Nicolás Martínez Bejarano
Jacobin
Tradução / Desde que a Greve Nacional começou na Colômbia em 28 de abril, dia após dia despertamos com novas figuras de companheiros e companheiras assassinadas pelo Estado. No momento em que escrevemos (17 de maio de 2021), temos aproximadamente 39 assassinatos. Trinta e nove companheiros e companheiras assassinados em 20 dias de protestos. A responsabilidade pelos eventos está no uso de armas de fogo pela Polícia Nacional e no uso indiscriminado de “armas de letalidade reduzida” pelo Esquadrão Móvel Anti-Distúrbios (ESMAD).
Além disso, tem havido relatos crescentes de violência sexual cometida por agentes do Estado contra mulheres manifestantes; a operação de grupos paramilitares, ou seja, pessoas com roupas civis, vigiadas pela polícia, que carregam armas de fogo e atiram em manifestantes desarmados, também tem sido recorrente.
Vozes diferentes, tanto dentro como fora da Colômbia, se pronunciaram contra estas atrocidades com frases como: “condenamos a violência onde quer que ela venha”, “toda violência é repreensível” ou “entenda que a violência só gera mais violência”. E, quando estas vozes querem passar do geral para o particular e especificar os atores precisos da violência que condenam, a ideia favorita é: “não aceitamos nem os excessos da polícia, nem a violência de vândalos”. Os excessos das forças estatais colombianas e os “vândalos” aparecem como protagonistas equivalentes de atos condenáveis.
Enquanto as ações violentas dos agentes estatais e para-estatais têm ações mais ou menos definidas (homicídios, estupros, mutilações, desaparecimentos e o envolvimento de terceiros não envolvidos nos protestos), as ações dos chamados “vândalos” são bastante vagas e vão desde arranhar um muro ou colocar um capuz até saques de loja, usando armas brancas ou explosivos. Segue-se que o conceito de “vandalismo” na verdade reúne duas realidades bem distintas: a) ação política (violência contra representantes do Estado) e b) “usufruto pessoal” (especialmente saque). Combinar duas ações tão diferentes no mesmo termo é um disparate tal que só pode ser entendido se pensarmos nela do ponto de vista da utilidade política que ela pode trazer ao interessado.
Os “heróis da pátria” e o “monstro guerrilheiro”
O discurso do Estado jogou com a homologação da ação direta (bloqueios, defesa legítima contra a brutalidade policial, grafite, etc.) e as ações de delinquência comum, em particular o roubo. Diante deste monstro do vandalismo, aparecem os “bons cidadãos” brancos, indignados com “tanta violência”, limpando as paredes pintadas, confortando os policiais pobres e coletando dinheiro para restaurar a infra-estrutura vandalizada. O curioso é que essas pessoas não consideram violentas as ações cometidas pela Polícia e pelo Exército: para elas, no máximo, são atos de força necessários para defender a “democracia” e restabelecer a “ordem”. Qualquer coisa que se oponha a esta força legítima e necessária, segundo estas pessoas, é considerada violência e, portanto, condenável.
À primeira vista, este discurso poderia ser visto como sendo suscitado apenas por aqueles que se opõem aos protestos. No entanto, dentro do mesmo protesto também há vozes que clamam por “protesto com arte”, que nos lembram que “a violência só gera mais violência” e que o melhor protesto é o protesto “racional, civil e pacífico”. Isto levou ao fato de que as pessoas que limpam as paredes não são apenas aqueles que são contra o protesto, mas alguns manifestantes que procuram mostrar que também há “civilidade” no movimento, que “os bons são mais” e que aqueles que arranham, quebram janelas e se encobrem fazem parte de uma minoria que é “bárbara, retrógrada, incivilizada, pouco artística e, em última instância, vândala”.
Mas de onde vem o medo de aceitar a legitimidade da ação direta? Por que o Estado pode matar, estuprar, desaparecer e mutilar e suas ações não serão rotuladas de “violentas”, mas se uma jovem mulher quebra uma janela então ela merece “todo o peso da lei” por seu “vandalismo”? Talvez haja muitas razões. Mas no contexto específico da Colômbia, destaca-se: o medo incutido a respeito das ações da guerrilha.
Especialmente desde que o governo de Álvaro Uribe Vélez (2002-2010), a mídia (imprensa, rádio e televisão) criou a imagem do “monstro da guerrilha”: um monstro irracional e desenfreado que não tem escrúpulos em matar crianças, sequestrar jovens e forçar mulheres a fazer abortos. Qualquer coisa que não defenda os “heróis da pátria”, ou seja, os soldados e policiais, está apoiando o “monstro”. E esta separação das águas vai desde o pequeno gesto de desrespeitar um policial por uma multa de trânsito, até a denúncia de violações dos direitos humanos cometidas pelo Estado.
O monstro guerrilheiro só pode ser combatido pelos heróis da pátria. Estes são heróis civilizadores em constante risco para defender a democracia e retomar a ordem. Suas ações são necessárias, pois sem elas cairíamos na anarquia. Sua ação não é violenta, não é forçada, porque é necessária, medida e ordenada. Se o questionamos, questionamos a coisa mais valiosa que a Colômbia tem: sua tradição católica e democrática. Qualquer piscar de olho contra o exército é um piscar de olho em favor do monstro. Assim, o bem não é apresentado como um princípio transcendente (por exemplo, a defesa da vida), mas como uma ação imanente do Exército: algo é bom na medida em que é feito pelos militares.
Veja como é bonito!
A ideia “condeno a violência de onde quer que ela venha” é apoiada pelo sofisma igualmente eficaz “a violência só gera mais violência”. Longe de querer refutar esta falsa causalidade com exemplos históricos (o que teria dito Roosevelt se, ao atacar a Alemanha nazista, alguém lhe tivesse passado essa frase), direi apenas que a lógica por trás disso é altamente perigosa. O que ele nos diz é que, contra quaisquer atrocidades que o Estado possa cometer, não devemos responder, porque essa resposta geraria “mais violência”. Violação, assassinato e mutilação devem ser aceitos como ocorrências naturais; a ordem não pode ser contestada, porque a espada da “maior violência” está pairando sobre nós.
Em última análise, esta frase reconhece a desproporção das forças estatais, que não hesitam em responder a um chute inofensivo com dois tiros na cabeça. Agora, este sofisma nunca é dirigido ao Estado. Nunca se diz: “ei, se você deixa as pessoas sem educação, sem comida e sem trabalho, isso vai gerar violência” ou “ei, se você reprime um protesto legítimo com assassinato, isso vai levar as pessoas a se defenderem com pedras e barricadas”… Não, a advertência contra a violência nunca é dirigida ao Estado porque, lembremos, segundo as “boas pessoas” o Estado não é violento: o Estado só é, e age necessariamente. Violento é apenas o ato perturbador que vai contra a ordem estabelecida.
Veja como é bonito! Um Estado no qual, desde 2016, cerca de 900 líderes sociais foram assassinados, onde o tráfico de drogas está presente nas veias mais internas dos três ramos do governo, no qual as Forças Armadas Colombianas têm pelo menos 6042 “falsos positivos”, etc… Repito: vejam que bonito! Aquele Estado agora se revela não violento. Acontece que devemos respeitar sua ordem, que não podemos fazer nada contra ela, porque então estamos desajustados. E se formos desajustados, merecemos morrer, porque seríamos prejudiciais à sociedade.
Quando há alguma voz dentro do establishment que tenta ser sensata, ela procura condenar os “excessos do Estado”. Mas não, o problema não são os excessos, mas a essência do Estado: o problema não são os frutos podres, mas o tronco e as raízes. Nenhuma árvore é saudável se ela produz 6042 mortes de inocentes apenas para obter um prato de arroz chinês ou alguns meses de férias.
Dividir e governar
Mas deixemos a oligarquia defender a oligarquia. O que é realmente preocupante começa quando seu discurso é adotado por setores que são vítimas desta ordem social e econômica. Nos últimos dias, numerosas entrevistas na mídia mostram pessoas diferentes – cuidadosamente escolhidas – defendendo o exercício “pacífico” do protesto e enfatizando que elas “protestam de maneira civilizada”. Quando o perfil da pessoa entrevistada é um jovem estudante, por exemplo, a mídia mostrará como ele “pode protestar com arte, de forma criativa, sem destruir nada”.
Mas todos estes discursos procuram apenas reproduzir a fissura que é tão conveniente para o governo: a fissura entre heróis e vândalos. Neste caso, quem são os heróis? As pessoas que puderam ir a uma universidade para aprender a tocar um instrumento, a pessoa do sindicato que tem um emprego estável, o estudante de literatura que lê poemas porque atirar pedras é para “bárbaros”, etc. Esta estratificação é extremamente problemática, pois acaba por justificar a violência criminosa do Estado contra pessoas que não são “civilizadas” ou “educadas”.
Felizmente, a Greve Nacional conseguiu quebrar este discurso oficial, enfraquecendo o maniqueísmo que condena as ações de “vandalismo”. Por um lado, o próprio movimento tem visto como a defesa dos manifestantes, com pedras e escudos improvisados, tem apoio popular; um exemplo disso é o caso de Puerto Resistencia, em Cali, e a formação de grupos de defesa contra a brutalidade policial, chamados “Primeira Linha”, em cidades como Bogotá, Cali, Barranquilla, Bucaramanga, e Popayán, entre outras. Esta resistência vem moldando uma ideia de poder popular e legítima autodefesa, muito mais eficaz do que todos os esforços de pequenos grupos de esquerda na Colômbia que durante décadas defenderam a violência como um meio privilegiado de luta.
A homologação sob o conceito de “vandalismo” de violência política e violência que busca o lucro pessoal é um movimento inteligente e planejado do discurso oficial, porque ao fazer isso confunde duas realidades diferentes. Por um lado, procura se contrapor a vários setores das classes populares (aqueles que marcham e os pequenos comerciantes) dizendo: “nas marchas há pessoas que vandalizam as empresas. Ao expressar isto, eles também dizem: “os caminhantes não querem nenhum benefício para a sociedade, eles apenas camuflam ‘ladrões’ que buscam seu próprio lucro”.
Mas é evidente que as duas formas de violência são completamente diferentes. A violência defensiva, de natureza política, procura resistir à violência estatal e gerar novas relações de poder em disputa com aquelas que o Estado tece. A violência defensiva, nas marchas e barricadas, é uma violência que, para usar uma expressão de Walter Benjamin em Para uma Crítica da Violência, procura ser um gerador de lei alternativa ou eliminação de fato do sistema de direito e, precisamente por este motivo, é temida pelo Estado. A outra violência, a dos saques e roubos, não procura gerar nova lei em benefício das classes populares; pelo contrário, tende a justificar a lei oligárquica, fornecendo-lhe elementos para endossar a suposta necessidade de mais policiais e militares nas ruas.
Dentro do movimento popular, não podemos assumir esta homologação impulsionada pelo governo; os exercícios legítimos e políticos de violência defensiva devem ser diferenciados de forma radical, para defendê-los e justificá-los.
“Este sistema não dá um futuro, mas esta revolução dá”
O movimento que hoje inunda as ruas conseguiu se livrar do medo e do fantasma dos “vândalos” e “guerrilheiros” e entendeu, a partir da própria prática popular, que a organização de baixo, a barricada e o capuz não são meios terroristas, mas ferramentas para resistir – sempre em desvantagem – às balas e bombas do Estado. Esta legitimidade da defesa popular não foi conquistada em academias ou sindicatos, porque os protagonistas desta explosão social são os jovens sem educação e sem trabalho
Hoje, as ruas da Colômbia estão cheias de jovens. Uma juventude que o Estado queria ignorar e deixar se perder no vício das drogas, em quadrilhas de traficantes ou grandes grupos ilegais, fechando qualquer possibilidade de uma vida digna. Entretanto, a decisão histórica que vemos sendo tomada nas ruas não é a saída desesperada da arma ou da faca, mas a dignidade da resistência e a construção do poder popular. O que quer que os jovens façam, eles serão sempre vistos como “vândalos” pelas “boas pessoas” que em Cali saíram com camisetas brancas para atirar na Minga indígena.
E eles não poderiam ter escolhido uma palavra melhor, porque eles, do centro de seu império decadente, vêem os movimentos rápidos e criativos dos setores populares como as ações dos “outros”, dos “bárbaros” que ameaçam romper com sua civilização. Os vândalos eram originalmente um povo germânico, portanto o uso depreciativo deste nome só faz sentido se nos colocarmos a partir da perspectiva do império. Chamar os que protestam de “vândalos” denota o medo com que aqueles que – sem sucesso – procuraram condenar ao esquecimento são vistos pelos que estão no poder.
Nestes dias, temos estado submersos em uma profunda tristeza. Mas essa tristeza é acompanhada por uma grande esperança, por um sonho que tomou as mãos, os olhos e as vozes e que não será mais silenciado. Nós colombianos vivemos uma profunda tristeza no meio de uma alegria ativa que não espera mudar a Colômbia porque ela já está mudando. Que os jovens forjaram seus próprios caminhos de protesto, que têm seus próprios territórios libertados e seus próprios caminhos, já é uma enorme vitória e uma profunda transformação.
No sul de Bogotá há um pequeno sinal anônimo que diz: “Este sistema não dá aos jovens um futuro, mas esta revolução dá”. Dia após dia e rua após rua, uma certeza salta sobre nós: a juventude colombiana deixou de esperar. Eles pararam de implorar por ajuda futura, para tomar em suas próprias mãos a construção de um futuro coletivo. Esse novo futuro, forjado a partir das classes populares, não segue as normas de “bom comportamento” que só buscam submissão. Esse novo futuro não se constrói mais a partir da temível reverência à autoridade, mas a partir da solidariedade comunitária, da criatividade política e da memória viva daqueles que caíram nessa luta.
Sobre o autor
Filósofo e aluno de mestrado em História da Arte pela Universidade Nacional da Colômbia.
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