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9 de junho de 2024

A luta contra a opressão de castas pode unir os trabalhadores indianos

O estado indiano de Punjab nos mostra que a opressão de casta se deve muito mais a interesses materiais do que a ideologias religiosas herdadas. Um movimento de trabalhadores rurais Dalit oferece um exemplo poderoso de como essa situação pode ser desafiada hoje.

Amol Singh

Jacobin

Um trabalhador carrega um saco de trigo em um mercado atacadista em Punjab, 30 de abril de 2024. (Narinder Nanu/AFP via Getty Images)

Tradução / O estado indiano de Punjab, localizado na fronteira com o Paquistão, no noroeste do país, tem uma população de vinte e sete milhões, a maioria da qual é Sikh. Nos últimos tempos, Punjab deu origem a um importante movimento que procura organizar os Dalits, que constituem a parcela mais pobre e oprimida da porção rural do estado.

Mais de dois terços da população da Índia ainda vive no campo e 45% da força de trabalho está empregada na agricultura. Um olhar mais atento ao movimento no Punjab pode, assim, lançar luz sobre algumas das questões mais importantes para a política e a sociedade indianas, tais como a relação entre classe e casta, até que ponto a guinada neoliberal da Índia ao longo das últimas três décadas transformou suas estruturas sociais e o potencial de mobilização de grupos oprimidos e explorados, como os Dalits.

Terra revolta

Em 2008, Bahal, Amarjit e alguns outros jovens Dalit formaram o Sindicato Krantikari Pendu Mazdoor (Sindicato Revolucionário dos Trabalhadores Rurais). Amarjit trabalhava para a AP Solvex na cidade vizinha de Dhuri. Quando criança, ele foi siri (uma forma de trabalhador em regime de servidão) para uma família da casta agrícola dominante Jatt por dez anos.

Mais de dois terços da população da Índia ainda vive no campo e 45% da força de trabalho está empregada na agricultura.

Ele afirma que sua vida como siri foi semelhante à escravidão: “Recebíamos chapatis estragados e leite com água para se alimentar, tínhamos utensílios separados. Eu trabalhava desde cedo, até tarde da noite. Fui tratado como um bezerro inútil.” Na agricultura moderna e mecanizada da Índia, os agricultores consideram os bezerros machos inúteis e os mantém com fome, mal lhes permitindo serem amamentados.

Quando o arrendamento anual de terras estava em andamento, alguns Dalits locais abordaram Bahal, Amarjit e seus camaradas. Conseguiram interromper uma oferta por procuração que um Dalit fazia em nome de um agricultor Jatt. A administração local, dominada por membros das castas superiores, não queria que as terras fossem para os Dalits, o que limitou várias ofertas. Mas a organização dos trabalhadores perseverou e acabou assumindo o controle dos nove acres de terra.

Bahal pertencia a uma organização estudantil de esquerda em sua faculdade. Ele conhecia as experiências de coletivização chinesa e soviética e tinha uma imagem otimista delas após ler obras literárias traduzidas, como Virgin Soil Upturned (lançado no Brasil como “Terra e Sangue” pela Editora Vitória na década de 1950), de Mikhail Sholokhov, e The Hurricane, de Chou Li-Po.

Quando ele e seus camaradas começaram a cultivar comunitariamente no terreno que haviam adquirido, o chamaram de sanjha khet, em homenagem à frase usada para fazenda coletiva na tradução em punjabi do romance de Sholokhov. Eles expunham publicamente as receitas e despesas nos muros da aldeia e realizavam assembleias gerais regularmente.

Mobilização Dalit

Embora cerca de 250 famílias Dalit tenham aderido ao arrendamento da terra, apenas noventa e quatro delas possuíam os fundos necessários. Essas famílias possuíam gado e queriam uma parte do sorgo cultivado e de outras hortaliças para forragem. O gado sempre foi importante para elas, que dependem do leite para se alimentar. Bahal e seus camaradas também fornecem auxílio para os Dalits sem-terra em tempos de dificuldades.

O movimento é uma forma de afirmação das castas inferiores contra a dominação Jatt. Ele enfrentou uma reação brutal e violenta dos Jatts e da administração estatal.

Na ausência de terras comuns, as mulheres Dalit costumavam ir até aos limites das terras dos Jatts para colher hortaliças duas vezes por dia, onde enfrentavam regularmente abusos e assédio sexual por parte dos proprietários. Devido a esta experiência, as mulheres superaram os homens numericamente no movimento.

Inspirado por este exemplo, um grupo maoista formou o Comitê Zameen Prapati Sangharsh (ZPSC), exigindo o arrendamento exclusivo de terras para os Dalits em 2014. O ZPSC tem liderado um notável e inédito movimento baseado em castas.

Cada aldeia tem algumas terras comuns, embora a quantidade varie entre elas. Um terço dessas terras é reservado para os Dalits arrendarem anualmente. No passado, Jatts costumava controlar estas terras sob o nome de licitantes Dalit, por procuração. O ZPSC organizou os Dalits para arrendar terras como uma comunidade e impulsionou a agricultura cooperativa.

Sem concorrentes, eles poderiam manter o valor de arrendamento o mais baixo possível. A quantidade de terra varia de apenas alguns acres a mais de cem. Nos últimos dez anos, este movimento se espalhou por mais de 120 aldeias.

À primeira vista, isto parece um movimento de mulheres Dalit que demandam respeito e retornos econômicos do que colhem da terra. Mas também é muito mais do que isso. O movimento é uma forma de afirmação das castas inferiores contra a dominação Jatt. Isso desencadeou uma reação brutal e violenta dos Jatts e da administração estatal.

Casta e classe

A compreensão orientalista de casta apresenta-a como tendo origem na religião hindu, com a ideologia do bramanismo mantendo a hierarquia social. Esta compreensão metafísica do fenômeno da casta domina o discurso da política identitária nas universidades da Índia.

A compreensão orientalista de casta apresenta-a como tendo origem na religião hindu, com a ideologia do bramanismo mantendo a hierarquia social.

No entanto, o padrão das relações de castas no estado de Punjab, dominado pelos Sikh, desafia este quadro explicativo. Cerca de 58% da população do estado é Sikh, com uma proporção muito maior nas áreas rurais, que constituem o crisol da opressão baseada nas castas.

Punjab também tem a maior proporção de Dalits de qualquer estado indiano: eles representam quase um terço da população, mas possuem menos de 2% das terras agrícolas. Mais uma vez, a proporção de Dalit é maior nas aldeias, onde dominam os membros da casta Jatt.

O Sikhismo é uma religião comparativamente nova, baseada no princípio da igualdade entre as castas. No entanto, a realidade material do controle da terra tornou esta filosofia religiosa ineficaz como movimento emancipatório, resultando na prevalência da opressão e exploração de castas.

No passado, essas relações baseavam-se no jajmani. Ele era um sistema de ocupações hierárquicas de castas baseado na noção de “reciprocidade”. Na economia da aldeia, a terra era fundamental para a produção. Jatts possuíam as terras e empregavam membros de outras castas, como os julahe (tecelões), os lohar (ferreiros) ou os ghumar (cerâmicos), oferecendo-lhes em troca uma pequena quantidade de grãos.

Neste sistema, os Dalits realizavam o chamado “trabalho sujo” de remoção de animais mortos, produção de couro e coleta de lixo. Sua principal ocupação, porém, era a do trabalho agrícola. As relações entre proprietários de terras e trabalhadores eram altamente opressivas e exploradoras.

A estrutura de castas que o sistema jajmani produziu e reproduziu baseava-se no poder econômico e social da casta Jatt. Mas a economia da aldeia e o sistema jajmani se desintegraram na sequência da Revolução Verde da década de 1970 e da subsequente guinada da Índia para políticas neoliberais nos anos 90.

Depois da revolução verde

Durante a década de 1970, o estado indiano introduziu variedades de cultivo híbridas e fertilizantes, combinados com a utilização de novas máquinas, numa tentativa de resolver o problema da deficiência alimentar nacional. Punjab esteve no centro dessas mudanças.

O emprego de tratores e ceifeiras-debulhadoras, bem como de herbicidas, reduziu drasticamente o número de dias de trabalho necessários na agricultura, expulsando os trabalhadores Dalit.

Nos últimos cinquenta anos, o emprego de tratores e ceifeiras-debulhadoras, bem como de herbicidas, reduziu drasticamente o número de dias de trabalho necessários na agricultura, expulsando os trabalhadores Dalit. De acordo com dados recentes, do total da mão-de-obra rural, cerca de 30% se dedicam à agricultura apenas durante curtos períodos do ano, enfrentando o desemprego no restante do tempo ou dependendo do pequeno comércio e de outras formas de trabalho assalariado.

O fenômeno do trabalhador em regime permanente (siri), que recebia um pequeno rendimento no final do ano, diminuiu de quase 36% de toda a força de trabalho em 1987-88 para pouco mais de 1% em 2018-19. Os siris eram altamente explorados, sem jornadas com quantidade fixa de horas ou qualquer tipo de trabalho definido. Seus níveis de remuneração eram muito baixos, pois normalmente tinham de pagar dívidas contraídas com taxas de juro onerosas aos Jatts. Isso muitas vezes os prendeu em um ciclo de dívida, forçando-os a trabalhar como siris durante toda a vida.

A maioria dos Dalits trabalha agora como trabalhadores assalariados na construção, na indústria transformadora ou no setor dos serviços. Eles tendem a se dissociar da economia da aldeia e a trabalhar em vilas e cidades próximas. Por outro lado, membros das castas médias e baixas dos estados indianos mais pobres migram agora para o Punjab para realizar o trabalho agrícola que os Dalits costumavam fazer.

Embora a Revolução Verde tenha inicialmente aumentado o rendimento dos agricultores Jatt, com o advento da era neoliberal, o Estado começou a limitar o apoio que tinha anteriormente fornecido aos agricultores e estes viram-se sujeitos à exploração por empresas multinacionais. Entre 1991 e 2000, de um total de um milhão de famílias de produtores rurais, duzentos mil agricultores pequenos e marginalizados abandonaram a agricultura, muitos dos quais se juntaram aos Dalits nas fileiras dos trabalhadores assalariados.

No outro extremo da escala, registrou-se também um declínio no número de grandes agricultores e da quantidade de terras que possuem. Em toda a Índia, apenas as famílias rurais que possuem pelo menos dez acres de terra ganham mais do que gastam, e a grande maioria — 96% — das famílias rurais fica abaixo deste patamar.

A disparidade entre receitas e despesas para os Jatts gerou dívidas e dificuldades, culminando eventualmente numa onda de suicídios. Um grande número de Jatts e Dalits formam agora o que o sociólogo Henry Bernstein chama de “classes de trabalho” – trabalhadores que ganham a vida através de uma combinação de pequena produção de mercadorias, comércio em pequena escala e trabalho assalariado. Embora isto possa sugerir que existe uma desconexão crescente entre casta e poder social, essa impressão é errônea.

Uma nova classe dominante

Uma nova classe dominante regional emergiu no processo, à medida que os ricos agricultores Jatts colheram os benefícios da Revolução Verde. Eles também tinham acesso a empréstimos, venda de insumos agrícolas e outros negócios fora da agricultura. Esta classe controla firmemente os recursos das aldeias de várias formas, incluindo santuários religiosos, panchayats (conselhos de aldeia), instituições de assistência social, organizações de agricultores, partidos políticos e órgãos da administração estatal.

O Comitê Shiromani Gurdwara Parbandhak (SGPC), por exemplo, é um órgão religioso Sikh que os críticos internos acusaram de ser dominado por Jatts. Ele controla os santuários Sikh em Punjab, Haryana e o território de Chandigarh. A prática do boicote social é aplicada através de santuários Sikh ao nível das aldeias, que são dominados por esta classe de agricultores ricos.

Normalmente, quando os Dalits exigem melhores salários durante o período de trabalho intensivo na cultura de arroz, que ainda depende do cultivo manual, a comunidade Jatt os exclui de qualquer tipo de transação econômica, quer isso signifique vender alimentos ou leite, pagar salários, ou receber benefícios sociais, que são distribuídos pelos conselhos das aldeias. Os Jatts mobilizam todas as instituições de poder da aldeia para fazer este boicote social funcionar.

Quando os Dalits exigem melhores salários durante o período de trabalho intensivo do cultivo do arroz, a comunidade Jatt exclui os Dalits de qualquer tipo de transação econômica.

Os Jatts dominam os conselhos das aldeias. Mesmo quando a posição de chefe é reservada aos Dalits, a pessoa realmente eleita é alguém fiel à classe dos agricultores ricos. Na maioria das aldeias, os membros Dalits do conselho não podem se sentar na frente dos membros da casta superior. As instituições de assistência social das cooperativas das aldeias estão sob controle Jatt, incluindo os recursos do governo para emprestar dinheiro aos Dalits pobres. Recentemente, a ZPSC tentou desafiar esse domínio sobre essas cooperativas, mas sem sucesso.

Os Jatts controlam várias grandes organizações de agricultores. Contudo, as organizações de agricultores de esquerda são mais fortes e numerosas, oferecendo apoio aos Dalits quando são vítimas de injustiças. Em algumas aldeias, as filiais locais das organizações de agricultores de esquerda impuseram o boicote social, mas, infelizmente, as instituições estatais tomaram conhecimento disso e expulsaram os membros responsáveis.

Através do controle sobre estas diversas instituições de poder político, social e econômico, os Jatts ricos exercem sua autoridade sobre a política eleitoral e todos os principais partidos. Por seu lado, os partidos de esquerda que aderem à ideologia maoista veem a democracia liberal como uma farsa e evitam participar nas eleições, acreditando que isso os converteria de revolucionários em reformistas.

Os pequenos agricultores também têm sido os perpetradores da discriminação, embora muitos partilhem uma posição de classe com os Dalits quando trabalham ao lado deles em pequenas indústrias e no setor de serviços, ou como funcionários do Estado. Pode-se entender estes boicotes sociais e injustiças como a reação dos agricultores ricos e dos pequenos agricultores recentemente empobrecidos, que procuram manter o poder das castas frente à afirmação dos Dalits.

Na aldeia de Jhaloor, uma multidão Jatt de cerca de 250 pessoas respondeu à demanda dos Dalit por terras atacando a área onde viviam. Agrediram uma mulher com machados, cortando-lhe uma perna; mais tarde ela sangrou até morrer no hospital. Os jovens Jatt espancaram e abusaram sexualmente de mulheres Dalit, cujas casas foram saqueadas.

Este não foi um incidente isolado. Na aldeia de Balad Kalan, a administração local prendeu quarenta e um Dalits sob acusações forjadas de tentativa de homicídio, exigindo suas terras como contrapartida. Eles só foram soltos após uma luta que durou cinquenta e nove dias.

Além da base e da superestrutura

O programa do clandestino Partido Comunista da Índia (de tendência maoista) retrata a opressão de castas como um legado do sistema “semifeudal” da Índia e prevê que a “distribuição de terras aos agricultores” dará início a um processo que conduzirá à sua erradicação. Por outro lado, o institucionalizado Partido Comunista da Índia (marxista), que faz parte da aliança da oposição nas eleições deste ano, define a casta como “um remanescente da sociedade pré-capitalista”.

A luta contra as castas é vital para construir a unidade dos trabalhadores.

Podemos dividir a compreensão das castas entre os comunistas da Índia em três grandes categorias. A primeira é composta por aqueles que veem a casta como parte da “base” socioeconômica e acreditam que ela só pode ser abolida através da luta de classes e da revolução. A segunda é composta por aqueles que a veem como um fenômeno da “superestrutura” e defendem que uma transformação cultural pode eliminá-la após a revolução. Na terceira categoria temos aqueles, como o ZPSC, que veem a casta tanto como uma questão de base como de superestrutura.

O problema de usar a divisão binária herdada de base e superestrutura, que deriva de um texto específico de Karl Marx, é que tendemos sempre a banalizar o que colocamos na superestrutura – neste caso, as instituições sociais e políticas. Dado que os grupos comunistas caracterizam a sociedade indiana como “semifeudal”, argumentam que são necessárias reformas agrárias para eliminar as forças do feudalismo e completar o que chamam de Nova Revolução Democrática.

O economista Vikas Rawal estimou que se for imposto um limite máximo para propriedades de terra de 17,5 acres, apenas serão fornecidos 0,33 acres de terra para cada família que atualmente não possui terras. Isto não significa que a reforma agrária seja redundante – se realizada, teria um impacto significativo nas estruturas de castas e deveriam ser defendidas. Mas devemos também reconhecer a importância de desafiar as instituições através das quais a hegemonia dos Jatts se manifesta.

Organizações locais a nível de aldeia, nos moldes do ZPSC, podem impor esse desafio. Este pode não ser um movimento de transformação socialista como os grupos maoistas entenderiam, mas a luta contra as castas é vital para construir a unidade dos trabalhadores. Afinal, tal unidade não é possível com base na dominação Jatt. Este movimento poderia fornecer a base para os trabalhadores se envolverem numa futura luta unida contra o capitalismo global.

Colaborador

Amol Singh é um pesquisador e ativista independente que mora em Punjab.

18 de novembro de 2020

A ascensão do nacionalismo hindu e os fracassos da esquerda indiana

Os outrora poderosos movimentos de esquerda da Índia estão enfrentando o maior desafio de sua história, à medida que o partido ultranacionalista de Narendra Modi consolida seu controle do poder. Este momento de crise exige que os socialistas indianos repensem amplamente a teoria e a estratégia.

Amol Singh


Apoiador do BJP segurando uma imagem de Narendra Modi em um comício público em Calcutá, Índia, 2019. (Atul Loke / Getty Images)

Resenha do livro Nationalist Dangers, Secular Failings: A Compass For An Indian Left, de Achin Vanaik (Aakar Books, 2020).

Tradução / Na Índia, o Partido Bharatiya Janata (BJP, na sigla em inglês), firmemente enraizado no poder, tem vindo a executar uma estratégia de retaliação contra os seus inimigos, em especial contra os muçulmanos indianos e os movimentos de esquerda do país. Figuras importantes da esquerda indiana foram recentemente presas ao abrigo de legislação repressiva, como a Lei de Prevenção de Atividades Ilegais, ao mesmo tempo que são apelidadas de "Naxalitas Urbanos". Por outro lado, recentemente foi aprovada legislação sobre cidadania que tem como alvo os indianos muçulmanos, privando-os do seu estatuto legal.

A aprovação destas leis discriminatórias deu origem a enormes manifestações por parte de muçulmanos e ativistas estudantis, tendo o governo de Narendra Modi usado o recolher obrigatório decretado no âmbito de combate à pandemia como desculpa para reprimir os protestos e tendo as autoridades prendido alguns dos seus organizadores, acusando-os de ter instigado os distúrbios de Delhi em Fevereiro. Onde estavam os partidos indianos de esquerda enquanto isso acontecia?

A esquerda indiana atravessa um momento de crise, muito provavelmente o pior da sua história. A esquerda parlamentar, representada pelo Partido Comunista da Índia e pelo Partido Comunista da Índia (Marxista), não tem qualquer perspetiva de luta anti-capitalista e tem vindo a perder a sua base eleitoral. As organizações maoístas estão confinadas às florestas da Índia central, isoladas pelo seu sectarismo político.

No seu mais recente livro Nationalist Dangers, Secular Failings: A Compass for an Indian Left3 o autor, Achin Vanaik, procura analisar este perigoso momento político. O livro é uma coleção de artigos publicados anteriormente, todos eles atravessados pela questão do autoritarismo nacionalista hindu e pelo desafio de construir uma alternativa de esquerda a esse autoritarismo.

Teorias sobre o nacionalismo

Vanaik segue a célebre definição de nação enquanto "comunidade imaginada", de Benedict Anderson. Dado constituírem um estado de espírito, as nações podem criar-se ou desaparecer. Para a existência de uma nação é de importância fundamental um sentimento de identidade e consciência nacional, com base numa variedade de fatores.

Assim, não é possível existir uma lista de características que definam uma nação, como Estaline procurou fazer com uma conceptualização excessivamente rígida, mas muito influente. Para Vanaik, "uma nação emerge quando um número significativo de pessoas se vê como constituindo uma nação e procura ter o controlo político sobre um território."

O livro começa com um resumo das diferentes, e por vezes conflituantes, perspetivas teóricas sobre o que constitui uma nação.

Por um lado, uma visão tradicional e essencialista, geralmente associada ao nacionalismo de direita, que vê a nação como uma entidade que existe desde tempos imemoriais, ou pelo menos desde a história antiga. Os essencialistas acreditam que a nação possui um carácter inato corporizado numa época de ouro mítica. Essa época de ouro teria sido interrompida por um invasor estrangeiro, tornando necessário restaurar o espírito e a natureza da nação através de um renascimento. Trata-se de uma teoria que invoca uma cultura comum compartilhada por toda a população, o que pode ter sido real ou fictício – geralmente a última, já que um determinado território tende a conter várias culturas.

Por outro lado, temos as teorias modernas do nacionalismo, que vinculam o fenómeno dos Estados-nação ao surgimento da política de massas e da soberania popular. Enquanto os tradicionalistas dão à cultura uma importância central na sua abordagem da nação, os modernistas consideram a política o elemento central na construção de comunidades nacionais.

O autor considera que a escola de pensamento modernista inclui neo-weberianos e marxistas, associando estes últimos o nacionalismo à ascensão do capitalismo que cria as condições para a existência de consciência nacional através do "capitalismo impresso" e de línguas padronizadas, em conjunto com políticas estatais como a educação e os exércitos nacionais. Um problema desta visão do nacionalismo como um fenómeno moderno consiste na dificuldade em explicar a presença do nacionalismo em sociedades pré-capitalistas ou lutas anticoloniais em sociedades agrárias e tribais.

Nas lutas anticoloniais, por exemplo no caso da Índia, o nacionalismo tradicional-essencialista foi construído para combater a superioridade ideológica impingida pelos colonizadores à nação colonizada. As elites intelectuais de países como a Índia construíram laboriosamente símbolos e histórias comuns para fornecer munições culturais para lutar contra o poder colonial.

Essa construção pode ter carácter conservador ou progressista, dependendo das características da classe intelectual comprometida nesse projeto de construção de uma contra-cultura. No caso indiano, essa classe era predominantemente composta por homens hindus de casta superior.

As duas versões aparentemente opostas de nacionalismo cultural na Índia têm uma origem comum no mito da singularidade cultural hindu, criado pela elite intelectual nacionalista hindu durante a luta contra o domínio colonial britânico. Os dois principais partidos, que desde a independência têm alternadamente dominado a política indiana, representam de modo geral as duas versões desse mito.

De um lado, há a ideia da Índia como uma “cultura multifacetada” inclusiva, caracterizada pela “unidade na diversidade”, seguida pelo Congresso Nacional Indiano5 (CNI), também conhecido como Partido do Congresso e pela parte de esquerda-liberal da elite intelectual indiana. Do outro, existe a visão do nacionalismo como legado da “religião e cultura hindu” adotada pelo BJP, o principal partido de direita.

Duas hegemonias

De acordo com Vanaik, o período após o fim do domínio colonial foi caracterizado por duas fases de hegemonia política. Durante a primeira fase, após a independência, o Partido do Congresso foi o dominante, com o seu ideal hegemónico de um Estado social (embora capitalista) e desenvolvimentista.

No final da década de 1960, começou a tornar-se evidente um enorme abismo entre o discurso da classe política de promoção do desenvolvimento e do bem-estar social, de um lado, e a realidade dos seus fracassos sociais e económicos, do outro. A pobreza endémica, as deficiências dos sistemas de saúde e educação públicos e o colapso da reforma agrária corroeram a confiança popular no Estado liderado pelo Partido do Congresso.

Durante o interregno que se seguiu, começaram a emergir partidos políticos regionais, juntamente com classes capitalistas de base rural. Confrontado com um este vazio ideológico, o Congresso refugiou-se no seu hinduísmo latente e suave.

Ao mesmo tempo, uma força eleitoral de extrema-direita, o BJP, estabeleceu-se no cenário político indiano, baseando o seu discurso em três questões principais: 1) a construção do templo hindu Ram Mandir no local da mesquita (muçulmana) Babri Masjid, supostamente edificada no local de nascimento do deus hindu Rama; 2) o fim da autonomia do estado da Caxemira, de maioria muçulmana; e 3) a promulgação de um código civil universal, com o objetivo de diminuir os direitos das minorias cristãs e muçulmanas.

A segunda fase hegemónica inicia-se com a consolidação do BJP como a grande força eleitoral. À medida que o capitalismo neoliberal se enraizava na Índia e a intervenção do Estado na economia diminuía, o apoio popular ao Partido do Congresso diminuiu drasticamente. A versão nacionalista do BJP serviu como agregador social pan-classista, fornecendo à economia capitalista da Índia um governo estável.

De todos os movimentos de extrema-direita do mundo, o Rashtriya Swayamsevak Sangh6 (RSS) e as organizações nele filiadas, geralmente conhecidas como Sangh Parivar, constituem a força melhor organizada. Possui uma estrutura rigorosamente hierárquica, com ordens fluindo verticalmente do topo para a base, e no seu quase um século de existência enquanto organização ainda não teve qualquer divisão significativa.

O RSS tem cerca de três dezenas de organizações filiadas, a maior rede de escolas privadas da Índia e mais de oitocentas ONGs que trabalham em áreas como o auxílio em catástrofes naturais, a saúde e o desenvolvimento. Ao nível da base, o movimento tem 58 mil delegações locais. Nos últimos sete anos de governo do BJP, o Sangh Parivar conseguiu corromper as instituições democráticas anteriormente tidas como salvaguardas da democracia indiana, nomeadamente a comissão eleitoral e o Supremo Tribunal.

A Esquerda anacrónicaA resposta da esquerda indiana parlamentar foi desanimadora. Em vez de rejeitar categoricamente o caminho e as propostas do Hindutva, as forças de esquerda adotaram uma posição ambígua quanto ao recente cancelamento da autonomia da Caxemira e quanto à decisão do Supremo Tribunal que permitiu a construção do templo hindu Ram Mandir no local da histórica mesquita. Por interesse próprio, a esquerda não se atreve a opor-se frontalmente a um sentimento nacionalista hindu que criou raízes profundas na opinião popular.

A esquerda eleitoral indiana, o PCI e o PCI(M), adota a definição de nacionalismo de Estaline e acredita que a Índia é de facto uma nação. De acordo com esta perspetiva, o Estado da Caxemira, enquanto parte da Índia, não tem o direito à autodeterminação, embora os deputados comunistas apoiem uma autonomia limitada para a Caxemira, nos termos do acordo de adesão de 1947 negociado com o seu então governante, o marajá Hari Singh. No entanto, o recente silêncio dos partidos de esquerda sobre a questão da Caxemira revela o seu receio de perder eleitorado.

Por outro lado, as várias fações maoístas, invocando a mesma tradição estalinista, afirmam que a Índia é uma "união de nações" e apoiam firmemente o direito à autodeterminação para Caxemira e para diversas outras comunidades que reconhecem como "nacionalidades" nos Estados orientais do norte da Índia.

Ao longo de cinco décadas, os maoístas têm sido fortes apoiantes da autodeterminação de Caxemira. No entanto, a sua posição não deixa de ter os seus próprios problemas: a rígida definição estalinista de comunidades nacionais levou-os ao ponto de reconhecer a exigência do fundamentalismo Sikh da criação do "Calistão" como uma questão nacional que deve ser resolvida.

"Calistão" é o nome usado para um Estado nacional independente a criar no território do atual Estado do Punjab (onde 58% da população é Sikh), baseado nos princípios do Sikhismo. Dado que a comunidade Punjabi cumpre todos os requisitos da definição estalinista de nação, a esquerda maoísta defende que a reivindicação da criação do Calistão é uma manifestação do desejo dessa nação por autodeterminação e, como tal, deve ser apoiada. No entanto, a ideia do Calistão entra em contradição com a consciência popular do próprio Punjab.

A Esquerda necessita de construir uma alternativa às duas versões dominantes do nacionalismo, seja a do Partido do Congresso seja a do BJP. Esta alternativa terá de ser secular e democrática – democrática no sentido em que a nação não deve ser imposta ao povo; as pessoas devem ter o direito de escolher aceitá-la ou rejeitá-la.

Uma nação inclusiva

Para Vanaik, a afirmação de que os Estados-nação têm vindo a perder a sua importância em virtude de o capital ter assumido um carácter global não tem fundamento, defendendo que a separação entre a esfera política e a económica que se manifesta ao nível do estado-nação é fundamental para o capitalismo. Embora seja defensável que a luta contra o capital deve ser internacional, o autor considera que, quando as forças da extrema-direita dominam o cenário nacional, é crucial desafiá-las nesse nível nacional com uma forma alternativa de nacionalismo que seja aberta e inclusiva.

O slogan "Defender a Constituição" apresentado pelos liberais indianos e por uma parte da esquerda é desadequado, pois a extrema-direita já avançou muito na implementação do seu projeto, operando dentro dos limites da Constituição indiana. Além disso, essa Constituição, enquanto documento burguês e liberal, dificilmente poderá ajudar na luta por uma sociedade pós-capitalista.

Vanaik defende que a ampla hegemonia do Hindutva, sustentada em fortes bases organizacionais, vai permanecer por muito tempo. As forças da oposição estão fracas e fragmentadas. A esquerda parlamentar tornou-se um movimento primordialmente eleitoral, que procura ganhar eleições como um objetivo em si, em vez de usá-las como uma ferramenta para mobilizar os trabalhadores. Os sindicatos associados à esquerda defendem a realização de greves gerais, mas, de acordo com Vanaik, “perderam a capacidade de corresponder às lutas da classe trabalhadora”.

As vitórias eleitorais da esquerda indiana em estados como Bengala Ocidental e Kerala têm sido cada vez mais obtidas deixando de lado as lutas de classes. Em 2007, o PCI-Maoísta liderou uma luta de Adivasis na cidade de Nandigram contra um projeto do governo da Frente de Esquerda, liderado pelos comunistas, que previa estabelecer zonas económicas especiais em Bengala Ocidental. Os confrontos e as mortes pela polícia em Nandigram ajudaram a precipitar a queda do governo da Frente de Esquerda após mais de três décadas no poder.

Os governantes de Bengala Ocidental consideravam necessária a atração para o seu estado de empresas multinacionais para promover a industrialização capitalista, que consideravam uma etapa obrigatória no caminho para o socialismo, vindo com o tempo a assumir a posição de “neoliberais de esquerda”. Longe de promover o socialismo, a reestruturação da força de trabalho após a privatização de setores anteriormente estatais expulsou os sindicatos afetos aos comunistas.

Em Kerala, os comunistas têm ocupado o poder em alternância com o Partido do Congresso a cada cinco anos, e os seus governos têm conseguido conquistas significativas, salvando os setores da saúde e educação da privatização. Mas o seu objetivo é claramente administrar e (espera-se) controlar o capitalismo, em vez de procurar desgastar o seu poder, embora, como observa Vanaik, o seu declínio eleitoral não tenha sido tão acentuado como em outras regiões, dado que o desafio de competir com o Partido do Congresso "tem obrigado o partido a comportar-se periodicamente como uma oposição militante em favor do povo".

Por outro lado, a Índia tem um movimento maoísta extraparlamentar. O entendimento maoísta da sociedade indiana como semifeudal e semicolonial está na base da sua estratégia de Guerra Popular Prolongada. Teoricamente, isso significaria ir cercando progressivamente as áreas urbanas do país com uma luta armada travada no campo. No entanto, na última década, em vez de cercar as cidades, os maoístas viram-se sob o cerco das forças armadas em pequenas bolsas da Índia central e o poderoso exército do estado indiano irá provavelmente ganhar terreno com o passar do tempo. Como o autor corretamente observa, a política do Maoísmo Indiano constitui um beco sem saída.

Vias para o poder

Vanaik defende que a única verdadeira opção para a luta contra o neoliberalismo Hindutva é um projeto de longo prazo de construção de uma nova esquerda indiana. O último capítulo do livro de Vanaik entronca num debate que se tem desenvolvido ao longo dos últimos anos sobre diferentes estratégias para alcançar o poder, inspirado pela crescente importância de forças de esquerda na Europa e nos Estados Unidos. A importância deste capítulo ultrapassa assim as fronteiras do contexto indiano.

O autor distingue entre duas grandes teorias de transformação socialista e da sua relação com as instituições políticas existentes (parlamentos, presidências, etc.). A primeira, que o autor designa de "teoria do portal de passagem", vê essas instituições como um caminho para a transformação socialista, permitindo a um partido socialista formar governo e promover reformas até que o equilíbrio de poder se altere em favor da classe trabalhadora. A segunda é a que o próprio Vanaik defende: a "teoria do bastião", segundo a qual os movimentos socialistas devem seguir um caminho diferente para o poder, entrando em conflito com as antigas instituições de governo.

De acordo com esta teoria, um momento de grave crise dará origem a uma oportunidade para capturar o poder do Estado e transformar o carácter de classe do Estado, passando necessariamente por um período de coexistência de duplo poder, no qual o poder do estado burguês existente deverá enfrentar o desafio de estruturas paralelas sob controlo popular direto. É um modelo que recorda os sovietes de 1917 na Rússia, a revolução (frustrada) nas áreas dominadas pelos republicanos durante a Guerra Civil Espanhola e outros episódios semelhantes.

Vanaik conclui sem dizer muito sobre o futuro da esquerda indiana em particular, desvalorizando os partidos de esquerda existentes: “A única opção realista é a criação de uma nova força de esquerda, muito mais radical, através de um processo que durante muito tempo será de acumulação molecular, mas também através de divisões e fusões entre os partidos de esquerda existentes”. Embora o autor manifeste esperança de que "revoltas populares radicais" possam permitir que este novo movimento de esquerda "cresça de modo muito mais repentino", ele afirma também que o calendário dessas revoltas não pode ser previsto no momento presente.

Populismo de esquerda ao estilo indiano

Existem algumas peculiaridades da política e da sociedade indianas que devem ser tidas em consideração se se quiser formular uma estratégia de esquerda viável para o país. Em primeiro lugar, a Índia é um país onde mais de metade da população ainda depende da agricultura, apesar da proletarização acelerada das últimas décadas.

A maioria dessas pessoas, na terminologia marxista, são pequenos produtores de mercadorias, que não se confrontam com o seu explorador diariamente, ao contrário do que acontece com os membros da classe trabalhadora. Não podem lutar por salários mais altos ou melhores condições exigíveis a um empregador. Na ausência de melhores oportunidades de emprego agarram-se a pequenos lotes de terra, produzindo cereais suficientes para satisfazer as suas necessidades básicas de sobrevivência.

Em segundo lugar, 52% da força de trabalho total da Índia são trabalhadores independentes ou por conta própria. Para além dos agricultores já referidos, que representam 60% destes trabalhadores independentes, existem ainda vendedores ambulantes, pequenos lojistas e ocupações profissionais semelhantes. Apenas 4% dessas pessoas emprega no seu negócio outro trabalhador assalariado. Os empregados com contratos formais representam apenas um quarto da força de trabalho da Índia. O êxodo em massa de pessoas pobres das cidades indianas para as suas regiões nativas durante o confinamento induzido pela pandemia revelou em toda a sua extensão a precariedade das suas vidas laborais.

Se a democracia indiana sob o atual regime Hindutva tem vindo a perder rapidamente todas as características de uma democracia liberal, o sistema eleitoral do país permaneceu bastante sólido desde a independência e poderia ainda ser usado para combater as forças de extrema-direita. Para a maioria dos trabalhadores independentes indianos, as reivindicações populistas de esquerda dirigidas ao Estado constituem um apelo muito mais percetível do que a luta de classes nos locais de produção. Os protestos dos agricultores estão a ganhar força em torno de questões como o perdão das dívidas, a aquisição pelo governo da sua produção a preços fixos e a criação de empregos.

Para conseguir o apoio popular, a esquerda indiana precisa de apresentar um projeto coerente, nos moldes do Green New Deal ou do Medicare For All nos Estados Unidos. É algo que o movimento de esquerda indiano deve começar a fazer imediatamente para começar a mudar o seu futuro e tirar a política indiana da sua atual situação calamitosa.

Colaborador

Amol Singh é um ativista e investigador independente residente no Punjab.

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