28 de fevereiro de 2020

Maior risco é país andar para trás, com crise institucional e fiscal

Expectativas de mercado são de comportamento em V da economia mundial, puxada pela China

Nelson Barbosa

Folha de S.Paulo

Passageiros e funcionários usam máscaras enquanto esperam voo no Aeroporto Internacional de Guarulhos, na Grande SP; ela deve ser usada por quem tem sintomas da doença e voltou de país com casos de coronavírus Zanone Fraissat/Folhapress

O ano começou para valer depois do Carnaval, e tudo indica fortes turbulências à frente, de origens externas e internas.

No cenário internacional, entramos 2020 com as incertezas dos atritos entre Irã e EUA, que agora parecem distantes no passado. O surto do coronavírus é hoje a principal preocupação mundial, e seus efeitos já se manifestaram por aqui.

Do ponto de vista econômico, a disseminação do coronavírus é um choque negativo de demanda e oferta. Na demanda, o medo e as políticas necessárias para a contenção do vírus reduzem gastos das famílias e das empresas a curto prazo, sobretudo no setor de serviços e turismo.

Os gastos do governo tendem a aumentar —lembre-se do hospital que os chineses construíram em uma semana—, mas o efeito líquido da crise deve ser queda da demanda global no curto prazo.

Na oferta, o combate à disseminação da doença desacelerou ou mesmo parou a indústria em várias partes do mundo, criando problemas para cadeias produtivas baseadas em insumos importados. Isso reduz temporariamente a oferta mundial em vários setores.

Segundo manuais de economia, retração simultânea de demanda e oferta tem grande impacto negativo sobre renda e emprego, mas efeito indeterminado sobre preços. No mundo real, o impacto sobre a inflação global tende a ser negativo, dado que o mundo já estava desacelerando antes da crise atual.

Até agora as expectativas de mercado são de comportamento em “V” da economia mundial, puxada pela China. Segundo alguns grandes bancos internacionais, o crescimento chinês deve cair de 6% ao ano, no fim de 2019, para apenas 1%, neste trimestre.

Depois espera-se recuperação rápida por lá, com crescimento entre 7% e 9% no meio do ano e retorno à velocidade de 6% no fim de 2020.

A recuperação em “V” da economia chinesa é baseada na expectativa de rápida recomposição de estoques após a contenção do coronavírus, bem como nas políticas de estímulo que o governo de lá anunciou para o restante do ano.

Torço para que as expectativas de mercado estejam corretas, mas a disseminação do coronavírus pelo mundo indica que o problema pode durar mais tempo do que o esperado. A crise é temporária, mas o curto prazo pode ser longo o suficiente para ter efeitos significativos na economia.

Em paralelo aos problemas de fora, por aqui vivemos o risco de deterioração política e econômica nos próximos meses. Nosso PIB já deu sinais de desaceleração antes do surto do coronavírus, frustrando as expectativas “agora vai” do mercado.

Os recentes embates do governo com o Congresso também não contribuem para otimismo, dificultando o avanço de ações necessárias para aumentar nossa produtividade (reforma tributária) e aperfeiçoar o gasto público (reforma administrativa).

Hoje, nosso maior risco é andar para trás, com crise institucional e fiscal deflagrada pelo aumento concedido à PM de Minas Gerais, apoio velado do Planalto à insurgência de policiais em outros estados e novos flertes do clã Bolsonaro com o autoritarismo.

Para piorar, a equipe econômica se pintou no canto da sala com teto de gastos e meta de resultado primário. Pelas regras atuais, teremos novo corte de despesa pública em março, em uma economia sob risco de desaceleração.

Diante desse risco, não é surpresa que o Congresso tenha chamado para si a execução do gasto discricionário da União. Há excesso de papalvos do lado do governo.

Regra fiscal mal concebida faz o Executivo perder poder justamente quando tudo indica ser necessária ação do Executivo para atenuar a crise que se aproxima.

Sobre o autor

Professor da FGV e da UnB, ex-ministro da Fazenda e do Planejamento (2015-2016). É doutor em economia pela New School for Social Research.

Olof Palme foi um herói internacionalista

Do ANC da África do Sul aos socialistas chilenos, na década de 1970, os movimentos de libertação em todo o mundo tinham poucos aliados maiores do que o primeiro-ministro sueco Olof Palme. Ele usou altos cargos para falar em nome dos oprimidos no exterior - e para construir um movimento internacionalista em sua terra natal.

Anton Ösgård e William Westgard-Cruice


Olof Palme, então primeiro-ministro da Suécia, em um comício do Primeiro de Maio em Norra Bantorget, Estocolmo, no início dos anos 1970. Wikimedia Commons

Tradução / "Olof Palme também é um social-democrata. Por que ele é tão diferente do maldito [Harold] Wilson?" Essa foi a pergunta que o crítico de teatro inglês Kenneth Tynan fez a Tariq Ali, de 23 anos, em um restaurante de Estocolmo em janeiro de 1967. Ali respondeu que foi a neutralidade militar da Suécia que deu a Palme, na época um ministro sênior do gabinete, espaço de manobra para sediar o Tribunal Internacional de Crimes de Guerra em Estocolmo. Organizado pelos filósofos Bertrand Russell e Jean-Paul Sartre, o tribunal simbólico levou os Estados Unidos a julgamento por seus crimes no Vietnã.

A neutralidade certamente desempenhou algum papel na decisão de Palme, mas não foi a história completa. Como Palme disse aos colegas social-democratas suecos em 1964, "Política, camaradas, é querer algo". Embora o primeiro-ministro trabalhista da Grã-Bretanha, Harold Wilson, tenha recusado o pedido de Russell para sediar o tribunal em Londres, Palme não era um social-democrata comum. Ele era um internacionalista profundamente comprometido que apoiou com entusiasmo várias lutas antifascistas e anti-imperialistas desde a década de 1960 até seu assassinato em 1986.

Primeiro-ministro da Suécia de 1969 a 1976 e de 1982 até sua morte, Palme demonstrou que um político habilidoso que realmente "quisesse algo" poderia transitar entre os mundos da militância e da política, apoiando os esforços de solidariedade internacional em seu país e, ao mesmo tempo, fortalecendo os movimentos pela dignidade humana no exterior.

Décadas depois, a cultura de solidariedade que ele trouxe para a vanguarda da política sueca está sendo combatida, e até mesmo atacada, por muitos de seu antigo partido. Mas o legado de Palme pode influenciar o programa de política externa dos dirigentes de esquerda que disputam o poder ainda hoje.

Querendo algo

Nascido em uma família burguesa no elegante bairro de Östermalm, em Estocolmo, Palme era uma figura improvável para se tornar o líder do Partido Social Democrata (SAP) da Suécia. Seu despertar político, na verdade, ocorreu nos Estados Unidos, quando ele estudava na Kenyon College, uma faculdade de artes intelectuais na região central de Ohio. Lá, ele passava os fins de semana aprendendo sobre o movimento trabalhista dos EUA com os trabalhadores de uma fábrica de turbinas próxima.

Depois de se formar na Kenyon em 1948, Palme viajou de carona pelo sul de Jim Crow, onde compreendeu a segregação racial e a privação econômica enfrentada por muitos afro-americanos. Suas experiências nos Estados Unidos moldaram seu apoio posterior à luta antiapartheid do Congresso Nacional Africano e às guerras de libertação nacional na Namíbia, no Saara Ocidental e na Palestina ocupada.

Embora tenha sido desvalorizado em muitos relatos do final da década de 1960, o Tribunal Internacional de Crimes de Guerra, também conhecido como Tribunal Russell, foi um evento importante no cenário mundial. O comitê de julgamento incluía figuras como James Baldwin, Stokely Carmichael, Simone de Beauvoir, Isaac Deutscher e o ex-presidente mexicano Lázaro Cárdenas.

A fim de reunir provas para o tribunal, uma delegação liderada pelo comunista escocês e ativista do National Union of Mineworkers, Lawrence Daly, viajou pelo Vietnã do Norte, documentando o ataque dos militares americanos à infraestrutura civil, o uso de armas químicas e a tortura de prisioneiros de guerra vietnamitas.

O tribunal foi encerrado com um discurso contundente de Jean-Paul Sartre, com o comitê declarando os EUA culpados de genocídio e seus principais aliados culpados de vários crimes de guerra. O tribunal e seu veredicto foram amplamente divulgados pela mídia sueca, especialmente no Arbetet e no Aftonbladet, jornais de grande circulação financiados pelo SAP e pela Confederação Sindical Sueca (Lands Organisation, LO).

Palme abraçou com entusiasmo a causa vietnamita – em 1968, enquanto atuava como ministro da educação no governo de seu mentor, Tage Erlander, ele chegou a marchar ao lado do embaixador norte-vietnamita na Suécia em um protesto contra a guerra. No entanto, esse compromisso com movimentos internacionalistas radicais diferenciava Palme de seus colegas do SAP, muitos dos quais haviam se envolvido profundamente com a burocracia estatal.

Investidos na expansão do complexo militar-industrial da Suécia, certas facções da burocracia estatal apoiaram fortemente a aliança secreta do país neutro com a OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte). Na verdade, a postura do SAP em relação à União Soviética e seus aliados era governado não apenas pelo fenômeno generalizado do anticomunismo social-democrata, mas também pela inimizade histórica entre a Suécia e a Rússia.

Primeiro-ministro Palme

Quando Palme sucedeu Erlander como líder do SAP e primeiro-ministro da Suécia em outubro de 1969, seu governo se voltou decisivamente para a esquerda em meio a uma onda de radicalismo na sociedade sueca. Um movimento de esquerda bem organizado, inserido em todos os aspectos da sociedade sueca, esperava ir além do estado de bem-estar social fordista-keynesiano que havia atingido a maturidade sob Erlander.

Mas o internacionalismo de Palme provocou uma forte reação dos Estados Unidos. Em 1972, os EUA congelaram as relações diplomáticas com a Suécia, depois que o primeiro-ministro fez um discurso em que comparou os atentados de Natal em Hanói com o bombardeio de Guernica e o campo de extermínio nazista de Treblinka.

Embora criticasse ferozmente a política externa dos EUA, Palme não era amigo da União Soviética ou de seus aliados do Pacto de Varsóvia. Ele condenou veementemente a invasão da Tchecoslováquia e a subsequente repressão da oposição sob o regime autoritário de Gustáv Husák. De fato, Palme foi um crítico feroz da União Soviética por mais tempo do que foi social-democrata – na década de 1950, ele desempenhou um papel fundamental na organização da Conferência Internacional de Estudantes Anti soviética.

Dito isso, Palme foi um dos líderes ocidentais mais simpáticos à Revolução Cubana e aos movimentos de libertação nacional aliados na África subsaariana. Quando Palme visitou Santiago em 1975, Fidel Castro elogiou o apoio inabalável do sueco às lutas dos povos angolano, moçambicano e bissau-guineense contra a ocupação colonial portuguesa. Esses atos de solidariedade internacional são lembrados com entusiasmo por alguns. Mas foi o apoio de Palme ao socialismo democrático no Chile que deixou uma marca indelével na sociedade sueca.

Solidariedade com o Chile

Ao discursar no Parlamento em 7 de novembro de 1973, o primeiro-ministro Palme não deixou dúvidas sobre o motivo pelo qual o presidente socialista do Chile, Salvador Allende, havia sido derrubado:

O ponto principal é o seguinte: A vitória de Allende nas eleições de 1970 deu aos pobres a esperança de uma sociedade melhor e de maior dignidade humana. Essas esperanças foram anuladas com violência... A derrubada de um governo eleito pelo povo no Chile levantou a questão se, em geral, é possível realizar mudanças profundas em uma sociedade pobre e injusta sem que grupos privilegiados recorram à violência.

Harald Edelstam, embaixador sueco no Chile de 1972 a 1973, escreveria uma década após o golpe de estado chileno que “Os objetivos de Allende e da Unidade Popular coincidem totalmente com os que a nação sueca estabeleceu para si mesma”. Eles queriam alcançar, em um curto período de tempo, o que a Suécia havia conseguido em 150 anos de paz”.

Em seu curto período como embaixador, Edelstam ajudou a salvar a vida de centenas de pessoas. Entre elas estavam dirigentes da Unidade Popular, líderes trabalhistas e exilados uruguaios e bolivianos que haviam buscado refúgio no Chile de Allende. Durante o ataque da junta a Santiago em 11 de setembro de 1973, Edelstam foi e voltou da embaixada cubana sitiada com uma bandeira sueca na mão para oferecer proteção diplomática a essas pessoas e aos funcionários do governo cubano.

Em outubro de 1973, a companhia aérea nacional sueca transportou 200 de pessoas de esquerda radical fora do Chile, como Edelstam, começou a atrair a atenção negativa do regime de Pinochet e da imprensa de direita. Em novembro de 1973, a manchete do jornal pró-junta La Segunda dizia: “Outro incidente do Pimpinela Vermelha. Até quando devemos tolerar o embaixador Edelstam?” Três dias depois, o jornal pediu sua expulsão: “Por dignidade, o sueco deve ir embora”.

Em 4 de dezembro de 1973, a junta declarou Edelstam persona non grata. Ao chegar a Estocolmo, ele foi recebido como herói pela população latino-americana em crescimento e tratado com desprezo pelos social-democratas de direita e pelos burocratas conservadores de carreira.

O conde Wilhelm Wachtmeister, diretor de assuntos políticos do Ministério das Relações Exteriores e parceiro frequente de tênis de George H. W. Bush, escreveu mais tarde que a expulsão de Edelstam foi uma “solução conveniente” para uma “situação insustentável”, em que o trabalho da embaixada se tornou impossível devido ao grande número de refugiados que abrigava. Durante todo o tempo em que foi embaixador, Edelstam sempre teve o apoio de Palme e da maioria do povo sueco.

Em contraste com Edelstam, o embaixador reacionário da Noruega, Julius August Christian Fleischer, inicialmente não admitiu nenhum refugiado. Tentando desesperadamente pressionar o embaixador, as autoridades suecas levaram os refugiados até a embaixada norueguesa, presumindo que lhes ajudariam se eles conseguissem chegar lá. Em vez disso, Fleischer chamou a polícia e tentou prender os refugiados, só mudando de ideia no último minuto por causa da presença de dois jornalistas suecos.

Chilekommitté

Durante o breve período do governo de Unidade Popular de Allende, os suecos criaram mais de 100 organizações em apoio ao Chile (Chilekommitté). Eles organizaram manifestações, shows e campanhas de informação. Uma das organizadoras do primeiro Chilekommitté, Anna Rydmark Venegas, contou em 2016 que eles “eram jovens amadores, não eram políticos de carreira ou algo do gênero, apenas sentimos que tínhamos que fazer algo”. Após o golpe, o Chilekommitté mudou o foco do apoio à Unidade Popular para a organização da oposição à junta.

De 1973 a 1977, os partidos políticos suecos, as organizações da sociedade civil e as comunidades religiosas ajudaram na fuga de 30.000 chilenos rebeldes, muitos dos quais eram acadêmicos, estudantes e sindicalistas. Atualmente, a Suécia abriga a terceira maior diáspora chilena do mundo, depois dos Estados Unidos e da Argentina.

Quando os refugiados chilenos chegaram à Suécia, o Chilekommitté desempenhou um papel fundamental na recepção deles. A Arbetsmarknadsstyrelsen, a agora extinta agência estatal responsável por abrigar refugiados, apoiava financeiramente o Chilekommitté para que eles pudessem transportar as pessoas pelo país e colocá-las em contato com amigos e familiares, tanto na Suécia quanto em seu país. Quando os refugiados chegaram à Estação Central de Estocolmo, havia mais voluntários do que refugiados. Alguns voluntários ficaram desapontados por “voltar para casa sem um chileno”.

Os refugiados chilenos recém-chegados foram convidados para as casas de pessoas comuns e imediatamente absorvidos por uma infraestrutura política já existente. Eles se integraram rapidamente à sociedade sueca, e muitos continuaram a trabalhar e a se organizar politicamente em vilas e cidades de todo o país. O ethos da Solidariedade Chilena (Chilesolidariteten) teve um forte efeito sobre a ideologia e a prática internacionalista das organizações, redes e campanhas de esquerda na Suécia durante as décadas seguintes.

Em 1974, a junta de Pinochet estava se preocupando cada vez mais com as campanhas de solidariedade internacional, com um diplomata chileno declarando que “a frente de batalha saiu das fronteiras do Chile”. Como parte de uma contra ofensiva, a junta enviou US$ 5.000 para a Embaixada do Chile na Suécia para organizar “atividades culturais” com o objetivo de melhorar a imagem que os suecos tinham da junta. Esses esforços foram insignificantes para a esquerda. Apenas um ano antes, Olof Palme entregou pessoalmente US$ 100.000 arrecadados pelo movimento trabalhista sueco a Beatriz Allende, filha de Salvador Allende e principal assessora política.

O interesse do povo sueco pelo Chile cresceu enormemente quando muitos cineastas e artistas receberam bolsas do governo para realizar vários projetos destinados a divulgar informações sobre o regime de Pinochet. Ativistas sindicais viajaram de local de trabalho em local de trabalho dando palestras. A cultura e a música chilenas foram popularizadas, contribuindo para uma afinidade crescente com a América Latina em geral, conforme refletido em movimentos posteriores de solidariedade aos sandinistas e aos movimentos guerrilheiros de esquerda em El Salvador e na Guatemala.

Não é de se admirar que, em 2016, a presidente chilena Michelle Bachelet tenha visitado Estocolmo para expressar gratidão pelos esforços da Suécia durante esse período – dizendo: “O Chile nunca deixará de ser grato por essa ajuda” estendida por Olof Palme e Harald Edelstam.

Avanço rápido

Essa cultura não é apenas uma questão do passado. Hoje, os ministros da SAP estão alinhados com seus colegas da UE em apoio aos golpistas apoiados por Washington, como Juan Guaidó. Mas o povo sueco é mantido a par dos eventos atuais na América Latina por uma emissora de serviço público que acompanha de perto os acontecimentos na região. Quando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, foi solto da prisão em 8 de novembro de 2019, a Rádio Sueca cancelou sua programação regular para transmitir ao vivo nas ruas de Curitiba.

Embora esse legado ainda seja significativo, o internacionalismo social-democrata da Suécia começou a se desgastar após o assassinato de Olof Palme em 1986. Com a investigação ainda em andamento, surgiram várias teorias. Algumas são mais realistas do que outras, mas muitas apontam para os inimigos que Palme fez durante sua carreira de décadas como estadista internacional anti-imperialista.

A “Decisão Lucia”, de 1989, é vista especialmente como o marco da ruptura do SAP com o legado internacionalista de Palme. Coincidindo com o feriado pré-natalino escandinavo do Dia de Lucia, o sucessor de Palme e ex-deputado Ingvar Carlsson ordenou a suspensão dos vistos de asilo não exigidos pela ONU por dois anos. O ministro da imigração do SAP, Maj-Lis Lööw, deixou explícita a virada reacionária do partido ao advertir o Parlamento de que, sem essa restrição, 5 mil turcos búlgaros receberam asilo na Suécia naquele ano.

Ao mesmo tempo, o SAP se voltou para a direita econômica, tendo Carlsson sido um dos primeiros a adotar a ideologia da Terceira Via. Os impactos econômicos dessa mudança programática levaram muitos trabalhadores a abandonar o partido, primeiro pelo Partido Moderado, de centro-direita, e, por fim, pelos Democratas Suecos, de extrema-direita. No entanto, uma sociedade civil forte carrega a tocha do internacionalismo outrora carregada pelo movimento trabalhista sueco.

Enfrentando a chuva fria de Estocolmo em setembro de 2015, dezenas de milhares de suecos saíram às ruas gritando: “Refugiados bem-vindos“. Saudado por aplausos estrondosos, o primeiro-ministro social-democrata o primeiro-ministro Stefan Löfven subiu ao palco, proclamando: “Minha Europa não constrói muros!” Mas seu internacionalismo se mostrou bastante superficial. Apenas um mês depois, Löfven anunciou que a Suécia fecharia sua fronteira sul com a Dinamarca para impedir a chegada de migrantes.

No final daquele outono, com ecos do início da década de 1970, milhares de suecos se reuniram em estações de trem em todo o país para distribuir alimentos e roupas aos refugiados, enquanto médicos e enfermeiros prestavam assistência médica aos necessitados. Voluntários transportaram os recém-chegados para acomodações de curto prazo organizadas por comunidades religiosas e grupos da sociedade civil. Suas ações mostraram que o internacionalismo de base está vivo e de boa saúde na Suécia, mesmo que tenha sido abandonado pelo partido que o nutria.

Colaboradores

Anton Ösgård é mestre em geografia urbana e econômica pela Universidade de Utrecht, com experiência como ativista climático na Suécia. Vive em Copenhague.

William Westgard-Cruice é doutorando em geografia na Clark University, em Massachusetts.

23 de fevereiro de 2020

Os robôs não estão chegando para todos os nossos trabalhos

Atualmente há muita conversa sobre robôs para substituir todos os trabalhos. Mas uma olhada nos dados revela pequena indicação de que isso realmente acontecerá.

Doug Henwood


Um visitante olha para um robô Lovot desmontado, num evento no Museu Lovot em 5 de fevereiro de 2020, Tóquio, Japão.

Tradução / Você mal consegue ver o Twitter sem ler algo sobre a iminente revolução da Inteligência Artificial (IA): os robôs estão vindo para ocupar o seu trabalho. Sou cético. Com isso, não pretendo argumentar que a Teconologia da Informação (TI) e a IA e todas as outras abreviações e acrônimos não estão mudando profundamente o mundo. Estão. A tecnologia afeta tudo – trabalho, diversão, amor, política, arte, tudo isso. Mas a versão maximalista, onde robôs, dotados de IA, vão substituir trabalhadores humanos, é exagerada. Sem dúvida, eles substituirão alguns. Mas nem todos.

Em 1987, já faz tempo em termos de tecnologia, o economista Robert Solow escreveu: “Você pode ver a era do computador em qualquer lugar, exceto nas estatísticas de produtividade”. Esta observação virou um clichê, e era verdade. A produtividade – medida como o valor em dólar da produção por hora de trabalho, ajustada pela inflação – caiu abaixo de sua média de longo prazo em meados da década de 1970, sendo um dos muitos sinais do fim da Era de Ouro pós-Segunda Grande Guerra, e ficaria assim por vinte anos.


Por volta de 1995, a produtividade acelerou com a comercialização pela Internet e o boom das empresas pontocom, que acompanhou o aumento no investimento empresarial em TI. Apesar do gracejo de Solow, uma nova era começou. Esse crescimento da produtividade ocorreu numa época de baixo desemprego e aumento real dos salários – ao contrário do que ocorre hoje, quando o desemprego continua baixo, mas o crescimento salarial é uma merda. Portanto, por esse precedente, não há razão para associar uma aceleração da produtividade à perda de empregos.

Essa nova era durou apenas cerca de dez anos. A produtividade voltou a cair, atingindo mínimos históricos entre 2014 a 2016. Desde então, houve um aumento, mas o crescimento da produtividade está em níveis comparáveis ​​aos da queda de produtividade no final dos anos 1970, 1980 e início dos anos 90. Então, estamos de volta à piada de Solow: não se vê os robôs nas estatísticas de produtividade.

Aqui está outra maneira de ver isso. Historicamente, foram necessários pouco mais de 2% do crescimento do PIB para gerar um aumento de 1% no emprego. Durante a maior parte da última década, o crescimento do emprego superou essa norma histórica. Ultimamente, a economia dos EUA adicionou quase quarenta mil empregos por mês acima do que o crescimento do PIB sugere. Ultimamente, isso se compara a um ganho médio de cerca de duzentos mil. Em outras palavras, um em cada cinco empregos criados atualmente nos EUA não existiriam se as relações normais entre crescimento e emprego ainda estivessem sob controle. (Veja o gráfico abaixo.)

O gráfico mostra o crescimento real do emprego e o crescimento previstos a partir de uma regressão simples do crescimento do PIB. Quando a linha real escura está acima da linha prevista, como tem ocorrido na última década, o crescimento taxa de emprego é mais rápido do que deveria ser baseado no crescimento do PIB e vice-versa.

O crescimento do PIB – que tem sido lento para os padrões históricos – também tem produzido quedas maiores no desemprego do que se esperaria se a situação antiga ainda estivesse em vigor. Se os robôs estivessem entrando, se esperaria exatamente o contrário – um crescimento do emprego muito lento e um crescimento econômico com desemprego mais rígido do que tem sido. Mas essas coisas simplesmente não estão acontecendo.

Talvez ocorram, embora se ouça histórias de pânico sobre vagas cortadas de trabalhadores humanos desde o início do capitalismo. Gritos de alarme como “os robôs estão chegando!” minam a confiança da classe trabalhadora e deixam as pessoas mais gratas por qualquer porcaria que se ofereça a elas. A vida econômica já é difícil o suficiente, mesmo sem concorrentes mecânicos.

Sobre o autor

Doug Henwood edita o Left Business Observer e é o apresentador do Behind the News. Seu último livro é My Turn.

22 de fevereiro de 2020

Depois da explosão de Nevada, agora o partido é de Bernie

A decisiva vitória de Bernie Sanders em Nevada mostra que ele tem uma base da classe trabalhadora disposta em transformar radicalmente a política e a economia. Ele está a caminho não apenas da indicação como candidato do Partido Democrata, mas da Casa Branca.

Connor Kilpatrick e Dustin Guastella


Senator Bernie Sanders stands on stage during a campaign event on February 21, 2020 in Las Vegas, Nevada. (Joe Buglewicz / Bloomberg via Getty Images)

Tradução / A esmagadora vitória de Bernie Sanders nas primárias de Nevada é muito mais do que um salto gigantesco em direção à indicação ao Partido Democrata.

Bernie Sanders é, obviamente, o favorito para ganhar na convenção em Milwaukee. Uma análise atenta dos números e da demografia do “Estado Prata” [como Nevada é conhecido] revela algo muito maior – as sementes de um novo eleitorado que se levanta e um realinhamento fundamental da política dos EUA. Um novo partido, fortemente operário e comprometido com a política igualitária, rapidamente floresce sob a casca do antigo.

Enquanto pesquisas recentes mostram Donald Trump reforçando seu controle sobre o Rust Belt [Cinturão de Ferrugem, a região industrializada e de forte presença operária no nordeste dos EUA, entre os Grandes Lagos e o meio-oeste], a vitória de Bernie Sanders em Nevada aponta para um novo mapa eleitoral que pode ser a chave não apenas para derrotar Trump em novembro – mas para reconstruir o movimento da classe trabalhadora nos EUA.

Em Nevada, ao contrário de Iowa e New Hampshire, não domina um eleitorado mais velho, rico e branco – é um reduto trabalhista com densidade sindical maior que a média nacional, graças em grande parte ao poderoso Sindicato dos Trabalhadores da Culinária, que representa 60 mil membros e tem o tipo de mobilidade social da classe trabalhadora quase desaparecido em outros lugares nos EUA.

Mas, após a crise econômica de 2007/08, Nevada foi o estado mais atingido pelas execuções de hipotecas e os despejos que as acompanham – e desde então, o crescimento salarial tem sido inferior ao do país como um todo. De muitas maneiras, representa perfeitamente o dinamismo social frustrado.

Ao contrário das regiões metropolitanas mais ricas, que encontram conforto em banalidades absurdas, os nevadenses são imunes ao feitiço anti-Sanders lançado pela elite do Partido Democrata. A necessidade de uma insurgência de esquerda dentro do Partido Democrata no Estado de Prata claramente não é apenas incontroversa: é um senso comum.

Com os eleitores latinos representando um quinto do eleitorado de Nevada, o estado também tem uma grande população de imigrantes da classe trabalhadora concentrada no setor de serviços. Com Bernie Sanders ganhando esses eleitores (de forma espetacular), ele provou que é o único candidato que pode reconstruir a maioria democrata em meio à mudança do eleitorado.

Como a coalizão do New Deal antes dele [na década de 1930], o sucesso de Bernie Sanders é baseado em sua capacidade de atrair grande número de trabalhadores imigrantes, que geralmente são novos eleitores. E esses eleitores parecem cada vez mais leais à mudança política.

De fato, em uma série de medições, Nevada se parece muito mais com um microcosmo dos EUA do que qualquer eleição já vista. Não apenas em termos de origem e demografia étnicas, mas em termos de composição política. Considere-se que o Estado de Prata tem um grande número de eleitores descontentes com o Partido Democrata. Somente na última década, o número de não partidários autoidentificados – ou seja, nem republicanos nem democratas – cresceu 89%, representando mais de 20% no eleitorado de Nevada.

Embora os não partidários não possam votar no sistema fechado de caucus de Nevada, eles refletem uma tendência mais ampla de eleitores que rejeitam os dois principais partidos, mas são disputados por candidatos como Sanders. Como o país em geral – diferentemente dos subúrbios ricos em Washington e Nova York –, os nevadenses querem grandes mudanças.

Em uma pesquisa da Universidade de Suffolk, feita em janeiro, 58% dos potenciais optantes pelo Partido Democrata classificaram o apoio ao Medicare for All como muito importante para o candidato democrata, 52% classificaram da mesma forma o ensino universitário gratuito e 61% querem que o candidato democrata aumente os impostos sobre os ricos. Essas fortes maiorias são exatamente o motivo pelo qual o “Presidente Bernie” parece tão atraente.

Embora o poder de Trump no Centro-Oeste seja inegável, com Nevada como o prenúncio de um novo eleitorado da classe trabalhadora se pode começar a ver como o caminho de Bernie Sanders para a Casa Branca pode ser tão distinto de seus rivais quanto sua política – o Sun Belt [Cinturão do Sol, região dos EUA que, entre o sul e sudoeste], com Bernie Sanders na cédula, poderia estar no jogo de uma maneira que não se vê há décadas.

O New Deal foi possível com um novo eleitorado. Assim como, no passado, a entrada em massa na política dos imigrantes vindos da Europa Oriental, de primeira e segunda geração, levou Roosevelt (e o CIO) ao poder, agora os latinos – que estão solidamente por trás de Bernie Sanders – poderiam muito bem ser a força que ajude a trazer a socialdemocracia para os EUA.

O forte apelo de Bernie Sanders contra o establishment e sua plataforma focada nas questões dos trabalhadores estão conquistando não partidários, novos eleitores, jovens eleitores e imigrantes da classe trabalhadora. Não é apenas uma coalizão para ganhar em Nevada; é como Bernie Sanders pode se tornar presidente.

Os democratas do establishment precisam encarar isso – agora o partido é dele.

Sobe os autores

Dustin Guastella é diretor de operações do Teamsters Local 623 na Filadélfia.

Connor Kilpatrick é editor da Jacobin.

21 de fevereiro de 2020

As elites do Partido Democrata estão prontas para roubar a indicação de Bernie Sanders. Precisamos de um plano para detê-las.

O debate de quarta-feira confirmou: as elites democratas estão dispostas a roubar a indicação de Bernie Sanders na convenção deste verão em Milwaukee, mesmo que ele tenha o maior número de delegados, e nenhum outro candidato moverá uma palha. Precisamos de um plano para detê-los.

Sam Lewis e Beth Huang

Jacobin

Democratic presidential candidate Sen. Bernie Sanders and former vice president Joe Biden participate in the Democratic presidential primary debate at Paris Las Vegas on February 19, 2020 in Las Vegas, Nevada. Mario Tama / Getty

Tradução / O senador Bernie Sanders é agora o principal candidato à indicação presidencial pelo Partido Democrata. Este momento coroa quatro anos de progresso histórico para os socialistas, incluindo a eleição da socialista Alexandria Ocasio-Cortez (AOC) para o Congresso e dezenas de socialistas para assembléias estaduais e locais, e a integração de demandas radicais, do Medicare for All à abolição do ICE [a agência que cuida da imigração e deportação dos migrantes ilegais nos EUA – Nota da Redação]. A maioria dessas vitórias eleitorais seguiu a estratégia de Sanders de desafiar nas urnas o establishment do Partido Democrata, para grande frustração das elites do partido.

Sanders pode estar a caminho de ganhar a indicação democrata, ou ainda pode perder para o establishment do partido, mas os socialistas e seus apoiadores devem se preparar para a possibilidade concreta de que a elite do partido tente roubar a indicação dele, mesmo que tenha uma liderança decisiva sobre os demais. Essa intenção ficou clara no debate democrata da noite de quarta-feira (19), quando todos os candidatos presentes, com exceção de Sanders, se recusaram a aceitar que aquele com maior número de delegados deveria vencer.

Se Sanders for à convenção de julho com uma pluralidade mas sem maioria (no momento em que este artigo ficou pronto, era prevista uma chance de 41%), o voto da indicação ficará para o segundo turno, quando  parte dos 3.979 delegados da convenção terá liberdade para indicar quem quuiser – e os 771 super-delegados (congressistas, governadores e altos fucionáios do partido)poderão votar. Embora o establishment democrata não tenha como deter uma vitória socialista em uma primária, uma aliança entre delegados de outros candidatos e super-delegados poderá entregar a indicação a um candidato alternativo.

Os super-delegados são uma seção transversal do establishment democrata. Eles são senadores, deputados, governadores, deputados estaduais, funcionários do partidos, agentes e líderes sindicais. A majority of superdelegates are sitting elected officials and political candidates. Muitas dessas figuras do establishment passaram cinco anos montando os mesmos velhos ataques ​​a Sanders – ele é um homem idoso e branco, não é um democrata “real”, está muito longe para ser elegível ou, nas palavras de Hillary Clinton, “ninguém gosta dele”. Esses argumentos, que não convenceram os eleitores democratas, escondem a verdadeira razão pela qual Sanders tem uma oposição tão forte dessa camada de líderes partidários.

A realidade é que o establishment democrata tentará usar suas alavancas de poder para barrar Bernie – ou seja, uma intervenção de segundo turno dos super-delegados – porque ele é um socialista democrata declarado que rejeita as doações empresariais, que são contrários à saúde pública, etc.. E quer um plano tributário que mudará drasticamente a distribuição da riqueza nos EUA. Para os ricos doadores que moldam as prioridades do Partido Democrata, e os funcionários e agentes cujas carreiras progrediram de mãos dadas com esses doadores, Bernie representa uma ameaça existencial ao seu modelo de negócios e de política.

Caso a convenção de Milwaukee seja contestada ou roubada, provavelmente ressurgirá a estratégia “DemExit”, uma tentativa, em 2016, de formar um novo partido, separando os partidários de Sanders do Partido Democrata. Sem uma via clara para suplantar qualquer um dos dois principais partidos [Democrata e Republicano – NdaR], o DemExit corre o risco de entregar as eleições para o Partido Republicano. Além disso, DemExit leva o movimento social deixado de fora em uma disputa interna pelo poder que agora parece estar ganhando. A campanha e a coalizão de Sanders representam a maior ameaça ao poder empresarial no partido desde a virada decisiva para o neoliberalismo na década de 1970. Ninguém dará um suspiro maior de alívio do que o establishment do partido se o movimento por trás de Sanders fizer a mala e voltar para casa.

Outra resposta a uma convenção que pode ser contestada ou roubada será mais um impulso à reforma interna dos procedimentos de indicação do Partido Democrata. Desde 1968, os progressistas tiveram sucesso em mudanças democratas, e é somente graças a essas reformas após a convenção de 2016 que os super-delegados não podem mais votar no primeiro turno. Mas o movimento por trás de Sanders deve ser muito cuidadoso e voltar a atenção nessa direção. O eleitor médio tem pouca contribuição sobre essas reformas, que são inerentemente o produto das negociações internas ao partido. Negociações sem fim sobre minúcias processuais minarão o ímpeto do movimento pró-Sanders.

Em vez do beco sem saída do DemExit ou da luta potencialmente desmobilizadora em torno da reforma do partido, a esquerda precisa de uma estratégia que mantenha a base pró- Sanders unificada e mobilizada em torno de suas principais bandeiras. Precisa de um plano com chance de superar a oposição dos super-delegados na convenção, que mantenha as elites partidárias como principal alvo dentro do partido e que aponte um caminho a seguir depois de julho – ganhe ou perca.

Uma coalizão de organizações nacionais já foi formada para apoiar Bernie. A Socialistas Democratas da América uniu-se entre outros ao Center for Popular Democracy Action (Centro de Ação Popular pela Democracia), People’s Action (Ação popular), Sunrise People (Nascer do Sol), Make the Road (Faça o Caminho), e Dream Defenders (Defensores do Sonho – traduções livres – NdaR) para construir um forte movimento para impulsionar a mudança política. Como organizações do movimento social por trás de Sanders, é preciso uma estratégia compartilhada no caso de uma convenção contestada.

We can start pressuring superdelegates right now. In the lead up to the DNC, we propose holding town halls in the districts of elected officials who are superdelegates and build on our networks of democratic-socialist union members to pressure superdelegate union officers. Once state contests wrap up, our organizations can harness statewide campaign infrastructures for Bernie to continue canvassing and raising funds in superdelegates’ districts to explicitly lay the groundwork for future primary challenges. This will be especially successful if we keep reaching out to working-class and immigrant voters, the backbone of the Sanders’s support.

Claro, é essencial também levar a luta para as ruas. Imagine-se a crise nos escalões superiores do Partido Democrata quando organizações se unem para interromper os “negócios como de costume”, em Washington ou nas capitais estaduais na preparação para um protesto em massa de 100.000 na própria convenção, para exigir um resultado democrático.

Se os super-delegados votarem em julho contra a mudança política, eles devem ter a absoluta certeza de que a classe trabalhadora organizada usará a desobediência civil, protestos em massa e desafios primários nas eleições para removê-los do cargo. Na pior das hipóteses, onde eles conseguirem barrar Sanders, haverá um plano para levar milhões de eleitores à guerra contra a elite do Partido Democrata. But a mobilization of this scale might also be powerful enough to deliver Sanders an outright victory. Embora as elites do partido tenham recursos e alavancas anti-democráticas de poder, seu número é pequeno. Com um plano, organização e um movimento de massas, a vitória em julho é possível,e também em novembro. E o início de uma próxima fase da luta para transformar a democracia americana.

Sobre os autores

Sam Lewis é um sindicalista e membro dos Socialistas Democratas da América. Ele mora no Brooklyn, Nova York.

Beth Huang é membro do capítulo de Boston dos Socialistas Democratas da América e é organizadora de coalizões em Massachusetts.

Sem reinventar a roda no BC

Com projeto de independência, corre-se o risco de consertar o que não está quebrado

Nelson Barbosa

Folha de S.Paulo

Americanos fazem fila para sacar investimentos durante a crise econômica, após o crash de 1929. A crise da Bolsa de Nova York começou em uma segunda-feira, 21 de outubro de 1929. AFP

A independência do Banco Central voltou ao debate. O Senado está avaliando um projeto de lei, enquanto, na Câmara, Rodrigo Maia também indicou que o tema é prioritário.

Lembrando, a proposta inicial do governo tem três pontos principais: isenção de todos os servidores do BC de responsabilização por atos praticado em suas funções, mandatos para os membros do Copom (o pessoal que fixa a Selic) e definição dos objetivos da política monetária.

O primeiro ponto é um absurdo, equivalente ao não questionamento de policiais por atos cometidos "sob forte emoção".

O segundo ponto pode e deve ser discutido, com cuidado, mas, por limitação de espaço, me concentrarei nos objetivos da política monetária.

Corremos o risco de consertar o que não está quebrado. O atual sistema de metas de inflação é regulado por um decreto e, nos últimos 20 anos, ele foi capaz de controlar a variação de preços sob fortes choques inflacionários e alta volatilidade cambial, tudo isso com redução gradual da taxa real de juro.

Apesar desse sucesso, os monetaristas de museu do Executivo querem fixar os objetivos do BC em lei. Mais, querem também dizer o que é mais e menos importante, colocando inflação em primeiro lugar, estabilidade financeira em segundo lugar e simplesmente esquecendo o nível de atividade. O Brasil não merece tanta arrogância.

A história econômica mostra que, quando o sistema financeiro corre risco de quebrar, levando a economia junto, a prioridade é evitar o agravamento da crise, deixando preocupações inflacionárias para se e quando isso for superado. Essa prática acontece desde pelo menos meados do século 19 —o "pânico de 1866" na Londres vitoriana. O episódio mais recente foi o "afrouxamento quantitativo" nos países avançados, pós-crise de 2008.

Como contraexemplo, lembro que a obsessão em manter a paridade monetária com o ouro, no início dos anos 1930, foi um dos determinantes da Grande Depressão daquela década. Colocar estabilidade financeira em segundo plano é, portanto, uma temeridade, além de convidar os procuradores de plantão a inventar crimes para obter protagonismo político.

O controle da inflação também deve levar em consideração as flutuações da renda e do emprego, para evitar aprofundar recessões e exagerar expansões. A maioria dos bancos centrais do mundo já faz isso, formalmente ou informalmente, explicando por que adotam velocidade mais lenta ou mais rápida de convergência da inflação para a meta do governo.

Ao ignorar renda e emprego, o projeto do governo é tão radical que até Armínio Fraga argumentou que deveria haver espaço para alguma estabilização do nível de atividade. O senador Tasso Jereissati apresentou emenda nesse sentido, colocando suavização de ciclos econômicos como objetivo "secundário da política monetária".

A iniciativa de Jereissati está correta do ponto de vista econômico, mas, novamente, lembro que, na atual fogueira de vaidades de nossa cultura da auditoria, qualquer ordenamento legal atiça procuradores irresponsáveis a provocar crises institucionais para ter destaque na mídia.

Diante desse quadro, vou mais longe do que Fraga e Jereissati: os objetivos do BC devem ser definidos de modo geral na lei, cabendo ao "regulamento" (decreto presidencial) determinar a hierarquia no dia a dia do BC, tudo com transparência e prestação de contas. Posso parecer radical, mas foi exatamente isso que aquele "presidente de esquerda", Fernando Henrique, fez 1999.

Não precisamos reinventar a roda no BC e temos outros problemas mais urgentes.

Sobre o autor

Professor da FGV e da UnB, ex-ministro da Fazenda e do Planejamento (2015-2016). É doutor em economia pela New School for Social Research.

19 de fevereiro de 2020

A morte da forma cinematográfica revolucionária

Desde o final da Primeira Guerra Mundial até a década de 1970, cineastas de todo o mundo experimentaram a forma cinematográfica na esperança de despertar uma nova consciência política. Por que esse sonho morreu?

Eileen Jones

Jacobin

Tradução / Durante décadas, foi uma questão candente entre cineastas, críticos e públicos com mentalidade política - qual a forma que um filme assumia. A forma como foi filmado e cortado, a forma como o som foi gravado, como a mise-en-scène foi tratada; até mesmo os processos pelos quais o filme foi produzido, distribuído e exibido foram tão importantes quanto o conteúdo - se não mais. Do nosso ponto de vista, é difícil imaginar, mas desde o final da Primeira Guerra Mundial até ao final da década de 1960, cineastas de todo o mundo esperavam utilizar estas experiências de forma a desbloquear uma nova consciência revolucionária nas audiências de todo o mundo.

Isso foi há muito tempo atrás. Quem hoje discute as implicações políticas da abordagem de edição de um filme, ou defende um estilo de performance brechtiano que promoverá espectadores ativos e politizados, ou opõe-se fortemente ao “Mickey Mouse” dos efeitos sonoros ou às bandas sonoras de filmes emocionalmente coercivas?

Hoje, conteúdo é tudo. É considerado mais do que suficiente simplesmente ter um tema politicamente promissor: O Jovem Karl Marx, A Morte de Stalin, Peterloo. Esses filmes variam em qualidade e efeito, é claro, mas todos estão unidos em sua forma cinematográfica mais ou menos padrão. O diretor Ryan Coogler (Pantera Negra, Estação Fruitvale) anunciou recentemente que estava fazendo um filme sobre o líder assassinado dos Panteras Negras, Fred Hampton. Apenas a promessa de conteúdo político socialista foi suficiente para gerar entusiasmo - não precisamos de ter esperanças quanto à forma.

E talvez essa seja a maneira certa de ver as coisas. Afinal de contas, não é fácil avaliar até que ponto uma forma cinematográfica supostamente revolucionária “funcionou” nos espectadores, mesmo na União Soviética da década de 1920, então há alguma razão para regressar a essa velha obsessão? Parasita, de Bong Joon-ho, não é um grande filme, dolorosamente memorável, mesmo que seja feito em termos polidos, mas inteiramente convencionais, que obedecem às “regras” internacionais da produção cinematográfica narrativa?

As pessoas mal sabem que essas regras do cinema narrativo foram determinadas gerações atrás: cinematografia contida que não prejudica a narrativa, edição suave que de forma alguma o afasta da psicologia do personagem e uma trilha sonora que sincroniza perfeitamente com as ações em tela e ressalta as emoções representadas, nunca servindo como contraponto ao que você vê ou chamando a atenção para si mesmo. Tudo faz parte do chamado sistema de continuidade invisível, aperfeiçoado nas décadas de 1910 e 20 nas principais indústrias cinematográficas da época, mas particularmente defendido pelos estúdios de Hollywood. Integra o espectador em um espelho agradavelmente idealizado da realidade através da identificação com o protagonista - e, segundo os críticos da forma, com um conjunto incorporado de posturas ideológicas regressivas. A construção e o artifício dessa realidade, o funcionamento elaborado do aparato nos bastidores e a agenda corporativa por trás da produção em massa de filmes foram cuidadosamente disfarçados, em parte, pela recusa em chamar a atenção para a forma de uma forma que pudesse despertar o público de seus sonhos cinematográficos.

Os cineastas que tentaram contrariar o bloqueio que o sistema de continuidade invisível exerceu sobre o cinema comercial lideraram uma série de alternativas ousadamente formalistas na década de 1920, incluindo movimentos cinematográficos de vanguarda como o dadaísmo e o surrealismo; e movimentos de filmes de arte como o expressionismo alemão, o impressionismo francês e a montagem soviética.

Sergei Eisenstein, the most influential of the Soviet Montage filmmakers, argued specifically that through montage he could create a kind of “filmic reasoning” that would allow him to adapt Das Kapital to film in such a way as “to teach the worker to think dialectically.” In films such as Strike, Battleship Potemkin, and October: Ten Days That Shook the World, Eisenstein put in motion his theories of “collision montage,” based on Marxist dialectics: “The contents of one shot should collide with another like a dialectical thesis and antithesis, resulting in a synthesis in a viewer’s mind.” The clashing hammer-and-tongs result would enable a new kind of “radical filmic thinking” that spectators would take with them out into the world.

In October, he did some of his most ambitious “intellectual montage” in a critique of religion generated by a series of jarring shots of religious icons, with the Russian Orthodox Christ familiar to his audience members made unfamiliar through juxtaposition with brutally alienating icons from religions around the world.

Eisenstein’s theories were part of a widespread modernist view that film constituted exteriorized, objectified brain processes. Hugo Münsterberg, the first film theorist, argued that cinema was such an explosively popular form because it mimicked the way our minds operated — flashbacks imitated memory, and close-ups mirrored our mental ability to focus our attention on a particular object. Eisenstein argued that films had already been harnessed not just to mimic thought processes, but to create and foster them, and that Hollywood filmmaking, busy training generations how to think in capitalist terms, had to be counteracted.

His Battleship Potemkin (1925) set an early standard. It was banned in public theaters in many countries, including France and the United Kingdom, but it became a staple in private screenings at union halls and cinema societies worldwide. The film’s content alone was rousing enough, a dynamic re-creation of a 1905 sailors’ revolt against authoritarian abuse on the Potemkin that had such extensive public support it led to an infamous massacre of the citizens of the port city of Odessa by Tsarist troops. But it was the incendiary editing that made the film legendary. The Odessa Steps sequence, still the most celebrated montage in cinema other than Alfred Hitchcock’s shower scene in Psycho, was the best-known instance of formal daring so powerful, “anyone . . . could become a Bolshevik after seeing the film,” as Nazi propaganda minister Joseph Goebbels later wrote in grudging admiration.

Joseph Stalin ended the Soviet Montage experiments, claiming that ordinary Soviet citizens couldn’t understand these films, with their esoteric forms that were aligned with decadent European art and cinema movements. He instituted Socialist realism as the mandated style across the arts, and for decades, Soviets watched mainly simplified, heroic, “people-centered” and “party-minded” entertainment narratives that taught clear-cut lessons about how to be a better communist. But the formalist movements also met resistance internationally as the Depression, the rise of Fascism, and war led to waves of investment in documentary and realist cinema movements.

The most influential of these was Italian neorealism from the mid-1940s through the ’50s. It emerged from the Second World War, rejecting the film style of the Fascist-controlled Italian film industry, as well as Hollywood entertainment practices that focused on the glossy doings of the affluent, ignoring all the brutal realities right outside studio doors. Powered by socialist and communist filmmakers caught up in the “Italian Spring” of left-wing political hopes following the war, the films featured on-location shooting that favored the bombed-out rubble of Italian cities, as well as the use of natural lighting and nonprofessional actors, creating a harsh, stripped-bare aesthetic that seemed like a shocking departure for narrative films at the time. Roberto Rossellini, whose film Rome, Open City (1945) helped define the form, said heretically, “If I mistakenly make a beautiful shot, I cut it.”

André Bazin argued that the key to Italian neorealism’s success was the sustained deep-focus long shot, uninterrupted by 1920s-style montage cutting or optical tricks of any kind. As Mike Wayne argues in Marxism Goes to the Movies, the deep-focus long shot allowed for the discovery of complex social reality, as the spectator’s eye is allowed to roam about the frame in a way that’s impossible with either Soviet Montage or the Hollywood continuity system. The latter functioned to cut the scene according to plot motivation, itself governed by the psychology and aims of the protagonists. Match-on-action and eyeline-match shots are crucial continuity editing strategies linking . . . [the spectator’s emotional experience] to the individual character powering their way through the dramatic scenario, according to the American individualism which Hollywood prioritized.

Both the Soviet Montage and Italian neorealist filmmakers recognized in Hollywood cinema the same ideological stealth-bomber techniques, but they arrived at wildly opposing strategies of combating them. Neorealism tended toward the drastic loosening of narrative structures, in particular a rejection of causality typical of the “tight plotting” of Hollywood films. Tangents, digressions, coincidences, and a reverence for the repetitions of daily life — defined by leading neorealist filmmakers as the experiences of the working poor — were everything.

In Brazil, the Cinema Novo movement pushed Italian neorealist, European art cinema, and French New Wave innovations toward political militance and an “Aesthetics of Hunger.” Director Glauber Rocha’s call for raw, angry, ugly films to reflect the experience of brutally oppressed people who are literally as well as figuratively hungry is manifested in his film Black God, White Devil (1964), which looks at times as if it were cut with a meat cleaver. Third Cinema filmmakers like Rocha were initially based in Latin American countries, but the movement spread to filmmakers in Asia, Africa, and other regions, fostering dreams of a multi-continent revolution rejecting the Hollywood commercial aesthetic, termed “First Cinema,” on political grounds. But they also intended to bypass auteurist art cinema movements, or “Second Cinema,” in their drive toward collaboratively made films dedicated to radical liberation movements.

The legendary Battle of Algiers (1966) straddles both Second and Third cinema — director Gillo Pontecorvo, a former member of the Italian Resistance steeped in Italian neorealist practices, put his film in service to a militant revolutionary project, working in collaboration with the Algerian people to restage — on location — pivotal (and bloody) events in their fight for liberation from brutal French occupation.

Third Cinema’s radical experiments in collective filmmaking were accompanied by a number of manifestos, such as “Toward a Third Cinema” by Argentinian filmmakers Fernando Solanas and Octavio Getino. They declared the need for a totally reinvented cinema — a cinema they themselves had no idea how to achieve at the outset. It would all have to come from trial and error, guided by a determination to subvert imperialism, educate and actively engage the political consciousness of audience members, and operate outside the system through guerrilla film-making methods and alternate distribution routes and exhibition venues. Solanas and Getino’s Hour of the Furnaces (1968) is a four-hour extravaganza of Third Cinema experimentation, beginning with a blood-pumping combination of percussive beats building to a frenzy while on-screen documentary shots of violent oppression and police brutality against protesters is intercut with quotes from Che Guevara, Frantz Fanon, and other revolutionary heroes. Famously, the film urges audiences to stop the viewing process at will in order to talk revolution among themselves.

Today, we’re soaking in a fairly tepid bath of media content. We’re so far from the language of cinematic revolution that it can seem kind of quaint to read a dead-earnest 1969 issue of Cahiers du Cinéma, when film theorists and critics believed they were “starting from zero.” In one essay, Jean-Louis Comolli and Paul Narboni proposed a system of film categories lettered A to G to alert audiences to the junk they’re consuming. Category A includes mainstream commercial films plus most art-house independent films and are “imbued through and through with the dominant ideology.” Category B is the tiny number of praiseworthy films that deal with a “directly political subject” and “attack [their own] ideological assimilation on two fronts,” that of both form and content. Third Cinema is a good example here.

The rest of the categories are trickier. Category C, for example, identifies films that have no obviously political content but nevertheless seem to operate politically because they function “against the grain” in terms of their challenging form. Hollywood film noir of the 1940s, with its nightmarishly extreme expressionistic style that could turn even formulaic crime melodramas into implied ideological criticism, can be discussed in these terms.

For Cahiers critics, B and C were the good categories. Category D, which is where we tend to operate now in terms of supposedly political, ideologically challenging films, is dire territory. These are films that have “explicitly political content . . . but which do not effectively criticize the ideological system in which they are embedded because they unquestioningly adopt its language and its imagery.”

We can imagine Comolli and Narboni shaking their heads while deploring Harriet, for example, a drearily standard biopic from 2019 that wastes an opportunity to convey the life of a revolutionary figure, Harriet Tubman, in revolutionary terms. How to convey Tubman’s “visions,” for example, which were probably caused by a murderous blow to her head with an iron weight by a slave overseer when she was fifteen? This violent act radicalized Tubman, giving her immediate access to what she conceived of as messages from God directing her in practical methods of slave liberation. Director Kasi Lemmons represents the visions as an ethereal tune with tinkling chimes accompanied by images of rushing clouds, as generic a “dream sequence” as can be conceived of in commercial cinema.

It gets very tricky interpreting where films stand ideologically, and the trickiest category Comolli and Narboni identify is Category E — once famous in film studies for the opportunities it gave grad students to examine mainstream films for “gaps” and contradictions. Category E films seem entirely absorbed within the ideologically dominant system, but they contain such ambiguities, expose such cracks and dislocations in the systemic workings of bourgeois ideology, that they become useful in “partially dismantling the system from within.” Late period John Ford Westerns like The Searchers (1956) and The Man Who Shot Liberty Valance (1962) were considered prime examples, in which the director’s conservative, patriotic celebration of America’s Manifest Destiny was increasingly complicated by brooding deep-focus cinematography, grimly fated characters, and an enigmatic sense of doom about the whole American experiment.

For those who mock this naive schematic approach, consider that at least Comolli and Narboni had a scheme for fostering revolutionary media, which is more than we’ve got. Though we’ve seen a few interesting formal developments over the past half century, it’s hard to connect them to any specific political effects, or even intentions, in that direction. The Dogme 95 movement of the 1990s seemed promising in its short-lived but all-out rejection of slick, tech-reliant commercial conventions in films, and in its embrace of restrictions on the filmmaking process that forced filmmakers back into rough neo-neorealism. But it was reduced to a stunt when its leading directors, Lars von Trier and Thomas Vinterberg, quickly abandoned their cinematic “Vow of Chastity,” which they claimed to have written while drunk.

Digital filmmaking, which further democratized the filmmaking process by making it widely and cheaply available to the public, also briefly promised some sort of alternative aesthetic that might have been harnessed for political ends. But the technology was quickly employed in full mimicry of the effects of classic cinematography. And, at any rate, we have no belief today in the politically revolutionary, consciousness-altering potential of cinema — or any other media.

Ironically, in an era when socialism at last begins to make a return and we revive again the urgent need to “foster a mass movement,” to “unify the working class,” to “build solidarity” — all the old terms and phrases — we have no corresponding plan for how we might revive the old idea of enlisting mass media in our cause.

And with the stakes so high in 2020, that’s the kind of failure of imagination that radicals today can hardly afford.

Colaborador

Eileen Jones is a film critic at Jacobin and author of Filmsuck, USA. She also hosts a podcast called Filmsuck.

Caos no INSS: muito além da incompetência

Crise tem raiz na restrição orçamentária imposta aos serviços públicos

Sérgio Nobre



O INSS (Instituto Nacional do Seguro Social) é uma autarquia federal vinculada ao Ministério da Economia, responsável pela concessão e gestão dos benefícios da Previdência Social, como aposentadoria, salário-maternidade, auxílio-doença, pensões etc. É também por meio do INSS que a população tem acesso a benefícios assistenciais, como o BPC, destinado a idosos e pessoas com deficiência, cuja família tenha renda per capita inferior a um quarto do salário mínimo. Atualmente, são mais de 35 milhões de benefícios previdenciários ativos.

Milhões de brasileiros enfrentam hoje um drama na busca do legítimo direito a alguns desses benefícios, tanto para conseguir requerer, como para que sejam analisados. Situação caótica que vem sendo divulgada pela imprensa e já levou à demissão de um presidente do INSS, além de inspirar as reações mais estapafúrdias do governo federal, entre elas a convocação de militares para “sanar” as confusões na instituição.

Militares, aliás, que neste governo são chamados para tudo, menos para proteger a soberania sob ataque do Planalto e sua agenda de privatizações. Basta lembrar a lucrativa Dataprev (Empresa de Tecnologia e Informações da Previdência Social), que administra uma das maiores bases de dados do mundo e na qual o governo, recentemente, tentou demitir quase 500 trabalhadores com o objetivo de facilitar a sua venda. Só não atingiu tal objetivo graças a uma forte e vitoriosa greve dos trabalhadores na Dataprev.

A situação no INSS é caótica. Segundo dados do Instituto, 1,3 milhão de pessoas aguardam a análise dos seus pedidos há mais de 45 dias. E não se trata de uma elevação pontual na procura por benefícios. O aumento é contínuo, porque a população cresce, envelhece, é vítima de doenças e de acidentes de trabalho. Soluções paliativas, como trazer à ativa servidores aposentados, podem amenizar, mas não resolvem o problema. Mesmo a desejável digitalização de serviços tem alcance limitado quando se trata de atender a população mais pobre e com menos acesso à internet.

Em 2014, o INSS tinha 37.685 servidores efetivos. Em 2020, tem cerca de 25.600. Sobrecarregados pela demanda e falta de estrutura, esses trabalhadores estão sendo submetidos a jornadas extenuantes de até 12 horas seguidas e levado trabalho para suas casas, motivados por bônus financeiros pelo cumprimento de metas abusivas. Agora, são apresentados pelo governo como modelo de aumento de produtividade no serviço público —um escárnio com eles e com a população.

As situações de crise como essa do INSS, tão comuns no atual governo, não se explicam apenas pela incompetência de gestores federais. Elas têm sua raiz na restrição orçamentária imposta aos serviços públicos, especialmente a partir da vigência da emenda constitucional 95, que vale para congelar e cortar gastos com políticas sociais para os mais pobres, mas não vale para limitar o gasto com o pagamento de juros a bancos e especuladores.

É por conta dessa política cruel de corte de gastos que um concurso do INSS caducou sem a contratação de todos os aprovados e que um novo concurso público nem sequer foi cogitado pelo governo até agora. É também por conta disso que agências do INSS estão sendo fechadas ou funcionam com menos da metade do número de servidores que deveriam ter.

É a mesma política que faz com que não tenhamos aumento real do salário mínimo nem política habitacional para baixa renda, que deixa 1 milhão de famílias à espera do Bolsa Família e que faz com que doenças, tidas como erradicadas, voltem a fazer vítimas e a figurar nas manchetes do noticiário. São verdadeiras pedaladas sociais, em que os direitos do povo são adiados para um futuro que nunca chega.

É por isso que a CUT e demais centrais sindicais, juntamente com os trabalhadores do INSS foram às ruas em diversas cidades de todo o Brasil e seguirão mobilizados para denunciar a incompetência e a crueldade desse governo e cobrar soluções verdadeiras para os trabalhadores que precisam acessar a Previdência Social.

Sobre o autor

Metalúrgico, é presidente nacional da CUT (Central Única dos Trabalhadores).

18 de fevereiro de 2020

Veja como podemos parar o próximo coronavírus

A resposta ao coronavírus mostra que nem os EUA nem o mundo estão prontos para uma pandemia global. Precisamos desesperadamente de um sistema de saúde pública que rejeite o filantrocapitalismo e priorize a prevenção sobre os lucros das empresas.

Hanna Ehrlich

Jacobin

Homens chineses usam máscaras protetoras enquanto jogam tênis de mesa em um parque em Pequim, na China. (Kevin Frayer / Getty Images)

Tradução / Nos primeiros meses de 2020, o pânico da pandemia global se espalhou mais rapidamente do que o coronavírus. As comunidades rurais da China construíram bloqueios ilegais para o auto-isolamento. Cingapura proibiu todas as viagens de e para a China. Os Centros dos EUA para Controle e Prevenção de Doenças (CDC) emitiram a primeira quarentena em mais de cinquenta anos, e o governo chinês e italiano estão realizando a maior quarentena da história da humanidade. Os epidemiologistas estão prevendo que mais pessoas irão contrair o COVID-19 do que o inicialmente estimado, e ainda não temos certeza da rapidez com que o vírus se espalha ou sofre mutação.

Apenas uma coisa parece clara: não estaríamos nessa situação se estivéssemos melhor preparados. O ex-diretor do CDC, Tom Frieden, e outros alertaram que nem os EUA nem o mundo estão prontos para uma pandemia global. Os alarmes foram tocados antes, e outra vezes, mas o status quo permanece em vigor. Por quê? Porque os investimentos em a saúde são motivados por interesses míopes e por uma fé equivocada no mercado livre. Os interesses privados são privilegiados sobre o bem público.

A preparação para a pandemia é a ideia de que os profissionais de saúde possam tomar medidas para prevenir, identificar rapidamente e conter um novo patógeno perigoso em sua fonte. Países ricos como os EUA tendem a concentrar seus esforços de preparação, equivocadamente, em agentes bioquímicos relevantes para a segurança nacional. Há poucos anos, membros selecionados do governo dos EUA participam de uma simulação de bioterrorismo. O original, “Dark Winter“, de 2001, representou o curso rápido e devastador dos eventos após uma liberação de varíola em aerossol.

Juntamente com essas simulações e esforços para combater o terrorismo de maneira mais ampla, os EUA investiram bilhões de dólares em biossegurança e biodefesa nas últimas duas décadas. O governo federal agora armazena 300 milhões de doses de vacinas contra varíola, o suficiente para vacinar quase todas as pessoas nos EUA. (A Organização Mundial da Saúde, em comparação, reserva apenas 35 milhões de vacinas contra a varíola para implantação discricionária em caso de emergência.) Essa militarização da saúde pública vincula seus gastos a interesses de segurança nacional – negligenciando todas as maneiras pelas quais a saúde nacional e internacional tem mais a ver com a imprevisibilidade de patógenos do que a do estado de segurança nacional.

Os países do Sul Global, enquanto isso, ainda dependem da filantropia para responder a surtos – e a generosidade geralmente vem com restrições. Após o contágio do Ebola de 2014-16, o Banco Mundial desenvolveu o Mecanismo de Financiamento de Emergência Pandêmico (PFE) para financiar uma resposta rápida a surtos. Sob o novo mecanismo de financiamento, os investidores compraram títulos de epidemia a altas taxas de juros anuais que, em seguida, criariam pagamentos de seguros comuns para combater certas doenças epidêmicas. Doenças de “maior risco”, como o Ebola, ofereciam retornos mais altos sobre os investimentos.

Alguns elogiaram o PFE como uma maneira criativa de envolver o setor privado, um caso de “filantrocapitalismo” fazendo o bem. Mas, em resposta à atual pandemia de Ebola, a segunda maior da história, o Banco Mundial não aplicou nenhum desses fundos – porque a doença não cumpriu critérios específicos, incluindo matar pessoas suficientes em lugares suficientes. Os investidores, no entanto, estão lucrando, mesmo com a escassez de recursos na República Democrática do Congo e pouca autonomia, enquanto continua tentando combater uma pandemia mortal em meio a um conflito violento.

A crescente dependência de atores privados com fins lucrativos para prestar serviços públicos não está funcionando. Países como os EUA também não são um modelo: os investimentos militaristas em biossegurança não podem trazer uma verdadeira preparação para uma pandemia.

Um sistema melhor incluiria alguns elementos-chave.

Primeiro, a preparação envolve prevenção. Na saúde pública, diferentemente do mercado, os melhores retornos possíveis são aqueles que nunca se materializarão. Em outras palavras, as pessoas não ficam doentes. A prevenção requer fortes sistemas de saúde do setor público focados na atenção primária. Somente o atendimento universal à saúde pode garantir que mesmo os mais marginalizados possam acessar o atendimento e, durante as pandemias de doenças, ninguém ficará à margem.

Segundo, a preparação envolve a rápida identificação de doenças emergentes – e isso exige investimentos públicos em educação e capacidade de pesquisa. A identificação de doenças emergentes depende da capacidade dos profissionais da saúde de reconhecer sintomas incomuns, dos laboratórios para detectar novos patógenos e dos epidemiologistas para identificar aberrações em dados confiáveis. Tudo isso significa um setor público mais forte e robusto.

Por último, a preparação envolve a contenção de doenças. Com financiamento coletivo, as parcerias multilaterais podem formar equipes fortes de resposta a emergências para executar estratégias de isolamento, distribuir suprimentos e promover a educação em saúde pública. São necessárias parcerias não apenas para garantir estoques globais de suprimentos, mas também a capacidade para aumentar a produção desses bens públicos globais. Para fazer isso de forma equitativa e eficiente, as estratégias de entrega devem ser transparentes e predeterminadas, com todas as partes interessadas afetadas na mesa. Os países em desenvolvimento não podem ser colocados em uma função subordinada.

Se queremos estar preparados para a próxima grande pandemia, devemos nos concentrar em melhorar os bens e serviços públicos, especialmente nos locais onde os patógenos emergem primeiro e a infraestrutura de saúde é mais necessária.

O atual regime de saúde global, que se baseia no filantrocapitalismo e no investimento militarizado, está falindo. É hora de uma mudança radical desse tipo de regime.

Sobre o autor

Hanna Ehrlich é uma candidata a PhD em epidemiologia na Escola de Saúde Pública de Yale.

17 de fevereiro de 2020

As empresas te matariam, literalmente, para obter mais lucro

A Coca-Cola matou sindicalistas na América Latina. A General Motors construiu veículos conhecidos por se auto incendiarem. As empresas de tabaco esconderam as pesquisas sobre o câncer. E a Boeing sabia que seus aviões eram perigosos. As empresas não se importam se matam pessoas – desde que seja lucrativo.

Nicole M. Aschoff


Um Boeing 737 MAX 9 em seu primeiro voo em 13 de abril de 2017. Wikipedia

Tradução / A roupa suja da Boeing foi ao ar este mês quando a empresa divulgou mais de cem páginas de e-mails e mensagens trocadas por funcionários da empresa a investigadores do Congresso. As revelações ofereceram um retrato sombrio da cultura corporativa dentro da Boeing – funcionários de alto escalão insultando os funcionários, discutindo maneiras de enganar as agências reguladoras da aviação, lamentando sua própria torpe moral.

A comunidade jurídica ficou chocada com os documentos, chamando-os de “surpreendentes e apavorantes” e “incrivelmente condenáveis”. O presidente do Comitê de Transportes e Infraestrutura da Câmara, Peter DeFazio, disse que os e-mails “mostram uma imagem profundamente perturbadora dos comprimentos que a Boeing aparentemente estava disposta a fazer para evitar o escrutínio dos reguladores, das tripulações de voo e do público”.

Em uma matéria para o Financial Times, Bjorn Fehrm, analista da consultoria de aviação Leeham, culpa o aparente “problema cultural” da Boeing em sua fusão há duas décadas com o escritório de defesa McDonnell Douglas, cujo CEO Harry Stonecipher priorizou os resultados da empresa acima de tudo. Cynthia Cole, ex-engenheira da Boeing, concorda. Em uma entrevista em outubro de 2019 à NPR, Cole diz que, após a compra em 1997, a segurança e a qualidade começaram a “ocupar um segundo lugar no cronograma e no custo”.

É um tanto intrigante que ainda haja quem se surpreenda ao saber que as empresas e seus executivos, deixados por conta própria, se envolvem em comportamentos inescrupulosos e, às vezes, mortais. A Coca Cola matou sindicalistas na América Latina. A General Motors construiu veículos conhecidos por pegar fogo em colisões. As empresas de tabaco ocultaram as propriedades causadoras de câncer de seus produtos por décadas. O catálogo dos crimes éticos e morais das empresas é impressionante.

Essas falhas éticas e morais da Boeing, Coca Cola, General Motors e muitas outras empresas são a norma, não a exceção.

É claro que pode ser que, no caso da Boeing, uma nova obsessão por lucros crescentes tenha interrompido as normas corporativas mais antigas, transformando a cultura da Boeing de tal forma que colocaria em risco a vida das pessoas se isso significasse um retorno trimestral. Certamente, é fácil encontrar exemplos de empresas cuja cultura corporativa mudou para pior depois que o conselho colocou um clone de Jack Welch no comando, ou uma empresa de “private equity” procurando ganhos extraordinários comprando até os donos originários da empresa.

Mas devemos ter cuidado ao ler a história da “Boeing que deu errado”. Seu apelo baseia-se em uma poderosa ficção: que o objetivo das empresas, impedindo a infecção de uma força maligna, é operar de acordo com os padrões morais das comunidades em que elas estão inseridas.

Essa suposição, como a elevação do lucro acima de tudo – uma característica definidora do capitalismo -, cria um desalinhamento permanente entre as motivações e os objetivos das empresas e os de seus acionistas.

Além disso, vemos evidências desse desalinhamento ao nosso redor. O desejo de acesso à internet de alta velocidade esbarra na relutância dos provedores de telecomunicações em investir em bairros de baixa renda ou áreas rurais. As empresas de energia suja trabalham com tenacidade para impedir que as comunidades desenvolvam alternativas viáveis de energia solar e eólica. As empresas farmacêuticas aumentam o preço dos medicamentos que podem salvar vidas.

Esse desalinhamento não apenas gera uma barreira entre as empresas e seus clientes. Também azeda a relação entre chefes e trabalhadores, e entre os próprios trabalhadores.

O caso da Boeing é um exemplo extremo de um fenômeno mais amplo. Todos os dias somos solicitados de forma implícita e explícita a ficarmos calados diante de improbidade contábil, violações de saúde e segurança, assédio e abuso de colegas de trabalho e roubo de salário. Os efeitos são corrosivos, destruindo a confiança e a solidariedade, e fortalecendo o poder que as empresas têm para buscar mais lucros com impunidade.

Diante de um declínio acentuado no poder do trabalho organizado e do desembaraço e desequilíbrio das agências reguladoras federais, as opções para os trabalhadores destacarem os abusos corporativos – sem arriscar seu emprego ou reputação – são extremamente limitadas. Na escolha entre saída e voz, a maioria das pessoas tenta encontrar um emprego diferente ou exteriorizam suas preocupações agarrando-se aos colegas de trabalho em vez de confrontar o chefe. Isso deixa práticas e pessoas podres no lugar, perpetuando abusos e más práticas.

No capitalismo, a divergência fundamental entre os valores das empresas e os valores das pessoas comuns é constantemente encoberta. Mas, às vezes, como no caso da Boeing e das centenas de vidas perdidas no último ano e meio, a desconexão é impossível de ignorar.

É nesses momentos que devemos enfatizar esse desalinhamento – gritar aos berros que, apesar do poder das empresas de moldar a existência de pessoas comuns, os valores das empresas não nos definem.

Amor, honestidade, bondade, dignidade e orgulho são os valores que motivam a maioria das pessoas. Em vez de permitir que o capital molde a sociedade de acordo com seus valores, devemos criar instituições que forçam as empresas a operar de acordo com nossos valores.

Sobre o autor

Nicole M. Aschoff faz parte do conselho editorial da Jacobin. Ela é autora dos livros "The New Prophets of Capital e The Smartphone Society: Technology, Power" e "Resistance in the New Gilded Age", prestes a ser publicado.

16 de fevereiro de 2020

Chile: do "oásis" à distopia neoliberal

Desde o início dos protestos em massa, as forças policiais chilenas cometeram violações generalizadas dos direitos humanos com impunidade, incluindo mutilações oculares, tortura, detenções arbitrárias e abuso sexual.

Marcella Via

Alborada


Em 8 de outubro de 2019, falando no programa de TV Mucho Gusto, o presidente chileno Sebastián Piñera descreveu o país como um "oásis real" e uma "democracia estável" com uma "economia em crescimento". Dez dias depois, Piñera havia caído em um pesadelo: em todo o Chile, as pessoas estavam se mobilizando contra seu governo, não apenas devido ao aumento de 30 pesos nas tarifas de transportes públicos, mas também para combater a desigualdade social e o neoliberalismo impostos durante a ditadura do general Pinochet.

Piñera escolheu responder a essas demandas com repressão. Durante protestos pacíficos de estudantes, a força policial do Chile, os carabineros, atirou em uma adolescente na perna, causando um sangramento profuso. A caixa de Pandora resultante expôs a mentira cuidadosamente construída repetida no discurso de Mucho Gusto em Piñera: a realidade é que o Chile é o paraíso para alguns, mas o inferno para muitos. Quando Piñera implementou um Estado de Emergência em 19 de outubro, na tentativa de conter os protestos, ficou claro que o Chile não tinha uma democracia estável nem uma economia em crescimento.

Depois de uma semana de mobilizações em massa que incendiaram o país, Piñera pediu um "retorno à normalidade", quando a cobertura dos protestos na TV desapareceu e as rotinas diárias começaram a reaparecer. No entanto, isso levanta a questão: o que era "normal" no Chile antes de 18 de outubro?

Embora organizações locais e internacionais - incluindo as Nações Unidas - tenham divulgado quatro relatórios lapidários condenando violações de direitos humanos no Chile e exortado o governo a enfrentar a escalada de abusos cometidos por carabineros, Piñera fez ouvidos moucos. Em vez disso, ele implementou uma série de medidas para fortalecer a repressão, incluindo uma lei contra o uso de capuz e um projeto anti-barricada.

As violações dos direitos humanos nos chamados tempos "democráticos" não são novidade no Chile. Em 14 de novembro de 2018, as pessoas foram às ruas para protestar contra o assassinato policial de um agricultor mapuche indígena, Camilo Catrillanca. Um mês antes, o secretário de um sindicato de pescadores, Alejandro Castro, foi encontrado morto na cidade portuária de Valparaíso. Enquanto os meios de comunicação informaram que Castro tinha cometido suicídio, existia uma forte suspeita de responsabilidade do Estado.

Infelizmente, as mortes de Castro e Catrillanca não são casos isolados. Características semelhantes podem ser identificadas, entre outras, na morte dos ativistas mapuche Macarena Valdés em 2016 e Matías Catrileo em 2008. As violações de direitos humanos no Chile, especialmente contra os opositores do estado, são frequentemente encobertas pelo apoio tácito dos meios de comunicação.

Além disso, o fato de as pessoas irem a protestos com limões, água com bicarbonato e luvas para resistir aos efeitos do gás lacrimogêneo reflete a naturalização da violência policial. Além do uso de gás lacrimogêneo, os carabineros costumam envolver manifestantes com caminhões-pipa, balas de borracha e agressões físicas. Desde 18 de outubro de 2019, a violência do Estado se intensificou, com a polícia empregando a tática particularmente perturbadora de disparar balas de borracha e gás lacrimogêneo na cabeça das pessoas.

Outras violações documentadas pelo Instituto Nacional de Direitos Humanos (INDH) incluem detenções arbitrárias, abusos sexuais durante a detenção, tortura, uso excessivo da força, erosão da liberdade de imprensa e mortes suspeitas.

Manifestantes cegos: "é mutilação"

Na véspera de Ano Novo em Valparaíso, o manifestante Diego Lastra perdeu um olho quando foi baleado no rosto com um cartucho de gás lacrimogêneo. Na mesma noite, a fotógrafa independente Nicole Kramm perdeu 80% da visão em seu olho esquerdo, devido a um objeto não identificado disparado por carabineros em Santiago. Vicente Muñoz, um estudante de teatro do primeiro ano da Universidade do Chile, perdeu o olho esquerdo em 11 de novembro. Ao deixar a Plaza de la Dignidad, em Santiago, o epicentro dos protestos, ele foi baleado a menos de dois metros de distância. Três dias antes, Gustavo Gatica, 21 anos, perdeu os olhos enquanto tirava fotos durante um protesto com a participação de 75.000 pessoas. A frequência dos casos sugere que os carabineros quebraram deliberadamente o protocolo para reprimir manifestantes pacíficas - ou pessoas que não estão protestando.

A mutilação ocular se tornou um símbolo icônico da violência policial e o número de vítimas aumenta dia a dia. Conforme relatado pela CIPER, a omissão do governo em relação a advertências feitas por defensores dos direitos humanos sobre o número de mutilações oculares - que atingiram 360 casos em 3 de janeiro - poderia formar a base de acusações em um processo contra Piñera. De fato, como apontado pela Lei 20.375, o Chefe de Estado é o principal responsável pelas violações cometidas pelos órgãos do Estado.

Além disso, de acordo com o investigador da Anistia Internacional, Pilar San Martín, o governo está tentando conscientemente atingir as pessoas com base no modus operandi dos carabineros. De fato, mesmo que o uso de balas de borracha tenha sido limitado desde 20 de novembro, o número de pessoas apresentando traumas oculares continuou a aumentar principalmente devido ao impacto das bombas de gás lacrimogêneo.

Tortura

Localizada no coração de Santiago, na Plaza Italia - agora renomeada pelos manifestantes como "Plaza de la Dignidad" - a estação de metrô Baquedano nunca mais será a mesma. A estação foi incendiada por manifestantes após ser usada como centro de tortura durante o Estado de Emergência. Durante as intensas primeiras semanas de protestos, a estação tornou-se sede dos carabineros, sem nenhum sinal identificando sua nova função. Conforme relatado pela CIPER, em 22 de outubro, Nicolás Lüer foi levado ao túnel subterrâneo da estação e espancado por carabineros. Ele diz que viu outros detidos com as mãos amarradas e penduradas em canos.

Embora o promotor público tenha rejeitado as alegações de que os carabineros estavam torturando pessoas dentro da estação de metrô, não há câmeras de segurança no túnel confirmando a versão oferecida pelos Carabineros do Chile. Outra suposta vítima, David Muñoz, foi espancada e baleada na perna direita no mesmo dia dentro da estação de metrô. As balas removidas de seu corpo eram de aço e revestidas de borracha.

Segundo o INDH, três adultos e uma criança foram pendurados pelos pulsos - descritos como "crucificados" na imprensa - na antena de uma delegacia de Santiago durante a noite de 21 de outubro. Um estudante na cidade de Antofagasta disse ao El Desconcierto que ele foi detido por carabineros enquanto esperava um ônibus para ir trabalhar. Ele foi assaltado, espancado e torturado durante um interrogatório, ao lado de outros detidos. Além disso, o estudante disse que os carabineros tomaram sua carteira de identidade e que um policial estava presente enquanto um médico o atendia em uma clínica. O diagnóstico foi que ele tinha ferimentos leves, mas nenhum sinal de tortura. O INDH apresentou 476 ações em defesa de 568 vítimas de tortura entre 19 de outubro e 30 de novembro.

O governo Piñera definiu a situação atual como uma "crise social". Essa definição inadequada designa responsabilidade à população e não ao modelo econômico e social violento e desigual. O elevado número de violações de direitos humanos implica uma crise no próprio neoliberalismo, de um sistema cada vez mais visto como ilegítimo e que só pode durar pela força. Quando a população não quer mais cenouras, o governo recorre ao bastão.

Sobre a autora

Marcella Via é editora colaboradora da Alborada e jornalista independente interessada em questões relacionadas a direitos humanos e política latino-americana. Twitter: @IntiMar21

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