.
Em sua última entrevista, Kanafani disse que era precisamente a dimensão universal da situação palestina que ele queria representar: “Não há um evento no mundo que não seja representado pela tragédia palestina. Quando eu retrato o sofrimento dos palestinos, estou, na verdade, utilizando os palestinos como um símbolo da miséria no mundo todo”. Mas como mostra “Cartas de Gaza”, não foi retratado apenas o sofrimento dos palestinos, mas também aquele comprometimento rebelde à vida e à existência, a recusa da fuga. Quando o narrador deixa sua sobrinha no hospital, ele é transformado pela coragem e pelo sacrifício da pequena. A Gaza da derrota e da expropriação se torna “algo novo. Parecia ser apenas um começo”.
Que nós também deixemos a rebeldia e a perseverança do povo palestino nos transformar. Este é o começo da política.
É possível compreender perfeitamente porque Marx descreveu a questão nacional como uma questão de terra e de existência, pois este é o caso da Palestina. A agricultura palestina é boicotada pela contínua expropriação de terras por parte da expansão israelense; pelo descarte de lixo doméstico e industrial dessas colônias em terras palestinas; pelas restrições na importação de insumos agrícolas e pela dependência na importação de bens de consumo israelenses; pelo controle do Estado de Israel sobre a água e a eletricidade; e pela destruição da infraestrutura de transporte pelas bombas de Israel.
Segundo o jornal Haaretz6, 99% da água potável de Gaza já era imprópria para consumo devido à contaminação do esgoto ou de níveis de salinidade elevados. O bombardeio recente destruiu sistemas de esgoto e fechou uma importante usina de dessalinização. Um relatório das Nações Unidas8, em 2020, mostrou que Gaza tem “a maior taxa de desemprego do mundo e mais da metade de sua população vive abaixo da linha da pobreza”. O bombardeio recente em Gaza deixou mais de 10.000 pessoas sem casa, desapropriadas.
Deveria ser muito claro que o caráter econômico da opressão palestina é inseparável de seu caráter nacional. Nós poderíamos incorrer em uma análise social do colonialismo israelense e o apoio do imperialismo americano, que demonstraria o papel estruturante da acumulação capitalista global. Mas isso não deveria encobrir o caráter relativamente autônomo da opressão nacional. As atrocidades cometidas por Israel são uma forma de terrorismo que pretende torturar, intimidar e humilhar palestinos, precisamente porque são palestinos. A ocupação que está em curso segue uma lógica niilista, que destrói e polui as terras palestinas, ameaçando a própria existência dos trabalhadores palestinos, que Israel deseja não apenas explorar, mas aniquilar, porque são palestinos. É a tentativa de destruir completamente qualquer coisa que se aproxime do controle palestino sobre sua terra e existência.
Esses temas estiveram profundamente presentes na análise de Marx sobre a questão nacional. É preciso notar que, para Marx, a questão nacional não estava, de modo algum, separada de questões que supostamente seriam puramente econômicas, nem subordinada a elas. Na verdade, Marx tinha acabado de apresentar (alguns meses antes) sua crítica sistemática à economia política no primeiro volume de O Capital, passando a ocupar-se completamente da questão irlandesa, não apenas em sua pesquisa, como também em suas intervenções políticas. Ele se posicionou incessantemente contra as influências do colonialismo na Internacional e se envolveu em campanhas em defesa dos prisioneiros políticos irlandeses depois do Movimento dos Fenianos10, uma tentativa fracassada de formar uma insurreição armada contra a dominação colonial inglesa, que ocorrera três anos antes, na Irlanda. Em suas cartas, Marx e Engels criticavam os fenianos pela incoerência de sua ideologia política e pelo caráter inconsequente e destrutivo de seus bombardeios. Entretanto, nunca expressaram suas críticas publicamente. As razões para tal foram expressas nos escritos de Marx sobre a questão irlandesa.
As condições impostas à Irlanda, relatadas longamente por Marx em O Capital e em seus discursos e cartas subsequentes, são um tanto familiares: despejo, expropriação, dispersão, expulsão das terras, salários baixos, desemprego, fome. Esse era o caráter econômico da questão nacional. Mas Marx também continuou insistindo no seu caráter fundamentalmente político. Ele escreveu para Engels, em 1869, que mesmo que ele tivesse, anteriormente, acreditado que a ascensão da classe trabalhadora inglesa possibilitaria a derrubada da dominação colonial na Irlanda, pesquisas mais aprofundadas o convenceram que o oposto era verdade. Ele, agora, concluía que a independência irlandesa era de “interesse direto e absoluto da classe trabalhadora inglesa” e que, sem ela, eles “nunca iriam conseguir nada”: “a alavanca deve ser puxada na Irlanda”. Utilizando mais uma imagem mecânica em 187011, ele descreveu a Irlanda como o “ponto mais fraco” da Inglaterra – um termo que antecipa as teorias posteriores sobre a Revolução Russa como o "elo mais fraco da corrente imperialista".
A primeira razão para o posicionamento de Marx era que a dominação das classes dominantes inglesas sobre a Irlanda mantinha não apenas a sua riqueza, como também a sua dominação sobre a própria Inglaterra. Se a polícia e o exército ingleses se retirassem da Irlanda, haveria imediatamente uma revolução agrária, que levaria à queda da aristocracia fundiária na Inglaterra. Os capitalistas ingleses se beneficiavam da importação de carne e lã baratas para o mercado inglês e tinha interesse na redução da população irlandesa através de seu despejo e de sua emigração forçada para que fosse possível investir em suas terras com “segurança”. Além disso, o lucro enviado da Irlanda para a Inglaterra reduzia os salários dos trabalhadores ingleses.
Mas “o mais importante de tudo”, escrevia Marx, era que a classe trabalhadora inglesa havia sido dividida em “dois campos hostis”. Os trabalhadores ingleses viam os irlandeses como competidores que diminuíam seu padrão de vida; eles se consideravam membros da nação dominante, transformando-se em armas para aristocratas e capitalistas contra a Irlanda e reforçando a dominação sobre si mesmos. Marx comparava os preconceitos religiosos, sociais e nacionais dos trabalhadores ingleses com o racismo dos “brancos pobres” dos Estados Unidos13. Os trabalhadores irlandeses, por outro lado, viam os trabalhadores ingleses como cúmplices da dominação inglesa na Irlanda e esse antagonismo foi “mantido artificialmente e intensificado pela imprensa, pelo púlpito e pelos jornais satíricos”, ou seja, pelo que passou a ser chamado de aparelhos ideológicos do Estado. Ele escreveu: “Este antagonismo é o segredo da impotência da classe trabalhadora inglesa, apesar de sua organização. É o segredo de como a classe capitalista mantém seu poder”. A tarefa mais importante da internacional era a de levar a cabo uma revolução social na Inglaterra, porque ela era “o único país em que as condições materiais para essa revolução atingiram certo nível de maturidade”. Mas a única forma de fazê-lo era através da conquista da independência da Irlanda. Portanto, era “dever da Internacional, por toda a parte, colocar em primeiro plano o conflito entre Inglaterra e Irlanda e aliar-se abertamente, em todos os momentos, com a Irlanda”, para que “os trabalhadores ingleses percebam que para eles a emancipação da Irlanda não é uma questão de justiça abstrata ou de um sentimento humanitário, mas a condição primeira de sua própria emancipação social”.
Gostaria de observar que Marx expõe dois argumentos a favor do caráter universal da emancipação irlandesa, objetiva e subjetivamente. Em primeiro lugar, ele apresenta uma análise social objetiva, que se apoia sob a premissa de que o nível de maturidade máxima do desenvolvimento capitalista oferece as condições materiais para a revolução. Ainda que este seja o caso, a evolução do processo material objetivo não é linear, pois não é a contradição entre capital e trabalho que inicia a revolução social, mas a contradição entre o colonialismo e a independência nacional. A análise objetiva do colonialismo demonstra não apenas que existe um processo não-linear, mas também que o que parece ser a contradição geral não existe em estado puro. As condições para a revolução são, na verdade, uma acumulação de contradições, que se fundem de tal modo que possibilitam uma ruptura revolucionária.
Isso significa que, especificamente, essas formas e circunstâncias historicamente concretas formam o locus da intervenção subjetiva. Essa é a minha leitura da análise de Marx sobre o antagonismo interno à classe trabalhadora. Também é possível interpretá-la como uma versão da teoria sobre a relação direta entre raça e classe, ou entre racismo e capitalismo. Essa é certamente uma questão interessante, mas tão importante quanto ela é a busca de Marx, aqui, em descrever porque a classe trabalhadora não tem força nem poder apesar de sua organização. Em outras palavras, é possível para a classe trabalhadora se organizar e ser organizada por organizações da luta de classes dentro das condições materiais mais maduras para a revolução e, ainda assim, não constituir um sujeito revolucionário. O sujeito revolucionário não existe a priori; não é simplesmente a classe trabalhadora, como uma categoria sociológica objetiva. O sujeito revolucionário deve ser construído politicamente e isso significa que a questão nacional é a condição política do sujeito revolucionário. Essa condição política, todavia, oferece uma pista para o caráter universal da luta, para além da sua relevância direta no caso da luta de classes na Inglaterra.
Obviamente, a análise historicamente específica de Marx sobre o colonialismo inglês na Irlanda e a composição da classe trabalhadora não pode simplesmente ser transplantada para cada forma de ocupação e de divisão identitária. Ele percebeu, em sua conjuntura, que era necessário superar a hostilidade e desconfiança mútuas entre os diferentes setores das massas trabalhadoras, assim como promover uma "desidentificação" com a nação dominante, algo que requer um comprometimento firme e abrangente com a emancipação anticolonial. Mas essas conclusões baseavam-se na análise concreta de uma situação concreta, que é precisamente o que deve ser feito atualmente. Não precisamos determinar antecipadamente que a Palestina é o ponto mais fraco no capitalismo global, que sua libertação seria a alavanca para uma revolução global ou que o antagonismo ente os palestinos e israelenses é o segredo da impotência da classe trabalhadora e do poder capitalista, para que possamos compreender a universalidade da causa palestina. A relevância permanente do engajamento de Marx é fruto de sua defesa de uma política emancipatória ligada à questão nacional. A importância dessa defesa fica clara quando consideramos que mesmo antes da última leva de bombardeios, o chefe dos direitos humanos das Nações Unidas disse que os habitantes de Gaza estão "enjaulados em uma favela tóxica desde o nascimento até a morte, desprovidos de dignidade, desumanizados pelas autoridades israelenses de tal maneira que parece que os oficiais nem consideram que esses homens e mulheres possuem algum direito ou razão para protestar".
Curiosamente, isso aponta para uma tensão presente na concepção de Marx sobre o processo revolucionário, ilustrada na relação entre a maturidade das condições materiais e o ponto mais fraco. Na análise de Marx, o nível máximo do desenvolvimento capitalista, na verdade, gerou uma situação em que a luta por libertação nacional passou ter prioridade na luta de classes. A própria independência nacional se tornou uma condição política para a revolução. A lógica de Marx do ponto mais fraco mostra que o processo revolucionário não é predeterminado e sua análise da questão nacional mostra que há uma dimensão irredutivelmente política. O que isso significa é que não haverá apenas uma luta, mas também que as diversas lutas possuem um caráter universal. Marx aponta nessa direção quando argumenta que a emancipação nacional é uma condição da emancipação social. Mas se nós defendermos que o processo revolucionário não segue um curso pré-determinado e que possui condicionamentos políticos, então a universalidade de uma luta não é determinada pelo fato de ser ou não a “alavanca” da revolução: situações diferentes, alavancas distintas. Essas lutas são universais por conta de seu próprio caráter emancipatório: porque colocam em jogo um princípio de justiça que atravessa situações locais e se aplica a todos. Esse princípio, mesmo que seja fruto de uma situação local específica, é antagônico a todo o sistema que gera e regenera a dominação e a exploração. Qualquer luta emancipatória precisa andar em direção à destruição desse sistema e à invenção de formas de vida novas, racionais e igualitárias.
Essa não é uma justiça abstrata ou uma lógica humanitária, que olha para a situação colonial e demanda o fim do ódio e da violência, uma variante humanista das formulações comuns da mídia hegemônica, que conecta as mortes dos palestinos ao “conflito” e não ao exército israelense. Nessa situação colonial, a luta por emancipação universal é necessariamente a luta pela autodeterminação da Palestina.
Em sua última entrevista, Kanafani disse que era precisamente a dimensão universal da situação palestina que ele queria representar: “Não há um evento no mundo que não seja representado pela tragédia palestina. Quando eu retrato o sofrimento dos palestinos, estou, na verdade, utilizando os palestinos como um símbolo da miséria no mundo todo”. Mas como mostra “Cartas de Gaza”, não foi retratado apenas o sofrimento dos palestinos, mas também aquele comprometimento rebelde à vida e à existência, a recusa da fuga. Quando o narrador deixa sua sobrinha no hospital, ele é transformado pela coragem e pelo sacrifício da pequena. A Gaza da derrota e da expropriação se torna “algo novo. Parecia ser apenas um começo”.
Que nós também deixemos a rebeldia e a perseverança do povo palestino nos transformar. Este é o começo da política.
Asad Haider é editor do Viewpoint e autor de Mistaken Identity.
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