14 de fevereiro de 2020

Medo de cair

Classe média é o grupo que está bem hoje, mas que pode cair amanhã

Nelson Barbosa


Vila Andrade, na zona sul, é o distrito com maior proporção de favelas (50% das casas). É lá que está Paraisópolis, uma das maiores da cidade. Simon Plestenjak/UOL/Folhapress

Sempre houve e haverá desigualdade em sociedades humanas, mas, quando a desigualdade se torna extrema e injustificável, a população tende a se rebelar, liderada pela classe média.

Quando a classe média se alia aos mais ricos, normalmente temos mais aumento da desigualdade, que é tolerado enquanto houver crescimento econômico ou administrado via repressão contra os mais pobres quando o crescimento econômico é insuficiente.

Quando a classe média se alia aos mais pobres, geralmente temos redução da desigualdade, que, novamente, é tolerada enquanto houver crescimento. Também há mais inclusão social nesse caso, o que ironicamente acaba criando ansiedade em parte da classe média, por ter que compartilhar direitos e espaços antes percebidos como seus.

Mas o que é classe média? Há várias definições na literatura, baseadas em nível de renda (economistas), padrão de consumo (marqueteiros) e outros fatores. Gosto da taxonomia da jornalista Barbara Ehrenreich,
em “Fear of Falling”, sobre os EUA, do fim dos anos 1980.

O livro não foi traduzido para o português, mas tento um resumo: o que mais caracteriza a classe média é, adivinhe, o medo de cair!

Segundo Ehrenreich, o principal capital da classe média é sua formação profissional, adquirida via estudo e experiência, o que, por sua vez, não é facilmente transferível às futuras gerações, como, digamos, dinheiro no banco.

Uma pessoa de classe média tem vida geralmente confortável e segura, mas seus filhos não têm garantia de continuar na mesma situação. Para permanecerem na classe média, eles e elas terão que se qualificar e, mesmo assim, correm o risco de cair para as classes mais pobres se não houver empregos ou oportunidades suficientes para suas qualificações.

Gosto dessa taxonomia porque ela é simples. Ricos são aqueles com situação garantida hoje, amanhã e depois. A geração atual está bem, a seguinte idem e os netos também. Não há medo de cair.

Classe média é o grupo que está bem hoje, mas que pode cair amanhã e, principalmente, cujos filhos não têm garantia de permanecer classe média.

E os pobres são aqueles que batalham dia a dia para não cair na miséria. Aqueles para os quais um pequeno choque adverso (doença ou acidente) pode representar a diferença entre pobreza e miséria.

A expansão da classe média é vital para a manutenção da democracia, mas hoje isso está em risco em alguns países.

Seja pela abertura comercial, pela automação da produção, pela imigração ou pela concentração de poder pelos mais ricos, o fato é que a classe média vem perdendo representação no Ocidente. Esse processo obviamente não ocorre sem reação, e, na política, é sempre mais fácil culpar o outro do que explicar situações complexas.

Nos países avançados, os imigrantes são o bode expiatório. Por aqui a culpa é geralmente dos “esquerdistas”, que ousaram distribuir mais renda do que de costume quando foram governo.

Nos dois casos a elite cria uma cortina de fumaça para iludir a classe média, atribuindo só a imigrantes ou esquerdistas práticas condenáveis como corrupção, ausência de valores e pecados equivalentes.

E, enquanto o medo de cair leva a classe média a se aliar aos mais ricos, sua situação econômica fica cada vez pior, com precarização das condições de trabalho e redução da mobilidade social.

Até quando? Até que alguma liderança seja capaz de unir novamente classe média e mais pobres ou até a situação ficar tão ruim que isso acontece naturalmente. Torço pela a primeira alternativa, mas por enquanto ainda estamos na segunda.

Sobre o autor

Professor da FGV e da UnB, ex-ministro da Fazenda e do Planejamento (2015-2016). É doutor em economia pela New School for Social Research.

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