18 de outubro de 2017

“Queria ver por mim mesma a primeira terra do socialismo”: mulheres negras estadunidenses e a Revolução Russa

Shana A. Russell 

Science & Society

Tradução / Como uma jovem marxista e membro do Coletivo Manuscrito da revista Science & Society, eu estou quase envergonhada de dizer que, até recentemente, a Revolução Russa teve muito pouco, se é que teve, significado para mim. Parecia distante demais das experiências com meus objetos de pesquisa, trabalhadoras negras nos Estados Unidos. Era a história européia e, portanto, tangencial à história da diáspora africana. A União Soviética não era mais do que a causa da nostalgia de meus colegas mais velhos. Agora sei o quão errado foi essa percepção. A revolução de 1917 estava inextricavelmente ligada às histórias de descolonização na África e à libertação negra nos Estados Unidos.

Foram os arquivos subexaminados de trabalhistas negras que me mostraram quão importante foi a Revolução, e é para mim um século depois. Nos arquivos de Esther Cooper e James Jackson, descobri um documento que daria à União Soviética um significado real para mim, como a filha de quatro gerações de trabalhadores domésticos negros. A Tese de mestrado de Esther Cooper, “A trabalhadora doméstica negra em relação ao sindicalismo” postulou a Revolução Russa como um momento crucial para os trabalhadores domésticos na União Soviética e um ideal realizável para mulheres negras nos Estados Unidos. Nas duas décadas após 1917, dezenas de mulheres negras fizeram a peregrinação à URSS e retornaram aos Estados Unidos com uma nova visão de liberdade para si próprias como trabalhadoras, como mulheres e como afro-americanas.

Enquanto a Revolução de 1917 explodiu na Rússia, George P. e Esther Irving Cooper receberam sua filha Esther no mundo. Os Coopers eram progressistas negros por excelência. Eles abraçaram o tipo de justiça social que se centrou na mobilidade ascendente da classe média, na educação e na elevação racial (Haviland, 2015, 15; McDuffie, 2011, 100). A família de Cooper desperta certa curiosidade acadêmica. Nas palavras do historiador Erik McDuffie, o que move “a décima jovem de uma talentosa família negra do sul para a esquerda?” (2011, 11). Resposta de Cooper: a União Soviética através dos olhos dos trabalhadores domésticos.

A visão profética de Cooper para trabalhadores domésticos veio a ela enquanto ela era uma estudante de pós-graduação na Universidade Fisk, uma instituição historicamente negra em Nashville, Tennessee. Ela se matriculou em 1938 depois de terminar seus estudos de graduação em Oberlin. Enquanto lá, ela foi convidada por um professor para “uma pequena sala ‘tipo Anne Frank’ na parte de trás de sua casa, onde ele ergueu as cortinas e estava apenas cheio de livros de Marx, Lênin [e] a Internacional Comunista”. Ao pesquisar sua tese, Cooper atuou em um círculo de estudo marxista formado principalmente por professores. Quando completou seus estudos em Fisk apenas dois anos depois, Cooper era oficialmente membro do Partido Comunista Americano (CPUSA em inglês). (Kelley, 1990, 205; McDuffie, 2011, 103)

Imagino que Cooper descobriu a Revolução em algum lugar naquela estante escondida em Nashville e que essa descoberta a levou à crença de que a União Soviética representava uma nova visão para trabalhadores domésticos nos Estados Unidos. O segundo capítulo de sua tese, intitulado “Fronteiras do sindicalismo americano”, descreveu brevemente as experiências dos trabalhadores domésticos na Rússia antes e depois de 1917. “A mudança da posição dos trabalhadores domésticos na Rússia é muito impressionante”, começou Cooper. Ela continuou:

Antes da Revolução Russa, os trabalhadores domésticos nas cidades muitas vezes trabalhavam desde o nascer do sol até a escuridão. As condições de vida dos trabalhadores eram inadequadas: uma cama estreita no corredor, armário ou cozinha era, muitas vezes, o único lugar onde o servo doméstico tinha que dormir. O alimento que os trabalhadores preparavam foi servido ao empregador, enquanto o trabalhador comeu com pouco conteúdo nutritivo. O pagamento era pequeno e as férias eram inéditas.

As condições de trabalho na Rússia antes da Revolução refletiam as de trabalhadores domésticos negros nos Estados Unidos. Segundo Cooper, depois de 1917, os domésticos soviéticos conseguiram formar sindicatos que levaram a direitos laborais mais abrangentes e melhores condições de trabalho. Mas o que mais importava para Cooper era a ausência do estigma associado ao trabalho doméstico. “A posição social dos trabalhadores domésticos”, afirmou, “é igual a qualquer outro trabalhador”. (Cooper, 1940, 29–30)

A tese de Cooper continua sendo uma de suas realizações mais inovadoras e é diferente de qualquer coisa escrita antes ou depois. O historiador Erik McDuffie argumenta que é “o estudo sociológico e histórico mais completo escrito sobre as condições de trabalho e o status das domésticas negras e seus esforços para se sindicalizar durante a Depressão” (2008, 203). No entanto, na América, o estigma associado ao trabalho doméstico era racial. O tratamento dos trabalhadores domésticos negros e a sua posição na hierarquia social foi uma transferência da escravização. Apesar dessa diferença fundamental, Cooper permaneceu esperançosa. Nas suas palavras: “Os sindicatos de trabalhadores domésticos nos Estados Unidos têm diante deles experiências de sindicatos de trabalhadores domésticos em países europeus (…). A perspectiva para os sindicatos de trabalhadores domésticos não parece tão escura quando consideramos as lutas que outros sindicatos tiveram”. (Cooper, 1940, 30)

Nas décadas desde a publicação da tese de Cooper, a demografia do trabalho doméstico mudou, mas o estigma ainda permanece. As mulheres imigrantes africanas, caribenhas, asiáticas e latino-americanas que fazem trabalho doméstico são o grupo de trabalhadores mais desprotegidos dos Estados Unidos. Elas são excluídas de uma série de proteções laborais básicas concedidas a todos os trabalhadores estadunidenses pelas Normas do Trabalho Justo e Atos de Segurança Social. No entanto, como os temas da tese de Cooper, essas mulheres também fazem parte de um movimento de resistência ativo que busca organizar e capacitar as trabalhadoras domésticas para exigir seus direitos. Essas ativistas contemporâneas honram Cooper como a principal força do movimento atual. Sua visão, inspirada nas realizações dos trabalhadores domésticos soviéticos, tornou-se a delas.

Seis anos depois que Cooper completou sua tese, ela visitou a União Soviética pela primeira vez como parte de uma delegação feminina hospedada pelo Comitê Anti-Fascista da Juventude. (Haviland, 2015, 115) Durante sua estadia de seis semanas, Cooper formou relações duradouras com líderes feministas comunistas de todo o mundo. Ela ficou fascinada com a transformação da vida das mulheres soviéticas provocada pela Revolução. O comunismo, ela acreditava, poderia “promover a igualdade racial, a descolonização, os direitos das mulheres e a democracia”. A visita de Cooper à URSS reforçou sua crença de que o socialismo era um caminho ideal para a libertação das mulheres negras. (McDuffie, 2011, 156; 2012, 14–15)

A questão da eliminação do estigma racial associado ao trabalho doméstico foi deixada sem resposta na tese de Cooper. Mas para outras mulheres negras ativistas que fizeram residência temporária na União Soviética logo após a Revolução, a derrubada do capitalismo nos Estados Unidos não seria possível sem uma análise das hierarquias raciais. Na verdade, mulheres como Williana Burroughs, Dorothy West, Maude White, Louise Thompson Patterson, Hermina Dumont Huiswood e Thyra Edwards fizeram contribuições significativas para a incorporação de análises raciais na ideologia em desenvolvimento do comunismo americano. No quarto congresso da Internacional Comunista (Comintern), formou-se uma “Comissão dos Negros”, liderada pelo poeta americano e ativista jamaicano Claude McKay e co-fundador do CPUSA, Otto Huiswood, nascido no Suriname. Poucos anos depois, no sexto congresso, a Comissão começou a redigir uma resolução sobre o que era conhecido como a “Questão Negra”, a primeira divulgada em 1928, seguida de uma segunda versão em 1930.

A primeira resolução defendeu a autodeterminação para os trabalhadores negros no Sul americano, ou o “cinturão negro”. Solicitou o recrutamento agressivo de trabalhadores negros para o Partido Comunista e a eliminação do chauvinismo branco. Das 21 reivindicações separadas feitas pela resolução, apenas uma abordou as experiências únicas de mulheres negras. Afirmou:
As mulheres negras na indústria e nas fazendas constituem uma poderosa força potencial na luta pela emancipação dos negros. Por terem sido desorganizadas em uma extensão ainda maior do que os trabalhadores do sexo masculino, elas são a seção mais explorada. A burocracia da Federação Americana do Trabalho (AFL em inglês), naturalmente, exerce para eles uma dupla hostilidade, tanto por sua cor quanto pelo seu sexo. Por isso, torna-se uma tarefa importante do partido trazer as mulheres negras para a luta econômica e política.

A segunda resolução não fez menção às trabalhadoras negras. Embora elas tenham certamente trabalhado como trabalhadoras de fábricas e meeiros, a maioria das mulheres negras na época trabalhava como doméstica. Ao eliminar os trabalhadores domésticos desse quadro, e declarando-os de alguma forma “fora” da luta econômica e política, as resoluções codificaram implicitamente o proletariado negro como homem.

Para mulheres como Williana Burroughs, uma professora da escola de Nova York e líder comunitária do Harlem, que esteve presente no sexto congresso em Moscou, a marginalização das mulheres negras na resolução era uma negligência flagrante. Ela era muito vocal sobre suas críticas ao Partido dos Trabalhadores por sua “subestimação do trabalho das mulheres, particularmente das questões das mulheres negras, ilustrando como as mulheres comunistas negras levavam suas queixas com as autoridades do Partido Comunista dos EUA para Moscou para reparar”. (McDuffie, 2011, 26) Assim, as mulheres comunistas negras não foram de modo algum dissuadidas pelo chauvinismo branco. Suas experiências em Moscou inculcaram a crença de que o “problema da raça” (no Partido e na sociedade) poderia ser eliminado através do comunismo. Além disso, o Comintern reconheceu e respeitou a liderança das mulheres negras, inspirando uma série de ativistas afro-americanos a se mudarem para a Rússia com recomendação de membros do Partido. Burroughs fez exatamente isso em 1937 e trabalhou como locutora e editora da transmissão em língua inglesa da Rádio Moscou. Embora possa ser inimaginável para alguns que uma negra estadunidense se torne conhecida como a “Voz de Moscou”, para Burroughs a transformação da sociedade soviética também abriu a porta para uma transformação pessoal. (Harris, 2009, 24–25, 35)

O mesmo se poderia dizer de Maude White, que foi a primeira mulher afro-americana a matricular-se na Universidade Comunista dos Trabalhadores do Oriente (KUTV). Ela recebeu uma bolsa de estudos do instituto, originalmente fundado para apoiar as organizações comunistas no mundo colonial, e passou três anos no país. De muitas maneiras, a União Soviética era um lugar de encontro para ativistas anti-racistas e anti-coloniais negros americanos. Permitiu que membros da diáspora africana teorizassem as conexões entre movimentos de resistência negra em todo o mundo. Para as mulheres negras como White, viver na URSS promoveu a compreensão de que as mulheres “constituíam a vanguarda para a mudança transformadora”. (McDuffie, 2011, 53–55)

Louise Thompson [Patterson] visitou pela primeira vez a União Soviética em 1932. Ela passou três meses lá, viajando dez mil milhas e passando o tempo em seis repúblicas soviéticas. Refletindo sobre sua viagem, Thompson escreveu: “O que eu testemunhei convenceu-me de que apenas uma nova ordem social poderia remediar as injustiças raciais americanas que eu conhecia tão bem. Fui para a União Soviética com inclinações de esquerda; Eu voltei para casa uma revolucionária comprometida.” (McDuffie, 2011, 59) Como Esther Cooper, Thompson acreditava que as mulheres trabalhadoras negras estavam na linha de frente da vanguarda revolucionária negra. Os trabalhadores domésticos estavam no centro de seu ensaio “Rumo a um amanhecer mais brilhante”, publicado no jornal do CPUSA Woman Today, em 1936.

“Aqui estamos”, escreveu ela, “à venda para o dia. Tome o nosso trabalho. Dê-nos o que você quiser.” Thompson continuou a argumentar que os mercados de rua de Nova York, onde dezenas de mulheres negras se reuniam todas as manhãs em busca do trabalho doméstico, eram “um monumento gráfico para a seção de exploração amarga da população trabalhadora estadunidense, as mulheres negras.” Ela elogiou o plano do Congresso Nacional Negro para desenvolver sindicatos para trabalhadores domésticos. Isso levou à formação de sindicatos em cidades como Chicago, Washington D.C. e Nova York. Esses primeiros sindicatos se tornariam o objeto da tese de Esther Cooper. Ao traduzir suas experiências soviéticas no exterior em uma nova visão para as mulheres negras em casa, Thompson, Burroughs, White e Cooper conseguiram combater a marginalização da opressão das mulheres negras na ideologia comunista americana, ao mesmo tempo em que impulsionavam os movimentos liberatórios negros para a esquerda com chamados por abordagens mais radicais para tratar o terrorismo racial. Embora os comunistas americanos raramente considerassem as experiências das mulheres negras, a Revolução Russa demonstrou o que era possível e comprometeu-se a acabar com o capitalismo inabalável.

Estas não seriam as últimas mulheres negras a levarem a peregrinação à Rússia em busca da promessa soviética. No início da década de 1960, a principal teórica do CPUSA na questão da mulher, Claudia Jones, realizou seu sonho de viajar pelo país. Refletindo sobre sua visita em 1962, ela escreveu: “Queria ver por mim mesma a primeira Terra do Socialismo. Fiquei curiosa para ver uma terra que eu já conhecia abominar a discriminação racial ao ponto de tornar um crime legal, e onde a igualdade de todas as pessoas é um axioma reconhecido”. (Davies, 2008, 125) Enquanto os acontecimentos de 1917 não revolucionaram imediatamente a vida das mulheres soviéticas, sua promessa permitiu que as mulheres afro-americanas se afiassem como parte integrante de um movimento global para acabar com o racismo, o sexismo e o imperialismo. Ver a União Soviética significava ver o fim de sua exploração como negros, como mulheres e como trabalhadores, com novos olhos.

Eu conheci Esther Cooper pela primeira vez em 2014 em uma conferência patrocinada pela Aliança Nacional dos Trabalhadores Domésticos (NDWA em inglês). Ali, ela estava sendo homenageada por um compromisso vitalício com a equidade, o respeito e a dignidade dos trabalhadores domésticos. O diretor da NDWA, Ai Jen Poo, citou a tese de Cooper como um documento fundamental para o movimento de resistência dos trabalhadores domésticos contemporâneos. As mulheres que se reuniram no Barnard College para a conferência reconheceram que sua situação era o resultado do imperialismo global. Defenderam a organização e a unidade em linhas de raça, idade, idioma, cultura e origem nacional. Enquanto a NDWA pode não comemorar o centenário da Revolução Russa da mesma forma que os meus camaradas certamente irão, o próprio fundamento de sua ideologia, a tese de Cooper, é possível devido à resistência dos trabalhadores soviéticos. Nesse sentido, a Revolução também me traz um certo significado. Não apenas como um marxista, mas como a filha de quatro gerações de trabalhadoras domésticas negras e ativistas.

Referências

Boyce Davies, Carole. 2008. Left of Karl Marx: The Political Life of Black Communist Claudia Jones. Durham, North Carolina: Duke University Press.

Harris, Lashawn. 2009. “Running with the Reds: African American Women and the Communist Party During the Great Depression.” Journal of African American History, 94:1, 21–43.

Haviland, Sara Rzeszutek. 2015. James and Esther Cooper Jackson: Love and Courage in the Black Freedom Movement. Lexington, Kentucky: University Press of Kentucky.

Jackson, Esther Cooper. 1940. “The Negro Domestic Worker in Relation to Trade Unionism.” James and Esther Cooper Jackson Papers, Tamiment Library/Robert F. Wagner Labor Archives, Elmer Holmes Bobst Library, New York University.

Kelley, Robin D. G. 1990. Hammer and Hoe: Alabama Communists During the Great Depression. Chapel Hill, North Carolina: University of North Carolina Press.

McDuffie, Erik S. 2011. Sojourning for Freedom: Black Women, American Communism, and the Making of Black Left Feminism. Durham North Carolina: Duke University Press.

McDuffie, Erik S. 2012. “‘For Full Freedom of... Colored Women in Africa, Asia, and in These United States...’: Black Women Radicals and the Practice of a Black Women’s International.” Palimpsest: A Journal on Women, Gender, and the Black International, 1:1, 1-30.

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