11 de dezembro de 2022

Por um regime fiscal adequado à Constituição

O teto não fornece instrumentos auxiliares à gestão fiscal

Élida Graziane, Leonardo Ribeiro e Fábio Terra

Valor Econômico

— Foto: Gabriel de Paiva/Agência O Globo

O desafio das finanças públicas brasileiras é grande: resguardar sustentabilidade fiscal e, ao mesmo tempo, efetivar no ciclo orçamentário a Constituição de 1988.

Nesse contexto, apenas impor um limite para as despesas primárias, como fez a Emenda 95/2016, é opção ruim. O teto não enfrenta fragilidades tributárias, não baliza despesas financeiras, também não orienta para onde as finanças públicas devem rumar no médio prazo, nem fornece instrumentos auxiliares à gestão fiscal.

Este artigo sugere uma lógica e dois instrumentos para aperfeiçoar o regime fiscal brasileiro, de modo a conciliar efetividade da Constituição e “controlabilidade” dos recursos públicos.

Em primeiro lugar, regime fiscal, de fato, constitucionalmente adequado demanda um sistema tributário progressivo e simples, assim como balizas de transparência e razoabilidade para a gestão das despesas financeiras. Mais ainda, é preciso estabelecer plano fiscal de médio prazo, que seria o ponto para o qual as finanças públicas devem rumar. Tudo isso estaria sujeito às referências de limites de dívidas consolidada e mobiliária, já exigidas pela CF.

Para se alcançar tal ponto de chegada, deve haver também meta operacional na forma de limite de gastos, mas diferente do Teto, que assumiu a falsa premissa de que a Constituição não cabe no orçamento. Esse limite de gastos precisa 1- efetivar o texto constitucional conforme o planejamento setorial das políticas públicas, 2- ser realista, 3- ter válvulas de escape claras, 4- proteger investimentos públicos e 5- ser gradualista no ajuste fiscal. Não é tarefa fácil. Mas, a solução fácil, o Teto, é inexequível.

Sabe-se que um regime fiscal constitucionalmente adequado requer ainda instrumentos que racionalizem e deem previsibilidade à meta operacional. Assim, sugerem-se dois: o “spending review” e o “forward guidance”.

O instrumento para monitorar e melhorar a ordenação de prioridades das contas públicas é o “spending review”. É uma ferramenta já adotada em países da OCDE, como Austrália, Reino Unido, Estados Unidos e Holanda. O “spending review” é processo institucional, transparente e coordenado de revisar programas governamentais, em esforço de controle que retroalimenta o planejamento orçamentário. Sua base racional é a avaliação sistemática do gasto público, gerando economia que abre espaço para novos programas e para a gestão do equilíbrio intertemporal do ciclo orçamentário e da dívida pública.

Por um lado, busca-se a eficiência técnica com reformas que tragam melhores serviços públicos com o mesmo ou menor custo. Por outro lado, persegue-se a otimização alocativa via a melhor combinação dos recursos empregados.

Nota-se que o “spending review” pressupõe uma gestão pública comprometida com custos e resultados (metas financeiras e físicas), a partir do sistemático gerenciamento de programas para fins de “efetiva entrega de bens e serviços à sociedade”, tal como exigido pelo art. 165, §10 da CF.

Todos os agentes envolvidos na condução das políticas públicas são incentivados a apresentar e executar propostas que façam mais eficiente o gasto público, assim como a demonstrar os resultados dos programas governamentais. Tenha-se claro que o serviço público é intensivo em mão de obra e o desempenho dos servidores públicos é essencial na aferição da qualidade dos gastos. Um desempenho recorrentemente insuficiente gera demissão dos servidores, nos moldes do art. 41 da CF, mas, claro, com transparência e proteção contra patrimonialismo.

A experiência internacional também ensina que os objetivos e os critérios do “spending review” devem ser transparentes e divulgados em relatórios, apreciados pela academia e instituições independentes. O governo é incentivado a interagir com a sociedade para melhorar o custo e os resultados da prestação de serviços públicos.

Nesse sistema de revisão de gastos, as despesas obrigatórias que amparam o cumprimento da Constituição teriam maior eficiência. Monitorar e avaliar o executado vis-à-vis o planejado guarda consonância com o art. 74, incisos I e II da CF, o que permite reordenar as prioridades, ressignificando o gasto obrigatório não como perene no tempo, mas como aquele que admite ajuste para uma mais efetiva entrega à sociedade.

Vale lembrar que o Teto não garante per se eficiência e equidade ao gasto público, na medida em que apenas tende a achatar despesas discricionárias, sem avaliar dinamicamente os resultados das despesas obrigatórias (primárias e financeiras) e dos gastos tributários.

Outro instrumento para melhorar o processo de eleição de prioridades alocativas é o “forward guidance”. Essa ferramenta foi adotada na política monetária pós-crise de 2008, como meio de os bancos centrais conduzirem as expectativas sobre o futuro dos juros básicos. Embora vindo da política monetária, o “forward guidance” pode ser aplicado à política fiscal, até porque corresponde, na prática, aos princípios da motivação e do planejamento.

Na verdade, o Tesouro Nacional já usa esse instrumento informalmente nos Planos Anuais de Financiamento, que trazem, por exemplo, intervalo esperado para a dívida pública. Porém, por ser informal, a ferramenta não cria enforcement. Oficializando-o, o Tesouro anuncia o que pretende fazer para primeiro alcançar sua meta operacional e então atingir sua referência fiscal de médio prazo.

Faz-se “forward guidance” por anúncios, quantitativos, qualitativos, temporais e “state-contingent”. Essas formas podem se misturar e o desafio do instrumento é ser crível, não apenas nos anúncios, mas na capacidade de os executar. Um enforcement bastante rígido decorre da junção dos parâmetros quantitativo e temporal. Uma forma branda é a qualitativa state-contingent, que informaria, por exemplo, que a dívida pode crescer enquanto houver recessão.

Os resultados do “forward guidance”, ainda que na política monetária, indicam redução dos juros longos, afeitos à política fiscal. O prêmio pago na ponta longa da dívida pública corresponde à expectativa dos vários riscos percebidos quando se emprestam recursos ao governo. Por meio do “forward guidance”, as autoridades balizam essas expectativas, buscando conduzi-las racional e legitimamente.

Enfim, o teto arbitrou como problemáticas as despesas primárias que efetivam os direitos fundamentais da CF, mas manteve intactas as opções de tributação e as despesas financeiras.

Formar um regime fiscal constitucionalmente adequado exige revisão do Teto e sua substituição por arcabouço melhor, que absorva instrumentos como “spending review” e “forward guidance”. Afinal, a lógica é que as finanças públicas resguardem, de fato e de direito, vida digna aos brasileiros.

Élida Graziane Pinto é professora da FGV e Procuradora do MPC-SP.

Leonardo Ribeiro é economista e Analista do Senado Federal.

Fábio Terra é professor da UFABC e do PPGE-UFU.

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