21 de fevereiro de 2020

Sem reinventar a roda no BC

Com projeto de independência, corre-se o risco de consertar o que não está quebrado

Nelson Barbosa

Folha de S.Paulo

Americanos fazem fila para sacar investimentos durante a crise econômica, após o crash de 1929. A crise da Bolsa de Nova York começou em uma segunda-feira, 21 de outubro de 1929. AFP

A independência do Banco Central voltou ao debate. O Senado está avaliando um projeto de lei, enquanto, na Câmara, Rodrigo Maia também indicou que o tema é prioritário.

Lembrando, a proposta inicial do governo tem três pontos principais: isenção de todos os servidores do BC de responsabilização por atos praticado em suas funções, mandatos para os membros do Copom (o pessoal que fixa a Selic) e definição dos objetivos da política monetária.

O primeiro ponto é um absurdo, equivalente ao não questionamento de policiais por atos cometidos "sob forte emoção".

O segundo ponto pode e deve ser discutido, com cuidado, mas, por limitação de espaço, me concentrarei nos objetivos da política monetária.

Corremos o risco de consertar o que não está quebrado. O atual sistema de metas de inflação é regulado por um decreto e, nos últimos 20 anos, ele foi capaz de controlar a variação de preços sob fortes choques inflacionários e alta volatilidade cambial, tudo isso com redução gradual da taxa real de juro.

Apesar desse sucesso, os monetaristas de museu do Executivo querem fixar os objetivos do BC em lei. Mais, querem também dizer o que é mais e menos importante, colocando inflação em primeiro lugar, estabilidade financeira em segundo lugar e simplesmente esquecendo o nível de atividade. O Brasil não merece tanta arrogância.

A história econômica mostra que, quando o sistema financeiro corre risco de quebrar, levando a economia junto, a prioridade é evitar o agravamento da crise, deixando preocupações inflacionárias para se e quando isso for superado. Essa prática acontece desde pelo menos meados do século 19 —o "pânico de 1866" na Londres vitoriana. O episódio mais recente foi o "afrouxamento quantitativo" nos países avançados, pós-crise de 2008.

Como contraexemplo, lembro que a obsessão em manter a paridade monetária com o ouro, no início dos anos 1930, foi um dos determinantes da Grande Depressão daquela década. Colocar estabilidade financeira em segundo plano é, portanto, uma temeridade, além de convidar os procuradores de plantão a inventar crimes para obter protagonismo político.

O controle da inflação também deve levar em consideração as flutuações da renda e do emprego, para evitar aprofundar recessões e exagerar expansões. A maioria dos bancos centrais do mundo já faz isso, formalmente ou informalmente, explicando por que adotam velocidade mais lenta ou mais rápida de convergência da inflação para a meta do governo.

Ao ignorar renda e emprego, o projeto do governo é tão radical que até Armínio Fraga argumentou que deveria haver espaço para alguma estabilização do nível de atividade. O senador Tasso Jereissati apresentou emenda nesse sentido, colocando suavização de ciclos econômicos como objetivo "secundário da política monetária".

A iniciativa de Jereissati está correta do ponto de vista econômico, mas, novamente, lembro que, na atual fogueira de vaidades de nossa cultura da auditoria, qualquer ordenamento legal atiça procuradores irresponsáveis a provocar crises institucionais para ter destaque na mídia.

Diante desse quadro, vou mais longe do que Fraga e Jereissati: os objetivos do BC devem ser definidos de modo geral na lei, cabendo ao "regulamento" (decreto presidencial) determinar a hierarquia no dia a dia do BC, tudo com transparência e prestação de contas. Posso parecer radical, mas foi exatamente isso que aquele "presidente de esquerda", Fernando Henrique, fez 1999.

Não precisamos reinventar a roda no BC e temos outros problemas mais urgentes.

Sobre o autor

Professor da FGV e da UnB, ex-ministro da Fazenda e do Planejamento (2015-2016). É doutor em economia pela New School for Social Research.

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