Os eventos de outubro de 1917 continuam a abalar o mundo hoje. E, no entanto, eles quase não aconteceram.
Simon Sebag Montefiore
Vladimir Lenin discursando para uma multidão em Moscou em 1918. Créditos Arquivo Estatal Russo de História Social e Política, via Associated Press |
O marxismo-leninismo (embora no formato único do capitalismo-maoísta) ainda move a China, superpotência mundial em ascensão, mesmo que a ideologia tenha acabado com Cuba e com a Venezuela. Enquanto isso, a Coreia do Norte, monarquia leninista distópica dona de um arsenal nuclear, aterroriza o mundo. Ainda mais surpreendente é ver que o comunismo está sendo ressuscitado no Reino Unido democrático: Jeremy Corbyn, aquele quase-leninista confortavelmente disfarçado de fofinho barbudo, é o político mais radical a liderar qualquer um dos dois partidos britânicos e, aos poucos, vai avançando rumo ao poder.
Até as táticas de Lenin também estão de regresso. Era um gênio sofisticado do implacável jogo de soma zero, expresso na frase “Kto kovo?”, ou, literalmente, “Quem, a quem?”, que questiona quem controla quem e, mais importante, quem mata quem. Sob vários aspectos, Trump é a personificação de um novo bolchevismo da direita que reza que os fins justificam os meios, admitindo táticas como mentiras e difamação, e a exploração do que Lenin chamava “idiotas úteis”. Não é coincidência o fato de seu principal estrategista de campanha, Steve Bannon, uma vez ter chegado a dizer que era leninista.
Cem anos depois, quando seus eventos continuam a repercutir e a inspirar, outubro/novembro de 1917 paira sobre nós, épico, mítico, fascinante. Seus efeitos foram tão impressionantes que parece impossível que talvez quase não tenham ocorrido da forma como se desenrolaram. E, no entanto, foi por pouco.
Não havia nada inevitável na revolução bolchevique. Em 1917, a monarquia Romanov decaía rapidamente, embora seus imperadores pudessem até ter se salvado se não desperdiçassem as várias chances de mudar. As outras monarquias absolutistas da Europa – os otomanos e os Habsburgos, por exemplo – caíram por terem sido derrotadas pela Primeira Guerra Mundial. Será que os Romanovs também teriam caído se sobrevivessem mais um ano para comemorar a vitória de novembro de 1918?
Em 1913, a polícia secreta do czar tinha dispersado e derrotado a oposição. Pouco antes da queda do soberano, Lenin disse à mulher que “não viveria para ver a revolução”. No fim, foi um levante popular espontâneo e desorganizado e uma crise de lealdade militar que forçaram Nicolau a abdicar. Quando o momento finalmente chegou, Lenin estava em Zurique, Trotsky em Nova York e Stálin, na Sibéria.
A princípio, Lenin achou que fosse “uma farsa”. Teve sorte de ter sido “inserido” na Alemanha, feito um bacilo (graças ao chamado trem oficial), para tirar a Rússia da guerra. De volta a Petrogrado, ajudado pelos companheiros tão radicais quanto ele mesmo, Lenin teve de derrotar camaradas bolcheviques de visão torta, que sugeriram cooperação com o governo provisório, e forçá-los a concordar com seu plano de golpe. O governo deveria tê-lo desmascarado e exterminado, mas não o fez. Ele venceu.
Mesmo a “invasão” do Palácio de Inverno, repetido em um espetáculo doutrinante de 1920 como o triunfo do povo, não teve nada de invasora. Lenin se via enfurecido, pois foram necessários vários dias para tomar os principais prédios do governo; já o palácio em si, sem defesas, foi tomado com a simples subida pelas janelas abertas, ignorando solenemente os cadetes adolescentes – com um bacanal para completar, e bolcheviques bêbados bebendo o Château d’Yquem 1847 do czar no gargalo.
Outubro poderia ter anunciado um período interino curto, como tantas revoluções fracassadas da época; qualquer ataque coordenado pelo Exército Branco, o outro lado da guerra civil russa, ou qualquer intervenção das forças ocidentais teria acabado com os bolcheviques. Tudo dependia de Lenin. Ele próprio quase foi deposto em um golpe de parceiros rebeldes da coalizão, mas escreveu a própria sorte graças a uma combinação de paixão ideológica, pragmatismo implacável, derramamento de sangue descontrolado e o desejo de estabelecer uma ditadura. Às vezes, ele contava somente com a sorte – como em 30 de agosto de 1918, quando foi alvejado enquanto discursava para um grupo de trabalhadores em uma fábrica de Moscou. Sobreviveu por questão de centímetros.
Se qualquer um desses eventos tivesse frustrado Lenin, nossa realidade seria bem diferente. Sem Lenin não haveria Hitler, cuja ascensão se deveu principalmente ao apoio das elites conservadoras que temiam uma revolução bolchevique em solo alemão e acreditavam que ele sozinho poderia derrotar o marxismo. E o resto de seu programa radical também poderia ser justificado pela ameaça da revolução leninista. Seu antissemitismo, seu plano antieslavo para o Lebensraum e, acima de tudo, a invasão da União Soviética em 1941 tinham as bênçãos da aristocracia e do povo por causa do medo do que os nazistas chamavam de “bolchevismo judeu”.
Sem a Revolução Russa de 1917, Hitler muito provavelmente teria acabado a carreira pintando postais em uma das pensões baratas onde começou. Sem Lenin, não haveria Hitler – e, com isso, o século 20 se torna inimaginável. De fato, a própria geografia da nossa imaginação se torna inconcebível.
O Oriente seria tão diferente quanto o Ocidente. Mao, que recebeu muita ajuda da verba soviética nos anos 40, não teria conquistado a China, que poderia muito bem ainda ser governada pela família de Chiang Kai-shek. As inspirações que iluminaram as montanhas de Cuba e as selvas do Vietnã talvez nunca tivessem existido. Tampouco haveria Kim Jong-un, o pastiche pantomímico de Stalin. Não teria havido uma Guerra Fria. É óbvio que as disputas de poder teriam sido terríveis, mas diferentes.
A Revolução Russa mobilizou uma paixão popular ao redor do mundo baseada no marxismo-leninismo, insuflada por um zelo messiânico. Foi, talvez, depois das três religiões abraâmicas, o maior arroubo milenário da história do ser humano. Seu idealismo virtuoso justificava qualquer monstruosidade. Os bolcheviques admiravam as purgações e “limpezas” ocorridas durante o “Reino do Terror” de Robespierre: “Uma revolução sem esquadrões da morte não tem razão de ser”, Lenin dizia. Os bolcheviques criaram os primeiros revolucionários profissionais, o primeiro Estado policial integral, a primeira mobilização em massa moderna em nome da guerra de classes contra a contrarrevolução.
O bolchevismo foi uma ideologia, uma cultura idiossincrática com uma visão de mundo paranoica e intolerante, obcecada com uma ideologia marxista obscura. Sua determinação justificava a dizimação de todos os inimigos, reais e prováveis, não só promovida por Lenin ou Stalin, mas também Mao, Pol Pot no Camboja, Mengistu Haile Mariam na Etiópia. Também deu origem aos campos de trabalho escravo, à catástrofe econômica e aos danos psicológicos indizíveis (esses eventos aconteceram há tanto tempo que os horrores foram apagados e a história, esquecida; só o brilho glamouroso de poder e idealismo permanece para intoxicar os jovens eleitores decepcionados com a hesitação morna do capitalismo liberal).
Em 1913, a polícia secreta do czar tinha dispersado e derrotado a oposição. Pouco antes da queda do soberano, Lenin disse à mulher que “não viveria para ver a revolução”. No fim, foi um levante popular espontâneo e desorganizado e uma crise de lealdade militar que forçaram Nicolau a abdicar. Quando o momento finalmente chegou, Lenin estava em Zurique, Trotsky em Nova York e Stálin, na Sibéria.
A princípio, Lenin achou que fosse “uma farsa”. Teve sorte de ter sido “inserido” na Alemanha, feito um bacilo (graças ao chamado trem oficial), para tirar a Rússia da guerra. De volta a Petrogrado, ajudado pelos companheiros tão radicais quanto ele mesmo, Lenin teve de derrotar camaradas bolcheviques de visão torta, que sugeriram cooperação com o governo provisório, e forçá-los a concordar com seu plano de golpe. O governo deveria tê-lo desmascarado e exterminado, mas não o fez. Ele venceu.
Mesmo a “invasão” do Palácio de Inverno, repetido em um espetáculo doutrinante de 1920 como o triunfo do povo, não teve nada de invasora. Lenin se via enfurecido, pois foram necessários vários dias para tomar os principais prédios do governo; já o palácio em si, sem defesas, foi tomado com a simples subida pelas janelas abertas, ignorando solenemente os cadetes adolescentes – com um bacanal para completar, e bolcheviques bêbados bebendo o Château d’Yquem 1847 do czar no gargalo.
Outubro poderia ter anunciado um período interino curto, como tantas revoluções fracassadas da época; qualquer ataque coordenado pelo Exército Branco, o outro lado da guerra civil russa, ou qualquer intervenção das forças ocidentais teria acabado com os bolcheviques. Tudo dependia de Lenin. Ele próprio quase foi deposto em um golpe de parceiros rebeldes da coalizão, mas escreveu a própria sorte graças a uma combinação de paixão ideológica, pragmatismo implacável, derramamento de sangue descontrolado e o desejo de estabelecer uma ditadura. Às vezes, ele contava somente com a sorte – como em 30 de agosto de 1918, quando foi alvejado enquanto discursava para um grupo de trabalhadores em uma fábrica de Moscou. Sobreviveu por questão de centímetros.
Se qualquer um desses eventos tivesse frustrado Lenin, nossa realidade seria bem diferente. Sem Lenin não haveria Hitler, cuja ascensão se deveu principalmente ao apoio das elites conservadoras que temiam uma revolução bolchevique em solo alemão e acreditavam que ele sozinho poderia derrotar o marxismo. E o resto de seu programa radical também poderia ser justificado pela ameaça da revolução leninista. Seu antissemitismo, seu plano antieslavo para o Lebensraum e, acima de tudo, a invasão da União Soviética em 1941 tinham as bênçãos da aristocracia e do povo por causa do medo do que os nazistas chamavam de “bolchevismo judeu”.
Sem a Revolução Russa de 1917, Hitler muito provavelmente teria acabado a carreira pintando postais em uma das pensões baratas onde começou. Sem Lenin, não haveria Hitler – e, com isso, o século 20 se torna inimaginável. De fato, a própria geografia da nossa imaginação se torna inconcebível.
O Oriente seria tão diferente quanto o Ocidente. Mao, que recebeu muita ajuda da verba soviética nos anos 40, não teria conquistado a China, que poderia muito bem ainda ser governada pela família de Chiang Kai-shek. As inspirações que iluminaram as montanhas de Cuba e as selvas do Vietnã talvez nunca tivessem existido. Tampouco haveria Kim Jong-un, o pastiche pantomímico de Stalin. Não teria havido uma Guerra Fria. É óbvio que as disputas de poder teriam sido terríveis, mas diferentes.
A Revolução Russa mobilizou uma paixão popular ao redor do mundo baseada no marxismo-leninismo, insuflada por um zelo messiânico. Foi, talvez, depois das três religiões abraâmicas, o maior arroubo milenário da história do ser humano. Seu idealismo virtuoso justificava qualquer monstruosidade. Os bolcheviques admiravam as purgações e “limpezas” ocorridas durante o “Reino do Terror” de Robespierre: “Uma revolução sem esquadrões da morte não tem razão de ser”, Lenin dizia. Os bolcheviques criaram os primeiros revolucionários profissionais, o primeiro Estado policial integral, a primeira mobilização em massa moderna em nome da guerra de classes contra a contrarrevolução.
O bolchevismo foi uma ideologia, uma cultura idiossincrática com uma visão de mundo paranoica e intolerante, obcecada com uma ideologia marxista obscura. Sua determinação justificava a dizimação de todos os inimigos, reais e prováveis, não só promovida por Lenin ou Stalin, mas também Mao, Pol Pot no Camboja, Mengistu Haile Mariam na Etiópia. Também deu origem aos campos de trabalho escravo, à catástrofe econômica e aos danos psicológicos indizíveis (esses eventos aconteceram há tanto tempo que os horrores foram apagados e a história, esquecida; só o brilho glamouroso de poder e idealismo permanece para intoxicar os jovens eleitores decepcionados com a hesitação morna do capitalismo liberal).
E tem também a Rússia, sucessora da União Soviética. O poder de Vladimir Putin é reforçado por seus ex-colegas, os agentes da KGB, herdeiros da polícia secreta de Lenin e Stalin. Putin e seu regime adotaram as táticas leninistas da “konspiratsia” e “dezinformatsiya”, que acabaram se tornando mais que adequadas para as tecnologias atuais. Os norte-americanos podem ter inventado a internet, mas a viram (confortavelmente) como um meio de ganhar dinheiro ou (ingenuamente) como um clique mágico para a liberdade. Os russos, criados à base do cinismo leninista, a usaram para enfraquecer a democracia norte-americana.
Putin lamentou a queda da União Soviética como “a maior catástrofe geopolítica” do século 20, embora encare Lenin como um agente do caos entre duas épocas de grandeza nacional: os Romanov antes de Nicolau II (Pedro, o Grande e Alexandre III são seus favoritos) e a glória de superpotência soviética sob Stálin.
E ele se apresenta como um czar – e, como todos os soberanos antes dele, teme a revolução acima de qualquer coisa. É por isso que a vitória contra a Alemanha, em 1945, e não a Revolução Bolchevique de 1917, é o mito fundamental da Rússia putinista. E daí a ironia do Ocidente discutindo exaustivamente a revolução enquanto a Rússia basicamente finge que ela nunca ocorreu. O mausoléu de mármore de Lenin, na Praça Vermelha, deve ecoar sua gargalhada – afinal, reflete o tipo de cálculo político confuso que ele apreciava tanto.
Putin lamentou a queda da União Soviética como “a maior catástrofe geopolítica” do século 20, embora encare Lenin como um agente do caos entre duas épocas de grandeza nacional: os Romanov antes de Nicolau II (Pedro, o Grande e Alexandre III são seus favoritos) e a glória de superpotência soviética sob Stálin.
E ele se apresenta como um czar – e, como todos os soberanos antes dele, teme a revolução acima de qualquer coisa. É por isso que a vitória contra a Alemanha, em 1945, e não a Revolução Bolchevique de 1917, é o mito fundamental da Rússia putinista. E daí a ironia do Ocidente discutindo exaustivamente a revolução enquanto a Rússia basicamente finge que ela nunca ocorreu. O mausoléu de mármore de Lenin, na Praça Vermelha, deve ecoar sua gargalhada – afinal, reflete o tipo de cálculo político confuso que ele apreciava tanto.
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